ESPAÇO, JUSTIÇA E ÉTICA UNIVERSAL
alargando os horizontes conceituais de sustentabilidade ambiental pela democracia deliberativa
Rosalvo Nobre Carneiro[1]
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
rosalvonobre@uern.br
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Resumo
A sustentabilidade ambiental é um conceito-chave nas ciências naturais, sociais e humanas. A leitura naturalística, focada na descrição do quadro natural dissociado da humanidade que o integra, porém, pode enfraquecer a discussão, gerar déficit de criticidade e atuar como fonte de ideologia. Logo, não se pode reduzir o discurso da sustentabilidade às questões do desmatamento das florestas, a emissão do carbono, ao efeito estufa, por exemplo. O discurso ambiental a partir de 1990 foi acompanhado, por sua vez, pela valorização da dimensão espacial. O objetivo é contribuir para alargar o horizonte conceitual da sustentabilidade ambiental enquanto geoética, a qual emerge da relação entre justiça e espaço geográfico, este tomado como um híbrido entre o meio natural e o meio artificial. As questões geoéticas passíveis de serem solucionada via democracia deliberativa podem assumir a forma de uma ética universal, considerando que o ambiente é, hoje, um problema global. A pesquisa é bibliográfica e de revisão. A partir do Google Acadêmico, Dial Net e Periódicos Capes, foram selecionados textos relevantes e atuais que abordam conceitualmente sustentabilidade ambiental em diferentes áreas. A nossa compreensão do espaço como mundo da vida e sistema nos leva, por conseguinte, a propor uma discussão espacializada da intersubjetividade da justiça em termos da ética discursiva. Espera-se, por fim, contribuir para o avanço da discussão em termos de inclusão da democracia deliberativa para fazer frente à concepção de sustentabilidade ambiental considerando os níveis de desenvolvimento desigual dos Países.
Palavras-chave: justiça espacial; sustentabilidade social; consenso; geoética.
SPACE, JUSTICE AND UNIVERSAL ETHICS
expanding the conceptual horizons of environmental sustainability through deliberative democracy
Abstract
Environmental sustainability is a key concept in natural, social and human sciences. The naturalistic reading, which is focused on describing the natural framework dissociated from the humanity that integrates it, however, may weaken the discussion, generating a deficit of criticality and act as a source of ideology. Therefore, the sustainability discourse cannot be reduced to issues of forest deforestation, carbon emissions, or the greenhouse effect, for example. The environmental discourse from 1990 onwards has been accompanied, in turn, by the appreciation of the spatial dimension. The objective is to contribute to the expanding the conceptual horizon of environmental sustainability as geoethics, which emerges from the relationship between justice and geographic space, which is seen as a hybrid between the natural environment and the artificial environment. Geoethical issues that can be resolved via deliberative democracy are able to take the form of universal ethics, considering that the environment is, currently, a global problem. The research is bibliographic and of review. From Google Scholar, Dial Net and Periódicos Capes, relevant and current texts were selected that conceptually address environmental sustainability in different areas. Our understanding of space as a lifeworld and system leads us, therefore, to propose a spatialized discussion of the intersubjectivity of justice in terms of discursive ethics. Finally, it is expected to contribute to the advancement of the discussion in terms of the inclusion of deliberative democracy to face the concept of environmental sustainability considering the unequal development levels of the countries.
Keywords: spatial justice; social sustainability; consensus; geoethics.
1 INTRODUÇÃO
A década de 1970 pode ser entrevista como um marco divisor nas preocupações das nações sobre a problemática ambiental. A partir dessa época, alargaram-se as escalas espaciais das preocupações de ordem local, regional ou nacional para a internacional. Atualmente, pode-se afirmar que a escala é globalizada pelo interesse temático generalizado entre os povos e Estados-nações.
A primeira experiência de política ambiental em escala planetária foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, na Suécia, em 1972. O espaço, no entanto, tem uma força própria. Assim, por exemplo, no caso brasileiro, apenas na década de 1990, a partir da Rio 92, é que o Estado brasileiro passou, efetivamente, a assumir uma política deliberada quanto ao desenvolvimento ambiental no país. Assome-se, concomitantemente, em todos os lugares, o papel de divulgação midiática da questão.
Atualmente, portanto, o discurso da sustentabilidade ambiental impregna todos os recônditos do globo, os foros econômicos e sociais, os grandes grupos, mas também as pequenas comunidades rurais ou urbanas, ribeirinhas, caboclas, quilombolas, indígenas, os povos das florestas, as pequenas e grandes cidades. Esse discurso adentra, também, as políticas públicas municipais, estaduais. E a educação é convocada a desempenhar um papel relevante para as novas gerações.
