SISTEMA DE OUVIDORIAS JUDICIAIS

esfera pública e defesa da cidadania

José Antonio Callegari[1]

Universidade Federal Fluminense

calegantonio@yahoo.com.br

 

1  INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional nº 45/2004 modificou de forma significativa a estrutura do sistema judiciário brasileiro. Neste contexto, a criação do Conselho Nacional de Justiça contribuiu para a modernização do Poder Judiciário.

Porém, não bastava a modernização técnica e estrutural dos Tribunais e nem mesmo as reformas sucessivas da Constituição e das leis que regem o direito material e processual brasileiro para consolidar a democratização do acesso à Justiça. A efetiva garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana necessitava de algo mais. Havia uma lacuna a ser preenchida. O sistema judiciário ainda estava distante do cidadão. Era preciso ouvi-lo fora do contexto das pretensões deduzidas através de um processo formal e tecnocrático.

Percebendo esta lacuna no sistema jurídico, o Conselho Nacional de Justiça, inspirado na fi gura do OMBUDSMAN e na criação voluntária de ouvidorias em diversos órgãos estatais, resolveu normatizar a criação de um Sistema Nacional de Ouvidorias através da Resolução nº 103, de 24 de fevereiro de 2010.

O sistema nacional de ouvidorias abre um canal de comunicação direta entre o cidadão e os órgãos do Poder Judiciário. O exercício da cidadania participativa através deste canal de comunicação contribui decisivamente para o aperfeiçoamento institucional do Estado Democrático de Direito. A ação comunicativa é fator de estabilização da ordem social. Sem comunicação, o sistema social corre o risco de cristalizar-se em instituições desprovidas de legitimidade.

Neste contexto, as ouvidorias têm a missão de defender os interesses dos cidadãos perante os Tribunais, que passam a atuar também como prestadores de serviços. O súdito do Estado adquire dupla qualidade jurídica: cidadão e usuário. Como cidadão é detentor do poder, na forma da Constituição Federal do Brasil. Como usuário é credor de prestação de contas dos atos praticados pelos agentes públicos. A comunicação entre a esfera privada e a esfera pública, através da Ouvidoria, gera mais comunicação, aperfeiçoando o sistema judiciário em estudo.

Percebendo as falhas no sistema judiciário, o cidadão age comunicando estas percepções ao sistema de Ouvidorias. Este canal de comunicação está aberto para receber críticas, sugestões, denúncias, reclamações e outros tipos de manifestação dos usuários do sistema. Nota-se, assim, uma aproximação entre o sistema judiciário e o cidadão através da ação comunicativa voltada para o bem comum.

A leitura de Jürgen Habermas (Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA e Consciência Moral e Agir Comunicativo) provoca refl exões sobre este novo perfi l do Poder Judiciário brasileiro mais aberto à participação do usuário do sistema. Esta participação (ação comunicativa) representa uma das formas mais legítimas de exercício da cidadania participativa, o que será objeto de exame no tópico seguinte.

 

2 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO DO USUÁRIO

O preâmbulo da Constituição brasileira sinaliza que o Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Esta sociedade estaria fundamentada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífi ca das controvérsias. Estes pontos iniciais marcam a nova esfera pública brasileira com a redemocratização do país. Os compromissos assumidos pelos constituintes, em nome do povo, indicam que as conquistas somente serão consolidadas através do amadurecimento da sociedade brasileira. Este amadurecimento democrático não dispensa a participação ativa dos cidadãos. O exercício de direitos e a defesa de garantias requerem um agir comunicativo ativo, participativo e deliberativo dos cidadãos concernidos na ordem jurídica nacional. A cidadania erige-se em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II) e todo poder emana do povo que o exerce direta e indiretamente (parágrafo único). Se todo poder emana do povo e a cidadania requer participação e deliberação ativas, não resta outro caminho à Administração Pública do que reformular-se segundo os paradigmas desta nova ordem social democrática.

