O Novo Ensino Médio e seus Impactos na cidadania dos estudantes das escolas públicas
a perspectiva habermasiana
Marcelo Pereira de Mello[1]
Universidade Federal Fluminense
marcelopereirademello@gmail.com
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Resumo
Este trabalho analisa os potenciais impactos do chamado Novo Ensino Médio na formação do estudante, especialmente na preparação para o exercício de uma cidadania ativa. Instituída com a Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, a reforma do ensino médio pretende três alterações fundamentais: a primeira, promover o aumento progressivo da carga horária mínima até atingir o período integral. A segunda mudança, criar os “intinerários formativos”, com novas disciplinas, reduzindo relativamente a carga de conteúdos obrigatórios, e permitir ao estudante orientar sua trajetória escolar para os seus interesses, inclinações e necessidades pessoais. A terceira, incentivar e ampliar a oferta do ensino técnico. Nossa avaliação sobre a reforma está ancorada no entendimento de Habermas de que a participação qualificada no debate público requer dos indivíduos o desenvolvimento e o uso de competências expressivas reconhecidas (legitimadas) pela comunidade interpretativa. A educação formal, nesta perspectiva, ao difundir as bases para definição racional dos argumentos e dos meios legítimos para expressão da vontade, visa capacitar e qualificar a participação dos indivíduos no debate público. As conclusões parciais resultantes desta abordagem estão baseadas em estudo empírico realizado na Escola Estadual Reverendo Hugh Clarence Tucker, no Rio de Janeiro. Elas indicam que, embora recentes e incompletas, as mudanças no ensino médio têm potencial para agravar as diferenças sociais entre estudantes pobres e ricos uma vez que as escolas particulares das elites são mais bem preparadas para este ambiente. Além disso, elas têm profissionais mais bem remunerados e cobrados em resultados mensuráveis pela administração escolar e pelas famílias.
Palavras-chave: ensino médio; cidadania; Política
THE NEW MIDDLE EDUCATION SYSTEM IN BRAZIL AND ITS IMPACTS ON THE CITIZENSHIP OF PUBLIC SCHOOL STUDENTS
the Habermasian perspective
Abstract
This work analyzes the potential impacts of the so-called New Secondary Education on student training, especially in preparation for exercising active citizenship. Established with Law 13,415, of February 16, 2017, the secondary education reform intends three fundamental changes: the first, to promote the progressive increase in the minimum school workload until reaching full-time. The second change, creating “training itineraries”, with new subjects, relatively reducing the load of mandatory content, and allowing students to orient their school trajectory towards their interests, inclinations and personal needs. The third, encourage and expand the offer of technical education. Our evaluation about the reform will be anchored in Habermas' understanding that qualified participation in public debate requires individuals to develop and use expressive skills recognized (legitimized) by the interpretive community. Formal education, from this perspective, by disseminating the bases for the rational arguments and legitimate means for expressing one's will, aims to enable and qualify the participation of individuals in the public debate. The partial conclusions resulting from this approach are based on an empirical study carried out at the Reverend Hugh Clarence Tucker State School, in Rio de Janeiro. They indicate that, although recent and incomplete, changes in secondary education have the potential to worsen social differences between poor and rich students since elite private schools are better materially prepared to act in this ambient. Furthermore, they have better paid professionals who are charged with measurable results by school administration and families.
Keywords: high school; citizenship; policy
1 INTRODUÇÃO
A lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que instituiu a reforma do ensino médio, acena para três alterações fundamentais: a primeira, o aumento progressivo da carga horária até atingir o chamado período integral. A segunda mudança, pretende criar os “intinerários formativos”, com o propósito de afunilar as disciplinas formativas e permitir ao estudante orientar sua trajetória escolar para seus interesses e inclinações pessoais, seja para a formação acadêmica ou orientadas para o mercado de trabalho. A terceira, visa ampliar a oferta de vagas no ensino técnico.
Transcorridos 5 anos desde a sua promulgação não temos ainda resultados mensuráveis sobre a eficácia ou iniquidade das mudanças instituídas pela referida lei 13.415, seja no campo acadêmico ou no campo profissional. Na formação acadêmica do estudante, principalmente no que diz respeito ao seu acesso à universidade, o melhor indicador é o desempenho no ENEM. No entanto, em parte devido aos problemas de implementação das mudanças legais da reforma, especialmente nas redes públicas, o exame ainda não incorporou em suas questões o formato e as mudanças de conteúdo instituídas pela reforma. Tampouco, sabemos se as mudanças instituídas até aqui ampliaram, diminuiram ou nada fizeram quanto ao acesso destes estudantes ao mercado de trabalho. Por serem mudanças muito recentes e ainda incompletas não dispomos de dados para afirmar se elas aumentaram ou não a “empregabilidade” dos alunos. Por fim, desconhecemos a avaliação dos próprios estudantes e seus familiares com respeito aos efeitos práticos da reforma sobre as suas escolhas de vida e profissionais[2].
