PAndemia

a proteção social do trabalhador

 

José Antonio Callegari[1]

Universidade Federal Fluminense

calegantonio@yahoo.com.br

 

1 INTRODUÇÃO

A crise sanitária, decorrente da pandemia do COVID-19, trouxe ao debate uma questão urgente: a efetividade do sistema jurídico de proteção social.

Em particular, tratemos da proteção do social do trabalhador. Nosso recorte leva em consideração o retrocesso social dos trabalhadores, a partir da Reforma Trabalhista e agudizado no contexto da pandemia do COVID-19.

Utilizamos uma análise normativa, a partir da Constituição Federal. Nela identificamos um complexo sistema de proteção social destinado também aos trabalhadores.

 A partir dela, intuímos um conflito de interesses entre subsistemas que, no plano normativo, complementam-se harmoniosamente. Entretanto, no plano fático, travam disputas por hegemonia, culminando com a prevalência da racionalidade político-econômico-financeira em detrimento de uma racionalidade existencial e solidária.

Ao final, convidamos o leitor a refletir sobre “as consequências socioculturais do progresso técnico”, com apoio em Habermas (2014).

 

2 SISTEMA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DO TRABALHADOR

Em 05 de outubro de 1988, promulgou-se a Constituição da República Federativa do Brasil. Inaugurando uma nova ordem jurídica, ela concebeu um amplo sistema normativo de proteção social, trazendo os direitos fundamentais e sociais dos trabalhadores ao primeiro plano do cenário constitucional. Desse modo, constituiu-se um Estado Democrático de Direito.

Como texto básico da ordem jurídica, a Constituição adotou princípios fundamentais, tais como: dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Ao delinear a estrutura normativa da República Federativa do Brasil, a Constituição definiu certos objetivos, visando construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

No auge da pandemia, quando se discute a relação entre prevenção, promoção e recuperação da saúde, com impactos na economia, importa registrar o tratamento constitucional da questão, a partir dos objetivos, valores e princípios constitucionais.

Assim sendo, percebe-se que, em momento algum, o legislador constituinte originário fez prevalecer o interesse da economia sobre outros interesses socialmente relevantes. Ao contrário, estabeleceu um sistema harmonioso de ações e políticas públicas focado na liberdade, justiça e na solidariedade.

Tais ações relacionam-se diretamente com o desenvolvimento nacional. Portanto, como será destacado mais adiante, é supostamente inconstitucional as teses governistas que relativizam as medidas sanitárias e de proteção social, utilizando argumentos como “o Brasil não pode parar” e a política do “fica em casa e a economia a gente vê depois”.

Desse modo, qualquer ação ou omissão dos agentes públicos, a negar o tratamento sistemático e coordenado das questões sanitárias e de seguridade social, sem descuidar de medidas de proteção da economia nacional, durante a pandemia do COVID-19, incorre em inconstitucionalidade flagrante.

Em sentido prático, não basta programar um sistema de proteção social, há que se garantir o exercício dos direitos socais e individuais, visando o bem-estar da pessoa humana, vinculados certamente com os fundamentos da economia. Solidariedade é propósito que existe realização concreta e sistêmica.

Por conseguinte, a Constituição foi concebida para se realizar no mundo da vida. No entanto, sua “força normativa” depende da “vontade de Constituição” (HESSE, 1991). Em outras palavras, para realizar os programas sociais da Constituição devemos agir com essa vontade de Constituição, orientando nossas condutas segundo uma racionalidade solidária e existencial, programada normativamente e exequível na prática.

Vencer a inércia normativa, numa sociedade tão desigual, com ranços do patrimonialismo e do patriarcalismo[2], subjugada por uma racionalidade burocrática e autopoiética[3], é o grande desafio das pessoas com vontade de Constituição.

Esses fatores, que disputam prevalência no contexto da pandemia do COVID-19, evidenciam as disputas entre os subsistemas sociais, suas lutas por hegemonia, e a prevalência até aqui da racionalidade econômico-financeira sobre a racionalidade solidária e existencial.