A nova esfera pública brasileira tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Os princípios que informam a República Federativa do Brasil valorizam a independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífi ca dos confl itos; repúdio do terrorismo e do racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão do asilo político. Note-se que a esfera pública brasileira sofre profunda mudança ideológica, através da adoção e constitucionalização de princípios voltados para a defesa dos direitos humanos. O Estado brasileiro passa a adotar um modelo discursivo em busca da superação de dissensos através do diálogo harmonioso das forças sociais em busca de soluções consensuais que estabilizem a vida em comunidade.

O modelo de gestão participativa no Estado Democrático de Direito produz efeitos diretos e imediatos na esfera pública de todos os Poderes da União: Executivo, Legislativo e Judiciário.

O artigo 5º da Constituição garante ao cidadão a livre manifestação do pensamento, o direito de resposta, o acesso à informação, a defesa do consumidor, o direito de receber informações dos órgãos públicos e o direito de petição. Estas garantias constitucionais sinalizam para um novo modelo de esfera pública: o Estado prestador de serviços.

Este novo perfil do Estado brasileiro consolida-se com a edição da Emenda Constitucional nº 19 que tratou da reforma da Administração Pública como visto no artigo 37 da CRFB. Logo no caput do artigo 37 foi inserido o princípio da efi ciência como requisito para implantação de melhorias na gestão pública. Com este propósito, o § 3º insere no texto constitucional o seguinte dispositivo: “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta...”. Esta participação do usuário nada mais é do que uma forma de exercício da cidadania diante da abertura sistêmica garantida pela nova estrutura da esfera pública brasileira.

Uma das formas de participação do usuário ocorre com a apresentação de reclamações relativas à prestação de serviços públicos em geral, onde podemos incluir os serviços judiciários. Fica assegurada ao usuário a manutenção de serviços de atendimento e avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços. Neste ponto, encontramos o embrião do Sistema de Ouvidorias Judiciárias.

Outra forma de participação dá-se com a garantia de acesso a registros administrativos e informações sobre atos de governo, observando-se questões de sigilo de Estado. Aqui, a Administração Pública passa a prestar contas dos seus atos adotando o sistema de transparência pública com fundamento nos princípios da legalidade, impessoalidade e publicidade.

O usuário também pode representar contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. Ele, como cidadão, tem legitimidade para atuar ao lado dos órgãos institucionais de controle de administração pública, ampliando deste modo o seu poder de participação no controle da gestão eficiente dos órgãos integram o Poder Judiciário.

 

3 MUDANÇA ESTRUTURAL NO PODER JUDICIÁRIO

O sistema judiciário brasileiro é composto por órgãos do Poder Judiciário, bem como do Ministério Público, Advocacia Pública, e Advocacia Privada. Este sistema é composto por órgãos judiciários em sentido estrito e órgãos que exercem funções essenciais à administração da justiça. Deve-se destacar a importância da Ordem dos Advogados do Brasil como disciplinadora do exercício da advocacia privada brasileira.

Com respeito ao Poder Judiciário, o legislador constituinte originário estabeleceu o sistema de jurisdição federal e estadual, vez que inexiste jurisdição municipal no Brasil.

Os órgãos que compõem o Poder Judiciário são: Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de Justiça, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, Tribunais e Juízes do Trabalho, Tribunais e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

Importante notar que o sistema judiciário brasileiro é complexo, podendo ser dividido conforme o tipo de atuação de cada um de seus órgãos integrantes. Quanto à defesa dos direitos subjetivos, incumbe aos Juízes e Tribunais julgar as pretensões deduzidas em Juízo conforme regras de competência originária e recursal estabelecidas nas Constituições Federal e Estaduais. Quanto à defesa da ordem jurídica, cabe aos Tribunais Superiores a defesa da ordem jurídica federal e ao Supremo Tribunal Federal a defesa da Constituição Federal. Existe também a divisão dos tribunais segundo a matéria geral ou especial. Então, temos a jurisdição comum exercida pelos tribunais e juízes federais, bem como tribunais e juízes estaduais; e a jurisdição especial exercida pelos tribunais e juízes do trabalho, pelos tribunais e juízes eleitorais e pelos tribunais e juízes militares.