O contexto de desorientação das autoridades públicas de educação na implementação da lei, resultado das poucas discussões entre as administrações estadual e federal, e com a própria comunidade escolar, foi recentemente agravado com o anúncio, em 04 de abril de 2023, da suspensão da aplicação das regras do novo ensino médio. Conforme as alegações do ministro da educação, Camilo Santana, o governo passado não promoveu discussões suficientes com entidades de educação na elaboração do novo currículo; e que ele requer aprimoramentos. O novo ensino médio, prossegue o ministro, da forma como foi pensado, não é compatível com a estrutura e os recursos disponíveis nas unidades da rede pública[3].
Acompanhando os efeitos práticos desses acontecimentos a partir de uma escola da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, constatamos um certo ambiente que podemos descrever como de incredulidade e passividade da comunidade escolar frente as alterações propostas. Na verdade, alguma inconformidade dos docentes com o Novo Ensino Médio foi expressa durante a greve dos professores do estado no primeiro semestre de 2023, no bojo das manifestações de reivindicações de melhoria salarial. Claro está, conforme nossa observação e consoante à manifestação do próprio ministro da educação, que não há estrutura física e recursos materiais na maioria das escolas públicas para implementar satisfatoriamente as reformas projetadas.
Na Escola Reverendo Clarence, na Gamboa, Rio de Janeiro, percebe-se uma certa descrença com as reformas propostas pela lei 13.415/17. Em primeiro lugar, assim como acontece na rede pública em geral, as disciplinas da nova grade curricular implantada com a reforma são ministradas pelos mesmos professores. Para satisfazer as exigências legais eles passaram a ministrar além de seus conteúdos tradicionais, outros semelhantes às suas disciplinas originais, mas com outros nomes. Alguns, adotaram a fórmula de estender e dividir os conteúdos tradicionalmente dados nas suas disciplinas de origem em módulos ofertados nas novas matérias. Os que adotam essa estratégia afirmam que tiveram as cargas horárias de suas disciplinas diminuídas e que não conseguem com elas cobrir os conteúdos que consideram imprescindíveis para o aprendizado de sua matéria. Essa situação, naturalmente, não ajuda na percepção das mudanças. Na verdade, as mudanças propostas ainda não foram tão sensíveis assim.
As instalações físicas e a infraestrutura da escola pesquisada confirmam as preocupações do atual ministro e das autoridades estaduais de educação, no que respeita a consecução dos seus objetivos gerais, especialmente o ensino em turno integral. A escola Reverendo Clarence está instalada em uma ampla área na região da Gamboa, centro do Rio de Janeiro, no sopé do Morro da Providência. O prédio escolar faz divisa com o Cemitério dos Ingleses, na antiga região portuária do Rio, e é possivel ver de dentro das salas de aula dos segundo e terceiro andares as cruzes e os adornos típicos das sepulturas. Pelo lado esquerdo do terreno há um túnel viário que liga a estação ferroviária Central do Brasil aos bairros da Gamboa e Saúde. Na direção de quem da Central para a Gamboa, a escola fica há uns duzentos metros da saída do túnel. O acesso ao prédio da escola é difícil para quem está à pé. É necessário subir uma longa viela calçada até o primeiro pátio que serve de estacionamento para os professores e depois há uma rampa acimentada e uma escada para se chegar até a portaria.
O complexo de edificações, entre as quais está situada a escola, fica num extenso pátio com prédios antigos e deteriorados, alguns abandonados, e que estão distribuídos irregulamente no terreno. Em tons de amarelo e cinza desbotados, esses prédios pertencem às obras de caridade de uma igreja protestante. São todos antigos, mas foram construídos em épocas diferentes conforme denunciam as suas arquiteturas e posicionamentos. A escola, propriamente, está instalada em prédio de construção moderna, mas com arquitetura muito simples e sem maiores preocupações com o conforto e estética, apenas a funcionalidade de corredores com salas dispostas nos dois lados. A entrada da escola é gradeada e permanece trancada durante o período das aulas. No primeiro andar, o espaço interno, estreito, é distribuído entre salas da administração, biblioteca, uma sala maior utilizada pela secretaria e duas salas menores da direção e vice-direção. Há, ainda, um refeitório e dois banheiros, masculino e feminino. Um terceiro banheiro é privativo para servidores e funcionários. Nos dois andares acima, estão distribuídas as salas de aula. No segundo andar há uma pequena sala de informática com muitos equipamentos fora de uso. As salas de aula possuem ar condicionado do tipo split. Os alunos da escola têm acesso à Internet pela rede Wi Fi da escola. As aulas de educação física são realizadas numa das construções antigas da igreja. Trata-se de um ginásio esportivo velho e precisando de muitas reformas para melhorar o conforto dos estudantes e professores.
