ÉTICA A NICOMANO

 assuntos de conduta processual

José Antonio Callegari[1]

Universidade Federal Fluminense

calegantonio@yahoo.com.br

1 INTRODUÇÃO

Com apoio em Levitsky e Ziblatt (2018), imagina-se a Democracia como um jogo de futebol. Tanto nas Democracias quanto na partida de futebol, o jogo ocorre segundo regras previamente constituídas. No estádio lotado, entram em campo os jogadores, precedidos pelo juiz da partida. Dizem que o jogo é bem disputado quando o juiz se faz ‘inotável’, nesses casos a bola corre solta pelo gramado e a torcida vibra. Porém, ativando-se, em demasia, o juiz irrita os jogadores, a torcida e trava o jogo; e consequentemente procede mal.

Em muitos casos, o juiz pode estragar o jogo por falha de caráter, de formação profissional ou por cooptação política.

No jogo democrático, atuam forças inversamente democráticas, corroendo silenciosamente suas estruturas e o espetáculo em campo, pois “a erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeninos passos”, muitas vezes com “verniz de legalidade” (Levitsky; Ziblatt, 2018, p. 81).

Levitsky e Ziblatt (2018, p.81) advertem que autocratas tiram da partida algumas estrelas do time adversário, reescrevem as regras, invertem o mando de campo, cooptam o árbitro da partida e viram o jogo a seu favor.

Analisando democracias moribundas, os autores em foco destacam que “é sempre bom ter os árbitros do seu lado”; que a captura dos árbitros cria um escudo jurídico, que serve como arma de opressão para os adversários e como mecanismo de impunidade para o autocrata.

Ao dominar a independência e a imparcialidade do juiz, os autocratas podem controlá-los a seu bel prazer, como cota do seu poder político nos tribunais.

Mudar a composição das cortes é outra estratégia de colonização e de dominação do sistema de justiça e de todas as partidas jogadas no campo democrático.

Trazendo os árbitros para o lado do governo e anulando ou neutralizando os demais não cooptados, o autocrata amplia sua blindagem jurídica e prossegue subvertendo as regras do jogo, ferindo de morte a Constituição e o Estado Democrático de Direito.

Concluída a cooptação dos árbitros, resta atuar sobre o time adversário e seus jogadores, seja por suborno e por corrupção, ou por oferta de cargos no executivo, nos órgãos de controles e de gestão e no Poder Judiciário. Aos que não forem “comprados”, resta a perseguição direta ou indireta, o aniquilamento físico e/ou moral diante da opinião pública, cuja sociedade de massa consome avidamente desinformações em redes sociais.

Nesse contexto degradante, pensa-se na conduta processual do juiz.

A partir da Ética a Nicômaco, delinea-se algumas reflexões sobre conduta e ética processual, dialogando com Habermas e Dworkin.

E ao final, discorre-se sobre algumas considerações sobre as interações éticas que se desenvolvem no processo judicial.

 

2 A VIRTUDE JUDICIAL

Disse Aristóteles (1968, p.17) que “toda arte e investigação, e igualmente toda ação e todo propósito, parecem ter em mira um bem qualquer”.

Em termos processuais, a ação do juiz tem um propósito bem definido: garantir o acesso à justiça, através do devido processo legal com ampla defesa e contraditório.

Sem dúvida, no processo afigura-se uma relação entre meios e fins, como vetores a orientar a conduta processual do juiz.

No processo, imperam regras jurídicas previamente estabelecidas, segundo o princípio da legalidade e da anterioridade da lei, restringindo a subjetividade do juiz.

Mais do que instrumentos normativos, as leis atuam como gramáticas jurídicas que orientam a ordem do discurso (Foucault, 1987), a participação legítima do juiz e das partes, o sentido dos termos jurídicos e as práticas discursivas que se alternam na dinâmica processual.

Segundo Aristóteles (1968, p.20), “O estudo do bem pertence à política, que é a primeira das ciências práticas”. Não menos certo, pode-se dizer que o Direito é uma ciência prática, cujo bem último é organizar a vida de relação, bem como resolver, pela régua da justiça, os dissensos práticos da vida cotidiana das pessoas.

Quanto mais complexa a vida de relação, mais o Direito se estrutura em subsistemas que programam a conduta humana. Assim são: o Direito Constitucional, o Direito Civil, o Direito Processual Civil, o Direito Penal, o Direito Processual Penal, etc.