Quanto aos Estados-Membros da Federação brasileira, a Constituição Federal garante a eles a prerrogativa de organizar sua Justiça, observados os princípios nela estabelecidos.

O Poder Judiciário nacional está inserido no atual modelo de Estado gestor ou prestador de serviços. Por conta disto, as palavras correntes no serviço público brasileiro são planejamento estratégico, metas e resultados.

O foco da atuação judiciária deslocou-se significativamente. Fala-se em controle quantitativo e qualitativo do trabalho exercido pelos agentes e órgãos deste Poder. Quanto se fala em controle de produção objetiva-se atender os interesses do usuário segundo as várias dimensões da cidadania: política, econômica e social. Politicamente, o cidadão é considerado como participante da esfera pública, vez que detém parcela do poder materializado na confi guração institucional do Estado. Sob o aspecto econômico, o cidadão é considerado como usuário e consumidor do serviço judiciário. Na dimensão social, ele participa de um jogo dialético entre expectativas de interesses, devendo prevalecer atitudes de entendimento em função do bem comum.

Este modelo de gestão permite ao cidadão participar ativamente do controle das atividades do Estado. Para tanto são organizados serviços de atendimento do usuário e de fiscalização dos atos dos gestores públicos. Duas obrigações principais são cobradas dos agentes públicos: executar serviços de qualidade e prestar contas de seus atos.

O cidadão, como usuário do sistema, participa ativamente no funcionamento desta nova esfera pública. Uma atitude objetivante em relação ao cidadão não condiz com o modelo democrático, participativo e deliberativo em construção. A participação dele no processo eleitoral, objetivamente considerado com um número em seu título de eleitor e estatística no sufrágio universal, não condiz mais com o seu novo status de cidadania. Considerado efetivamente como sujeito de direito e participante do processo democrático, sua autoestima e sentido de pertencimento gera um ciclo constante de comunicação e participação, estabilizando o sistema social como um todo.

Neste contexto de ampliação do conceito de cidadania, transcorreu no Brasil um forte processo de reformas estruturais, normativas e culturais do Estado (1990-2004). Duas Emendas Constitucionais são importantes neste processo de reformas. Em um primeiro momento, a Emenda 19 que tratou da reforma do Estado – Administração. Em um segundo momento, a Emenda 45 que regulamentou a reforma do Poder Judiciário. Em ambas as emendas constitucionais, o que chama a atenção são: compromisso com a efi ciência do serviço público; abertura sistêmica para a participação do cidadão na qualidade de usuário e consumidor dos serviços públicos prestados.

No Poder Judiciário, foi criado o Conselho Nacional de Justiça dotado de competência para implantar uma nova cultura jurídica focada na efi ciência e na razoável duração dos processos.

Paradoxalmente, o Conselho Nacional de Justiça é concebido como órgão de controle externo do Poder Judiciário. No entanto, recebe status constitucional de Órgão do Poder a quem deve controlar. Pode-se indagar sobre a imparcialidade e eficiência deste sistema de controle institucional. O que se percebe é que a externalidade do Conselho Nacional de Justiça é determinada por sua composição. Os membros do Conselho Nacional de Justiça são nomeados para exercício temporário dos seus mandatos. Os Conselheiros têm as mais variadas origens na seguinte proporção: magistrados de carreira (09), membro do Ministério Público (02), membros da Ordem dos Advogados do Brasil (02) e cidadãos (02). Percebe-se que, majoritariamente, o CNJ é composto por membros do Poder Judiciário na proporção de 60%, o que demonstra força interna da magistratura e fragilidade externa da sociedade diante do modelo institucional deliberativo deste Conselho de Justiça. Considerando a comunicação estratégica exercida pelas Associações de Magistrados e o número majoritário de membros do Poder Judiciário na composição do CNJ é possível inferir se realmente estamos diante de um órgão de controle externo e o quanto este órgão está disposto a dialogar com a sociedade segundo o modelo de ação comunicativa voltado para entendimento e consenso. A dúvida que se coloca é saber se o CNJ não funcionaria como um órgão de seletividade das irritações do meio ambiente, fechando-se operacionalmente para adequar-se às suas próprias necessidades e próprios interesses corporativos. Esta dúvida torna-se mais contundente ao vermos que o CNJ adotou o programa Justiça em Números, focado no controle quantitativo do trabalho judiciário, com base em dados estatísticos fornecidos pelas unidades que integram o sistema. O CNJ possui um canal de comunicação midiático através da Imprensa privada e estatal onde veicula programas e projetos nos quais dá visibilidade de sua compreensão do que seja inclusão social e acesso à Justiça. Daí surge mais uma questão: saber o quanto a participação do cidadão influiu nas políticas públicas adotadas pelo Poder Judiciário e se estas políticas realmente são o resultado de um processo de comunicação sincero.

Feitas estas ressalvas, é importante considerar que o Conselho Nacional de Justiça vem colaborando, de alguma forma, com a modificação do modelo jurídico brasileiro, através de planejamento estratégico nacional e alinhamento dos procedimentos de atuação das unidades judiciárias.

Através de uma interpretação teleológica e sistemática dos artigos 37 e 103-B, notase que foram criados vários canais de comunicação direta com o usuário, dentre eles as Corregedorias e as Ouvidorias. A diferença fundamental entre elas é que a Corregedoria possui função fiscalizadora e sancionadora. A Ouvidoria, por sua vez, tem como função atuar na defesa do cidadão, sem caráter decisório. Trata-se de verdadeiro canal de comunicação participativa, onde a opinião do cidadão é, em tese, considerada para melhoria e aperfeiçoamento do serviço judiciário.

O Conselho Nacional de Justiça detém competência para controlar a gestão administrativa e financeira do Poder Judiciário, bem como controlar o desempenho funcional dos juízes. Esta mudança estrutural no sistema judiciário vem produzindo importantes modifi cações na sua cultura organizacional. Nota-se uma gradual aproximação entre este Poder e os cidadãos. Percebe-se também que a modernização da linguagem jurídica despida de termos técnicos de difícil compreensão, até mesmo para os profissionais do Direito, facilita este processo de comunicação. Se o princípio básico da comunicação é a compreensão do argumento dos interlocutores, a comunicação gerada por esta abertura institucional, através das Ouvidorias, facilita o processo de inclusão social, acesso ao Poder Judiciário, bem como o exercício da cidadania participativa.

Note-se que uma das atribuições do Conselho Nacional de Justiça é zelar pela observância dos princípios e regras contidas no artigo 37 da Constituição Federal, apreciando de ofício ou mediante provocação a legalidade dos atos administrativos praticados por agentes do Poder Judiciário. Além disto, este Conselho recebe e conhece de reclamações contra integrantes deste Poder estatal, inclusive contra os serviços auxiliares que exercem atividades próprias e outras por delegação.

Ana Paula Paes de Paula (2009) apresenta-nos o conceito de “Administração Pública Societal”. O novo perfil do gestor público está inserido no modelo de desenvolvimento fundamentado na democracia participativa e deliberativa como proposta por Habermas em várias de suas obras.

Para ela, vem ocorrendo a “reinvenção político-institucional e a renovação do perfil dos Administradores Públicos” (2009, p. 153).

Para a autora, “Consolida-se assim a visão que orienta o discurso da vertente societal: a reforma do Estado não é somente uma questão administrativa e gerencial, mas sim um projeto político” (2009, p. 155).

Ana Paula salienta que a vertente societal no Brasil ganhou espaço com os movimentos sociais para a redemocratização ocorridos nos anos 80. “Naquela época começavam a surgir as primeiras experiências que tentaram romper com a forma centralizada e autoritária de exercício do poder público” (2009, p. 154). Percebe-se que a vertente societal tem como eixo temático a participação social no funcionamento da esfera pública.

As novas demandas sociais partiam de atores sociais que se organizavam na busca de maior participação e fortalecimento da cidadania. Participaram deste processo de mudança estrutural da esfera pública brasileira atores sociais como: movimentos populares, sindicatos, pastorais, partidos políticos, organizações não governamentais, setores acadêmicos, entidades profi ssionais e representativas como a Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa e a Sociologia Brasileira para o Progresso da Ciência. Apesar de heterogêneo, ou graças à esta heterogeneidade, os movimentos sociais reivindicavam o fortalecimento do papel da sociedade civil na condução da vida política no país.

A autora recupera o pensamento de Tarso Genro, então Ministro da Justiça do Governo Lula:

A partir de uma nova relação Estado - Sociedade, que o abra a estas organizações sociais (à participação do cidadão isolado), particularmente àquelas que são autoorganizadas pelos excluídos de todos os matizes, admitindo a tensão política como método decisório e dissolvendo o autoritarismo do Estado tradicional, sob pressão da sociedade organizada (2009, p. 156).

 

Para Ana Paula ocorreu uma pressão social na defesa de uma “esfera pública não-estatal’ na qual se inserem “espaços públicos deliberativos”. Novamente ela recorre ao pensamento de Tarso Genro a respeito desta nova esfera pública como um espaço:

 

No qual é possível organizar uma esfera pública para disputas e consensos – uma esfera pública organizada por lei, ou por contrato, ou por ambos – para articular a representação política tradicional com a presença direta e voluntária da cidadania. Um espaço que propicie a politização da cidadania, à medida que reduza sua fragmentação, integrando demandas setoriais da cena pública (2009, p. 156).

 

Eis como Ana Paula desenvolve sua percepção sobre a esfera pública não-estatal:

 

O conceito de esfera pública não-estatal aqui representado envolve a elaboração de novos formatos institucionais que possibilitem a co-gestão e a participação dos cidadãos nas decisões públicas. Nesse processo, as políticas e ações governamentais conferem identidade aos envolvidos, alteram o quotidiano da cidade e interferem na compreensão de sua cidadania. Aqui se destacam a ação dos governos locais e a construção de novos canais de participação[...] (2009, p. 156).

 

Em sua análise societal, Ana Paula diz que, com uma concepção participativa e deliberativa de democracia e gestão social, “busca-se criar organizações administrativas efetivas, permeáveis à participação popular e com autonomia para operar em favor do interesse público” (2009, p.159). Este modelo de gestão social procura alimentar-se de diferentes canais de participação, como destacado por Tenório (1998):

 

Contrapõe-se à gestão estratégica na medida em que tenta substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por meio de diferentes sujeitos sociais (2009, p. 159).

 

O que se nota é a emergência de uma concepção de democracia que transcende a instrumentalidade, abrangendo a dimensão sociopolítica da gestão pública.

Os argumentos até aqui apresentados por Ana Paula e autores por ela citados, remetem à construção teórica de Habermas sobre esfera pública e agir comunicativo. Para demonstrar esta convergência teórica, a autora apresenta um relato sobre o desenvolvimento da visão participativa da democracia desde os anos 60, época em que imperava a polarização política mundial:

 

A visão participativa da democracia, que emergiu nos anos 1960, vem sendo atualizada pela concepção de democracia deliberativa, que se fundamenta principalmente nas contribuições mais recentes de Habermas à teoria política, com destaque para a teoria da ação comunicativa e o conceito de esfera pública. Baseando-se nas idéias de Habermas e outros autores, Lüchmann conclui que a democracia deliberativa é um modelo ou processo que incorpora a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva por meio da deliberação política (2009, p. 160).