Comparada às escolas públicas do passado, no entanto, as instalações e os serviços oferecidos aos estudantes da Reverendo Clarence, tais como alimentação, livros, climatização, computadores, até que são muito melhores. Mas, estão longe de suportarem as exigências impostas pela reforma, especialmente no que respeita aos “intinerários formativos”. Por exemplo, para os alunos vocacionados para as áreas de saúde, química e física não há laboratórios de análises clínicas, equipamentos, reagentes ou microscópio. Para os vocacionados para as ciências exatas não há também qualquer oficina e equipamentos apropriados para experiências e protótipos.
Dentro do foi possível acompanhar das exigências legais instituídas pela reforma, a escola inseriu em sua grade curricular novas disciplinas: “Projeto de Vida”, com extensa carga horária; “Falar mais, viajar melhor”; “Cidadania e meio ambiente”; “Curiosidade e investigação científica”; “Arte”; “Energia e sustentabilidade”; “Meu lugar turístico”; “Práticas sustentáveis diversificadas”; “Por dentro do roteiro”. Como dissemos, a maior parte desses novos conteúdos passaram a ser ministrados pelos mesmos professores da escola ocupados com as disciplinas tradicionais: geografia, português, ciências. Não houve alteração significativa da carga horária total, e a escola continua a funcionar em três turnos, sem qualquer perspectiva no momento de implantar o turno integral para os estudantes.
Face às mudanças efetivamente realizadas até aqui, e também às novas exigências legais do chamado Novo Ensino Médio, procuramos avaliar se os pressupostos e as idéias gerais da reforma estão contribuindo, poderão contribuir ou não para o incremento da participação cidadã dos estudantes, de professores, funcionários e familiares, membros da comunidade escolar, nos processos políticos de gestão dos bens públicos. Instituição social dedicada à habilitação dos indivíduos para a participação qualificada na vida pública, i. e., na definição dos direitos e deveres dos membros da comunidade política, qualquer mudança na escola e no sistema de ensino invoca a atenção coletiva.
2 Dificuldades e desafios para o ensino médio no Brasil
A universalização do ensino médio no Brasil, aquela situação em que todo jovem em idade escolar esteja cursando o ensino médio, é um objetivo que começou a ser perseguido pelas autoridades públicas de ensino nos últimos trinta anos. Como resultado desses esforços, o número de estudantes em idade adequada, matriculados no ensino médio, passou de 15% em 1985 para 77% em 2022. O sistema de ensino apresentou melhoras significativas nesse período, especialmente quantitativas, mas ainda assim precisa avançar para chegar à média dos países da OCDE. No Brasil, entre os anos de 2021 e 2022, por exemplo, o número de estudantes matriculados no ensino médio caiu 5,3%. Apesar da redução, houve um aumento de 10,5% no número de alunos em tempo integral, o que pode ser interpretado como efeito das primeiras mudanças instituídas pelo novo ensino médio[4]. A evasão escolar na escola pública, por sua vez, também é significativa. Em 2021, a média nacional girou em torno de 5,6%[5]. Os últimos dados do INEP/MEC, no entanto, dão conta de que em 2022 houve uma pequena recuperação no número de matrículas. Segundo o Instituto, foram registradas 7,9 milhões de matrículas no ensino médio (um aumento de 1,2% em relação a 2021)[6].
As razões para a interrupção prematura dos estudos pelos jovens brasileiros são inúmeras e as explicações também são múltiplas.
