A esfera pública como modelo normativo de tomada de decisão em desastres
Charles Feldhaus[1]
Universidade Estadual de Londrina
charlesfeldhaus@yahoo.com.br
1 INTRODUÇÃO
Provavelmente o primeiro grande desastre natural que causou repercussão na comunidade filosófica tenha sido o terremoto de Lisboa no dia de todos os santos de 1755. Esse acontecimento levantou a questão da bondade divina diante de tamanho infortúnio causado à humanidade. Voltaire, Leibniz e Rousseau foram as figuras predominantes nesse debate, mas outros filósofos, entre eles Kant, não deixaram de contribuir de alguma maneira ao menos para o debate científico a respeito das causas dos terremotos. Entretanto, eu diria que esses eventos ainda são muito pouco debatidos entre os filósofos na contemporaneidade. Juergen Habermas, o pensador que dá nome a esse colóquio, sempre procura se manifestar em periódicos europeus a respeito dos temas do momento. A pandemia do Covid 19 não seria nenhuma exceção. É possível encontrar numa busca rápida na internet uma entrevista de Habermas com o título: “A solidariedade é a única cura”. Nessa entrevista ele discute o valor da dignidade humana e sua incorporação nos ordenamentos nacionais, o que, por sua vez, proíbe os Estados nacionais de tomar qualquer decisão que implique na morte deliberada de seus cidadãos. O que acredito que seria mais uma razão para os Estados nacionais pensarem seriamente naquilo que vai ser denominado a seguir de ‘preparação para desastres’ e não apenas focar em ações que evitam a morte deliberada de cidadãos ou naquilo que vai ser denominado a seguir de ‘resposta para desastres.” Ressalto já de antemão que pretendo abordar aqui menos o que Habermas diz na entrevista supracitada depois do início da pandemia do Covid 19 e muito mais pretendo aqui na forma de um ensaio tentar pensar em que medida as ferramentas teóricas da ética do discurso poderiam ser relevantes para debater algumas questões éticas e política relacionadas com o enfrentamento de desastres e uma pandemia, como será possível observar, é um evento de desastre em qualquer definição apropriada do termo. Dessa maneira, a questão aqui é uma questão de ética aplicada ou ética prática, em particular de aplicação de teorias normativas aos casos concretos. Todavia, antes de aplicar teorias morais às questões concretas é sempre importante traçar distinções claras a respeito do que se está de fato discutindo a fim de evitar adentrar em pseudo problemas.
2 UMA DEFINIÇÃO PLAUSÍVEL DE DESASTRE
Quando se pensa em desastres, se pode imaginar uma grande diversidade de eventos bastante distintos, mas que em função de poderem ser agrupados numa única definição devem possuir elementos em comum. Porém, é preciso começar apontando que a definição de desastres não pode ser considerada completamente neutra, ao menos não é essa a percepção do emprego do termo na mídia e nos meios de comunicação em massa em geral. Dependendo quem são as vítimas de tais eventos, o termo pode ser empregado para descrever alguns desses eventos ou não, ou seja, pode existir algum preconceito na maneira como o termo é empregado. Muitas vezes a mídia emprega o termo ‘desastre’ para se referir a um acidente de automóvel que mata uma única pessoa, mas evita empregar o respectivo termo para uma catástrofe natural que mata centenas de pessoas em países periféricos. Se poderia tentar especular aqui se seria apenas uma imprecisão definição ou um comprometimento implícito com o valor intrínseco das vidas humanas de pessoas que vivem em alguns países e não em outros, o que novamente traria à tona o ponto ressaltado por Habermas na entrevista supracitada, que é preciso reconhecer o valor intrínseco da vida humana, é preciso reconhecer o valor da dignidade da pessoa humana independente do Estado nacional ao qual ela porventura venha a pertencer. Porém, a despeito de toda variabilidade na maneira como o termo pode ser empregado cotidianamente ou na mídia em geral, se poderia buscar uma definição mais plausível de desastre e Naomi Zack, em Ethics for Disaster, um livro que já parece ter se tornado um clássico no debate sobre desastres, define desastre da seguinte maneira:
Um desastre é um evento (ou uma série de eventos) que causa danos ou mata um número significativo de pessoas ou então prejudica severamente ou interrompe suas vidas diárias na sociedade civil. Desastres podem ser naturais ou o resultado acidental ou deliberado da ação humana. (...) desastres sempre ocasionam surpresa e choque; eles são não desejados por aqueles afetados por eles, embora nem sempre imprevisíveis. Desastres, portanto, geram narrativas e representações da mídia do heroísmo, falhas, e perdas daqueles que são afetados e respondem. (2009, ZACK, p. 7) (minha tradução)
Se aplicamos essa definição ao evento que estamos vivenciando hoje, será possível perceber que se trata de um desastre. A pandemia atual mata muitas pessoas, prejudica ou interrompe a vida diária na sociedade civil. É um evento provavelmente causado pela ação humana, provavelmente o avanço da ação humana no desmatamento e na destruição da vida selvagem cria um contato mais frequente entre seres humanos e animais silvestres. Esses animais muitas vezes carregam cepas novas de algum vírus e ao ter contato com algum ser humano ocorre a contaminação e o resultado todos sabemos. Digo provavelmente porque ainda será feito um estudo científico a fim de tentar localizar o paciente número zero e como ele teria sido contaminado e talvez seja necessário esperar um bom tempo para ter uma resposta definitiva, se de fato for possível alcançar alguma resposta definitiva a respeito das circunstâncias que desencadearam a pandemia do COVID] 19. Além disso, embora a todos não seja nenhum segredo que essa relação próxima com animais silvestres tem o risco de contágio de doenças ou cepas novas de doenças, não se pode prever com absoluta certeza quando isso vai acontecer. Por isso a pandemia que vivemos também pode ser considerada um evento imprevisível. Nossos heróis atuais são os agentes de saúde em geral que travam uma batalha a cada dia, colocando até mesmo suas vidas em risco, para salvar pessoas nas unidades de atendimento intensivo dos hospitais. Menos visíveis são outros heróis buscando encontrar uma vacina para a doença em questão. Também existem os pequenos heróis, que apesar do risco de contágio, precisam continuar trabalhando para manter o fornecimento de bens básicos de sobrevivência. Somente o tempo vai mostrar os heróis e talvez até mesmo os vilões nas narrativas a respeito do evento. O ponto aqui é que definir um evento como um desastre parece trazer uma conotação moral forte e exigir algum tipo de ação humana. A ideia de fundo parece ser que quando pessoas são colocadas em situações desfavorecidas em função de fatores adversos a suas ações e as suas vontades isso acarreta obrigações de algum tipo de assistência por parte das pessoas que se encontram em melhores posições no mesmo momento histórico. Em outras palavras, esse tipo de situação costuma levantar grande comoção e grandes esforços no sentido de minimizar os infortúnios. Não por acaso vários países do mundo adotaram medidas no intuito de criar um tipo de auxílio financeiro às pessoas em condição de maior vulnerabilidade social. Eventos de desastres costumam ter efeitos mais acentuados nas camadas sociais menos abastadas, razão pela qual esse tipo de auxílio se tornou tão necessário e uma obrigação moral.
3 UMA DISTINÇÃO MUITAS VEZES IGNORADA NO DEBATE SOBRE DESASTRES
Quando se discute questões éticas relacionadas com desastres é muito comum focar em dilemas morais semelhantes ao caso do trem desgovernado, ou como às vezes são chamados em inglês The Trolley Problem, que consiste num experimento de pensamento que procura identificar aspectos éticos relevantes. Nesse cenário, a impressão geral é que as duas únicas alternativas disponíveis são deixar o trem seguir o seu curso e colocar em risco a vida de cinco pessoas ou mudar o trem de curso e colocar em risco a vida de uma pessoa. A regra básica nos casos de desastres seria salvar o maior número de pessoas que podem ser salvas. Razão pela qual se costuma pensar que a única coisa que se pode realizar é um cálculo utilitarista de redução de danos. O problema de abordar as questões éticas relacionadas com desastres dessa maneira é que parece supor que existe uma visão moral para a vida cotidiana e uma visão moral, se ainda se pode chamar assim, para eventos de desastres. Regras como aquela apontada na entrevista de Habermas que a vida humana possui um valor inviolável parecem perder em importância. A dignidade humana parece ser colocada