A pesquisa foi documental e bibliográfica, valendo-se de levantamento sistemático em bases de dados selecionadas: Google Acadêmico, Periódicos Capes, Banco Digital de Teses e Dissertações, além do Dialnet. Usaram-se como descritores: sustentabilidade ambiental + conceito + revisão; sustentabilidade + espaço; sustentabilidade + ética + justiça. Optou-se por se concentrar nos estudos mais relevantes e atuais que abordam a concepção de sustentabilidade ambiental, de modo a conhecer a origem, a evolução, os temas e as complexidades de abordagem dessa temática. Selecionaram-se alguns trabalhos que tratam em seus títulos diretamente do assunto. Além disso, o referencial teórico de Jurgen Habermas e seus interlocutores foi adicionado como ponte para as discussões sobre justiça, espaço e sustentabilidade ambiental.
Validada enquanto temática social em escala planetária, a sustentabilidade ambiental, enquanto discurso teórico e discurso prático, se trata de um conceito polissêmico, difuso, confuso, ambivalente. Apesar dos esforços teóricos, predomina a falta de consenso sobre sustentabilidade, isto é, apresenta inúmeras definições, o que o torna de difícil aplicação (BACHA; SANTOS; SCHAUN, 2010).
Desse modo, haveria a necessidade de estabelecimento de um novo consenso mínimo em torno do significado de sustentabilidade ambiental para além do definido pelo relatório Brandtland? Nesse sentido, objetiva-se alargar seus horizontes conceituais mediante uma perspectiva relacional entre justiça espacial e democracia deliberativa mediante a ética discursiva.
Dividem-se os argumentos em três seções. Inicialmente, abordam-se as aproximações e os distanciamentos, a partir de literatura relevante, em torno do conceito de sustentabilidade, inserindo algumas reflexões sobre a necessidade de um consenso mínimo conceitual que possa se valer de uma perspectiva justa para as nações, considerando seus níveis de desenvolvimento desigual. Na sequência, expõem-se algumas ideias sobre ética universal e democracia deliberativa em Jurgen Habermas, a fim de nortear respostas relativas ao consenso mencionado. Por fim, opera-se a defesa da geoética, uma moral universal para a sustentabilidade ambiental que parte, por isso mesmo, de questões territoriais que deveriam guiar, igualmente e equitativamente, as deliberações políticas para o bem comum.
2 Sustentabilidade ambiental: há necessidade de consenso conceitual?
Do ponto de vista do interesse da pesquisa sobre sustentabilidade, 2003 é um marco, pois, a partir desse ano, segundo Bacha; Santos; Schaun (2010), foram publicados, no Brasil, 142 trabalhos sobre o tema, ao passo que em 2008 foram 307. Nesses estudos, porém, sustentabilidade e desenvolvimento caminham juntos conceitualmente, e, muitas vezes, se confundem. A Organização das Nações Unidas, como resultado da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, estabeleceu no relatório Brundtland a definição de que “Desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades” (1991, p. 46).
Para Simão (2017), internacionalmente dominante, essa concepção da ONU é antropocêntrica, ou seja, a natureza tem um valor instrumental para a humanidade. Dessa forma, justifica-se aqui, a inserção da ética discursiva ao debate. Dois paradigmas da sustentabilidade ambiental se organizam hoje: o antropocêntrico e biocêntrico. Este último é assim descrito por Ferreira e Bomfim (2010, p. 48):
Sustentabilidade baseada no paradigma biocêntrico afeta profundamente o centro das transformações nos modos de pensar, de agir e de sentir do ser humano, que atingem crenças, valores, hábitos, visão de mundo, aspectos simbólicos do homem que estão na raiz da dicotomia homem a natureza. Novos sentidos podem emergir do paradigma biocêntrico onde a cooperação, a solidariedade intergeracional, a participação e a uma nova visão humana da percepção interligada entre todos os seres vivos faz parte.
Diferencia-se, assim, de uma interpretação estritamente ecológica na qual a “sustentabilidade é a capacidade de um sistema de manter constante seu estado no tempo, ou seja, manter invariável os parâmetros de volume, taxas de trocas e circulação, flutuando-se ciclicamente em torno de valores médios” (CAVALCANTI, 2010, p. 220). Alguns estudos apontam uma lacuna na discussão conceitual de sustentabilidade eminentemente ambiental, carecendo de aprofundamentos e pesquisas sobre a sustentabilidade social (LOURENÇO; CARVALHO, 2013). Em geral, porém, o ambiental, econômico e social se tornam dominantes. Considera-se, ainda, que a dimensão espacial perpassa por todas, pois não existe sociedades sem espaço natural ou fabricado. Em realidade, o espaço é um híbrido do natural e do técnico (SANTOS, 2002).
