NARRATIVAS SILENCIADAS

reflexões sobre a brutalidade policial na vida de crianças e adolescentes negros no estado democrático brasileiro

 

 

Andrey de Farias Martins Silva[1]

Universidade Estadual de Alagoas

andrey.silva.2023@alunos.uneal.edu.br

 

Gabriel Cerqueira de Mello Farias[2]

Universidade Estadual de Alagoas 

gabriel.farias.2022@alunos.uneal.edu.br

 

Paulo Ricardo Silva Lima[3]

Universidade Estadual de Alagoas 

 pauloricardo.silvalimma@gmail.com

 

Ana Lydia Vasco de Albuquerque Peixoto[4]

Universidade Estadual de Alagoas 

analydia.peixoto@uneal.edu.br

 

Antonio Tancredo Pinheiro da Silva [5]

Universidade Estadual de Alagoas 

 tancredo.juridico@gmail.com

 

Anderson de Alencar Menezes [6]

Universidade Federal de Alagoas

 anderufal@gmail.com

 

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Resumo

A sociedade brasileira no que diz respeito a sua estrutura de relações sociais como conhecemos, tem início no Brasil colônia a qual a instituição de maior força era a escravagista. Nesse sentido, as formações e interações de classes da sociedade brasileira foram arregimentadas pelo racismo, sendo ele escancarado no passado, com leis e naturalização das práticas de disciminação racial, e mantendo grande influência atualmente com a utilização de “máscaras” que encontram para legitimar sua atuação na sociedade contemporânea. Nesse contexto, nos últimos anos tem-se observado a atuação irregular de ações policiais no país, principalmente nas comunidades periféricas, sendo utilizada a brutalidade e a violência física e moral dos sujeitos, violando direitos humanos e fundamentais, e colocando em perigo a vida de crianças e adolescentes que residem nesses ambientes, sobretudo, as negras, reconhecendo assim a existência do racismo estrutural. Considerando que o país é democrático, e reconhecendo que os atores sociais possuem a capacidade de influenciar nas mudanças e construções de políticas capazes de discutir os fundamentos da vida pública e social, esta proposta de pesquisa tem por objetivo refletir como a brutalidade policial afeta a confiança de crianças negras no Estado democrático por meio de instituições de segurança e proteção. Trata-se de uma pesquisa de revisão bibliográfica, qualitativa e descritiva.

Palavras-chave: estado democrático; racismo estrutural; violência policial. 

SILENCED NARRATIVES

reflections on police brutality in the lives of black children and adolescents in the Brazilian democratic state

Abstract

Brazilian society, in terms of its structure of social relations as we know it, began in colonial Brazil, where the strongest institution was slavery. In this sense, the formations and interactions of classes in Brazilian society were regimented by racism, which was revealed in the past, with laws and naturalization of racial discrimination practices, and currently maintaining great influence with the use of “masks” that they find to legitimize their performance in contemporary society. In this context, in recent years, irregular police actions have been observed in the country, mainly in peripheral communities, using brutality and physical and moral violence against subjects, violating human and fundamental rights, and endangering the lives of children and adolescents who live in these environments, especially black ones, thus recognizing the existence of structural racism. Considering that the country is democratic, and recognizing that social actors have the ability to influence changes and construction of policies capable of discussing the foundations of public and social life, this research proposal aims to reflect on how police brutality affects trust of black children in the democratic State through security and protection institutions. This is a bibliographical, qualitative and descriptive research.

Keywords: democratic state; structural racism; police violence.

 

1 INTRODUÇÃO

A infância, de acordo com a Convenção sobre os direitos da Criança de 1989, é uma etapa da vida marcada por aprendizados, socialização, lazer e proteção integral da família e dos eixos sociais, o que inclui o Estado (ONU, 1989). No Brasil, além da própria Constituição estabelecer que os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à liberdade da criança devem ser prestados pela por toda a sociedade e Estado, o constituinte atribuiu a obrigação desses atores mantê-las a salvo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Entretanto, nos últimos anos tem-se observado a atuação irregular de ações policiais no país, principalmente nas comunidades periféricas, sendo utilizada a brutalidade e a violência física e moral dos sujeitos, violando direitos humanos e fundamentais, e colocando em perigo a vida de crianças e adolescentes que residem nesses ambientes, sobretudo, as negras, reconhecendo assim a existência do racismo estrutural.