As explicações dos economistas tendem a enfatizar as questões estruturais relativas à distribuição da renda e à desigualdade social (SALVATO et alii, 2010). A concentração dos recursos e a consequente desigualdade na distribuição da renda, resultado da captura pelas elites das maiores fatias do orçamento público federal, faz com que o ensino público básico seja relegado às últimas posições no rol das prioridades dos gastos (FRANCA, 2013). Ainda com este viés econômico, mas em outra direção, algumas explicações afirmam que os recursos disponíveis para o sistema, embora não sejam abundantes, escassos também não seriam (GOLDENBERG, 1993). Apontam distorções entre os montantes aplicados no ensino superior e na educação fundamental e, para agravar, afirmam que o dinheiro alocado na educação básica sofre a ingerência de interesses políticos e isso gera ineficiência na alocação das verbas públicas, quando não desperdício (DIAS et alii, 2015). Segundo estas perspectivas econômicas todos esses fatores afetariam o rendimento escolar dos estudantes das escolas públicas, medido pelo Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), com as consequentes altas de taxas de reprovação dos seus estudantes nos concursos de seleção para o ensino superior. Outros fatores indiretos também são apontados por estes analistas como influentes no rendimento escolar. Famílias com maior poder aquisitivo podem pagar pelo ensino suplementar, de línguas, por exemplo, e outros apoios extraescolares como cursos pré-vestibulares, o que torna os alunos de maior renda mais competitivos que os de menor renda (SILVA et alii, 2017). Por fim, essas perspectivas enfatizam a pressão familiar para que os jovens pobres, maioria entre os alunos das escolas públicas, contribuam com a renda familiar. Eles são confrontados mais cedo com a necessidade de trabalhar para ajudar nas despesas familiares e por isso têm que conciliar trabalho e estudo (RIBEIRO, R. e NEDER, H., 2009).
Um segundo conjunto de explicações para o acesso restrito dos estudantes da rede pública às universidades e ao mercado de trabalho se concentra no exame do próprio sistema de ensino. De modo geral, analistas que focam nesta questão enfatizam as deficiências das instalações físicas das unidades da rede pública de ensino, o regime de trabalho inadequado dos professores, os baixos salários e a carência crônica de recursos materiais como as principais variáveis para entender o problema (VASCONCELOS et al., 2021). Essas condições, afirmam, resultam em professores e funcionários insatisfeitos, escolas com equipamento tecnológico defasado e insuficiente para atender a todos os estudantes, quando não recursos básicos como computadores e laboratórios inexistentes. Daí o baixo rendimento dos seus estudantes (BARBOZA, A., 2014). Neste polo das discussões podemos situar aqueles que defendem uma ampliação da oferta de ensino profissionalizante em nível correspondente ao ensino médio. Eles afirmam que a formação generalista do ensino médio brasileiro não prepara o estudante para as carreiras liberais clássicas e, tampouco, o habilita para as profissões de nível técnico, que favoreceria a sua entrada no mercado formal de trabalho. Seus defensores, acenam para as estatísticas de países desenvolvidos que possuem uma oferta bem maior para a formação de profissionais em nível técnico. A necessidade de emprego e renda para o jovem é outro dos argumentos utilizados pelos que advogam o incremento dos cursos técnico-profissionalizantes no ensino médio.
Há uma terceira perspectiva analítica que se concentra no exame dos próprios mecanismos de seleção dos estudantes para o ensino superior. Alguns estudiosos apontam que a seleção por vestibulares e, agora, pelo ENEM, comprimiram e uniformizaram o ensino médio e o moldaram para responder quase que exclusivamente às exigências dessa seleção que historicamente privilegiou o conhecimento extensivo, horizontalizado e enviesado por uma concepção enciclopédica. Nestes termos, as provas ou exames de seleção para o ensino superior público não privilegiam a realidade das condições de ensino e os currículos, mas aquilo que se imagina deva ser o acervo mínimo de conhecimentos de todos os estudantes (BARROS, 2014). Em certames deste tipo, os alunos das escolas particulares de elite sempre se destacaram. Eles dispõem de mais tempo e dinheiro para dedicarem-se aos estudos, e as escolas onde estudam, por sua vez, têm mais recursos financeiros e conseguem recrutar melhores professores e equipes administrativas.
Há, por fim, as explicações baseadas em variáveis psicossociais, aquelas que enfatizam o impacto das restrições materiais na motivação e nos estímulos extraescolares para a decisão dos estudantes em perseguirem objetivos relacionados aos cursos e às carreiras do ensino superior. Esta linha de pensamento é influenciada por Pierre Bourdieu e seu conceito de “capital social”. Os que defendem esta perspectiva afirmam, em apertada síntese, que estudantes oriundos das classes mais pobres vêm de famílias de trabalhadores com baixa escolaridade e, como regra, não possuem recursos extraescolares de educação, e não encontram entre seus pais, amigos, parentes e vizinhos pessoas com formação universitária ou inseridos nas carreiras superiores que lhes sirvam de exemplo e no qual possam se espelhar. Daí aos altos índices de evasão escolar.