Rattner (1999) pontua que a imprecisão conceitual de sustentabilidade se deve à ausência de um quadro teórico que relacione os discursos e as áreas do conhecimento e, especialmente, à indecisão das elites na definição de um programa de ação comum a partir das críticas ao modelo de desenvolvimento atual. Foladori e Tommasino (2000), por sua vez, agrupam assim o conceito de desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade: sustentabilidade ecológica, sustentabilidade fraca e sustentabilidade forte:
Creemos que las diversas posiciones pueden ser reducidas a tres grandes ejes hacia los cuales los diferentes autores se ven más o menos atraídos: aquellos para quienes la sustentabilidad es exclusivamente ecológica; aquellos para quienes la sustentabilidad es ecológica y social pero donde la parte social es un vehículo para llegar a la sustentabilidad ecológica (sustentabilidad social limitada); y aquellos para quienes la sustentabilidad debe ser realmente social y ecológica en forma de coevolución (coevolución sociedad-naturaleza) (p. 45, grifos do autor).
Essas posições chamam atenção, portanto, para a consideração da responsabilidade e da solidariedade, da ética e da justiça reafirmada pela democracia, logo, pela política. Então, cabe analisar a ética discursiva e a democracia deliberativa nesse debate.
3 Ética universal e democracia deliberativa em Jurgen Habermas
Considera-se, inicialmente, que ética e política devem aparecer juntas. O sentido ético do bem comum pressupõe, por conseguinte, ação compartilhada na vida pública. Por sua vez, a política enquanto agir em sociedade impõe solidariedade, responsabilidade e cuidado, logo, uma ação moral. A sustentabilidade ambiental é exigente de sustentabilidade social.
A questão ambiental é de interesse acadêmico, da sociedade e dos Estados. Logo, sendo uma problemática global, se torna urgente pensá-la do ponto de vista de sua relação ética e democrática, e não meramente econômica. Disso decorre o fato de a relação entre ética universal e democracia deliberativa poder contribuir para se pensar um consenso mínimo em torno de uma concepção de sustentabilidade ambiental para os povos em geral, garantindo, ao mesmo tempo, suas particularidades.
Na medida em que o modelo democrático habermasiano se preocupa em apresentar caminhos, estruturas e procedimentos que podem guiar um Estado moderno na direção da melhora de sua democracia, sem pré-definir conteúdos ou valores morais específicos para as normas, mas, ao contrário, entender que tais conteúdos devem refletir a diversidade cultural, étnica e social da comunidade a que se destina, este modelo demonstra sua capacidade de ser aproveitado em diferentes sociedades (TIROLI; ALFAYA, 2020, p. 167).
Para Habermas (1997, p. 21-22), “A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situada num nível superior, os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas”. Mas, qual seria o espaço de deliberação para consensualizar minimamente a sustentabilidade? É certo que sustentabilidade ambiental e escala espacial guardam uma relação dialética necessária para a sua legitimação global.
Portanto, a democracia deliberativa é fundamentada na plataforma da ética discursiva (BANNWART JÚNIOR; TESCARO JÚNIOR, 2017). Assim, a democracia deliberativa advoga o seguinte:
A despeito disso, a equidade dos compromissos é medida por condições e procedimentos que, por sua vez, necessitam de uma justificativa racional (normativa) com respeito a se são justos ou não. Diferentemente das questões éticas, as questões de justiça não estão por si mesmas referidas a uma determinada coletividade. Pois para ser legítimo, o direito politicamente estabelecido tem pelo menos de guardar conformidade com princípios morais que pretendem ter validade geral para além de uma comunidade jurídica concreta (HABERMAS, 1997, p. 44-45).
O progresso universal e a decantada homogeneização cultural encontram o seu contrário nos desenvolvimentos desiguais e na explosão das diferenças. “Estamos frente a la dialéctica que se le plantea siempre a toda reflexión ética: la de la universalidad y la particularidad, hoy agudizada a consecuencia de la globalización” (LOPEZ; MARTINEZ, p. 178).