Considerando que o país é democrático, e reconhecendo que os atores sociais possuem a capacidade de influenciar nas mudanças e construções de políticas capazes de discutir os fundamentos da vida pública e social conforme pondera Habermas (2021), esta proposta de pesquisa tem por objetivo refletir como a brutalidade policial afeta a confiança de crianças negras no Estado democrático e nas instituições de segurança e proteção.

 

2 PROCESSO METODOLÓGICO

No tocante ao procedimento metodológico, trata-se de uma pesquisa de revisão bibliográfica, pois buscaremos analisar como a literatura tem abordado a temática sobre a atuação policial na vida das crianças negras brasileiras e a responsabilidade do Estado democrático; documental, tendo em vista que serão destacados relatórios de mortalidade infantil por atuação irregular de policiais, traçando as principais métricas relacionadas as vitimas, como sexo, idade, cor, etc., bem como serão verificados alguns casos emblemáticos envolvendo a morte de crianças pela violência policial disponíveis principalmente em jornais e revistas. A análise desses dados se dará pelo método qualitativo, o qual buscará descrever os signos, significados e relações causais nos casos e dados. (LAKATOS; MARCONI, 2017; GIL, 2010).

 

 

 

3 REFERENCIAL TEÓRICO

A sociedade brasileira no que diz respeito a sua estrutura de relações sociais como conhecemos, tem início no Brasil colônia a qual a instituição de maior força era a escravagista, como explica a análise sociológica de Souza (2022). Nesse sentido, as formações e interações de classes da sociedade brasileira foram arregimentadas pelo racismo, sendo ele escancarado no passado, com leis e naturalização das práticas de disciminação racial, e mantendo grande influência atualmente com a utilização de “máscaras” que encontram para legitimar sua atuação na sociedade contemporânea.

Nessa lógica, a estrutura de classes no Brasil não sofre mudanças reais, mas sim transformações que servem para sua manutenção, tendo sempre pólos totalmente distintos dentro do mesmo país. A elite do dinheiro e a classe média alta, que sonha em ser parte da elite, mantém seu sentimento de superioridade através da mesma maneira que mantinham há anos no Brasil colônia, pela discriminação e rebaixamento da classe mais fragilizada desde dessa época, a classe dos pobres, negros e periféricos, descendentes dos antigos escravos. A ideia é mesma passada na música do cantor e compositor brasileiro Chico Buarque de Holanda na música “Geni e o Zepelim”, como exemplifica bem Souza (2022), a classe dos esquecidos é vista como a classe “Geni” pelo resto da sociedade, ou seja, boa de bater, boa de cuspir. A necessidade das elites de distinção social e manutenção da sua “superioridade” é tanta que vemos a utilização do Estado e de seu aparato policial/jurídico como ferramenta para essa finalidade.

Seguindo essa linha de raciocínio, o Estado que tem como seus coordenadores membros da elite brasileira, é instrumento de replicação da lógica de subsunção de um grupo social a outro, sendo claro o racismo estrutural do Estado brasileiro, que utiliza de políticas punitivas como o encarceramento em massa e violência exacerbada nas operações policiais, que tem como eficácia a morte e discriminação da população pobre e negra das periferias. Se mostrando ser os próprios braços do Estado traidores da pátria, pelas palavras de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição Federal de 1988, já que contrariam a Carta Magna no seu artigo 5º que dispõe que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[...]”.

Colocando a força policial em evidência, para legitimar a quebra evidente das linhas da Constituição Federal, é utilizado máscaras baseadas em discursos maquiados de interesse público como o combate à criminalidade e a guerra contra as drogas, o qual na verdade se tem uma criminalização da pobreza. Maneiras modernas de se continuar a prática criada na escravidão, sendo a violência institucionalizada simbólica e disfarçada a engrenagem central da máquina estatal de práticas sociais para com os mais pobres, dessa maneira a polícia militarizada do Brasil trata jovens negros, pobres, como inimigos em potencial do Estado de Direito. Além disso, a mídia tem um papel central para a criminalização da pobreza e reprodução do racismo, pois cria no imaginário social a necessidade da morte dessas populações, como medida eficaz no combate à criminalidade. Segundo Azevedo (1987), é possível observar que a polícia já tinha uma função de auxílio às elites desde os seus primórdios na sociedade brasileira, sendo o seu papel um reforço essencial para o combate, controle e repressão das revoltas, protestos, fugas e todo o apoio popular que buscava mudar a ordenação social vigente na época.