A tensão entre facticidade e validade, muito acentuada nesse momento, reforça ainda mais o conceito de força normativa da Constituição (HESSE, 1991), pois ela atua sobre o ordenamento jurídico, sistematizando a atuação harmoniosa dos Poderes da União.

No entanto, a força normativa não basta por si mesma, muito embora contenha valores, princípios e regras jurídicas que organizam os Poderes da União, segundo regras jurídicas de competências exclusivas, comuns e concorrentes.

Como toda norma jurídica, a Constituição é concebida a partir da vontade política das pessoas, integradas em determinado território soberano: povo. Essa vontade política contém expectativas normativas, tal como disposto no preâmbulo da Constituição brasileira. 

Essa vontade política, como fonte originária da Constituição, atua no sistema político, produzindo o texto constitucional. Como resultante da expectativa normativa do povo, a Constituição retorna ao mundo da vida como determinante das ações sociais e políticas, necessárias à realização práticas das expectativas sociais normatizadas. Numa palavra, a Constituição estabelece diretrizes fundamentais para a elaboração de políticas públicas, retornando à sociedade como imperativo de ações práticas.

Portanto, o texto constitucional atua no sistema político-jurídico como ordem de ação, um imperativo categórico do ordenamento jurídico. A Constituição não é uma carta de intenções; é, antes de tudo, uma carta de ações, de onde partem as diretivas para as ações públicas que organizam a vida política e social da nação, dentre as quais podemos indicar as ações de proteção social do trabalhador e de promoção da economia nacional.

Retornando a Hesse (1991), a força normativa da Constituição necessita de uma forte, contundente e sincera vontade de Constituição. Se adotarmos um ponto de vista kantiano, ela contém um imperativo para ações por dever e não somente conforme o dever, pois a efetivação dos valores e princípios constitucionais impera sobre a vontade solipsista dos governantes e das estruturas autopoiéticas da burocracia estatal.   

No contexto atual da pandemia (COVID-19), assistimos a tensão real entre a força normativa da Constituição e os seguimentos políticos e sociais que negam essa vontade de Constituição, obstando a realização existencial da pessoa humana. Nesse embate, submetem a racionalidade solidária ao imperativo de uma racionalidade econômico-financeira, como se a promoção da saúde e da vida comprometesse a ordem econômica. 

Como resultado, assistimos a precificação da vida, mediante estratégias políticas, personalíssimas e autoritárias, fundamentadas no dilema entre vida X economia. No entanto, a Constituição, em sua vertente normativa, coloca a dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho e a livre iniciativa como princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, unindo na mesma equação jurídica os fatores de promoção do bem-estar social e da produção, como elementos essenciais ao progresso econômico da nação.

Logo, a Constituição estrutura um sistema de promoção da riqueza nacional em compasso com a proteção da pessoa humana. Por conseguinte, a produção, o emprego, a saúde, a seguridade e a assistência social integram um sistema normativo, cujo funcionamento depende de uma visão de Estado, muito mais ampla e perene do que a visão dos governantes, nos limites temporais dos seus mandatos.

Em razão disso, a promoção da dignidade da pessoa humana encontra-se ligada diretamente com a valorização social do trabalho e da livre iniciativa. Podem, contudo, integrar subsistemas normativos específicos, sem, por isso, inviabilizar o funcionamento harmonioso do sistema constitucional.

Portanto, o acoplamento desses subsistemas decorre de uma vontade constitucional. Essa vontade contém um imperativo categórico de promoção das condições de vida e da produção econômica, mediante atuação harmônica entre os Poderes da República. Ao falarmos em vontade constitucional, destaquemos o papel do indivíduo que atua nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pois o acoplamento normativo desses subsistemas constitucionais é o meio de realização das ações práticas que dependem do compromisso social dos agentes investidos nas respectivas funções públicas.

Importa registrar que a força normativa, como acentuado por Hesse (1991) não elimina as disputas hegemônicas entre subsistema constitucionais. A pandemia (COVID-19), por exemplo, realçou a tensão entre subsistemas constitucionais, colocando em choque o pragmatismo econômico financeiro e a proteção social dos trabalhadores.