em segundo plano, ou ao menos é isso que alguns afirmam que ocorre nesse tipo de evento e por isso há até mesmo quem fale que a ética entra em férias durante eventos de desastres. Eventos de desastres são assimilados a casos de necessidade e necessidade não tem lei. Aqui é importante lembrar o debate clássico da filosofia entre a liberdade da vontade e a necessidade natural. Se não existe liberdade de agir de outra maneira, então seria possível questionar a autoria da ação e consequentemente a atribuição de responsabilidade. Tanto é assim que em alguns desastres históricas em que houve a violação de preceitos morais como o da dignidade da vida humana, mas foi possível mostrar que se trata de caso de extrema necessidade de sobrevivência, tribunais penais reconheceram a violação da regra jurídica de proteção da vida humana, mas permutaram a pena. Claro que uma melhor preparação para esse tipo de eventos poderia evitar a necessidade de violar as regras morais normais durante a vigência de eventos de desastres. Agora se prestarmos atenção a uma distinção traçada por Naomi Zack (2009, p. 18) entre resposta a desastres e preparação a desastres, acredito que seria possível pensar os eventos de desastres como se encontrando sob a mesma moralidade que a vida cotidiana exige. A resposta a desastres ocorre depois que um tal evento aconteceu ou até mesmo está na iminência de acontecer. A preparação para os desastres acontece antes de um desastre acontecer. Zack (2009, p. 19) ressalta que “a preparação para desastres é uma questão ética, e é obrigatória”. É obrigatória porque caso contrário estaríamos dispostos a aceitar uma moralidade ruim como consequência disso. Para colocar de maneira bastante direta meu ponto aqui, se houver uma preparação adequada tenderá a ser menos necessário flexibilizar as regras morais durante desastres e não parece moralmente adequado aceitar uma preparação que não seja orientada pela perspectiva de que devemos salvar não o maior número de pessoas que podem ser salvas, mas uma preparação que se orienta pela perspectiva de salvar todas as pessoas que precisam ser salvas. Qualquer posição diferente dessa está assumindo que algumas vidas humanas não têm valor intrínseco igual as outras. Somente sob tal suposição poderíamos aceitar que uma preparação que se sabe de antemão que é inadequada seja suficiente. Além disso, o objetivo aqui é apontar que o modelo discursivo de ética habermasiano teria um papel importante a ocupar no processo de preparação para desastres. No momento de preparação algumas decisões precisam ser tomadas e a deliberação na esfera pública a respeito de aspectos importantes da preparação para desastres é uma alternativa normativa bastante plausível. Para compreender melhor esse ponto vamos tratar de algumas circunstâncias em que mesmo após a melhor preparação para desastre possível, ainda seria necessário na resposta para desastre optar pela alternativa que apenas seria possível salvar todas as pessoas que podem ser salvas (dada a preparação insuficiente) e não todas as pessoas que tiveram suas vidas colocadas em risco pelo evento em questão.
4 APESAR DA PREPARAÇÃO ADEQUADA, AS COISAS PODEM NÃO CORRER BEM!
Porém, mesmo que a preparação se oriente pela perspectiva que devem ser salvas todas as pessoas e não apenas o maior número que pode ser salvo, desastres muitas vezes trazem fatores inesperados e podemos sim precisar se orientar pela regra consequencialista que devemos salvar o maior número de pessoas que podem ser salvas. Precisamos em muitos casos selecionar entre todas as pessoas que podem ser salvas apenas um número limitado delas. Daí surge a questão: como realizar esse tipo de triagem entre as pessoas que devem ser salvas? Bom, é aqui que acredito que a ética do discurso pode trazer alguma contribuição interessante. Aqui é onde se pode dizer que a ética do discurso pode mostrar que não deixa “sem resposta às questões de aplicação” (HABERMAS, 1999, p. 26). Uma vez que não parece a melhor alternativa deixar o processo de tomada de decisão a respeito de quem deve receber atendimento primeiro num desastre, caso a triagem seja necessária, apenas na mão dos especialistas e das autoridades políticas. É sempre possível que interesses pessoais e as pressões do momento levem a decisões distorcidas ou até mesmo inadequadas. Além disso, o critério de triagem deve ser discutido amplamente antes da ocorrência do evento, ou seja, ainda durante o processo de preparação a desastres. A esfera pública como critério normativo da ética discursiva habermasiana poderia ocupar um papel importante aqui. Em Notas programáticas para fundamentação de uma ética do discurso, Habermas (1989, p. 86) enuncia o princípio básico da ética do discurso da seguinte maneira: “uma norma sódeve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma.”