 

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Segundo Habermas (2012, v. 1, p. 34) “[...] quanto melhor puder fundamentar uma pretensão de eficiência ou de verdade proposicional associadas às pretensões tanto mais racionais elas serão”. Levando essa afirmação em consideração, o discurso usado e bem fundamentado, que a morte da população das periferias, incluindo crianças, é necessário para o bem comum da sociedade brasileira, devido a ação de igualar pobre a criminoso e periferia a recanto de bandidos, é transformado em racional no senso comum da população, ao ponto de ser motivo plausível de quebra de leis e desconsideração dos direitos humanos para a maioria da sociedade. Com isso, o protesto e busca da classe dos oprimidos por seus direitos fundamentais, como a segurança e liberdade, são vistos como vitimização, possibilitando a manutenção da subsunção de um grupo social que é visto como indignos de exercer os seus direitos a outro que cria e controla a manifestação dos direitos no contexto de um Estado democrático de direito. Para ajudar a compreender esse cenário Van Dijk (2018) afirma que a maioria das ideologias que perpassam o senso comum da sociedade são produzidas de forma discursiva, logo, as elites têm um certo controle dos discursos públicos, moldando a reprodução do discurso legitimador da dominação social. Desse modo, pode-se compreender por que a morte violenta de jovens negros periféricos pela polícia é majoritariamente naturalizada.

No meio do genocídio nas periferias, estão crianças e adolescentes que também são vítimas dessa violência institucionalizada, formando inúmeras famílias destruídas e que nunca vão ver seus filhos chegarem na vida adulta ou chegarem carregados de problemas psicossociais gerados pelo meio de guerra onde vivem. Ao verificar os tipos de crimes que levam à morte, conclui-se que em todas as idades, o principal tipo de crime que leva à morte de crianças e adolescentes é o homicídio (83,5%), seguida de mortes decorrentes de intervenção policial (15%) (ANUÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020, p. 323). Esses são dados assustadores que revelam a falta de segurança que cerca as crianças e adolescentes periféricos do Brasil, sendo assim, mais uma vez, é observado a quebra da formalidade das leis que regem o país pelo aparato policial, o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente -  (Lei n. 8.069/1990) dispõe no artigo 18, que é dever de todos zelar pelo bem-estar das crianças e adolescentes brasileiros, colocando-os a salvo de todo e qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Disposição que é seguida ao contrário quando se trata de operações policiais nas favelas, casos como o do menino Thiago Menezes Flausino de 13 anos de idade que morreu baleado com 5 tiros com requintes de crueldade no mês de agosto de 2023, são recorrentes, sendo regra e não eventualidades. A desproporção entre os perfis das vítimas também se dá na cor das vítimas. Os negros representam 78% das crianças de 0 a 19 anos vítimas de mortes violentas intencionais no Brasil. Em todas as faixas etárias, o número de vítimas negras é maior do que o número de vítimas brancas. (ANUÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020, p. 323).

Nesse prisma, é necessário admitir que existe um esquema de privilégios no Brasil e que devido a isso existe uma pluralidade de infâncias e adolescências que só podem ser percebidas pela visão de quem vive e convive com diferentes experiências e necessidades exclusivas de cada jovem e de cada classe, os fatos do mundo do “outro” só são verdadeiramente conhecidos pela visão do mundo do “outro”. O entendimento da existência de diversas infâncias e adolescências, é um mecanismo de análise que possibilita desocultar as desigualdades que se escamoteiam em apreensões unilaterais dos diferentes contextos e condições, nos quais as crianças e adolescentes estão localizados no Brasil. A pobreza, enquanto resultante dessa exclusão, não irá privar as crianças e adolescentes somente do acesso aos bens materiais, mas de uma gama de direitos e oportunidades sociais. (VIEIRA; COSTA; OLIVEIRA, 2021, p. 27). Nesse viés, as crianças que sobrevivem a esse cenário de guerra civil e de extermínio por parte do Estado enfrentam por toda a sua vida diversas limitações e incertezas do futuro, e devido a isso começam a acreditar e aceitar que não tem como sair do cenário de que são inseridas.