Em termos de condutas práticas, cada ramo jurídico ancora-se em estruturas normativas que se comunicam numa relação instrumental.

A título de exemplo, a Constituição emerge como grande estrutura normativa, a partir da qual operam-se relações instrumentais entre o Direito Civil e o Processo Civil, o Direito Penal e o Processo Penal, etc.

Essa relação instrumental tem um aspecto objetivo e sistêmico, pois cada ramo jurídico comunica-se com outro por meio de canais normativos. Dessa forma, cada estrutura normativa atrai a aplicação de outra que com ela guarde aderência temática, como o Código Civil e o Processo Civil, etc.

Para além da objetividade sistêmica, pode-se extrair em Luhmann (2009) que a comunicação normativa depende da ação humana, daquelas pessoas que atuam dentro do sistema jurídico. Em termos processuais, são as partes, os advogados, os auxiliares da Justiça e o Juiz que atuam o subsistema processual.

Assim sendo, importa destacar o papel do juiz em assuntos de conduta processual, considerando a relação entre meios e fins para a tutela de bens jurídicos no exercício da jurisdição.

Antes de exercer o papel decisório, o juiz deve se apresentar como observador, leitor e bom ouvinte, para bem delimitar os fatos da causa e fazer juízo adequado das pretensões deduzidas no processo.

Agirá bem, na conduta processual, aquele que, sendo bem instruído quantos aos fatos da causa e as particularidades do processo, compreenda o drama judicial como um todo.

A esse respeito, os Códigos, como gramáticas jurídicas, estruturam as partes e o todo processual, organizando os atos de fala com coesão, coerência e progressão enunciativa. A partir dessa estrutura, cada ato processual pode ser manifestado em fase distintas: fase postulatória, fase instrutória e fase decisória.

Na fase postulatória, autor e réu apresentam suas pretensões com base em narrativas de fatos e argumentações; na fase instrutória, o juiz, em colaboração com as partes, testemunhas, peritos, etc., procura esclarecer os fatos controvertidos e na fase decisória o juiz analisa e condensa em um único texto todas as parcialidades do processo, definindo a situação jurídica das partes, com base no seu convencimento motivado.

Considerando o Direito como ciência prática, o magistrado atua a partir de fatos da vida. Nesse aspecto, segundo Aristóteles (1968, 25), o juiz, como ouvinte, não se pode guiar por paixões, pois assim agindo ouvirá as partes com leviandade e sem proveito, pois o juiz que se guie por paixões, afasta-se da virtude judicial: aplicar o Direito com imparcialidade.

O mais grave se dá quando o juiz, agindo por paixões políticas, utiliza os instrumentos jurídicos e sua autoridade processual como meios de conseguir um bem egoísta: ascensão funcional ou política.

Nesse momento, o juiz ético cede espaço ao juiz cínico, a serviço de projetos pessoais ou grupais que, instrumentalizando o processo com viés político, objetiva a pessoa humana como joguete em suas mãos despudoradas.

Se na Política o fim último é o bem comum, no Direito processual o fim último é uma sentença, precedida pela ampla defesa e pelo contraditório e proferida por um julgador competente e imparcial.

Não sendo um político, o juiz age visando um fim prático não generalizável, pois limita-se a dizer o Direito nos limites das pretensões do autor e do réu.

A partir de Castro Farias (2004, p.1), pode-se dizer que, através da sentença, o juiz exerce a mediação entre a norma geral e abstrata (universalização) e a singularidade concreta da ação.

A norma geral e abstrata, integrando o ordenamento jurídico, atua sobre o magistrado como um constrangimento externo, limitando a discricionariedade subjetiva na aplicação do Direito.

Desse modo, intui-se que no sistema jurídico atuam freios e contrapesos que previnem e reprimem condutas solipsistas do juiz, submetido a um constrangimento normativo fundador e constituidor da ordem jurídica democrática.

Essas considerações, colhidas em leituras de Streck (2017, p.42), coloca em questão as práticas jurídicas internas ao processo judicial, sob a direção e instrução do juiz.

Estabelecendo a ordem do discurso e a legitimação das partes e do juiz, as regras processuais, a partir da Constituição, direcionam as condutas processuais e o resultado útil do processo.