Todos os diagnósticos acima, o econômico, o político-social e o institucional são verdadeiros e revelam aspectos distintos e presumivelmente importantes para a compreensão dos desafios relacionados ao Novo Ensino Médio brasileiro. Contudo, elas estão focadas nos resultados mais quantitativistas produzidos pelos sitemas de ensino, tais como taxas de matrícula, índices de aprovação, evasão escolar combinadas (cruzadas) com outras variáveis do tipo renda familiar, emprego/desemprego dos pais, moradia.
Neste trabalho nos propomos a pensar, também, na qualidade dos objetivos e dos conteúdos veiculados na reforma em tela. Queremos colocar em perspectiva o tipo de formação proposta pela reforma de maneira que nossa avaliação não se restrinja à análise dos efeitos da reforma sobre a vida escolar, stricto senso, mas para que possa lançar alguma luz sobre os seus efeitos na qualidade da inserção dos estudantes em formação nos sistemas político, social e econômico do país. Nossa perspectiva é a de que os desafios do sistema educional e da educação não devem se restringir apenas à chamada universalização, mas, também, a educação e os sistemas de ensino, devem fazê-lo de modo qualificado atendendo aos desafios e às necessidades das sociedades contemporâneas.
Iremos abordar a reforma escolar à luz da concepção de “razão comunicativa” em Habermas. Para avaliar o potencial das mudanças no ensino médio brasileiro, no que diz respeito à sua capacidade de formar indivíduos críticos e ativos em sua cidadania, iremos combinar a apreciação das mudanças propostas pela reforma com os parâmetros descritos por Habermas para a participação política cidadã, baseada na comunicação em termos racionais com propósitos de entendimento universal. Em suma, acreditamos que a perspectiva habermasiana possa iluminar uma reflexão crítica sobre os impactos mais amplos e abstratos da reforma do ensino médio, especialmente quanto a participação qualificada dos jovens para o debate público.
Nosso ponto de partida são os conceitos habermasianos de “mundo da vida” e “sistema”, ou “estrutura intersubjetiva dos direitos”, ou, ainda, “sistema normativo dos direitos”. Por “mundo da vida”, o autor entende ser o complexo dinâmico de valores, crenças e pontos de partida, muitas vezes ilocucionários, quando os indivíduos assumem posições com “pretensões de validade criticáveis”, e que combinadas com os meios legitimados de expressão racional de idéias e princípios universalizáveis definem o escopo do desenvolvimento dos sistemas normativos. Os sistemas normativos estão, por sua vez, na base dos sistemas políticos. Pretendemos utilizar esses conceitos para abordar a reforma do ensino médio no Brasil. Tal como o direito, a educação promove essa dinâmica de transformação de posições valorativas (culturais) dos grupos sociais em linguagem codificada e adequada para a comunicação universal de sentidos. Qual a capacidade dessa reforma em curso produzir efeitos duradouros na formação dos estudantes de forma a habilitá-los a uma vida cidadã plena?
Como sabemos, Habermas acredita que o “código do direito” é o meio próprio de expressão dos consensos possíveis a partir da combinação entre mundo da vida e sistemas. Segundo o autor, a linguagem jurídica formal e legalista tem essa característica especial: ela se alimenta do medium da “linguagem coloquial”, mas deve decodificá-la e torná-la compreensível para os códigos especiais da administração do poder político e da circulação econômica propiciada pelo dinheiro. Em suas palavras:“[Nesta medida] a linguagem do direito pode funcionar como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida”.[7]
Invocamos a lembrança do papel do direito em Habermas, porque acreditamos que a educação escolar tem uma função algo semelhante em sua teoria. A educação, em sentido lato, constitui um dos meios consagrados universalmente de capacitação dos indivíduos para a participação plena e qualificada nos processos de decisões coletivas. Nas sociedades complexas, segundo o autor, a participação política é mediada por um tipo específico de comunicação, o “discurso racional”, para o qual os participantes plenos da comunidade política devem se qualificar, caso queiram influenciar as decisões coletivas, especialmente normas que atingem a todos. Conforme Habermas:
“[E] ‘discurso racional’ é toda a tentativa de entendimeto sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias”.
Podemos exemplificar como operam essas tensões entre pretensões de validade e facticidade no campo da educação, com a politica afirmativa de cotas na universidade. Formulada para facilitar a entrada nas universidades públicas, em regime especial, de alunos pretos, pobres, estudantes das escolas públicas e, também, indígenas e quilombolas, a Política de Cotas é expressão das tensões entre a luta política por justiça e equidade social, na sociedade brasileira, com toda a carga valorativa que esses conceitos podem comportar, e a estrutura normativa do estado brasileiro. Prova disso, quando de sua implantação, a política de cotas introduziu uma disputa entre aquelas pessoas que enxergavam na medida um viés de desigualdade jurídica entre os indivíduos, inserida enviesadamente num sistema que privilegia a igualdade jurídica, e aqueles que defendiam que a realização do ideal da igualdade de oportunidades depende de um tratamento privilegiado para os mais vulneráveis a fim de que possam assegrarem os meios jurídicos para competirem em igualdade de condições.