Devido a isso, as crianças vão crescendo com problemas de personalidade, já que são ofertadas para elas apenas violência por quem formalmente devia protegê-la que é a força policial estatal, como mostra a introdução da música “7 meiota”, do artista brasileiro Filipe Ret, que narra a visão de um morador da comunidade em relação às crianças da periferia e como elas vão se desenvolvendo nesse ambiente.

Porque ao invés de eu dar uma arma na mão de uma criança de brinquedo Eu prefiro dar uma bola Eu prefiro dar uma bicicleta Eu prefiro dar um bagulho Porque eu não vou incentivar eles nunca a dá tiro na polícia Só que a própria polícia incentiva eles, sabe como? Entrando na casa de um menó de 10 anos E dando tiro na cara do pai dele Como é que ele vai crescer? Com amor no coração? (...) (RET, 2022).

Seguindo essa linha de raciocínio, o próprio estado através de atividades criminosas dá munição para as instituições também criminosas, que a polícia e a mídia dizem combater para justificar o genocídio da população periférica, criando um ciclo de manutenção de desgraças que acompanham desde da infância até a vida adulta da população negra residente em comunidades ao redor do Brasil.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O racismo estrutural está profundamente enraizado no Brasil, sendo resultado do sistema escravista perverso que marcou a história colonial do país. Durante a era colonial brasileira, os escravos negros eram tratados como mercadorias e objetos de negociação, enquanto os colonizadores europeus se consideravam proprietários, detendo autonomia para violentar e castigar os escravos conforme sua conveniência.

Após intensas lutas políticas do povo negro, a escravidão foi abolida no Brasil, por meio da Lei Áurea, em 1888, mas o período pós-abolição não incluiu os negros na sociedade de forma justa e igualitária. A abolição, embora tenha representado um marco na história brasileira, não foi suficiente para proporcionar aos negros recém-libertos as oportunidades necessárias de trabalho, educação e participação social plena.

A exclusão resultante desse período histórico levou os ex-escravos e migrantes rurais a formar comunidades nas encostas e morros das cidades, dando origem às primeiras favelas brasileiras. Estas surgiram em um contexto de marginalização e abandono por parte da sociedade e do Estado, refletindo a persistente desigualdade social e racial no Brasil.

A falta de políticas efetivas de inclusão e a segregação racial persistente deram origem ao racismo estrutural que afeta em vários aspectos sociais, econômicos e políticos no Brasil. O racismo institucional se manifesta de maneiras variadas, incluindo a violência policial seletiva contra a população negra nas favelas e periferias. Dados estatísticos revelam que jovens negros são desproporcionalmente alvos de violência letal no Brasil. O "Atlas da Violência 2020", produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca que a taxa de homicídios de jovens negros é quase três vezes maior do que a de jovens brancos.

A falha estatal, portanto, desencadeou em uma disparidade social e racial em diversas áreas. Dados mostram que, historicamente, o índice de letalidade nas áreas periféricas ou de baixa renda são significativamente mais altas em comparação com outras regiões. Além da desproporcionalidade no sistema carcerário brasileiro que também evidencia a desigualdade racial e social, com uma grande proporção de presos sendo jovens negros e oriundos de áreas periféricas. O superencarceramento contribui para a perpetuação do ciclo de violência e marginalização.

Nessa perspectiva, existe uma busca por legitimação desses atos policiais cruéis que ocorrem nas periferias. A própria sociedade contribui para essa legitimação, a partir da estigmatização acerca da periferia ser um ambiente tomado pelo crime, violência e desordem. Outro forte fator que colabora para a criação desse estigma social são as narrativas midiáticas sensacionalistas, que têm um papel fundamental na construção da percepção pública sobre as comunidades periféricas. Narrativas sensacionalistas e estigmatizantes frequentemente retratam essas áreas como territórios perigosos e habitados por pessoas "perigosas", alimentando a justificativa para ações policiais violentas.

Além disso, o histórico brasileiro de repressão policial advinda do período ditatorial, no qual o controle e repressão estatal eram generalizados, permite uma certa normalização, que acaba por justificar essas ações policiais extremamente violentas.