Seguindo com Streck (2017, p. 42), “o constrangimento epistêmico ou epistemológico se coloca, assim, como mecanismo de controle das manifestações arbitrárias”.

Em face da complexidade do mundo da vida, o ordenamento jurídico, como estrutura normativa geral e abstrata, permite a aplicação flexível do Direito, diante das situações concretas na vida social em constante mutação.

O constrangimento normativo que incide sobre o juiz, dele não retira certa discricionaridade e poder decisório, ainda mais quando há nítida abertura normativa ao intérprete, como nos casos de aplicação de princípios jurídicos.

Como observa Streck (2017, p.42-43), “as decisões judiciais solipsistas devem ser constrangidas”, pois “O Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, e, portanto, não é aquilo que o tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é”.

Vivendo em Estado Democrático de Direito, não se pode conceber decisões judiciais livres de controle e sem accountabillity (Streck, 2017, p.44).

Em termos de conduta processual, como já dito, não se nega ao magistrado o poder de dizer o Direito no caso concreto, o que é da essência da jurisdição como atividade soberana do Estado Democrático de Direito.

Se, por um lado, no momento da decisão dá-se um espaço não racional (emotivo ou ideológico que seja), no sistema jurídico democrático impera uma racionalidade normativa. Através dela, acautela-se contra o excesso de discricionariedade do julgador na interpretação e na aplicação do Direito.

Ainda que seja a autoridade plenamente investida, o juiz não se torna autoridade absoluta.

O espaço de manobra hermenêutica, necessário à condução do processo e à aplicação do Direito, não pode desviar o juiz das balizas democráticas do processo, uma vez que estas deslocam a relação do juiz com as partes, anacronicamente tomada como relação sujeito-objeto, para uma relação intersubjetiva, compartilhada e participativa.

À guisa de exemplo, o Código de Processo Civil estabelece constrangimentos que orientam o que se pode chamar de ética processual.

Segundo o CPC[2], “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil”.

No topo da pirâmide normativa, como fundamento de validade de todo ordenamento jurídico, a Constituição orienta a conduta processual do juiz, a partir de princípios fundamentais: dignidade da pessoa humana, ampla defesa e contraditório, presunção de inocência, devido processo legal, investidura judicial, etc.

Iniciando o processo por iniciativa da parte, ele se desenvolve por impulso oficial.

Aqui, o Direito emancipa a parte quanto à iniciativa do processo, a quem cabe o cálculo instrumental quanto aos riscos da demanda e ao resultado útil do processo.

Em razão de sua lógica progressiva no tempo, o processo estrutura-se a partir de atos processuais previamente ordenados em fases distintas: postulatória, instrutória, decisória, recursal e executória.

Os atos processuais são atos práticos, atuando como meios na busca de um fim processual específico.

Como diretor do processo, o juiz impulsiona os atos processuais, garantido o contraditório e a ampla defesa; a ele sendo vedado proferir decisão que surpreenda as partes, amparadas pelo Direito fundamental de participação e capacidade de influência no convencimento judicial.

Vê-se, com isto, que sobre a conduta do juiz atuam constrangimentos normativos e controle participativo das partes, dos tribunais[3] e, em certos casos, de outros interessados, como no caso dos Amicus Curiae[4].

Interessante notar que o CPC destaca a promoção das soluções consensuais do conflito, abrindo cada vez mais as portas do sistema judiciário para as relações intersubjetivas, confirmando a virada linguística do processo, em tese, da relação sujeito-objeto para a relação sujeito-sujeito, materializada da capacidade dialógica e discursiva das partes.

Em outras palavras, em casos de ameaça ou lesão a Direito, os meios consensuais para a resolução de conflitos atuam previamente à solução judicial do caso concreto.

Em razão disto, dá-se um deslocamento importante na conduta processual do juiz, que deve se abrir cada vez mais à compreensão dos fatos da causa no contexto da vida real das pessoas, e não somente a partir de um modelo normativo de conduta jurídica.

Nesse momento, importa destacar, com Streck (2017, p.54), que as “opções” escolhidas pelo juiz podem deixar de lado as “opções” de outros interessados, em razão do que o estímulo às soluções consensuais, mediadas ou conciliadas, atende melhor ao escopo de aplicação dialogada do Direito, pois as partes tendem a ser os melhores intérpretes para a solução adequada dos seus conflitos.