Analisando o mercado de trabalho na pandemia, Paula Montagner (2021) deixou claro “a necessidade de políticas ativas de inclusão para geração de trabalho e renda”.

Em seu artigo, relata:

 

Quando a pandemia de Covid-19 alcançou o Brasil no primeiro trimestre de 2020, a economia não mostrava crescimento sustentável e o mercado de trabalho não estava conseguindo gerar empregos, como havia prometido a reforma trabalhista. De fato, já acumulava taxas de desemprego muito elevadas e crescimento da subutilização da mão-de-obra e da informalidade. (Montagner, 2021).

         

Seu estudo indica que há um falso dilema entre proteção da vida X produção econômica, tal como sustentado por certos agentes públicos. Os dados, por ela analisados, revelam que o mercado de trabalho e a economia não viam bem, mesmo com a reforma trabalhista de 2017[4], cujo propósito de flexibilização e desregulamentação promoveu graves retrocessos na proteção social do trabalhador.

O cenário, antes da Pandemia, era de precarização do trabalho e de subutilização da mão-de-obra com aumento da informalidade e da pejotização[5].

Segundo Montagner (2021), os dados observados revelaram a subutilização da força de trabalho no período 2012-2020, sendo agravada no contexto da pandemia.

Seu estudo demonstra que a taxa de desocupação alcançava 12% entre 2016 e 2019, atingindo 12,6 milhões de pessoas.

Para Montanger (2021), o ano de 2020 intensificou a crise laboral, com redução de ocupações, refletindo sobre a taxa de desocupação. A falta de possibilidade de procurar trabalho, ou de ir à escola, em especial para as mulheres e aposentados, agravou o cenário.

Conforme relatado, o Mercado Formal de Trabalho foi atingido em cheio. Para contornar a situação, o Ministério da Economia elaborou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda, definindo um benefício emergencial.

O programa estabeleceu medidas, tais como a redução da jornada de trabalho e de salários e a suspensão do contrato de trabalho, prevendo a complementação de renda para os empregados formais com redução de jornada e de salário. A suspensão do contrato garantiu a permanência no emprego, como forma de estabilidade provisória.

Para os trabalhadores informais e desempregados, o estudo de Montagner (2021) indicou que houve acesso à renda emergencial. Registre-se que o benefício originariamente oferecido pelo Governo Federal foi de R$300,00, ampliado pelo Congresso Nacional para 05 parcelas de R$600,00 e 03 parcelas de R$300,00, até dezembro de 2020, quando o programa foi interrompido.

Montagner (2021) demonstra que houve um intenso controle da primeira onda da pandemia, resultando em tentativa de retorno da atividade econômica e ao trabalho presencial.

No entanto, como demonstrou, “o atraso da vacinação decorrente das escolhas do governo federal, rapidamente mostrou o amento de casos graves e custou a vida de centenas de milhares de brasileiros no primeiro trimestre de 2021”.

A pesquisa sinaliza que a interrupção do programa emergencial e do acesso aos programas de renda mínima impactou na deterioração das condições de vida da população, trazendo a fome para o contexto das famílias.

Montagner (2021) noticia que houve retomada tardia do benefício emergencial, sendo que “um dos motivos para adiar a tomada de ações mais direta para transferir recursos para famílias sem renda, esteve marcado pela aposta na retomada das atividades econômicas”.

O estudo serve de argumento para a tese de que a proteção social do trabalhador integra um sistema, centrado na dignidade existencial da pessoa humana, na valorização do trabalho e da livre iniciativa, tal como inscrito na Constituição Federal, sem descuidar dos fundamentos da economia.

Para corroborar a tese, Montagner (2021) sugere uma relação direta entre proteção social do trabalhador e promoção da atividade produtiva. Segundo a economista, “fica mais claro a necessidade de políticas ativas de geração de trabalho e renda”. A geração de trabalho e renda decorre de políticas públicas, adotadas pelo Estado, e de ações dos empreendedores.

Para tanto, destaca a necessidade de acesso consciente ao crédito:

 

A ampliação do crédito e microcrédito precisa incluir uma assessoria financeira para que o uso dos recursos ocorra como planejado pelo micro e pequeno empreendedor.