No contexto da teoria do agir comunicativo de Habermas, a razão deve ser construída de forma conjunta na sociedade, por meio da reflexão e do debate constantes, para resolver os problemas sociais. Habermas propõe a "razão comunicativa", onde a sociedade, através do diálogo inclusivo e da comunicação, pode alcançar soluções que beneficiem a todos. A democracia deliberativa, fundamentada na diversidade de perspectivas e pondo em evidência os saberes das pessoas, é um caminho para uma sociedade mais justa e igualitária.

A teoria de Habermas também destaca a importância do acesso à informação para uma sociedade informada e engajada. Garantir que as comunidades periféricas tenham acesso a informações precisas e imparciais sobre seus direitos, a legislação e os procedimentos policiais é fundamental. A conscientização sobre os direitos civis pode capacitar os indivíduos a se protegerem contra a violência policial e a denunciá-la quando ocorrer.

O filósofo alemão enfatiza a importância da accountability (responsabilização) para garantir que as instituições sejam responsáveis perante a população. Implementar mecanismos de prestação de contas eficazes para a polícia é crucial para reduzir a impunidade e para criar uma relação mais confiável e transparente entre a polícia e as comunidades.

Esses pontos expostos pelas teorias habermasianas são de fundamental importância em relação ao direcionamento de caminhos para um diálogo mais inclusivo, especificamente na relação entre Estado e sociedade, e para impedir que o Estado utilize da força do poder público para atingir a população das periferias.

A teoria da necropolítica, desenvolvida por Achille Mbembe, lança luz sobre como o Estado pode exercer o poder político não apenas para controlar a vida das pessoas, mas também para determinar quem tem o direito de viver e quem merece morrer. No contexto brasileiro, isso se traduz na percepção da vida dos jovens negros, especialmente os que residem em favelas e periferias, como descartável e sujeita à violência policial e social.

O pensador camaronês expõe que o Estado é visto como um agente que pode provocar a morte e a violência direta contra determinados grupos da população. As ações policiais extremamente violentas, muitas vezes letais, nas favelas representam essa forma de poder estatal que decide quem deve viver e quem deve morrer. A polícia, em alguns casos, é vista como uma extensão do poder estatal que tem o direito de tirar vidas nas comunidades periféricas.

A necropolítica está intrinsecamente ligada ao racismo e à discriminação racial. Nas favelas brasileiras, a maioria dos habitantes é composta por pessoas negras e pardas. As ações violentas da polícia, que desproporcionalmente atingem essas populações, evidenciam um padrão de discriminação racial sistemática, onde a violência se torna uma forma de controle social e racial.

Desse modo, os jovens negros são particularmente afetados pela brutalidade policial, sendo alvos constantes de abordagens violentas e muitas vezes letais. As estatísticas mostram que são vítimas desproporcionalmente mais frequentes de homicídios pela polícia em comparação com outros grupos populacionais. A brutalidade policial interrompe suas vidas precocemente, ampliando o ciclo de violência e perpetuando o legado do racismo estrutural.

A violência policial institucionalizada e seletiva é um produto direto do racismo e da agorafobia que permeiam a estrutura social brasileira desde os tempos coloniais. A elite enxerga a segurança pública como proteção exclusiva para si, negligenciando a população negra e periférica.

A realidade dentro das periferias do Brasil oferece poucas possibilidades para a população e, principalmente para a juventude, que necessita de uma perspectiva para o futuro. O trecho da música “Eu Só Quero É Ser Feliz” retrata a realidade dessas pessoas.

Eu só quero é ser feliz

Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é

E poder me orgulhar

E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

Mas eu só quero é ser feliz, feliz, feliz, feliz, feliz

Onde eu nasci, han

E poder me orgulhar

E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer

Com tanta violência eu sinto medo de viver

Pois moro na favela e sou muito desrespeitado

A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado

Eu faço uma oração para uma santa protetora

Mas sou interrompido a tiros de metralhadora

Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela

O pobre é humilhado, esculachado na favela

Já não aguento mais essa onda de violência

Só peço à autoridade um pouco mais de competência

(trecho da música “Eu Só Quero É Ser Feliz”)

A tragédia do período colonial continua a assombrar a sociedade atual, já que os corpos negros são novamente alvos de violência e opressão, silenciando as narrativas vividas nas favelas e periferias. A juventude é particularmente visada devido a seu potencial obstinação em relação ao sistema.