. O discurso prático, ao qual Habermas se refere aqui, poderia ser compreendido como a esfera pública ou um espaço amplo de discussão de temas. O que é importante reafirmar é que deve acontecer ainda antes da ocorrência do desastre. Naomi Zack (2009, p. 24) sugere algo semelhante ao experimento de pensamento da posição original de Uma teoria da Justiça de John Rawls para lidar com as questões pertinentes à triagem de desastres. Não deixo de reconhecer que tal experimento pode ter alguma pertinência, uma vez que leva a se considerar a questão de um ponto de vista imparcial, buscando evitar a todo custo o emprego de variáveis individuais que pudessem favorecer qualquer grupo específico de maneira não justificada. A crítica de Habermas a esse mecanismo de representação está na maneira como ele operacionaliza “o ponto de vista da imparcialidade” (HABERMAS, 1989, p. 87). A imparcialidade termina consistindo num processo monológico e individual realizado privadamente por cada um dos concernidos e não um debate real baseado na força dos melhores argumentos na esfera pública da sociedade. Alguns aspectos da teoria da justiça rawlsiana poderiam sim ser empregados no decorrer de um debate racional a respeito do melhor procedimento de triagem, porém quem apresentasse tal perspectiva precisaria fazer apenas na condição de um teórico que contribui ao debate e não como um especialista no assunto. A razão para evitar isso é que “só uma efetiva participação de cada pessoa concernida pode prevenir a deformação na perspectiva de interpretação dos respectivos interesses próprios pelos demais” (HABERMAS, 1989, p. 88). Evitar que preferências e interesses apenas pessoais prejudique a determinação de um critério de triagem de pessoas no atendimento médico de pessoas afetadas por um desastre, na hipótese de, mesmo após uma preparação o mais adequada possível para salvar todas as pessoas, alguma circunstância inesperada fez com que precisássemos adotar a regra que se deve salvar apenas o maior número de pessoas que podem ser salvas precisasse ser aplicada ao evento de desastre em questão. No modelo discursivo, cada concernido é intérprete de seus próprios interesses, embora essa interpretação também seja avaliada pelos demais numa discussão prática em que vale apenas a força do melhor argumento. Todos têm o interesse em ser atendidos, todos têm um interesse em ter o valor intrínseco de sua vida humana respeitado e de receber um tratamento igualitário. Porém, é preciso acrescentar ainda, que isso não significa que nenhum tipo de prioridade no atendimento das pessoas não possa ser acordada nos discursos práticos, na deliberação na esfera pública, mas essa prioridade deve ser baseada em argumentos que poderiam ser aceitos por todos como participantes desse discurso prático e não baseado apenas em critérios técnicos elaborados por especialistas da área de saúde ou gestão pública. Esses especialistas também possuem uma voz relevante no debate, mas não a única. O ponto da questão é que mesmo aqueles que não se encontram entre os que vão receber atendimento prioritário deveriam concordar que os argumentos apresentados são suficientes para justificar a prioridade dada a um certo grupo de pessoas no atendimento, se, por causa de uma preparação inadequada, ela tiver que existir. Além disso, sem que aconteça uma deliberação prévia apropriada ainda no momento da preparação a desastres, se a triagem for necessária no momento da resposta para desastre, o risco de arbitrariedade no estabelecimento de critérios pode ser alto numa discussão afetada fortemente pela pressão das circunstâncias do desastre e por causa disso nessas circunstâncias o melhor critério provavelmente seria recorrer a algum critério como a sorte ou simplesmente seguir a ordem de chegada das pessoas que precisam de atendimento.