É necessário combinar o investimento público em diferentes setores e estágios tecnológicos, de modo a incentivar o investimento do setor privado. Vender patrimônio público não altera esse processo. (Montagner, 2021).

A análise socioeconômica de Montagner (2021) permite discorrer com mais propriedade sobre o sistema de proteção social do trabalhador, no plano constitucional, integrando os interesses dos trabalhadores e da livre iniciativa empresarial.

Por certo, a pandemia (COVID-19), impactou o setor produtivo cujos indicadores antes da pandemia não eram bons. Desativação de empresas, endividamento, redução da capacidade produtiva e concorrencial, dentre outros, agravaram a capacidade operacional deste setor da economia.

Por outro lado, a pandemia provocou aumento da precarização, formalizada com a reforma trabalhista em 2017; ampliou o desemprego estrutural e o adoecimento de parte significativa do contingente laboral.

Para agravar o cenário, o Governo Federal adotou pautas “negacionistas” em relação às medidas de enfretamento da pandemia, tais como isolamento social, vacinação e uso de máscaras, quando não adotou estratégias erráticas que atrasaram gravemente medidas efic6azes de combate ao COVID-19, dentre elas a vacinação.

As externalidades negativas da pandemia projetam efeitos sobre o trabalho e a livre iniciativa (empreendedorismo). Elas não se limitam à crise do emprego, desemprego, informalidade ou precarização. Provocam efeitos sobre a saúde do ser humano, seja ele empregado ou empregador. O adoecimento, em razão do COVID-19, provoca a morte e sequelas que podem ser permanentes, agravando ainda mais a capacidade do Sistema de Saúde e de Seguridade Social.

Percebe-se, com isto, que a proteção social do trabalhador é sistêmica, tal como observamos no texto constitucional. Por conseguinte, a simplificação da questão, ao criar um falso dilema entre ficar em casa e voltar ao trabalho, dificulta a recuperação da economia brasileira e da saúde da população.

A leitura da Constituição Federal e as observações de Montagner (2021) permitem concluir que a força produtiva e laboral concentra-se nas pequenas empresas, microempresas e nos seus empregados. Este segmento produtivo tem grande capilaridade no território nacional. Na grande maioria dos municípios brasileiros, é o que mais emprega e fomenta as economias locais e regionais. No entanto, junto com os trabalhadores, apresenta uma característica em comum: alto grau de hipossuficiência financeira. Em razão disto, sofrem intensamente os efeitos negativos da pandemia do COVID-19.

Configurada a relação sistêmica entre a valorização do trabalho e da livre iniciativa, podemos identificar os subsistemas que, atuando harmonicamente, podem contribuir para a proteção do trabalhador e recuperação da economia.

 

4 DIREITOS SOCIAIS

Voltado para a proteção social do trabalhador, esse capítulo da Constituição Federal estabelece vários direitos, segundo o princípio do não retrocesso social.

Trata-se de proteção constitucional diretamente voltada para a pessoa do trabalhador urbano e rural, incluindo o trabalhador doméstico.

Dentre os direitos consagrados aos trabalhadores, destacam-se a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, bem como assistência aos desamparados.

Bastaria este parágrafo para demonstrar o falso dilema entre ficar em casa e voltar ao trabalho, sem as condições sanitárias suficientes para preservar a saúde e a vida do trabalhador.

Desde 1988, a Constituição brasileira concebeu um sistema integrado de políticas públicas, tratando holisticamente a condição social do trabalhador.

Em tempos de pandemia do COVID-19, não resta dúvida, sob o prisma constitucional, de que saúde, trabalho, segurança, previdência social, maternidade, infância e assistência aos desamparados demandam ações públicas coordenadas entre os segmentos do Estado brasileiro.

Por estas e outras razões, a Constituição Federal estabelece as competências exclusivas, comuns e concorrentes dos Entes públicos.

Uma passagem breve, pelo texto constitucional, esclarece de imediato as competências da União, dos Estados e dos Municípios e as atribuições do Presidente da República, dos Govenadores e dos Prefeitos.