3 Reforma do ensino médio: teoria e prática
A sociologia política tradicional aborda a questão educacional de inúmeras maneiras. Vamos destacar aqui duas perpectivas que consideramos seminais na matéria e que nos ajudam a contextualizar as afirmações de Habermas sobre a educação. A primeira delas, reúne as diversas vertentes inspiradas pelo marxismo, tende a enfatizar o papel da educação no processo de preparo dos filhos da classe trabalhadora e da burguesia para a “reprodução social”. Alguns dos expoentes dessa interpretação, como Louis Althusser e Pierre Bourdieu, defendem que a escola transmite e inculca nas crianças em formação, os valores, as convicções, a visão de mundo e, sobretudo, os interesses das classes economicamente dominantes. Em outras palavras, a educação constitui o meio por excelência de transmissão de uma cultura voltada estrategicamente para a manutenção do status quo. Os autores desenvolvem os conceitos de “aparelhos ideológicos do Estado” e “capital social” para para teorizar sobre os processos sociais de construção e difusão do conhecimento e explicar as diferenças de recursos cognitivos e de informações gerais e específicas (profissionais) disponibilizadas aos membros da sociedade de acordo com a sua posição na “estrutura de classes”.
Outro conjunto de teorias sociológicas sobre educação, de orientação fenomenológica, como em Alfred Schutz, Peter Berger e Thomas Luckman, tende a enfatizar a educação como um processo de transmissão dos saberes elementares e conhecimentos específicos que transformam os indivíduos em atores competentes para a ação compartilhada com outros, isto é, para a ação social. Nesta visão, a educação é considerada um meio estratégico na distribuição de recursos de interpretação das situações práticas de interação e para definição de um curso específico de ação. A comunicação política, nesta perspectiva, é um tipo específico de comunicação que a educação propicia e não subsume por completo as funções da educação enquanto meio privilegiado de transmissão dos recursos instucionalizados de comunicação dos diversos conteúdos possíveis das relações sociais.
Jürgen Habermas explora outra dimensão da educação em sua teoria sociológica geral. A educação, tomada como um todo, pertence ao que o autor conceitua como “mundo da vida” e seus fluxos irracionais e ilocucionários. A educação tem como base a realização de atividades relacionadas primordialmente à transmissão de conteúdos culturais associados às “tradições” do grupo. Nas sociedades contemporâneas, no entanto, a educação formal fornecida pela escola, tem sido crescentemente influenciada pela racionalidade instrumental em face das progressivas exigências de controle dos indíviduos pelos sistemas sociais, especialmente pelos sistemas dinheiro e poder (Habermas, 1994). A escola, nesta perspectiva, fica nessa região limítrofe entre seus fundamentos constituídos nos valores e nas crenças produzidos no mundo da vida e as necessidades sistêmicas de controle e previsão de resultados tecnicamente administráveis. Nas sociedades contemporêneas a educação tem papel fundamental na difusão entre os indivíduos das condições técnicas da comunicação, tais como nas linguagens sistêmicas. Processos educacionais difundem entre os indivíduos em formação, profissional e de caráter, a “sintaxe” e a “gramatica” das interações sociais. A educação, nestes termos, difunde o entendimento comum dos sígnos e símbolos empregados na interação voltada para resultados planejados e previsíveis na vida moral e profissional. Conforme Mühl (2011):
O sistema realiza tal intento procurando interferir, por intermédio do planejamento administrativo escolar, na esfera cultural, fazendo com que esta, que tradicionalmente se reproduz por suas próprias condições e se orienta por critérios autolegitimadores, passe a depender da constituição e da legitimação sistêmica. Dessa forma, assuntos culturais e tradições, bases da educação, que se constituíam previamente em condições limítrofes paro o mundo sistêmico, acabam sendo incorporados à área do planejamento administrativo.
Desde uma perspectiva habermasiana podemos dizer que a atual proposta de reforma do ensino médio traz em seu bojo os dilemas típicos dos sistemas de ensino nas sociedades contemporâneas. A formação para a vida e para resolução dos problemas práticos e contingentes precisa ser combinada com um ensino técnico capaz de lidar com a operação de sistemas complexos e que respondam a perguntas e respostas com sentido universal. Difícil equação cujas soluções dependem da ponderação política sobre a medida em que a competência com os valores sociais deve ser combinada com a habilitação competente nos diveros códigos dos sistemas peritos de controle social.
