A DEMOCRACIA SEGUNDO NIKLAS LUHMANN

 

Guilherme Preger[1]

UERJ

gfpreger@yahoo.com.br

 

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Resumo

Este artigo apresenta a concepção de democracia adotada pela Teoria dos Sistemas Sociais na versão de Niklas Luhmann. Embora seja um tema pouco frequente na obra do sociólogo, ela foi exposta com clareza no artigo The Future of Democracy, publicado em 1990. Neste artigo, a concepção é apresentada como uma hipótese histórica que foi capaz de prever e explicar algumas características da democracia ocidental após a queda do bloco soviético. O artigo avança um desenvolvimento dessa concepção democrática para entender melhor o ressurgimento dos movimentos políticos de extrema-direita na última década e, por outro lado, mostrar como tais movimentos são incompatíveis com o princípio democrático proposto pela teoria luhmanniana.

Palavras-chave: democracia; teoria dos sistemas sociais; Niklas Luhmann.

 

DEMOCRACY ACCORDING TO NIKLAS LUHMANN

 

Abstract

This article presents the conception of democracy adopted by the Social Systems Theory in Niklas Luhmann's version. Although it is an infrequent topic in the sociologist's work, it was clearly exposed in the article The Future of Democracy, published in 1990. In this article, the conception is presented as a historical hypothesis that was able to predict and explain some characteristics of Western democracy after the fall of the Soviet bloc. The article advances a development of this democratic conception to better understand the resurgence of far-right political movements in the last decade and, on the other hand, to show how such movements are incompatible with the democratic principle proposed by Luhmannian theory.

Keywords: democracy; social systems theory; Niklas Luhmann.

1  INTRODUÇÃO

Após o período mais crítico da emergência sanitária da pandemia, agora epidemia, do COVID, quando alguns Estados Nacionais, inclusive o Brasil, tomaram medidas excepcionais de dispêndio público, retornamos ao não se sabe se é o velho ou o novo normal. Estados que eram governados pelo princípio da austeridade fiscal e pela redução da função estatal, tiveram que tomar medidas não exatamente protecionistas, mas antes protetivas para suas populações vulneráveis em relação à saúde e ao desemprego, e agora retornam à discussão do controle dos gastos sociais. Em artigo anterior (Preger, 2020), argumentei que o velho e o novo normal iriam se encontrar no “Grande Normal”, mas esta emergente normalidade abriria caminhos para rotas desviantes ou derivadas, situações “anômalas” ou “variantes”.

A pandemia encontrou a política global inserida na luta, quase guerra, da gestão da democracia contra os novos populismos autoritários. No mesmo artigo anterior, também observei que esses movimentos de extrema-direita tinham, igual ao agente infeccioso do coronavírus, um comportamento viral, e que ficariam “alojados” parasitariamente no sistema político. Assim, curiosamente, também em relação ao cenário político, deixamos uma situação pandêmica de expansão da extrema-direita, para uma condição, por assim dizer, “epidêmica”. Se alguns desses movimentos autoritários, como nos EUA e no Brasil, tiveram derrotas que envolveram o reconhecimento de que quando eleitos como governantes não foram capazes de lidar adequadamente com os desafios postos pela onda pandêmica, por outro lado, essas derrotas, sobretudo eleitorais, não foram capazes de banir esses movimentos para o ostracismo, como outrora na velha normalidade política do consenso liberal. Exatamente à maneira das novas variantes do coronavírus, esses movimentos permanecem em muitos países em estado latente, como se estivessem prontos para novamente iniciar ofensivas políticas e midiáticas vitoriosas eleitoralmente. Por maior a incompetência na gestão da situação sanitária, com a adoção deliberada de políticas negacionistas, de tratamentos anticientíficos, quando não da completa rejeição de medidas preventivas, o que levou afinal à responsabilidade por altas taxas de morbidade, largas parcelas da população ainda parecem relutantes a reconhecer a não conformidade desses movimentos autoritários com políticas baseadas no cuidado, ou mesmo a necessidade imperiosa de tais políticas.