Em sentido jurídico, o Presidente da República exerce o Poder Executivo. Em outras palavras, ele executa as medidas de natureza administrativa, segundo um elenco de atribuições previamente definidas pela Constituição.

Separando objetivamente a esfera de atuação dos Entes públicos (União, Estados e Municípios) da esfera de atuação dos Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), a Constituição delimita as questões afeitas às políticas públicas de Estado e aquelas destinadas às ações governamentais, legislativas e judiciárias. Seguindo literalmente o texto constitucional, o “Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”. A ele, cabe exercer privativamente a direção superior da administração federal.

Ao definir competências, a Constituição reservou para a União as medidas de organização, manutenção e execução da inspeção do trabalho, e, privativamente, as medidas de interesse das populações indígenas, de organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões, além da seguridade social.

Definiu competências concorrentes entre a União, os Estados e os Munícipios, para, dentre outras, cuidar da saúde e assistência pública, de proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência, meios de acesso à tecnologia, à pesquisa e à inovação (vacinas, por exemplo), moradia e melhoramento das condições habitacionais e de saneamento básico, combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

Por fim, a Constituição elencou competências comuns sobre produção e consumo, orçamento, direito previdenciário, econômico e urbanístico, previdência social, proteção e defesa da saúde, dentre outras. Logo, medidas adotadas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, no contexto da pandemia do COVID-19, amparadas por decisões do Supremo Tribunal Federal, não implicam usurpação de competência da União, e muito menos cerceamento das funções executivas do Presidente da República.

O elenco de medidas demonstra que os chefes de Poderes podem e devem atuar para concretizar medidas relacionadas à direção superior das respectivas administrações, típicas medidas de Governo. Mas, eles atuam também visando concretizar as medidas típicas de Estado, segundo as regras de competência fixadas no texto constucional.

Se as medidas típicas de Governo podem sofrer avaliações discricionárias do gestor público, as medidas típicas de Estado, por sua vez, não integram sua esfera única de atuação e discricionariedade.

Medidas de interesse da União demandam uma relação política e jurídico-constitucional, integrando no debate a esfera pública e os Poderes da República. Por esta razão, audiências públicas e o devido processo legislativo constitucional, além do controle judicial de constitucionalidade das leis e atos administrativos, consolidam o sistema de freios e contrapesos[6], formatado nas primeiras linhas da Constituição Federal.

Como vimos anteriormente, no texto constitucional, o Brasil adotou o Estado Democrático de Direito destinado a assegurar, dentre outros, o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar e o desenvolvimento como valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista, sem preconceitos.

O Estado, assim concebido, está fundado na harmonia social e comprometido com a solução pacífica das controvérsias, na ordem interna e na internacional. Para tanto, os Poderes da União devem atuar com independência e harmonia entre si, afastando, dentre outros, temores de ruptura institucional ou solução violenta das questões nacionais.

Necessário esclarecer que a independência orgânica dos poderes não significa desacoplamento sistêmico. Cada poder está conectado com os outros, em razão do acoplamento normativo e constitucional, segundo as regras de competência e o primado dos freios e contrapesos. Numa palavra, a Constituição é o elo fundamental da unidade nacional e da integridade do sistema jurídico brasileiro.

 

5 ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA

A percepção de que há uma luta por hegemonia dentro das estruturas do Estado, sobretudo nos Ministérios que integram o Poder Executivo, disputando nacos do orçamento público, muitas das vezes com objetivos eleitorais, reforça a necessidade de encontrar na Constituição Federal os fundamentos da harmonia entre os Poderes da República, como princípio fundamental do Estado de Direito.

A partir dessa harmonia sistêmica, a Constituição estabeleceu a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Visando assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, ela adotou o princípio da propriedade privada, a função social da propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.

Muito embora pareça repetitivo, a Constituição reafirma a cada momento o acoplamento sistêmico, conferindo integridade e coesão orgânica aos preceitos nela instituídos.

Com isto, demonstra a necessidade de uma interpretação sistemática e teleológica dos valores, princípios e regras que institui, visando em última instância o bem-estar social da pessoa humana e o progresso financeiro e econômico dos empreendedores e da nação como um todo.