No Brasil tem prevalecido desde muito tempo a preferência por um ensino médio de caráter predominantemente humanista, universalista e classicista, o “científico”, como se chamou durante algum tempo, em detrimento do ensino técnico e profissionalizante. As motivações e justificativas para essa escolha encontram-se naquilo que Habermas conceituou como “mundo da vida”. A oferta de educação em nível médio pelo Estado sempre foi muito restrita no Brasil e as escolas privadas, especialmente as confessionais, tiveram um papel relevante na formação educacional das elites. Cultura elitista e escolas religiosas, especialmente católicas, mas não apenas, marcaram indelevelmente a concepção da formação escolar dos estudantes brasileiros em nível médio, de segundo grau. Essa concepção começou a mudar somente nos anos de 1990, a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, com a prioridade que passou a dar à universalização do ensino médio. E teve sequência nos governos subsequentes de Luiz Lula da Silva. Em consequência do aumento da proporção dos alunos das escolas públicas no universo dos estudantes do ensino médio, as discussões sobre o tipo de formação a ser oferecida aos estudantes tiveram seu escopo ampliado, em conformidade com a diversidade de agentes e atores tentando influenciar as suas transformações.
As necessidades sociais e econômicas e os interesses e inclinações mudaram nos últimos anos e era natural que essas transformações desaguassem em demandas e pressões sobre o sistema educacional. A reforma de ensino iniciada com a lei 13.415/17 reflete essa dinâmica criada pela necessidade de permanente adaptação dos sistemas de ensino e educacionais às demandas valorativas de formação do caráter, oriundas do “mundo da vida”, e aquelas definidas pelos sistemas de acesso controlado por linguagens técnicas e sintaxe especial. Esse problema é universal. Mas, os contextos culturais e institucionais nos quais se desenvolvem diferentes modelos e sistemas educacionais apresentam resultados presumivelmente diferentes.
Assim, os conceitos da teoria habermasiana sobre educação e participação política podem contribuir para parametrizar os efeitos concretos das mudanças na educação dos jovens, no que diz respeito à qualidade de sua participação na esfera pública. Nestes termos, a eficiência e a eficácia de um modelo de educação e de reformas educacionais podem ser consideradas maiores ou menores, numa primeira dimensão, quanto à sua capacidade de obter consenso e aliviar as tensões entre as demandas divergentes dos grupos sociais. A outra dimensão, institucional, é adstrita à avaliação de como as instituições culturais e da administração pública reagem aos modelos educacionais e, especialmente, à reforma deles.
No caso da última reforma de ensino brasileira, de 2017, vemos que seus objetivos eram traduzir as demandas sociais de um ensino mais voltado para a realidade prática e imediata dos estudantes. Como efeito, talvez, do avanço das escolas públicas como proporção do total de vagas no ensino médio, a afirmação dos conteúdos laicos e dos objetivos pragmáticos dos grupos sociais e dos agentes públicos, a concepção do que deve e do que não deve ser oferecido ao estudante, mudou. Nesta dimensão do problema, o diagnóstico, a reforma proposta acertou. Se pudermos extrapolar para o universo das comunidades escolares brasileiras o que percebemos nas entrevistas com os diversos membros da Escola Estadual Reverendo Clarence, quase ninguém acredita que os modelos anteriores, o “clássico”, e o “científico” ainda cumpram a função social da educação. A mudança era necessária. A integração dos jovens aos espaços públicos, ao trabalho, o acesso ao consumo e à propriedade de bens exigem uma prepação em sistemas peritos, ao invés de uma cultura das elites. Não se deseja mais formar o “gentleman”, ou o filósofo renascentista, mas o cidadão. Temos aí um consenso.
No que diz repeito à capacidade de realização dos objetivos da reforma, a situação é diferente. Projetou-se no início das discussões, ênfase no ensino técnico-tecnológico, com objetivo de habilitação dos estudantes nos códigos e nas linguagens dos sistemas peritos. Também, na concepção dos “intinerários formativos”, pensou-se em matérias de caráter mais prático e operativo, diminuindo-se os conteúdos clássicos da cultura humanista. Embora acertado o diagnóstico e superadas as resitências dos defensores da tradição classicista, os objetivos institucionais da reforma esbarraram em condições de desenvolvimento institucional insuficiente. Recursos materiais, especificamente, têm sido insuficientes para promover uma mudança capaz de quebrar a inércia cultural de professores e administradores do sistema de ensino. Como é natural em burocracias públicas tradicionais, com extensa capilaridade e alcance social, há uma cultura que resiste à mudanças, de qualquer ordem, forças conservadoras que têm receio de mudanças e do medo de não se adaptar a elas.