 

O estudo apresentado evidencia que a Reforma do Estado brasileiro vem ocorrendo de forma progressiva fundamentada em vários referenciais teóricos, com destaque para A Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA e Consciência Moral e Agir Comunicativo de Jürgen Habermas.

 

4 SISTEMA NACIONAL DE OUVIDORIAS

Antes de analisarmos o sistema nacional de ouvidorias, devemos abordar alguns aspectos sobre o que é uma ouvidoria e quem é o seu principal agente: o ouvidor.

A ouvidoria tem a função de defender os interesses do cidadão em face da instituição à qual está vinculada, porém com atuação funcional autônoma.

Trata-se de um canal de comunicação do cidadão com instituições, fortalecendo o sentido de participação dos concernidos. Esta comunicação direta com o usuário (consumidor e cidadão) é importante para melhorar a imagem institucional e dar visibilidade quanto ao processo de aprimoramento dos serviços prestados. Através da ouvidoria, a instituição tem a oportunidade de transformar reclamações em oportunidades de melhoria. A ouvidoria não se confunde com a Corregedoria, Call Center e SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor).

Os objetivos de uma ouvidoria são: atender melhor os usuários; preservar e melhorar a imagem pública da instituição; reduzir a exposição a litígios com os consumidores e usuários; promover a defesa da cidadania; assimilar críticas e sugestões (aprimorar processos, produtos e serviços; melhorar a comunicação interna e externa e manter o foco da instituição.

Considerando que a ouvidoria lida diretamente com o processo de comunicação interna e externa, pode-se intuir sobre a responsabilidade ética e moral de seus integrantes. Uma ouvidoria bem estruturada funciona de forma efi ciente quando existe um grau de comprometimento sincero na defesa da cidadania, no atendimento das expectativas dos usuários e no aprimoramento dos serviços judiciários.

Feita esta abordagem inicial, passemos à análise do sistema nacional de ouvidorias estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça.

Diante do novo modelo estrutural da esfera pública, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 103, de 24 de fevereiro de 2010, dispondo sobre as atribuições da Ouvidoria do CNJ e determinando a criação de ouvidorias no âmbito dos Tribunais.

Alguns pontos foram considerados para fundamentar a criação deste sistema de ouvidorias judiciárias. Em primeiro lugar, a necessidade de regulamentar as atribuições da Ouvidoria do CNJ, instituída pelo artigo 41 do seu Regimento Interno.

Em segundo lugar, foram consideradas as informações levantadas sobre a inexistência de ouvidorias nos Tribunais. Diante deste cenário, mostrava-se necessário criar um mecanismo de comunicação entre os cidadãos e os órgãos do Poder Judiciário.

Considerou-se também a necessidade de integração das Ouvidorias Judiciais, permitindo a permuta de informações necessárias ao atendimento das demandas dos usuários como fator de aperfeiçoamento dos serviços judiciais prestados.

A missão institucional da Ouvidoria do CNJ é servir como canal de comunicação direta entre o cidadão e o CNJ com o propósito de orientar, transmitir informações e colaborar no aprimoramento das atividades desenvolvidas pelos órgãos do Poder Judiciário.

Função importante para o funcionamento do sistema é exercida pelo Ouvidor, Conselheiro eleito pela maioria do Plenário, juntamente com os seus substitutos. O Ouvidor pode baixar regras complementares de procedimentos internos respeitando os limites normativos de sua função.

Cabe à Ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça receber consultas, diligenciar junto aos setores administrativos competentes e prestar informações e esclarecimentos sobre atos, programas e projetos do Conselho Nacional de Justiça. Além disto, ela recebe informações, sugestões, reclamações, denúncias, críticas e elogios sobre as atividades do Conselho. Depois encaminha tais manifestações aos setores administrativos competentes, mantendo o interessado sempre informado sobre as providências adotadas.