O paradigma intersubjetivo, alocado no Código de Processo Civil, reduz ou controla o privilégio cognitivo do juiz (PCJ), tal como observado em Streck (2017, p.63), sem, com isso, neutralizá-lo.

Por outro lado, a limitação do protagonismo judicial amplia o poder e a responsabilidade ética das partes, pois, a partir dele, todos os sujeitos processuais devem atuar colaborando para o desenvolvimento válido e regular do processo. A intersubjetividade, como paradigma ético, implica compartilhar responsabilidades processuais, quando, em outros tempos, o insucesso processual era atribuído unicamente ao juiz e/ou ao sistema judiciário, ao passo que, em certos casos, decorria da imprudência, negligência, imperícia e/ou malícia de uma ou de ambas as partes.

A intersubjetividade pode confirmar a superação do modelo juiz-boca-da-lei e do juiz-boca-de-si-mesmo. Nesse último caso, dá-se o voluntarismo judicial solipsista e o ativismo que se chocam com os paradigmas do Estado Democrático de Direito e com o sistema de freios e contrapesos entre os poderes instituídos.

Ratifica-se, pois, o paradigma intersubjetivo quanto estimuladas a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos, impondo tal ação ao juiz, partes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público.

Reduzindo a esfera discricionária do juiz, o CPC estabelece um Direito fundamental das partes: obter em prazo razoável a solução integral do mérito. Por solução integral do mérito, entenda-se aquela decorrente da análise das argumentações das partes, pois, segundo Streck (2017, p.67), “não há mais sujeito isolado, contemplando o mundo e definindo-o segundo cogito”. Por conseguinte, deve-se reler o livre convencimento motivado, que pode ensejar um convencimento a partir do mundo particular do juiz solipsista.

A partir do paradigma da intersubjetividade, o livre convencimento motivado decorre da narrativa dos fatos e da ampla argumentação das partes, bem como da consideração atenta que o juiz faça dessas narrativas e dessas argumentações, materializando o contraditório dinâmico e participativo.

Com esse paradigma intersubjetivo, numa comunidade processual, “a linguagem adquire uma condição de possibilidade” (STRECK, 2017, p.67), superando o paradigma judicial autoritário, uma vez que:

 

A subjetividade originária do esquema sujeito-objeto coloca os limites e as condições em que alguma coisa pode “vir a objetividade”, enfim, em que algo possa vir a ser compreendido. No esquema sujeito-objeto, o real, enfim, aquilo que é possível definir como real, é concebido à medida do sujeito-intérprete. Ele – o sujeito – é o centro decisório. Diz o mundo a partir de sua linguagem privada. Sujeito moderno e o esquema sujeito-objeto no qual está assentado são o cerne do autoritarismo.

 

Como lições de conduta processual integradas no paradigma intersubjetivo, dialógico e discurso do processo, veja-se as considerações de Streck (2017, p.67): Constituições e leis aprovadas democraticamente podem, simplesmente, ruir a partir do PCJ[5].

Logo, não basta somente garantir a vigência de constrangimentos normativos para a conduta processual do juiz; recomenda-se refletir sobre a formação jurídica desse juiz, consolidando nele os paradigmas democráticos do Direito constitucional e do devido processo legal.

Retornando ao Código de Processo Civil, podemos identificar paradigmas éticos e participativos, pois “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.”

Como programação ética, o Código de Processo Civil assegura às partes “paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.”

Em termo de conduta processual, cabe ao juiz aplicar os princípios e as regras jurídicas, adotando como balizas os fins sociais e as exigências do bem comum, a dignidade da pessoa humana, assegurando as trocas intersubjetivas, em turnos alternados de falas, com proporcionalidade, razoabilidade e publicidade.

Com este paradigma ético-discursivo, cabe ao juiz perceber que a eficiência processual não se reduz a uma eficiência técnica, desprovida de sentido social, para o qual as ações humanas são juridicamente ordenadas.

O paradigma em questão impõe ao juiz uma oitiva atenta das partes, quanto à narrativa dos fatos e quanto aos argumentos por elas articulados, antes de proferir qualquer decisão que afete o rumo e a sorte delas no processo, assegurando-lhes a oportunidade de manifestação.

Percebe-se com isso que a legitimidade do processo não é apenas normativa, que se assim o fosse não passaria de mera fabulação jurídica (Warat; Rocha, 2015). Legitima-se o processo por uma condução compartilhada com os sujeitos nele concernidos.

Numa palavra, a legitimidade do processo é intersubjetiva e participativa.

Uma outra consideração importante a acrescentar em termos de conduta processual, o juiz precisa estar atento aos critérios modernos de aplicação das normas processuais.

Considerando nosso país como integrante de uma comunidade internacional de nações, vinculado a Organismos Internacionais, cabe ao magistrado observar as normas processuais brasileiras e no que for aplicável, os tratados, convenções ou acordos internacionais ratificados pelo Brasil, sobretudo em questão de Direitos Humanos.

Nesse sentido, a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência e o julgamento imparcial são paradigmas ético-jurídicos firmados em Organismos Internacionais dos quais o Brasil faz parte.

No entanto, os constrangimentos normativos, balizando condutas éticas, não se dirigem ao juiz somente.

Na comunidade intersubjetiva, que se forma e se desenvolve no processo, as partes e os seus procuradores devem participar expondo fatos conforme a verdade, ou sua versão dos fatos, sem má-fé; deduzir pretensões fundamentadas; praticar atos e produzir provas úteis no processo; não criar embaraços à efetivação das decisões judiciais, salvo em caso de oposição legítima, como se dá com a interposição de recursos e outros meios de impugnação processual, etc.

Ofende a dignidade da justiça o agir contra os paradigmas éticos do processo, fato que pode gerar sanções criminais, civis e processuais, além da aplicação de multa em razão do ato praticado.

No plano dessa ética processual intersubjetiva, aos concernidos veda-se o uso de expressões ofensivas, pois a luta pelo Direito em juízo não implica perder a cordialidade imanente ao estágio civilizatório, como intui-se na ética discursiva de Habermas (2014).

Estabelecidos os parâmetros da conduta processual ou da ética processual, importa considerar a responsabilidade das partes por dano processual. Assim, os atos praticados com má-fé ensejam responsabilidades, pois violam os paradigmas éticos do devido processo legal.

Em razão disso, o juiz não está livre de suas responsabilidades, pois sobre ele pesam os encargos da conduta processual ética, seja como observador da conduta das partes, seja como diretor do processo que, investido de jurisdição estatal, submete-se a um particular accountability processual.

Em termos de conduta processual, o magistrado tem o dever de assegurar a igualdade de tratamento, a razoável duração do processo, zelar pela dignidade da justiça, determinar medidas necessárias ao cumprimento das ordens judiciais, promover a autocomposição, etc., não se eximindo de decidir o caso, alegando deficiências no ordenamento jurídico ou sua obscuridade.

Nesse ponto, recorda-se Streck (2017), pois certas aberturas hermenêuticas, a conferir discricionaridade ao juiz, não permitem que se substitua a objetividade da causa pela visão de mundo desse juiz, solipsista e por vezes autoritárias. 

Pode-se acrescentar ainda que o juiz decide o mérito nos limites propostos pelas partes, adstrito aos fatos narrados e ao Direito postulado no processo; não sendo a ele permitido conhecer de questões não suscitadas e para as quais as partes não tomaram iniciativa.

Assim constrangido, o juiz que atuar com dolo ou fraude e/ou desempenhar o seu ofício com desídia, pode responder por perdas e danos processuais.

Os constrangimentos éticos, retirados à guisa de exemplos do Código de Processo Civil, impõem uma reflexão sobre duas situações particulares, para as quais o juiz deve atentar bem: impedimento e suspeição.

Ocorrendo alguma delas, cabe ao juiz afastar-se ou ser afastado do processo, pois sua conduta processual restará comprometida, e, por conseguinte, o desenvolvimento válido e regular do processo.

Nos casos de impedimento, ao juiz é vedado exercer funções no processo; ao passo que na suspeição, o juiz pode afastar-se do processo por motivo de foro íntimo. Reconhecido o impedimento ou a suspeição, o tribunal que assim decidir fixará o momento a partir do qual o juiz não poderia ter atuado, restando nulos os atos praticados pelo juiz que violou tais preceitos éticos.

Vê-se, com isto, que os casos de impedimento e de suspeição balizam a conduta processual do juiz, pois, como terceiro investido da jurisdição, deve zelar pelo tratamento isonômico das partes, com imparcialidade e isenção.