A responsabilidade do estado brasileiro democrático é evidente na perpetuação desse ciclo de exclusão e violência. A negligência estatal em garantir igualdade de oportunidades e combater a discriminação racial contribui para a marginalização contínua da população negra, especialmente os jovens. Dois casos emblemáticos que refletem essa realidade são o massacre do Complexo do Alemão em 2007 e a morte de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, em 2020, durante uma operação policial na sua residência no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Rio de Janeiro.

O massacre do Complexo do Alemão em 2007 exemplifica de maneira trágica a violência policial seletiva e desproporcional que atinge as comunidades periféricas e as favelas do Brasil. Durante essa operação, as forças de segurança invadiram o Complexo do Alemão, resultando em confrontos armados e mortes de civis inocentes. Essa ação evidenciou a falta de protocolos claros para evitar a violência indiscriminada, demonstrando a necessidade urgente de reformas no sistema policial e de políticas que protejam os direitos humanos dessas populações marginalizadas.

O caso de João Pedro Mattos Pinto, um adolescente de apenas 14 anos, é um exemplo mais recente e chocante da brutalidade policial que persiste nas comunidades periféricas do Brasil. João Pedro foi morto em sua própria casa durante uma operação policial, destacando a vulnerabilidade das crianças e jovens negros diante da violência policial. Essas tragédias evidenciam a necessidade urgente de repensar as práticas policiais, investir em treinamento e fiscalização, bem como estabelecer mecanismos de responsabilização efetivos para os agentes envolvidos em violações dos direitos humanos.

A resposta do Estado a essas questões deve ser abordada com seriedade. As políticas públicas devem ser orientadas para a promoção da igualdade de oportunidades, a redução das desigualdades socioeconômicas e a eliminação do racismo estrutural. Investimentos em educação de qualidade, acesso a empregos dignos e medidas para combater o preconceito são essenciais para quebrar o ciclo de exclusão e violência.

A promoção da democracia deliberativa, conforme proposto por Habermas, se torna fundamental nesse processo. É necessário fomentar espaços de diálogo inclusivo, nos quais a diversidade de perspectivas possa ser considerada na formulação de políticas que visam a justiça social. Isso implica ouvir ativamente as vozes das comunidades periféricas e incluí-las nos processos decisórios que afetam suas vidas.

Em suma, a brutalidade policial nas comunidades periféricas do Brasil está intrinsecamente ligada ao racismo estrutural enraizado no país, decorrente de um histórico de escravidão e exclusão. Para transformar essa realidade, é essencial uma abordagem multidisciplinar que contemple a teoria de Habermas, enfatizando o diálogo e a razão comunicativa, aliada à conscientização, mudanças políticas e sociais profundas que possibilitem uma sociedade verdadeiramente igualitária e justa para todos.

REFERÊNCIAS

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[1]  Graduando em Direito, Universidade Estadual de Alagoas

[2] Graduando em Direito, Universidade Estadual de Alagoas

[3] Doutorando em Ciência da Informação, pela Universidade Federal de Alagoas; Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Alagoas- UFAL. Graduando em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes - UNIT. Assessor jurídico na Defensoria Pública do Estado de Alagoas - DPE AL. Professor temporário na UNEAL.

[4] Docente da disciplina de metodologia da pesquisa dos cursos de Física, Administração Pública, Direito da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL). Mestre e Doutora em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Vem realizando sucessivas formações para atuação na Gestão Acadêmica e Saúde Sistêmica através do ensino-pesquisa-extensão-administração universitária.

[5] Doutorando em Educação pelo PPGE/CEDU da Universidade Federal de Alagoas. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alagoas. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pelo Centro Universitário CESMAC. Graduado em DIREITO pela Faculdade Raimundo Marinho/FRM. Professor Civilista do Curso de Direito no Programa Especial para Formação de Servidores Públicos - PROESP/UNEAL.

[6] Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco, Bacharel em Teologia pelo Centro Unisal - Campus Pio XI (São Paulo), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Porto/Portugal. Pós-doutorado em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco. Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas.