ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

gestão participativa e controle social

José Antonio Callegari[1]

Universidade Federal Fluminense

calegantonio@yahoo.com.br

 

1 INTRODUÇÃO

Com base nas reformas administrativas ocorridas no Brasil, na década de 1990, propomos algumas reflexões sobre formas de gestão, controle e participação na Administração Pública. Utilizamos dois modelos de gestão aplicados nos Governos Cardoso e Lula como parâmetro de análise da participação popular na gestão estatal. Ao final, convidamos o leitor a uma reflexão: a crise institucional deslegitima o modelo democrático então vigente ou fortalece a crença nas instituições democráticas como canais por onde se depuram os dissensos, ressentimentos e conflitos de interesses sem a ruptura traumática que muitas vezes conduz a coletividade a regimes totalitários e ditatoriais?

 

2 DESENVOLVIMENTO

Apresentamos algumas reflexões sobre formas de gestão participativa e controle social da Administração Pública. Nosso estudo tem como base a Constituição Federal brasileira e duas propostas de gestão pública (gerencial e societal), inseridas no contexto nacional pelos Governos Cardoso e Lula. Diante da ineficiência administrativa e do crescente déficit democrático das instituições, assistimos várias reformas constitucionais de impacto, destacando-se a Emenda Constitucional 19/98 promovida pelo Governo Cardoso. Neste sentido, pontuava o então Presidente:

 

Não é nenhuma novidade dizer que estamos numa fase de reorganização tanto do  sistema econômico, como também do próprio sistema político mundial. Como consequência desse fenômeno, impõe-se a reorganização dos Estados nacionais, para que eles possam fazer frente a esses desafios que estão presentes na conjuntura atual. (Cardoso, In Bresser Pereira; Spink, 2006, p. 15).

 

Dizia que a reforma do Estado não significava desmantelamento da máquina administrativa, desorganizando o sistema administrativo e político vigente. Para ele:

 

Mudar o Estado significa, antes de tudo, abandonar visões do passado de um Estado assistencialista e paternalista, de um Estado que, por força de circunstâncias, concentrava-se em larga medida na ação direta para a produção de bens e serviços. (Cardoso, In Bresser Pereira; Spink, 2006, p. 15).

 

Indicando certa abertura cognitiva e participação social no contexto das reformas, sustentava que o Estado deveria se abrir a certas pressões da sociedade, mas a sociedade também teria que aprender a dialogar com o Estado, de um modo que fosse adequado aos objetivos da população. Neste esforço de reconstrução do Estado, buscava-se criar novos canais que permitissem o diálogo entre sociedade e burocracia Reivindicando a legitimidade do processo democrático, sustentava que:

 

Porque numa democracia, em última análise, o poder legítimo é o poder legitimado pelo voto, pela cidadania. Assim, nem a burocracia em si mesma, nem os grupos da sociedade civil que não passaram pelo teste das urnas têm legitimidade para liderar a mudança. Eles têm, isso sim, o dever de preparar a discussão, de pressionar os governantes. Mas a legitimidade da decisão tem que caber àqueles que são detentores da vontade popular. Esta é a essência da democracia; esta é a essência do republicanismo (Cardoso, In Bresser Pereira; Spink, 2006, p. 17).

 

O discurso democrático aparentemente sustentou a ideologia das reformas, uma vez que o ativismo cidadão é um importante fator de participação social no processo de deliberação política e controle social da Administração Pública.

Juridicamente, a vontade popular se manifesta de forma ativa no processo eleitoral e por meio de alguns procedimentos consultivos, tais como: plebiscito e referendo. A Constituição Federal de 1988 pretende sedimentar uma cultura democrática que segue em processo de consolidação, rompendo paradigmas e ampliando as esferas de participação cidadã. Assim sendo, a abertura do sistema político, jurídico e administrativo à participação popular contextualiza, em tese, uma dinâmica social discursiva, deliberativa e inclusiva em nítido processo evolutivo.

Justificando a proposta reformista, Fernando Henrique sustentava que se vivia um momento de transição. Passava-se de um modelo administrativo assistencialista e patrimonialista, burocratizado no sentido weberiano da palavra, para um novo modelo, no qual não bastava mais a existência de uma burocracia competente na definição dos meios para se atingir fins. Propunha-se um modelo eficiente, orientado por valores gerados pela sociedade. Um aparelho estatal capaz de se comunicar com o público de forma desimpedida.

Destacava a importância dos funcionários públicos neste processo de transição e transformação, reconhecendo na burocracia estatal núcleos de competência e excelência que deviam ser prestigiados como paradigma da nova cultura administrativista em formação. Em poucas palavras, seria preciso desenvolver uma nova cultura organizacional que rompesse com o patrimonialismo, a política de troca de favores, das vantagens corporativas, abrindo-se as mentes para uma nova gestão pública focada no serviço ao cidadão, na missão institucional e no espírito republicano.

Diagnosticado o problema e proposta a solução, coube ao então ministro Bresser Pereira arquitetar as bases da reforma administrativa. Sua proposta era estabelecer diretrizes para a estruturação de um novo Estado Republicano. O ajuste estrutural dos Estados nacionais era a pauta dos anos 80, marcados pela crise de endividamento internacional. Aliada à crise internacional, tivemos a abertura política em vários continentes, particularmente na América Latina. O fim da Guerra Fria e a distensão política brasileira encaminhavam as coisas para uma nova realidade institucional: ouvia-se a voz do cidadão. Mudanças estruturais de tamanha envergadura supõem um ambiente democrático e participação ativa dos concernidos.

É neste ambiente de transformação que começam a ganhar espaço canais de comunicação e crítica social como é o caso do ombudsman. Mas, a ativação da cidadania não resolvia o problema da governança e da governabilidade no contexto da crise fiscal do Estado. Era preciso pensar uma nova racionalidade no serviço público comprometido com o cidadão e mais responsável pelos seus atos. Pretendia-se um Estado republicano livre dos vícios da gestão burocrática patrimonialista. Para isto, levou-se a cabo uma extensa reforma administrativa. A reforma deveria reduzir a lacuna que separa demanda social e a satisfação das pretensões sociais reprimidas. Não se tratava apenas de promover uma reforma estrutural. A proposta era romper com o paradigma da gestão patrimonialista que secularmente sitiava o meio ambiente social. Opunham-se, pois, a racionalidade patrimonialista e a burocracia socialmente comprometida. O novo modelo de gestão deveria estar em condições de combater dois graves problemas nacionais: nepotismo e corrupção. No entanto, deveria ir mais além demonstrando eficiência na gestão da coisa pública. Não bastava ser honesto, probo; fazia-se necessário ser eficiente, gestor de resultados.

Transferir poderes de controle ao cidadão e ao servidor público, como sentinelas da moralidade e eficiência pública, mostrava-se medida adequada para combater a apropriação privada da Administração Pública. Assim, espaços dialógicos foram se replicando através de arenas públicas ocupadas por movimentos sociais e outras formas coletivas de participação cidadã.

Controle significa acompanhamento das etapas do trabalho desenvolvido; responsabilização significa estabelecer o dever de prestar contas dos atos praticados. Ambos se interpenetram estabelecendo condições para que o cidadão exerça o seu poder fiscalizador. Neste contexto, vejamos o que diz Bresser Pereira:

 

A reforma da gestão pública utiliza mecanismos hierárquicos e políticos para controlar os burocratas, mas os mecanismos políticos têm precedência nas democracias. Não se pode legitimar as políticas públicas com base apenas no argumento da competência técnica. Compete à sociedade, diretamente ou através de seus representantes políticos, definir objetivos e então tornar responsáveis os funcionários governamentais. Para controlar os políticos, a sociedade civil conta com uma forma específica de controle, a saber, o voto; para controlar os burocratas, ela dispõe também de uma instituição identificável – o controle social – além do controle indireto que exerce através de políticos e de outros burocratas. (Bresser Pereira; Spink,  2009, p. 273).

 

Para ele, os proponentes da responsabilização participativa destacavam o aspecto procedimental do processo decisório, enfatizando o papel ativo do cidadão. Outros defendem o controle através das relações com os clientes, interessando-se na avaliação dos resultados e se eles atendem aos interesses dos usuários. Com esta segunda perspectiva, prossegue o autor:

Os proponentes do controle através da responsabilização dão prioridade aos controles procedimentais que envolvem métodos de auditoria, ombudsman, conselhos de administração e transparência. Finalmente, no caso do autocontrole, seus defensores contam com o padrão profissional dos administradores públicos. (BRESSER PEREIRA E SPINK: 2009, 274).

Nota-se então que a mudança estrutural promovida com as reformas não se mostrava suficiente. Era preciso abrir as estruturas da Administração Pública à participação popular individual e coletiva. Controle externo e controle interno, como já estabelecido na Constituição Federal, atuariam de forma complementar sem que um concorresse com o outro. Encerrando o seu pensamento, arremata:

 

A reforma da gestão pública envolve todos esses controles, mas exige uma perspectiva pragmática, que conte com a iniciativa e o espírito público dos burocratas e com a eficiência dos resultados formalmente contratados, da competição administrada pela excelência e da participação do cidadão, mas sem eliminar a supervisão direta e a auditoria. (Bresser Pereira; Spink, 2009, p. 274).

 

Assim, percebemos que a mudança estrutural na esfera pública brasileira envolve questões complementares: ativação da cidadania, produção de resultados socialmente relevantes e comprometimento dos burocratas com a administração no sentido republicano.

Neste contexto, De Paula (2005) desenvolveu um estudo sobre a Nova Administração Pública, propondo ao final reflexão crítica sobre o caso brasileiro. Seu ponto de partida são os modelos de reestruturação inglês e norte-americano, respectivamente thactherismo e reaganismo, que impulsionaram análises sobre a dimensão do estado e sua eficiência operacional.

Para ela, o gerencialismo é um dos fundamentos da nova administração pública. Este modelo de gestão baseava-se na crítica das organizações burocráticas e flexibilização operacional do Estado (normas, estrutura, pessoal, etc.). Desenvolvendo sua análise, apresenta dois modelos de gestão que tencionam entre si: vertente gerencial e vertente societal. A este respeito, vejamos como ela contextualiza a questão:

 

As propostas da vertente gerencial foram concebidas e implementadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, com a participação ativa do ex-ministro da Administração e Reforma do Estado Bresser-Pereira. A vertente se tornou hegemônica quando a aliança social-liberal alcançou o poder e implementou a administração pública gerencial. A vertente societal se inspira nas experiências alternativas de gestão pública realizadas no âmbito do poder local no Brasil, como os conselhos gestores e o orçamento participativo. Esta vertente tem suas raízes nas formulações do campo movimentalista dos anos 1970 e 1980 e nas políticas públicas implementadas pelas frentes populares nos anos 1990. Seu projeto de construir uma administração pública societal ganhou nova dimensão com a vitória da aliança popular-nacional nas eleições presidências de 2002. No entanto, a experiência vem demonstrando que a emergência e consolidação deste novo modelo de gestão é um fenômeno independente deste resultado eleitoral e do desempenho do governo Lula, pois deriva de uma evolução sociopolítica que vem se desenrolando desde o final da década de 1960 no âmbito da sociedade. (De Paula, 2005, p. 18).

 

Sugere que a modernização de práticas administrativas é um processo em construção, requerendo novas abordagens que permitam incluir no discurso técnico elementos sociais relevantes. Neste sentido, indica novas dimensões de gestão pública democrática.

Considerando a importância da dimensão sociopolítica, ela adverte sobre o risco da valorização excessiva das dimensões econômica, financeira e administrativa, subordinando princípios de gestão pública ao modelo gerencial praticado no mercado. Adverte que a gestão no setor privado se volta para o lucro. Desta forma, quando os paradigmas de gestão empresarial são transpostos de forma acrítica para o setor público, estão em risco princípios democráticos voltados para o bem comum. Por conseguinte, a eficiência técnica desejada pode resultar em perda de consistência política, comprometendo seriamente a função do Estado como meio de realização da pessoa humana; além disto, corre-se o risco de se importar valores que acentuam mais ainda o caráter patrimonialista da gestão centralizada nas mãos das elites estatais.

Para ela, a Nova Administração Pública mantém a dicotomia entre política e administração, aderindo uma dinâmica administrativa que reproduz a lógica centralizadora das relações de poder e restringe o acesso dos cidadãos ao processo decisório. É neste contexto que irá desenvolver seus argumentos, demonstrando a tensão entre as vertentes gerencial e societal. A primeira foi inspirada no movimento internacional pela reforma do Estado com base nas teorias administrativas do setor privado; a segunda buscava formas de organização e administração estatal mais aberta à participação da sociedade, através de um tipo de gestão pública social. Considerando, pois, o caso brasileiro, De Paula chega à estas conclusões:

 

A vertente gerencial não foi bem-sucedida na abordagem da dimensão sociopolítica, pois ao focalizar a nova administração pública como modelo de gestão, deixou a desejar no que se refere à redemocratização do Estado brasileiro. Questões que envolvem as relações entre o Estado e a sociedade não foram suficientemente tratadas, permanecendo as características centralizadoras e autoritárias que marcaram a história político-administrativa do país;

- a vertente societal busca construir e implementar um projeto político capaz de subverter o padrão autoritário das relações entre o Estado e a sociedade no Brasil. Guardados alguns limites, a tentativa de inserir a dimensão política em suas experiências de gestão está abrindo possibilidades para a renovação do modelo de gestão pública à medida que traz novas propostas para se repensar as instituições políticas e a dinâmica administrativa. (De Paula,  2005, p. 75)

 

A tensão que se mostra entre público X privado, Estado X Mercado, escolha racional X escolha social vão delineando o caminho para consolidação de um modelo administrativo aberto cognitivamente à participação social. Se a reforma do Estado teve como base o processo de reestruturação produtiva das empresas privadas, sua abertura à participação social igualmente teve como influência o diálogo que se estabeleceu entre as empresas e seus clientes. Este canal de comunicação, orientado pelo êxito organizacional, recebe do meio ambiente a impressão sobre os serviços e produtos oferecidos. A impressão do cliente oferece indicadores de desempenho que são processados internamente e retornam para o mercado na forma de produtos e serviços reelaborados. O propósito é manter ou melhorar a imagem institucional fidelizando clientes e aumentando os níveis de produção e vendas.

No entanto, o diálogo que se estabelece entre Estado e cidadão não têm igual natureza e finalidade. Nele, devem estar presentes argumentos políticos e morais centralizados na dignidade da pessoa humana e na melhoria constante de sua potencialidade existencial. Assim, quando o Estado resolve adotar a racionalidade empresarial, focada na redução de custos e aumento da eficiência operacional (fazer mais com menos), desconsiderando as dimensões políticas e morais da relação democrática, corre o risco de provocar ressentimentos por frustração de expectativas sociais. Políticas de gerenciamento, que não distinguem a função social do Estado e a necessidade de promoção social como fator de estabilidade política, têm levado a Administração Pública a um paradoxo indefensável: ampliação de sua tecnologia de controle fiscal e redução de sua capacidade de intervenção social.

O risco de dominação patrimonial por uma nova elite burocrática, no caso brasileiro, deve ser considerado. Cada vez mais surgem no Brasil associações profissionais reivindicando espaço de poder, status e remuneração em benefício de seus integrantes, sob o argumento de que seus associados atuam como agentes políticos na defesa dos interesses estratégicos do Estado. Julgando-se legítimos detentores da governança pública, atuam intensamente para manter o controle orçamentário e político de “suas” instituições. O modelo de gestão gerencial, dirigido por estas elites burocráticas, reluta em abrir-se cognitivamente ao controle social, exercido através de canais como: corregedoria, auditoria, controladoria, ouvidoria e conselhos nacionais de justiça, por exemplo.

A tensão entre o interesse individual privado X interesse coletivo público é deslocada para um novo cenário de conflito que se estabelece entre o interesse coletivo privado X interesse coletivo público. O movimento associacionista da nova elite burocrática transforma o interesse individual em coletivo e produz um embate de forças menos assimétrico. Com este deslocamento de interesses, organizam-se poderosos lobbies que transitam com desenvoltura no parlamento. Em razão de sua influência na Administração Pública, poderiam as elites burocráticas gerenciar os canais de controle segundo os seus interesses corporativos? Haveria relação entre a ineficiência de mecanismos de controle e a gestão confiada aos integrantes destas associações corporativas? Estaríamos diante de um modelo de gestão neopatrimonialista?

No caso das democracias participativas, o domínio político das elites burocráticas, fundamentado na expertise dos seus agentes, poderia justificar o controle corporativo do diálogo social? A existência de um corpo técnico, “controlando” as incertezas e os riscos sistêmicos, supriria a vontade popular e sua legítima participação política? O sistema perito poderia usurpar o direito de participação popular? O conhecimento perito, monopolizado pelas elites burocráticas, esvaziaria o espaço social democrático? São questões como estas que devem animar o debate sobre a esfera pública participativa. Debates neste sentido devem privilegiar a participação do cidadão leigo na construção de consensos ou superação de dissensos sociais.

Em sua análise, considera também a emergência do desenvolvimento dependente e associado, com base em estudos de Cardoso e Falleto. Depois de discorrer sobre a disseminação de teses desenvolvimentistas na Cepal, a autora relata que, para os autores, a intervenção estatal deveria adquirir outra natureza, assumindo o Estado o papel de empresário. Assim, destaca a palavra deles nestes termos:

Mas não deixa de ser significativo que, mesmo nesse caso, aqueles que controlam o setor estatal da economia atuem mais em termos de “empresários públicos”, do que de acordo com uma política tipo populista, que estimula a redistribuição da renda pelos aumentos contínuos de salários. Em outros termos, o Estado deixa de ser um Estado-populista, para transformar-se em um Estado-empresarial. (De Paula, 2005, p. 110).

 

Segundo De Paula, o projeto nacional-desenvolvimentista continuou sendo referência no Brasil e na América Latina mesmo após a abertura político institucional. Fracassado o “milagre econômico”, recrudesceria o movimento crítico sobre a eficiência administrativa do Estado, servindo como variável do processo de abertura democrática que veio a seguir.

O modelo de administração pública proposto pela reforma administrativa separava as atividades do Estado em duas categorias: atividades exclusivas e atividades não exclusivas. Com isto, era possível legitimar processos de transferência de atividades da iniciativa pública para a iniciativa privada, como ocorreu com as privatizações levadas a cabo na década de 1990/2000.

Observe-se que não bastava patrocinar a reforma estrutural do Estado. Para tornar a reforma bem sucedida, seria preciso fazer incursões sobre a cultura organizacional e modelo de gestão burocrático. Assim, procurava-se transformar a cultura burocrática em uma cultura gerencial com discursos, metas e treinamentos motivacionais típicos das organizações privadas. Certamente, as reformas produziriam efeitos na cultura burocrática das organizações públicas. Em razão disto, aos programas das escolas no serviço público foram acrescentadas disciplinas com o propósito de internalizar nos servidores públicos parâmetros de atuação inspirados nas escolas administrativas do setor privado.

Analisando as propostas reformistas, destaca que Bresser Pereira elaborou uma série de argumentos justificando o caráter democrático da administração pública gerencial. Dentre os seus argumentos, a diversificação dos controles sociais teria a função de preservar o interesse público, mantendo os burocratas em contato com a sociedade, equilibrando técnica e política. Assim concebido, o modelo de gestão pós-burocrático teria flexibilizado o aparelho de Estado, tornando a prestação de serviços eficiente e o sistema administrativo mais aberto à participação popular.

Segundo a autora, Bresser Pereira enfatizou a importância do controle social, apostando na coexistência de diversos tipos de controles democráticos para garantir uma cooperação desinteressada dos burocratas públicos. Neste sentido, cita alguns deles:

a)    controle do processo (participação dos cidadãos na tomada de decisões);

b)     controle de resultados;

c)    controle dos políticos sobre os burocratas;

d)    controle procedimental (auditorias e conselhos de administração);

e)    autocontrole (valores profissionais do administrador público).

 

Em que pese os argumentos a favor da reforma, ela conclui que a administração pública gerencial continua sustentando a centralização do poder e o idealismo tecnocrático, nestes termos:

 

A implementação do modelo gerencialista de gestão pública não resultou em uma ruptura com a linha tecnocrática, além de continuar reproduzindo o autoritarismo e o patrimonialismo, pois o processo decisório continuou como um monopólio do núcleo estratégico do Estado e das instâncias executivas, e o ideal tecnocrático foi reconstituído pela nova política de recursos humanos. Por outro lado, a despeito do discurso participativo da nova administração pública, a estrutura e a dinâmica do Estado pós-reforma não garantiram uma inserção da sociedade civil nas decisões estratégicas e na formulação de políticas públicas. (De Paula, 2005, p. 141).

 

O modelo gerencial idealizado produziu uma elite burocrática como representante do núcleo estratégico responsável pelas atividades essenciais não delegáveis. Mas, o que se mostrou evidente é que ela reivindica cada vez mais espaços de dominação, status e privilégios, fechando-se operacionalmente em códigos linguísticos tecnocráticos que tornam seus mecanismos de gestão cada vez mais opacos, em que pese o discurso em favor da transparência e acesso participativo do cidadão.

A governança das instituições públicas nas mãos de uma elite burocrática que, sentindose legitimada pelo acesso na carreira através de concursos de provas e títulos, ou nomeação política direta, pode se transformar em sério risco para a democracia representativa. Historicamente, como já tivermos ocasião de ver no caso dos Ouvidores do Brasil Colônia, as elites políticas estreitam relações com as elites burocráticas visando a satisfação dos interesses particulares de cada uma delas. Corre-se o risco de se repetir o modelo no qual a vontade popular funciona como fator de legitimação destes arranjos elitistas, sem participar efetivamente das deliberações que autorizam a prática de atos concretos de gestão.

De Paula (2005) percebeu que o projeto de valorização da burocracia vinculada ao núcleo estratégico do Estado não rompeu com o ideal burocrático teoricamente combatido pela reforma. Segundo ela, a nova política do Mare foi direcionada para a profissionalização do núcleo estratégico e tentou expulsar os escalões inferiores do domínio público, geralmente aqueles que lidam diretamente com os cidadãos. Utilizando uma estratégia de mal dizer a Administração Pública, Bresser Pereira teria influenciado a opinião pública contra este funcionalismo, dividindo os servidores públicos em duas categorias: a elite gerencial e os demais servidores não graduados. Ana Paula destaca a fala de Bresser Pereira, desta forma:

 

Minha estratégia principal era a de atacar a administração pública burocrática, ao mesmo tempo em que defendia as carreiras de Estado e o fortalecimento da capacidade gerencial do Estado. Dessa forma, confundia meus críticos, que afirmavam que agia contra os administradores públicos e burocratas, quando eu procurava fortalecê-los, torná-los mais autônomos e responsáveis. (De Paula,  2005, p. 145).

 

Em sua análise crítica, afirma que o baixo escalão não foi ouvido pelo governo quanto às suas pretensões profissionais, fragilizando o nível de comprometimento dos servidores na ponta do serviço p público, onde justamente ocorre o contato direto com o cidadão; e neste sentido remata:

 

Em síntese, apesar das intenções de profissionalização dos burocratas de carreira e melhoria na prestação de serviços públicos, os resultados têm sido limitados. Por outro lado, com a administração pública gerencial prevalece o ideal tecnocrático, que favorece a reprodução do autoritarismo e do neopatrimonialismo. A formulação das políticas públicas continua como monopólio de uma elite burocrática que centraliza o poder, se apropriando da essência do Estado, e os serviços públicos são relegados para executores cujo comprometimento com a qualidade e o interesse público varia de acordo com uma série de fatores. (De Paula, 2005, p.147).

 

A respeito da ação participativa da sociedade, nossa autora interpreta Bresser Pereira dizendo que:

 

A inserção da sociedade civil no processo de mudança social é um fenômeno recente. Para o ex-ministro é uma instituição que reorganiza a alocação de recursos, poder e riqueza. Na nossa interpretação, este tratamento da sociedade civil como instituição e não como agente já sinaliza o caráter limitado da participação social na estrutura e dinâmica governamental da vertente gerencial. Nesse contexto, há um discurso participativo, mas na prática se enfatiza o engajamento da própria burocracia pública ou dos quadros das organizações sociais no processo de gestão. A estrutura e a dinâmica do aparelho do Estado pós-reforma não apontam os canais que permitiria a infiltração das demandas populares. (De Paula, 2005, p.147).

 

Agudizando ainda mais o tom crítico, adverte que existem novos mecanismos de controle dos funcionários públicos e que a participação social é controlada pelas elites burocráticas. Sustenta que democratizar uma administração pública e viabilizar a participação popular são tarefas completamente distintas. Mesmo que se estabeleça uma suposta democracia interna nas organizações públicas, isto não garante permeabilidade à participação social. Neste caso, o formato institucional das organizações e a estrutura do aparelho estatal podem inviabilizar uma inserção popular efetiva no processo decisório e na formulação de políticas públicas. Para rematar, ela afirma:

 

Assim, inexiste um canal de mediação entre as entidades e a cúpula governamental, demonstrando que ainda está colocado o desafio de se elaborar arranjos institucionais que viabilizem uma maior representatividade e a participação dos cidadãos na gestão pública. Em síntese, a vertente gerencial pactua de uma abordagem autoritária de gestão, pois os burocratas públicos continuam centralizando as decisões e a inserção social é limitada. Além disto, o viés gerencialista que estimula o patrimonialismo burocrático e político dos gestores, dificultou a criação de alternativas institucionais para a participação social. (De Paula, 2005, p.149).