É importante considerar que a Ouvidoria promove a interação com os órgãos que integram o Conselho e com os demais órgãos do Poder Judiciário visando o atendimento das demandas recebidas e o aperfeiçoamento dos serviços prestados.

A Ouvidoria do CNJ também sugere medidas administrativas com o propósito de desenvolver o aperfeiçoamento na prestação de serviços com base nas informações, reclamações, denúncias, críticas e elogios recebidos dos usuários. Além disto, promove a integração entre as Ouvidorias Judiciais com o propósito de implementar um sistema nacional que permita a troca de informações necessárias para melhorar o atendimento das demandas sobre os serviços prestados.

Possuindo estrutura permanente e autonomia funcional, a Ouvidoria organiza o atendimento aos usuários, acompanhando e orientando o atendimento das demandas recebidas. Colaborando com a função de controle das atividades judiciárias, elabora estatística e relatórios para monitoramento das disfunções sistêmicas percebidas pelos usuários.

A Ouvidoria é um canal de acesso do cidadão que pode ser utilizado pessoalmente ou por carta, ligação telefônica ou por meio de formulário eletrônico. Considerando a noção ética e moral da comunicação sincera com o cidadão e as repercussões internas nos sistema judiciário, não são aceitas manifestações anônimas, conforme disposto no artigo 5º da CRFB.

Quando o cidadão acessa este canal de comunicação, a Ouvidoria solicita informações às unidades judiciárias envolvidas na questão estabelecendo um prazo para a resposta. Todo o procedimento é monitorado pela Ouvidoria que mantém o usuário ciente do andamento de sua solicitação.

O que se percebe é que através da ouvidoria o cidadão se aproxima do sistema judiciário exercendo o que se denomina cidadania ativa. O sistema nacional de ouvidoria judiciária facilita a comunicação do usuário com a instituição e, com isto, permite a ampliação das formas de exercício da cidadania ativa e participativa.

 

5 CONCLUSÃO

Os princípios e os fundamentos do Estado Democrático de Direito estabelecidos na Constituição Federal de 1988 orientam a atuação das instituições estatais segundo noções de moralidade, legalidade, efi ciência e impessoalidade. Diante do leque de direitos fundamentais inseridos na Constituição, o Estado viu-se diante da necessidade de constante aprimoramento dos serviços prestados a um consumidor – cidadão cada vez mais exigente e participativo. Logo, mudanças estruturais na esfera pública deviam ser implementadas, como é o caso da criação do Conselho Nacional de Justiça.

A proposta do Conselho Nacional de Justiça é ampliar o controle administrativo e fi nanceiro do Poder Judiciário, bem como dos atos praticados pelos juízes no exercício da jurisdição. Esta mudança estrutural vem ocorrendo de forma ampla desde o estabelecimento de metas e resultados até o estabelecimento de um sistema de controle e ensino continuado que modifi quem a cultura organizacional, preparando os integrantes do Poder Judiciário para o exercício de uma racionalidade argumentativa disposta a ouvir a opinião sincera dos cidadãos. Para isto, foi criado o sistema nacional de ouvidorias judiciais, tendo como ponto central a ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça.

As ouvidorias funcionam como canal de comunicação recebendo as impressões dos cidadãos e, com isto, promovendo modificações internas para melhoria da prestação de serviços e da imagem institucional. O tratamento objetivante do cidadão, antes catalogado através de um código numérico no seu título de eleitor, cede vez para um tratamento conforme o princípio da dignidade da pessoa humana. Esta relação comunicativa onde deve prevalecer. O diálogo de entendimento em busca de consensos amplifica o potencial transformador da democracia participativa.