Mas no que diz respeito a grupos prioritários, geralmente se aplica em desastres alguma regra similar àquela aplicada ao tratamento médico em conflitos militares. Não vou entrar no mérito das similaridades e da falta de similaridades entre as duas práticas aqui. Mas o fato é que num conflito militar soldados que podem entrar rapidamente em combate muitas vezes são atendidos primeiro exatamente porque isso maximiza o bem-estar do curso de ação escolhido ou é vantajoso para todos para aplicar uma das primeiras versões do princípio da diferença de Rawls, que ainda não inclui uma posição social relevante. No caso de desastres, o atendimento a profissionais da área de saúde de modo prioritário poderia ser justificado por raciocínio semelhante. Quanto mais profissionais da área de saúde saudáveis tivermos, mais pessoas atendendo pessoas doentes teremos num curto espaço de tempo. A desigualdade de tratamento na triagem de doentes se justifica com base no seu caráter vantajoso a todos ou se poderia dizer do menos favorecido na distribuição de saúde, que são as pessoas com saúde prejudicada pelo desastre. Na verdade, a regra da prioridade a grupos seria justificada nesse caso através de uma deliberação prática 59 transparente a todos na esfera pública e não através do acesso cognitivo privilegiado de um teórico da justiça. Também não seria justificado pela privação de informações numa escolha meramente hipotética, mas por uma apresentação plena das informações que tornaria claro a todos que conceder esse tipo de prioridade é vantajoso para todos. Na verdade, a própria regra de que devemos dar prioridade quando isso traz vantagens a todos, ou a algum grupo menos favorecido, seria ela mesma alvo de escrutínio na esfera pública da sociedade, não uma mera descoberta de um teórico através de um procedimento hipotético de escolha. A regra entra como uma contribuição de intelectuais no grupo que delibera sobre como lidar com a triagem em casos de desastres e não como uma premissa já fundamentada.
Naomi Zack (2009, p. 25) sustenta que:
Uma maneira de assegurar equidade a respeito de quem deve decidir o que o plano de resposta deveria ser dados os recursos escassos, seria permitir a discussão pública ampla de como recursos escassos devem ser alocados. Tal discussão pública é de fato uma exigência estabelecida do modelo de plano de resposta agora aceito amplamente (...) numa sociedade democrática (...) pareceria ser imperativo eticamente perguntar ao público, como uma questão de política pública orientada por princípios.” (minha tradução)
Claro, que deixar essa decisão completamente à esfera pública de uma sociedade democrática tem seus riscos, uma vez que se as pessoas optassem por não conceder nenhum tipo de prioridade no atendimento das vítimas de um desastres diferente da ordem de chegada, por exemplo, essa questão já estaria resolvida durante o processo de preparação de uma resposta a desastres. Embora aqui se deveria perguntar se o modelo de democracia discursivo habermasiano se reduz simplesmente à decisão da maioria ou da maior parte das pessoas na esfera pública. A resposta claramente parece ser não. Primeiro, porque o modelo de esfera pública das eclusas ou comportas supõe que o poder administrativo do Estado deveria estar disposto a levar em consideração as deliberações que acontecem no espaço público; em segundo lugar, a democracia discursiva supõe o respeito aos direitos humanos ou aos direitos fundamentais como restrição ao próprio processo de tomada decisão. Além disso, o conteúdo dos direitos fundamentais é em grande medida também resultado do próprio processo de tomada de decisão no espaço público, uma vez que as categorias de direitos fundamentais são insaturadas. Garantem apenas o procedimento de tomada de decisão e estão abertos a receber conteúdo do próprio 60 processo de tomada de decisão. A soberania popular e os direitos humanos são elementos co originários no modelo de democracia discursiva habermasiano.