Fere a dignidade da justiça, a segurança jurídica e os princípios do Estado Democrático de Direito, aquele que, investido de jurisdição, assume no processo uma posição absolutista, conduzindo o processo como coisa particular.

Assim agindo, o juiz confunde a objetividade jurídica do processo com a subjetividade de como vê o mundo, encravando no sistema de justiça as cunhas pontiagudas e mortais do autoritarismo jurídico, passo a passo com a escalada de outras formas de autoritarismo que vão matando as democracias por dentro.

O quanto exposto sugere que a conduta processual solipsista e sem parâmetros éticos produz externalidades negativas, esvaziando o sentido das normas jurídicas, tratadas como óbices aos arroubos autoritários do juiz solipsista e abrindo espaço para ações destruidoras da democracia.

Com isto, o sistema de freios e contrapesos perde sua funcionalidade; e a ordem democrática, como bólido desgovernado e sem frenagem eficiente, segue em velocidade acelerada para o seu ocaso final: desconstrução do Estado Democrático de Direito.

Quando o juiz solipsista agiganta-se em seu feudo judicante, tende a elaborar projetos cada vez mais ousados, tal como usar o processo e o sistema de justiça como instrumentos de promoção pessoal.

Pode ele ter para si os mais variados sonhos e ambições, próprios da natureza humana; mas, cada qual deles deve ser idealizado ou materializado na esfera social adequada: o privado no privado, e o público no público.

Imaginemos que um juiz, insatisfeito com a ordem jurídica, à qual jurou servir, intente supliciar o réu como objeto exemplar da ineficiência do sistema. No seu feudo jurídico, dotado de ampla autoridade ou autoritarismo judicial, conduz a seu bel prazer um processo viciado a partir de sua pré-compreensão de mundo (Streck, 2017). Já seria de todo grave, caso sua conduta suspeita ou impedida projetasse efeitos na vida particular do réu. Considere que a expiação do réu, como exemplar dessa terapia sistêmica, projete efeitos em conformidade com uma ordem política em ebulição, ansiosa por um totem justificador da avulsão social em curso.

Dá-se, no caso, o que em Direito Penal se diz: prevenção especial e prevenção geral. Com base em Foucault (1987), pode-se dizer que sobre o corpo dócil do réu incide a prevenção especial, a expiação, o sofrimento, projetando sobre o corpo social dócil o medo e a insegurança como prevenção geral.

E se tal juiz, num arroubo de grandeza, natural de sua existência narcisista, ultrapasse todas as barreiras jurídicas, violando em série as regras de conduta processual, utilizasse do processo como instrumento de ascensão política, pois o seu feudo judicante não comporta mais o ideal “restaurador” que nele pulsa.

Erodindo o processo, tende a erodir, por simpatia, e falta de controle institucional, toda a estrutura garantista do devido processo legal e da democracia.

Se a violação de normas desintegra e faz morrer as democracias (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018), o desregramento ético do juiz desintegra e mata, aos poucos, o sistema de justiça, que tende a se tornar um sistema de ratificação e legitimação do autoritarismo “restaurador”, cujo propósito atende ao juiz solipsista.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Habermas (2014), colhe-se outras lições pertinentes à formação de Nicômano. Se o processo for considerado como instrumento de aplicação do Direito ao caso concreto, não seria desarrazoado perceber que se está diante de uma técnica jurídica idealizada como o devido processo legal, assegurando às partes o acesso a um juiz natural e imparcial, no exercício da ampla defesa e sob o contraditório.

No entanto, o uso prático dessa técnica jurídica não escapa à concepção ideológica do agente condutor da trama processual: o juiz.

Em termos de conduta processual, importa dizer que o uso dessa técnica jurídica pode implicar instrumentalização do ser humano, quando o juiz, guiado por sua visão de mundo, interpreta e aplica um Direito “seu”.

Isto posto, percebe-se o processo e a atuação do juiz dentro de um “sistema de eticidade” (HEGEL, in HABERMAS, 2014. p.35), no qual a imparcialidade, o tratamento isonômico, a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência atuam como imperativos de ética processual.

Tal sistema ético nos leva a pensar na posição do juiz, dentro de uma comunidade jurídica particular: a relação processual entre as partes.