 

Diante das críticas apresentadas ao modelo gerencial, De Paula (2005) sugere outra opção: a vertente societal ou administração pública societal. Nesta vertente, atuariam três elementos principais:

a)    a busca de um novo modelo de desenvolvimento;

b)    a concepção participativa e deliberativa de democracia; e

c)    a reinvenção político-institucional e a renovação do perfil dos administradores públicos

 

Antes mesmo da implantação do paradigma gerencial no Governo Cardoso , o modelo societal já era praticado na década de 80. Podemos citar como exemplos os fóruns temáticos, os conselhos gestores de políticas públicas e o orçamento participativo. Naquela época, começavam a surgir as primeiras experiências de descentralização do poder político. O idealismo da vertente societal teria chegado à Constituinte, sugerindo novos mecanismos de gestão comprometidos com a democracia representativa. Segundo ela, apesar da heterogeneidade dos atores envolvidos, os movimentos sociais reivindicavam o fortalecimento da sociedade civil na condução da vida política nacional.

Ela nos comunica que foram se multiplicando no país governos com novas propostas de gestão, abrigando experiências de participação social, tais como: conselhos de gestão tripartite, comissões de planejamento e outras formas específicas de representação. Prosseguindo com a visão societal, destaca a seguinte reflexão de Marco Aurélio Nogueira:

 

Só pode nascer de um projeto firmemente concentrado na substância do fenômeno estatal, não nas suas formas ou nas quantidades nele agregadas. Um projeto político, bem mais do que técnico-gerencial. Para dizer de outro modo: mais importante do que difundir no setor público uma parafernália de “novas tecnologias gerenciais”, muitas vezes tomadas de empréstimo do mundo dos negócios e levemente adaptadas, é fazer com que se consolide uma nova perspectiva, quer dizer, uma nova maneira de compreender o Estado e de atuar com o Estado no momento da história e em um país como o nosso. (De Paula, 2005, p. 155-156).

Opondo-se ao modelo técnico-gerencial, propõe novos formatos institucionais que permitam a co-gestão e a participação dos cidadãos nas decisões políticas. Em sua opinião, formas alternativas de gestão participativa tornariam a Administração Pública mais eficiente conjugando técnica administrativa e compromisso social.

Considerando o perfil do gestor público, informa que os cientistas sociais resistem a se dedicar às tarefas práticas ou aplicadas, destacando a falta de oportunidades para que eles atuem em outras áreas disciplinares. Assim, percebe que há uma carência de profissionais que entendam as dimensões sociais, políticas e éticas da administração socialmente comprometida. Tal carência sugere que técnicas de ensino-aprendizagem e pesquisa devem ser repensadas. Para ela, há necessidade de um programa de valorização, formação e treinamento de administradores públicos que crie especialistas tecnopolíticos capazes de pesquisar, negociar, aproximar pessoas e interesses, planejar, executar e avaliar projetos. Necessitaríamos de gestores com competência para avaliar situações complexas de forma cooperativa, solidária e participativa.

O que se extrai de sua análise crítica é que a vertente gerencial não conseguiu transcender a dicotomia entre política e administração, dificultando a abertura cognitiva para as demandas populares. Ao contrário, incidiu em práticas autoritárias e centralizadoras, reproduzindo características recorrentes das elites burocráticas ao longo da história políticaadministrativa do país.

A vertente societal, por sua vez, direciona a gestão para um agir político-institucional que integre política e administração, ampliando o diálogo social e a participação comunitária. Enquanto a vertente gerencial apresenta dimensões econômico-financeira e institucionaladministrativa; a vertente societal volta-se para a dimensão sócio-política. Se a primeira procura imunizar-se do populismo, recorrente ao longo da história republicana, a segunda corre o risco de errar a mão e cair em um populismo grave e antidemocrático. Ao que parece o grande desafio reside na busca do equilíbrio entre gestão técnica e compromisso social.