Foi destacada a percepção de que o Estado brasileiro, na pessoa de autoridades governamentais, vem adotando um modelo de gestão participativa inspirado em conceitos e categorias idealizados e desenvolvidos por Jürgen Habermas em Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA e Consciência Moral e Agir Comunicativo. A importância da obra de Habermas na mudança estrutural do Estado Brasileiro transcende os limites do debate acadêmico para se materializar em políticas públicas de inclusão social e transformação das instituições em sua estrutura, funcionamento e cultura organizacional. Este processo de transformação somente é possível porque há nítido comprometimento de parte signifi cativa dos gestores públicos com este projeto de comunicação e argumentação em busca do entendimento. Sem dúvida, as pressões exercidas por entidades civis como sindicatos, universidades, artistas, OAB, ABI, SBPC, organizações não governamentais, igrejas e cidadãos compeliram o Estado e seus agentes a adotarem uma postura mais aberta e permeável, na qual a função de ouvir as demandas do cidadão passa a fazer parte do catálogo dos seus deveres funcionais.

Ganham todos com este modelo de gestão participativa, porque a Ordem Social e Democrática requer a participação ativa de todos os concernidos em condições de igualdade de comunicação. O acesso à comunicação direta com o Poder Judiciário torna mais transparente o exercício das funções judiciárias na direção de um ideal maior da democracia: igualdade, fraternidade, liberdade e solidariedade. A conjunção de todos os esforços na busca da comunicação eficiente e sincera talvez nos conduza a um caminho que nos leve ao verdadeiro ideal de Justiça.

A doutrina nacional referenciada indica não somente o acolhimento teórico das categorias e conceitos apresentados por Jürgen Habermas como a utilização práticas destes elementos na efetivação de políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro como dito por Tarso Genro, então ministro da Justiça do Governo Lula.

A análise de conceitos e categorias apresentados por Jürgen Habermas em Mudança Estrutural da ESFERA PÚBLICA vem servindo de suporte teórico para o desenvolvimento de nossa dissertação de mestrado, na qual procuramos investigar a estrutura e o funcionamento da Ouvidoria Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

Adotamos Jürgen Habermas como referencial teórico por considerarmos a importância social da construção de espaços públicos participativos e deliberativos, ampliando a noção de pertinência social do cidadão.

A Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região vem colaborando de forma imparcial para que a pesquisa seja desenvolvida no ambiente interno e externo da instituição. A impressão até agora registrada é de que um sistema como este apresenta fortes elementos que comprovam a aplicação prática da Teoria habermasiana.

A construção deste espaço público de acesso do cidadão ao Tribunal Regional do Trabalho vem permitindo que os gestores identifiquem falhas no sistema, sugerindo soluções às unidades judiciárias que são objeto de intervenção da Ouvidoria. Tem-se notado que a Ouvidoria mantém uma comunicação com o usuário do sistema, atualizando informações sobre o andamento de suas reclamações e sugestões. Outra característica notada é que as pessoas que integram a Ouvidoria e o Ouvidor demonstram comprometimento com a sinceridade da comunicação nos atos de fala. Este comprometimento é percebido também na conduta das pessoas que até o momento não apresentaram contradições performáticas. Com estas observações, nota-se que há um ambiente propício para fortalecer o princípio da confiança necessário para que a comunicação atinja o seu objetivo no sentido habermasiano: construção de uma esfera pública inclusiva, participativa e deliberativa, onde prevaleça atos de entendimento e fortalecimento da coesão social.

 

REFERÊNCIAS

CENTURIÃO, Alberto. Ombudsman: a face da empresa cidadã: como e porque instalar uma Ouvidoria. São Paulo: Educator, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

PAULA, Ana Paula Paes de. Por uma nova gestão pública: limites e potencialidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

VISMONA, Edison Luiz. A ouvidoria brasileira: dez anos da Associação Brasileira de Ouvidores/ Ombudsman / Edson Luiz Vismona (org.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Associação Brasileira de Ouvidores Ombudsman, 2005.

 



[1] Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense - Departamento de Direito de Macaé e analista judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2000), mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013) e doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2018).