Na perspectiva da Terra tomada como sistema vivo, a humanidade encontra um princípio objetivo com validade universal inquestionável. Ademais, considerando a sustentabilidade enquanto um encontro entre o mundo objetivo das coisas e o mundo intersubjetivo das sociedades, entre o sistemismo natural e o mundo da vida compartilhada, se faz premente pensar numa ética universal de base geográfica. A geoética pode ser uma ponte para se pensar a partir de nossa geograficidade, um conceito ampliado e integrador das desigualdades econômicas e das diferenças culturais. A geograficidade é entendida com base em Erick Dardel (2011, p. 1-2):
Mas antes do geógrafo e da sua preocupação com uma ciência exata, a história mostra uma geografia em ato, uma vontade intrépida de correr o mundo, de franquear os mares, de explorar os continentes. Conhecer o desconhecido, atingir o inacessível, a inquietude geográfica precede e sustenta a ciência objetiva. Amor ao solo natal ou a busca por novos ambientes, uma relação concreta liga o homem à Terra, uma geograficidade (geographicité) do homem como modo de sua existência e de seu destino.
A interligação planetária, cada dia mais desejada, sempre mais requerida, passa a exigir uma discussão sobre a universalidade. Ainda que, no momento, a universalidade do mercado seja hegemônica, o discurso ambiental recoloca outros valores em disputa. Dessa maneira, temas como pobreza, fome e justiça começam a aparecer de modo mais constante. Nesse processo, a força dos países em desenvolvimento tem um papel importante.
Portanto, cabe pensar, por meio da perspectiva da concepção mínima consensual de sustentabilidade, na possibilidade de a ética universal por elementos da democracia deliberativa fazer frente a essa demanda. Para Appel (1985, p. 404), “Todas las necesidades de los hombres, que puedan armonizarse con las necesidades de los demás por vía argumentativa, en tanto que exigencias virtuales, tienen que ser de la incumbencia de la comunidad de comunicacum”. Conforme Lubenow (2011), a ética do discurso não apela para o fato da razão e introduz os pressupostos gerais da comunicação entre as pessoas.
Esses pressupostos devem servir a democracia e servir-se dela. Conforme Hamel (2011), a ética remodela a esfera pública, pluralista, realocando o direito moderno para garantir as regras democráticas de participação do povo. Para Alvesson e Deetz (2010), a perspectiva habermasiana busca recuperar um entendimento mais amplo da racionalidade e superar a comunicação distorcida. Desse modo, se o propósito é defender a possibilidade de construção de um consenso mínimo em torno do sentido de sustentabilidade ambiental para além do seu viés técnico e utilitário, a ética do discurso estabelece as regras necessárias.
Os atores participantes tentam definir cooperativamente os seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo da vida compartilhado e na base de interpretações comuns da situação. [...] O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados (HABERMAS, 1990, p. 72).
Além disso, uma mudança de paradigma é posta. Segundo Rauber (1999, p. 57),
A ética do discurso tem na linguagem argumentativa o critério procedimentalista para a fundamentação racional de normas morais. Embora a ética do discurso encontre as suas raízes na teoria moral kantiana, há uma diferença fundamental entre as duas propostas: em Kant, cada sujeito em seu teto interno determina o que é e o que não é (objetivamente) moral; já à ética do discurso, as questões morais são resolvidas dentro de uma comunidade de comunicação.
Nesse sentido, não se podem negar as desigualdades sociais, as formas políticas que assumem os Estados nacionais, democráticas ou autoritárias, tampouco os mundos da vida que constituem o solo comum das populações em diferentes espaços. A ética do discurso e a democracia deliberativa se baseiam nos postulados de inclusão, simetria, justificação e prestação de contas.
A ética do discurso é, por isso, uma teoria da moral, por conseguinte, ética universal que já presume a sua permutação em justiça. Habermas (1989b, p. 9-10) destaca:
Aproximamo-nos, com efeito, do modo de consideração moral assim que examinamos se nossas máximas são conciliáveis com as máximas dos outros. [...] Um exame das máximas, ou uma heurística formadora de máximas, que não se deixe guiar pela questão de como quero viver, toma a razão prática de uma maneira diferente da reflexão sobre se de meu ponto de vista uma máxima obedecida universalmente é apropriada a regular nossa vida em comum. Num caso se examina se uma máxima é boa para mim ou adequada à situação; no outro caso, se posso querer que uma máxima seja observada como lei universal para todos. Trata-se, lá, de uma reflexão ética; aqui, de uma reflexão moral [...].