6 E NUMA PANDEMIA, O QUE O DEBATE PÚBLICO PODERIA FAZER?
Hoje vivemos numa situação de desastre, uma vez que uma pandemia é em qualquer definição aceitável do termo, um tipo de desastre. Quando Naomi Zack escreveu seu livro era recente a pandemia de gripe aviária. Por causa disso ela tece algumas considerações a respeito das implicações éticas de uma pandemia de gripe e o caso da Covid 19 se enquadra nesse tipo de caso. Mesmo que aceitamos a distinção entre preparação a desastres e respostas a desastres e reconheçamos que uma resposta mais adequada é um imperativo ético, uma pandemia é um evento bastante complexo de prever. Zack (2009, p. 19) afirma que existem três obstáculos a uma preparação adequada a uma pandemia. Primeiramente, um problema relacionado com a produção da vacina, a saber, mesmo que fosse possível produzir vacina para metade ou mais da população, existe uma grande dificuldade em prever a cepa específica de uma gripe que vai aparecer e ainda poderia surgir uma nova cepa por mutação, em outras palavras, estaríamos lidando com uma meta que muda continuamente (em inglês, se trata de uma changing target); em segundo lugar, mesmo que sejamos capazes de identificar essa nova cepa de vírus rapidamente, leva meses, senão anos, para desenvolver uma nova vacina que seja eficiente, uma vez que uma cepa nova foi identificada (novamente em inglês, existe um relativamente grande time frame); é importante lembrar que, quando apresentei essa conferência no Colóquio de 2020 ainda, apesar de alguns progressos surpreendentes no desenvolvimento de vacina para Covid 19, ainda estávamos aguardando ansiosos por teste mais abrangente da eficiência das vacinas; hoje há existem algumas vacinas disponíveis no mercado e alguns países já têm aplicado a vacina a uma parcela de sua população; outros países tem encomendado aos grandes laboratórios doses da vacina, enquanto outros países se demonstram mais relutantes na aquisição da vacina. Um tipo de disputa ideológica tem se mostrado um fator adicional no aumento da complexidade de oferecer uma resposta adequada ao desastre pandêmico que estamos enfrentando. A polarização política de algumas sociedades em tese democráticas contemporâneas afeta negativamente a uma resposta mais eficiente ao 61 desastre. Esse fator precisa ser mais bem considerado em discussões futuras a respeito da ética em desastres. Por fim, é preciso lembrar que existem recursos limitados em termos de camas de hospital, ventiladores, medicamentos antivirais atualmente existentes e dificilmente solucionável numa dimensão global a curto prazo em países que muitas vezes têm dificuldade em fornecer tratamentos médicos básicos a grande parte da população.
7 CONCLUSÃO
Como foi possível observar, eventos de desastres trazem grandes complexidades às teorias morais e não por acaso são frequentemente aproximados de casos de necessidade. Nesse tipo de cenário a resposta mais adequada costuma ser considerada um cálculo utilitarista de redução de danos, além disso, é muito comum se pensar que os valores morais que são válidos em circunstâncias de normalidade não se aplicam em situações de desastres. Mas como foi mostrado isso não precisa ser assim. A distinção entre resposta para desastres que ocorre na iminência ou depois que um evento assim ocorreu e preparação para desastres que ocorre antes da iminência ou antes que um evento assim ocorreu e a obrigação moral de empreender uma preparação adequada podem fazer com que a violação das regras morais ordinárias não sejam consideradas necessárias e por conseguinte as mesmas regras morais que valem em tempos de normalidade seriam válidas em tempos de desastres. Não obstante, apesar da melhor preparação, desastres costumam trazer como traços constitutivos serem eventos com algum tipo de imprevisibilidade e por isso é possível que mesmo após uma preparação adequada não seja possível salvar todas as pessoas e isso exige fazer um tipo de escolha sobre quem deve ser atendido primeiro, o que costuma ser denominado de triagem no atendimento das vítimas de um desastre. Foi defendido que o critério de triagem de vítimas deve ocorrer ainda durante o período de preparação (mesmo que aplicado apenas na resposta para desastres), a fim de evitar que a pressão do evento ofusque a tomada de decisão. Além disso, foi defendido que uma concepção de tomada de decisão orientada pela ética do discurso e pela concepção de democracia deliberativa habermasiana poderia ser uma concepção normativa frutífera para esse tipo de situação, uma vez que promove um debate amplo e abrangente a respeito de como 62 alocar os recursos escassos de atendimento de vítimas no caso de uma preparação insuficiente, dado alguma circunstância imprevista do evento de desastre. Até mesmo os critérios de prioridade, se alguma precisar existir, devem ser decididos através de procedimentos discursivos durante o período de preparação para desastres.
REFERÊNCIAS
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HABERMAS, Jurgen. A solidariedade é a única cura. Entrevista com Juergen Habermas. Revista IHU On Line. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78- noticias/597983-a-solidariedade-e-a-unica-cura-entrevista-com-juergen-habermas. Acesso: 18 set. 2020.
RAWLS, J. A Theory of justice. Revised Edition. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
RAWLS, J. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 1993.
RAWLS, J. A Theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971.
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RALWS, J. Justice as fairness: a restatement. Cambridge: Harvard University Press, 2003.
RAWLS, J. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Editora Ática, 2000.
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RUSH, F. The Cambridge companion to critical theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
ZACK, Naomi. Ethics for disaster. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 2009.
[1]Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.