A busca do pleno emprego impõe a formulação e a execução de políticas públicas que permitam aos empresários investir em tecnologia, capacidade produtiva e ampliação dos postos de trabalho.

Em tempos de pandemia, impõe-se a adoção de medidas emergenciais voltadas para os trabalhadores, empregados e desempregados, e para as empresas que se encontrem, juntamente com os trabalhadores, em situação de hipossuficiência financeira. Tais medidas atendem ao fundamento da ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano, na livre iniciativa e no tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte como proposto pela Constituição.

 

6 DA ORDEM SOCIAL

A estrutura normativa da ordem social, por seu turno, tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social. Divide-se em seguridade social, saúde, previdência e assistência social.

Considerando o elo entre valorização do trabalho e a livre iniciativa, percebe-se que o funcionamento saudável da econômica depende de medidas de proteção social, pois o trabalho e a livre iniciativa integram o complexo de atividades do setor produtivo.

A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da Sociedade. Nesse ponto, refletimos sobre a ideia habermasiana de cidadania participativa e racionalidade comunicativa, como elementos essenciais para a formação de uma comunidade aberta de intérpretes da Constituição (HESSE, 1991). Através do subsistema constitucional de seguridade social, a Constituição prescreve ações integradas destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Dentre os objetivos da seguridade social, podemos destacar: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços e caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

A pandemia do COVID-19 acentua a necessidade de fortalecer a rede de proteção social, otimizando a universalidade da cobertura e do atendimento. Atingindo as populações urbanas e rurais, nelas incluídas as comunidades quilombolas e indígenas, a pandemia requer um enfrentamento que assegure a uniformidade e a equivalência dos benefícios e serviços às essas populações.

Importante destacar a gestão compartilhada da seguridade social, mediante participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

Mais uma vez, a Constituição ratifica o propósito inicial de alocar a valorização do trabalho e da livre iniciativa como fatores indissociáveis do bem-estar social e do funcionamento saudável da economia nacional.

Trabalhadores e empregadores atuam como sujeitos legítimos no debate, na formulação, na execução e na gestão dessas políticas públicas, por vários fundamentos já expendidos.

Logo, o tratamento das necessidades dos trabalhadores em situação de pandemia não é um ato discricionário dos governos. Trata-se, antes de tudo, de um direito de participação, pois integram a base social que fundamenta o Estado de Direito e integram a base contributiva que financia a seguridade, através de contribuições sociais, incidentes sobre a folha de salários, a receita bruta ou faturamento e o lucro das empresas, bem como sobre a remuneração do trabalhador.

Segundo a Constituição Federal, a Saúde figura como um direito universal e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Mais uma vez, o texto constitucional comprova que políticas sociais e econômicas devem ser pensadas, executadas e gerenciadas em conjunto, sem a falsa dicotomia do “fica em casa e a economia a gente vê depois”.

Ao atribuir as políticas sociais e econômicas como direito universal e dever do Estado, a Constituição atribui status de questão de Estado e não de questão de Governo, atraindo a atuação independente e harmoniosa dos Poderes da União, segundo o mecanismo constitucional de freios e contrapesos. Por conseguinte, políticas sociais e econômicas dessa natureza são vinculantes, determinando o agir não discricionário dos agentes públicos.  

Registre-se que a Saúde é organizada como sistema único. Ela obedece às diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade. Note-se que os trabalhadores e os empregadores integram a comunidade, sendo, portanto, atores legítimos para participar do Sistema Único de Saúde (SUS). Importante destacar que a saúde deve ser implementada com base no atendimento integral e com prioridade para as atividades preventivas, que não se confundem com tratamentos precoces sem validade científica. Dentre as medidas preventivas, podemos destacar, com o aval científico já consolidado: a higiene das mãos, o uso de máscaras, o isolamento social e a vacinação. 

Destaquemos a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) que atua controlando e fiscalizando procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde; participando da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos. Além disso, executa ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador. Participa também da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico.