Para Camargo e Pinheiro (2010), o desenvolvimento sustentável enquadra-se no agir moral, comunicativo, no interesse coletivo que visa à justiça e ao bem comum. Conforme Habermas (1989a, p. 63), o princípio de universalização é “o único a possibilitar nas questões práticas um acordo argumentativo”. Para Rouanet (2011), a democracia deliberativa aparece como o melhor modelo democrático para uma sociedade mais justa. Portanto, um conceito mínimo de sustentabilidade não estaria tanto em uma definição teórica, mas na força moral de sua conceptualização. Por isso, citamos a geoética para definir a relação deôntica das sociedades com a Terra carente de ser guiada pela deliberação democrática.
4 sustentabilidade ambiental: geoética e democracia deliberativa
A nossa compreensão é a de que o ambiente possui um sentido lato, o qual não pode ser reduzido à natureza natural ou à ecologia. Portanto, sustentabilidade tem um sentido plural e integrativo entre o natural e o humano, a primeira natureza e a segunda natureza. Essa perspectiva é predominante na Geografia.
As diversas sustentabilidades são, consoante a Rua; Oliveira; Ferreira (2007), espaciais, ou seja, todas estão sujeitas à apropriação e/ou à dominação pelas sociedades. Sachs (1993, 2002) descreve a sustentabilidade espacial, entendida como uma distribuição territorial equilibrada, tanto dos assentamentos humanos quanto de suas atividades. O conceito de sustentabilidade, em Geografia, poder ser visto pelo binômio sociedade - meio ambiente mediado pelas práticas culturais (SOUZA, 2017).
Tempo e espaço são, conforme Simão (2017), passíveis de tratamento integrado a partir de algumas temáticas críticas, tais como a relação entre a sustentabilidade em escalas diferentes, a manutenção de sustentabilidade e criação de insustentabilidades, e a gestão de conflitos entre o curto e longo prazo e entre as gerações atuais e futuras.
Dentre os princípios axiológicos para uma ética ambiental, geográfica, estariam, conforme Siqueira (2010), a responsabilidade compartilhada, o saber cuidar e se relacionar com a diferença, a solidariedade socioambiental, a reeducação de comportamentos e a interdisciplinaridade dos saberes. Mas, Ribeiro (2010) enfatiza que, para os críticos do desenvolvimento sustentável, a sustentabilidade só seria aplicável pela integração da população mundial, particularmente, à parcela pobre, a uma vida digna.
Por tudo isso, o discurso ambiental, em geral, e o da sustentabilidade ambiental têm sido pintados com as tintas espaciais e da deontologia, da ética e da justiça. Por essa razão, fala-se aqui de geoética enquanto fundamento da sustentabilidade ambiental, uma ética universal de base geográfica que toma a Terra e a Humanidade enquanto Mundo como fundamento da sustentabilidade. Para Carneiro (2022, p. 83),
Esses princípios geoéticos universais, o direito ao espaço, à justiça espacial, à dignidade espacial, o respeito à diversidade e às diferenças geográficas, dentre outros, são modos de pensamento e de ação deônticos, reconhecidos como válidos socialmente durante o desenvolvimento da competência comunicativa e internalizados nas estruturas de personalidade garantidoras da identidade.
Difundem-se, por conseguinte, uma linguagem deôntica como a ética ambiental, a ética espacial, a justiça ambiental, a justiça espacial, a igualdade ambiental, a igualdade espacial, a desigualdade ambiental, a desigualdade espacial e outros tantos termos dessa deontologia que adentra a ideia de sustentabilidade.
Nessa perspectiva, Copetti e Lottermann (2010, p. 143) explicam que
A desigualdade ambiental, seja em termos de proteção desigual como de acesso desigual, demonstra que o que está em jogo não é a sustentabilidade dos recursos e do meio ambiente, mas, sim, as formas sociais de apropriação, do uso e mau uso destes recursos e do ambiente, acabando por evidenciar a correlação direta dos mecanismos de produção da desigualdade social com os mecanismos de produção das desigualdades ambientais.
Em geral, a literatura crítica impõe ressalvas ao sentido utilitarista de uso dos recursos. Por isso, Anguita e Martín (2016) defendem a inseparabilidade entre sustentabilidade e solidariedade como uma contribuição que cada indivíduo pode realizar na busca de um significado e destino comum para o planeta. Cabe lembrar, porém, que, no modelo discursivo habermasiano, não consta a imposição de valores e de conteúdos universais, mas tão somente na definição de um procedimento universal.
5 CONCLUSÃO
Neste estudo, buscou-se alargar os horizontes conceituais de sustentabilidade ambiental pela ética discursiva e pela democracia deliberativa. A literatura revela uma centena de concepções atreladas a diferentes referenciais, a teorias. Algumas dessas, inclusive, já integram a dimensão espacial e moral.
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