4 CONCLUSÃO
A partir da perspectiva habermasiana, podemos dizer que a atual proposta de reforma do ensino médio traz em seu bojo os dilemas típicos dos sistemas de ensino nas sociedades contemporâneas. A simultânea necessidade de formação dos jovens para resolução dos problemas práticos e contingentes da vida adulta, e para lidar com a operação de sistemas complexos e que respondam a perguntas e respostas com sentido universal que só um ensino técnico capaz de oferecer. Não há soluções fáceis para essa equação e todas elas dependem da ponderação política sobre a medida exata da combinação entre a habilitação competente dos jovens nos diveros códigos dos sistemas peritos de controle social e a preparação deles para uma cultura humanística de respeito aos valores sociais.
Nossa experiência na Escola Estadual Reverendo Hugh Clarence Tucker, cotejada com a teoria de Habermas indica que, infelizmente, mesmo recentes e incompletas, as mudanças promovidas até aqui no ensino médio têm potencial para agravar as diferenças de desempenho social e profissional entre estudantes pobres e ricos uma vez que amplia a autonomia das escolas em prover um tipo de ensino voltado para o desenvolvimento das competências individuais mais valorizadas pela sociedade. Este tipo de formação é melhor realizada em escolas para alunos da elite econômica que estão mais bem preparadas, materialmente e com profissionais bem remunuerados, e que são cobrados rotineiramente por resultados mensuráveis. As escolas públicas, por sua vez, em sua maioria, não dispõem de instalações adequadas, laboratórios clínicos e de informática, equipamentos e insumos, enfim, quadras esportivas e piscinas entre outros capazes de realizar o potencial de seus estudantes mais pobres, bem como de prepará-los adequadamente para exigências sistêmicas da integração social. Seus professores, embora formados nas melhores universidades públicas do estado e federais têm remuneração aquém do desejado, uma supervisão frouxa (com pouco poder de intervenção nas condutas profissionais e pouca capacidade de elaboração de metas e objetivos próprios), e pouco estímulo para o cumprimento de um planejamento global.
Nestes aspectos o Novo Ensino Médio não tem cumprido os objetivos projetados pela comunidade escolar nem atendido a sociedade abrangente em suas demandas e expectativas. Nem tem preparado os estudantes das escolas públicas para a conformidade com as exigências crescentemente técnicas e burocráticas da administração dos sistemas peritos, poder e dinheiro. Nem parece estar preparando adequadamente os estudantes para o acesso às universidades e às carreiras superiores. Nos termos da teoria de Habermas para a educação, a escola é um lugar de tensionamento entre o “mundo da vida” e os “sistemas” de controle social. O chamado Novo Ensino Médio expressa com muita clareza essa tensão. Procura, segundo esta perspectiva, uma delicada conciliação entre, por um lado, a necessidade de preparar mão de obra especializada para o atendimento das demandas de suporte técnico para os sistemas peritos que estão em permanente transformação, e, por outro lado, a igualmente importante formação de quadros em nível superior, para a criação de massa crítica de cidadãos voltados para a condução dos assuntos sociais gerais. Por enquanto não tem conseguido uma coisa nem outra.
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Sites consultados:
[1] Professor Titular Universidade Federal Fluminense. Doutor.
[2] Apesar da redução, houve um aumento de 10,5% no número de alunos em tempo integral, o que pode ser interpretado como uma das primeiras mudanças estabelecidas pelo novo ensino médio.
[3]https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/governo-suspende-novo-ensino-medio-mas-nao-garanterevogacao
[4] https://cultura.uol.com.br/noticias/52461_numero-de-matriculas-no-ensino-medio-caiu-53-entre-2021-e-2022-aponta-levantamento.html
[5] https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/censo-escolar/mec-e-inep-divulgam-resultados-da-1a-etapa-do-censo-escolar-2022
[6] A rede estadual tem a maior participação nessa etapa (84,2%), atendendo 6,6 milhões de alunos. Nela também está a maioria dos estudantes de escolas públicas (87,7%). A rede federal participa com 232 mil alunos (3% do total). Já a rede privada possui cerca de 971,5 mil matriculados (12,3%). In: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/censo-escolar/mec-e-inep-divulgam-resultados-da-1a-etapa-do-censo-escolar-2022
[7] Habermas, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro, 2003. Pp 112.