Por fim, destaquemos sua colaboração na proteção do meio ambiente, nele incluindo o meio ambiente do trabalho. Nesse caso, destacam-se as medidas sanitárias de prevenção do COVID-19 como o teletrabalho, a redução da jornada de trabalho, o fornecimento de insumos de higienização, como álcool gel, e o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), tais como: máscaras, óculos, luvas, botas, roupas de proteção em ambientes insalubres, etc.

Por fim, o subsistema da Assistência Social destina-se a quem dela necessitar, independente de contribuição. Tem como objetivos: proteger a família, a maternidade, a infância, a adolescência e a velhice; amparar as crianças e os adolescentes carentes; promover a integração ao mercado de trabalho; a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária. Por tais objetivos, percebemos, mais uma vez, a integração entre trabalho, economia e proteção social. 

Numa palavra, a Constituição, em seu tratamento sistemático, protege as pessoas em situação de vulnerabilidade existencial, amparando e promovendo a integração plena na vida comunitária.           

Para exemplificar, quando a Constituição prevê a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência, promovendo sua integração comunitária e no mercado de trabalho, estabelece as condições fundamentais para o enfrentamento da crise social que está por vir: o tratamento das pessoas com sequelas do COVID-19.

Ao descrevermos resumidamente o sistema constitucional de proteção do trabalhador, destacamos a vinculação direta entre trabalho e livre iniciativa, proteção do trabalho e proteção da economia, realçando sua importância no contexto atual da pandemia do COVID-19.

Nossa abordagem sistêmica objetivou descrever imperativos normativos que condicionam as ações de Estado e as ações de Governo. São imperativos, cogentes por sua natureza, escapando ao solipsismo[7] e à discricionariedade de gestores públicos, cuja atuação está vinculada à realização dos valores, princípios e regras que integram o sistema constitucional de proteção da pessoa humana.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, discorremos sobre a estrutura constitucional de valorização do trabalho e da livre iniciativa. Identificamos valores, princípios e regras constitucionais que sistematizam o tratamento harmonioso das questões afetas aos trabalhadores e à economia.

As externalidades decorrentes da precarização do trabalho e do trabalhador, positivadas através da Reforma Trabalhista, foram agravadas na pandemia do COVID-19, com efeitos devastadores no setor produtivo (desativação de empresas e aumento do desemprego). Elas evidenciaram um problema que não afeta somente os trabalhadores, atinge um contingente considerável de pequenas e médias empresas: a hipossuficiência financeira.

Vimos que, ao retardar o tratamento adequado da pandemia do COVID-19, o Estado brasileiro compromete a proteção social dos trabalhadores e das empresas. Além disso, compromete ainda mais o orçamento público em função das externalidades negativas que ainda estão por vir, tais como o tratamento das pessoas com sequelas do COVID-19, indenizações e pensões previdenciárias.

Registramos que a tensão entre os subsistemas constitucionais decorre, na maioria das vezes, das visões solipsistas e discricionárias de agentes públicos, desafiando o sistema de freios e contrapesos.

A descrição dos subsistemas de seguridade social demonstrou a força normativa da Constituição, atuando como imperativo normativo para o planejamento, a execução e o gerenciamento de políticas públicas de Estado, dentre elas a proteção do mercado de trabalho e da economia, como elementos da mesma equação jurídica.

Notamos que o sistema de seguridade social refuta a dicotomia entre proteção da pessoa humana e fomento da economia, servindo de argumento normativo para a adoção de políticas públicas que minimizem ou neutralizem o protagonismo de uma racionalidade econômico e financeira sem compromisso com a dignidade existencial da pessoa humana.

No momento em que prevalecem os discursos autoritários, devemos realçar a comunicação sistêmica entre a Ordem Econômica e Financeira, os Direitos Sociais dos Trabalhadores e a Seguridade Social como fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Os dados e argumentos apresentados indicam que a proteção social dos trabalhadores depende de uma vontade de constituição amparada no conhecimento interdisciplinar, numa articulação sistêmica entre norma instituída e norma concretizada.