Por mais particular que seja, essa comunidade não se exclui da comunidade geral, do mundo da vida. Numa relação de conjuntos, a comunidade processual pertence à comunidade geral. Logo, os valores éticos da comunidade geral projetam constrangimentos normativos para a comunidade processual, delimitando as condutas processuais das partes e do juiz.

Num sistema processual ético, a luta hegeliana por reconhecimento ganha outro significado, pois através dela as partes postulam por reconhecimento jurídico isonômico e imparcial.

Assim entendido, através do processo, as partes e o juiz articulam jogos de linguagem em turnos alternados de fala, regidos por gramáticas jurídicas, tendo como escopo a aplicação ética do Direito.

Nesse aspecto, os sujeitos se encontram entrelaçados no interior de um “contexto de interação” (HABERMAS, 2014, p.49). Assim concernidos, interagem discursivamente cada qual deduzindo suas pretensões e expectativas normativas.

Esse contexto de interação implica vários estágios de intersubjetividade, guiados ora por ações estratégicas, ora por ações comunicativas.

Se as estratégias processuais forem entendidas como legítimo direito de defesa quanto ao drama processual (mérito da questão), e que a cooperação e a boa-fé são como elementos de um consenso procedimental, normativamente instituído, é possível inferir o quanto se exige do juiz como autoridade judicante.

Exercendo uma atividade processual complexa, é preciso meditar demoradamente sobre a formação ampla do juiz. Não basta o rigor técnico, dissociado de uma visão de mundo compartilhada e/ou alinhada com a tradição democrática do Direito.

Com Dworkin (2014), pode-se dizer o juiz tem a difícil missão de interpretar o Direito, muitas vezes em conflito com sua visão particular de mundo, ou em casos mais graves com os seus projetos personalistas de poder jurídico e/ou político.

No entanto, por mais difícil que seja a aplicação do Direito no caso concreto, em sociedades complexas e cada vez mais fragmentadas, a conduta processual é objetivamente delimitada por padrões técnicos e éticos dos quais não se deve afastar.

A subjetividade hermenêutica não deve, ou não pode, colocar-se à frente da objetividade processual, sob pena de subversão das coisas, degradação do processo e do sistema de Justiça, e, num grau mais elevado, vaticinar a morte da Democracia.

Inserir conceitos de ética geral e de ética processual na seleção e na formação de juízes atende ao propósito maior de democratização do processo, sensibilizando o juiz quanto aos limites dos seus poderes e à amplitude dos direitos das partes, integrantes de uma ordem social mais ampla: o mundo da vida.

Desse mundo da vida, juridicamente organizado, extrai o magistrado valores e princípios fundamentais à dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal, e ao Estado Democrático de Direito.

Uma pré-compreensão desses valores, extraídos do mundo da vida, reflete na separação necessária entre esfera privada e esfera pública, num sistema de freios e contrapesos existenciais.

A autoridade instituída significa muito mais do que a formalização de um processo de seleção e atribuição de parcela do poder estatal. Há que se notar que o instituído, o legitimado, assim o é por concessão de um poder maior que antecede sua instituição como agente público.

Ao povo é dado o poder originário na constituição de uma carta política e dos poderes instituídos.

Logo, a conduta processual do juiz submete-se ao controle social e ao direito de participação efetiva do cidadão na trama processual, pois que, na condição de autor ou de réu, não se despe da parcela de poder originário, já que, numa palavra, o cidadão é parte integrante do povo, em nome de quem os poderes instituídos agem pela ação de seus agentes.

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A ética. Tradução Cassio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1968.

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. CORDEIRO, Túlio; MARQUES Beatriz (Org.). Código de Processo Civil e normas correlatas. 7. ed., Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnica, 2013.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jeferson Luiz Camargo. Revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, política e direito. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Tradução de Felipe Gonçalves da Silva. São Paulo: Edunesp. 2014.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento Casa do Direito



[1] Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense - Departamento de Direito de Macaé e analista judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2000), mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013) e doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2018).

[2] Código de Processo Civil.

[3] Os Tribunais podem controlar a conduta processual do juiz através de recursos, mandado de segurança, habeas corpus, reclamação correcional, reclamação na ouvidoria, reclamação nos Conselhos de Justiça, etc.

[4] Aquele que, em razão da relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá manifestar-se no processo, colaborando para a compreensão da causa.

[5] Segundo Streck (2017): privilégio cognitivo do juiz.