Posta a questão da gestão pública participativa, podemos analisar o controle social e accountability no Brasil, refletindo a crítica interna da democracia representativa. Para Lavalle e Vera (2011), a principal função da participação na teoria democrática é educativa. Seus efeitos pedagógicos remeteriam à socialização e à formação do homem público. Ele é um agente que deve gerenciar rotinas e procedimentos conforme o modelo institucional vigente. Analisando vários estágios de desenvolvimento da administração pública, eles identificam ciclos de transição nas últimas décadas do século XX. No plano teórico, argumentos em favor da participação do cidadão na esfera pública ganharam força. No plano prático, a reorganização das instituições sinaliza o fortalecimento do diálogo social através de canais extraparlamentares de representação.

Pó e Abrucio (2006) assinalam que a maior complexidade do Estado moderno traz novos desafios, criando muitas das vezes domínios controlados por burocracias técnicas com pouca ou nenhuma responsabilização pública. Neste sentido, entendem que a discussão sobre accountability vem dar novas dimensões à democracia.

Se nos anos 90 assistimos as reformas administrativas que, em tese, abriram as estruturas do Estado à participação social, nas últimas décadas presenciamos o esgotamento do discurso oficial democrático. Alianças políticas e institucionais, visando preservar interesses olirgárquicos e partidários, tem gerado um ambiente de cinismo antidemocrático.

Os movimentos sociais e a ocupação das avenidas brasileiras sinalizam que o modelo de gestão estatal esgotou-se, geranto ressentimentos por causa de pactos sociais não cumpridos. O cenário que se apresenta pode inspirar um movimento de renovação política através da elaboração de um pacto nacional que preserve a ética discursiva em todas as esferas da Administração Pública.

 

3 CONCLUSÃO

O controle social da Administração Pública remete-nos à difícil tarefa de informar/educar as pessoas para transformar a realidade social através de ações esclarecidas, consequentes e persistentes. A crise de representação política talvez seja sintoma de um modelo cuja dominação patrimonial prende-nos em uma jaula de ferro weberiana. Quando pensamos agir, somos reprimidos pela coerção estatal, fundamentada em uma ordem jurídica elitista. Neste contexto, canais de abertura cogntiva das instituições atuam seletivamente segundo o interesse da Máquina Administrativa, deslegitimando suas políticas pública e as intervenções do Estado na ordem social e econômica. O funcionamento formal das instituições democráticas, adstrito ao cumprimento das normas jurídicas elaboradas conforme uma racionalidade de meios e fins, revela a distância entre interesse público oficial e interesse público social. As contradições entre atos de fala e atos praticados gera a suspeita de quem está no controle da situação, e se existe mesmo algum tipo de controle em uma sociedade complexa, descentrada e de risco.

Vivemos uma turbulência normal em uma ordem democrática que, por sua natureza deliberativa, vive ciclos de alternância de poder e superação de paradigmas? Nesta turbulência, devemos nos amarrar ao mastro central da embarcação e suportar as tentações das ninfas marinhas? Ou devemos colocar cera em nossos ouvidos, atravessando a tormenta “seguros”? Seria o caso de pagar o preço e enfrentar os riscos da travessia, sob o risco de adormecer com o canto das sereias e despertar nos braços de tenebrosas ditaduras?

Se os gestores públicos não nos ouvem, façamo-nos ouvir. Como? O desafio é instrumentalizar as pessoas com mecanismos cognitivos que lhes assegurem ações consequentes e um ativismo permanente, necessários para se viver em um regime democrático por excelência. Este desafio leva-nos a um espaço público dialógico como este, pois estamos convictos de arenas como esta consolidam o modelo de sociedade comunicativa como ideal realizável.

 

REFERÊNCIAS

BRESSER PEREIRA, L. C. A crise da América Latina: Consenso de Washington ou crise fiscal? Aula magna no XVIII Encontro Nacional de Economia da Associação Nacional de Centos de Pós-graduação em Economia (Anpec) proferida em Brasília em 4 de dezembro de 1990 - http://bresserpereira.org.br. Acesso 17/01/13.

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[1] Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense - Departamento de Direito de Macaé e analista judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2000), mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013) e doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2018).