Com Habermas, podemos concluir:

 

“Perante as consequências socioculturais não planejadas do progresso técnico, a espécie humana se vê desafiada não apenas a produzir seu destino social, como também aprender a dominá-lo. Mas esse desafio da técnica não pode ser encarado fazendo uso unicamente da técnica. Importa antes pôr em marcha uma discussão politicamente eficaz que consiga estabelecer uma relação, de modo racionalmente vinculante, entre o potencial social do saber e poder técnicos com o nosso saber e querer práticos”. (HABERMAS, 2014. Pg. 148).

 

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/ l13467.

FEBBRAJO, Alberto, LIMA, Fernando Rister de Sousa. Autopoiese. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/152/edicao-1/autopoiese.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

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MONTAGNER, Paula. O mercado de trabalho na pandemia: pouco a comemorar. [on line] Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-mercado-de-trabalho-na-pandemia-pouco-a-comemorar/. Acesso em 12 de outubro de 2021.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espírito das leis. Imprenta: São Paulo, Martin Claret, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica da hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento. Casa do Direito, 2017.

TRT da 2ª Região. Recurso ordinário. Relator: Wildner Izzi Pancheri. DJ, 22/09/2021. JusBrasil, 2021. Disponível em: https://trt2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ 1286215106/10006061820205020264-sp/inteiro-teor-1286215126. Acesso em 17 de outubro de 2021.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.



[1] Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense - Departamento de Direito de Macaé e analista judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2000), mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013) e doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2018).

[2] A partir de Max Weber, existem várias intepretações sobre o patrimonialismo. Em linhas gerais, refere-se a um modelo de dominação onde se misturam os interesses público e privado, sendo, pois, fator de desigualdade social. No patriarcalismo, há uma prevalência da atuação e da vontade do homem, com reduzido espaço de atuação das mulheres e outros membros da sociedade, submetidos à autoridade masculina. Pesquisas indicam que traços de ambos estão presentes na sociedade brasileira, como podemos ver na distribuição desigual de cargos e salários, no mercado de trabalho, ou, até mesmo, na representação política no Congresso Nacional.

[3] Autopoiese deriva do grego (autopoiesis). A origem etimológica do vocábulo é autós (por si próprio) e poiesis (criação, produção). Seu significado literal é autoprodução. Os subsistemas produzem, e reproduzem, a sua própria organização circular por meio de seus próprios componentes.

Na comunicação luhmanniana, autopoiesis se refere a um sistema autopoiético, definido como rede de produção de componentes e estruturas. Como emissor da própria comunicação, opera, por isso mesmo, de forma autorreferencial. Implica autorganização: elementos produzidos no mesmo sistema.2 Decorre da auto-organização da natureza e da sua comunicação com o seu ambiente, como se fossem células do corpo autorregenerado. 3 FEBBRAJO, Alberto, LIMA, Fernando Rister de Sousa. Autopoiese. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Álvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coord.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Álvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica. pucsp.br/verbete/152/edicao-1/autopoiese.

[4] Lei nº 13.467/2017.

[5] VÍNCULO EMPREGATÍCIO. PEJOTIZAÇÃO. Não se olvida a prática nociva conhecida como pejotização, na qual ocorre a contratação formal de pessoa jurídica para mascarar vínculo de emprego. No conjunto, as provas existentes no processo confirmam a tese sustentada na defesa, de que não houve relação empregatícia entre o reclamante e a reclamada. Sentença de piso mantida no ponto. (TRT-2 10006061820205020264 SP, Relator: WILDNER IZZI PANCHERI, 3ª Turma - Cadeira 3, Data de Publicação: 22/09/2021).

[6] Freios e contrapesos. Segundo Montesquieu (2007), a teoria da separação dos poderes requer um sistema de controle recíproco, evitando, com isso, a tirania e a arbitrariedade, recebendo o nome de freios e contrapesos.

[7] “O sujeito solipsista no Direito age desse modo autoritário porque está escorado em uma institucionalidade, falando de um determinado lugar (o lugar de fala, em que quem possui o skeptron pode falar, em uma alegoria com o que se passa na Ilíada ou com a posse da concha, no livro The Lord of Flies)...A estrutura, a intersubjetividade, enfim, essa linguagem pública constrange a todos nós cotidianamente para evitar que saiamos por aí fazendo coisas solipsistas.” (STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica da hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento. Casa do Direito, 2017.