Os movimentos políticos autoritários adoeceram o corpo político da sociedade e a necessidade de reconstrução da democracia se assemelha a um período de convalescência. Embora haja uma conjugação acidental entre o evento pandêmico e a ascensão da extrema-direita, que lhe antecedeu, ambos os eventos, sanitário e político, se imbricam de forma complexa. Proponho neste artigo uma leitura sistêmica dessa situação, considerando os efeitos do autoritarismo sobre o sistema político e as possibilidades de sua recuperação, isto é, de sua reconstrução democrática. Para essa análise faço uso da obra do sociólogo que mais ênfase deu à sistematicidade do social, o alemão Niklas Luhmann. Sua obra idiossincrática, fortemente embasada na teoria dos sistemas e na cibernética, nos oferece o paradigma necessário para uma análise da capacidade do sistema político se realinhar, sobretudo levando-se em conta a cada vez mais intensa digitalização da comunicação política. Para muitos autores, aliás, foi por ter desviado (“hackeado”) ou sequestrado a seu favor as comunicações das mídias sociais que a extrema-direita conseguiu se tornar uma força relevante no cenário político e colocar a velha democracia liberal em cheque. 

 

2  A CONCEPÇÃO DE DEMOCRACIA SEGUNDO A TSS

O conceito de democracia não é frequente na obra de Niklas Luhmann. Em sua magnum opus, Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral, publicada originalmente em alemão em 1984 (versão em inglês, Luhmann, 1995), no qual apresenta os fundamentos da Teoria dos Sistemas Sociais (TSS), a palavra não aparece uma única vez. Em oposição a Habermas, cujo conceito de democracia deliberativa ganha proeminência em sua teoria do Agir Comunicativo, em Luhmann o conceito de democracia parece não desempenhar um papel funcional aditivo à autonomia do sistema político, cujo “fechamento operacional” discutirei adiante.    

 

2.1  O Futuro da democracia

Em 1990, o sociólogo alemão apresentou o artigo The Future of Democracy, na revista Thesis Eleven[2].  A primeira nota a observar é que esta revista, como indica seu nome, é de viés marxista, o que é curioso para um autor muitas vezes considerado como conservador e anti-marxista[3]. O segundo ponto é a importância política da data de publicação, após a queda do muro de Berlin e o colapso da URSS e do realismo socialista “realmente existente”. Em outros termos, trata-se de um momento de muitas incertezas políticas, especialmente para a teoria de fundo marxista.  Neste artigo, no entanto, o sociólogo supre a ausência de abordagem democrática em sua obra anterior, adiantando uma concepção teórica como hipótese política, cuja validade se dá pelo desdobramento de suas consequências. Daí a ideia de “futuro”: é o tempo histórico que determina a validação da hipótese teórica.

O que a TSS oferece não é uma definição “normativa” do que é democracia, mas uma perspectiva que a observa dentro de um certo modo de operação, apresentando nesta visada certas características que não aparecem em outros paradigmas teóricos. Já a seleção dos futuros possíveis tem importância política para o presente.

 

O futuro da democracia aparece de forma diferente de acordo com o conceito de democracia que adoptamos, e de acordo com estes diferentes futuros já podemos observar problemas no presente que estamos convencidos de que outros não vêem ou não levam suficientemente a sério (Luhmann, 1990)[4].

 

Bem no início do artigo, Luhmann diz que o não usual (unusual) sobre democracia é a manutenção das possibilidades abertas. Logo a seguir, no entanto, adota um tom cético e mesmo pessimista.

Se democracia quer dizer razão e liberdade, emancipação de condições sociais de tutelagem, de fome e de necessidade, de opressões racistas, das sexistas e das religiosas, paz e felicidade secular de todo tipo - então as coisas parecem efetivamente ruins. E de fato tão ruins que há uma alta probabilidade de que tudo que nós façamos tornará as condições ainda piores (Luhmann, 1990).[5]

 

Esse viés pessimista dá a tônica de todo o artigo, que foca mais nos problemas e nas ameaças à democracia vindoura do que em suas promessas.  Ao contrário de pensadores que à mesma época estavam festejando o “fim da história” com a supremacia da democracia liberal sobre o colapso da derrocada soviética, o sociólogo observa as dificuldades do sistema político emergente em lidar com os desafios que estão sendo postos na seara planetária.

Niklas Luhmann começa então sua explanação primeiro negando duas concepções rivais de democracia. A democracia NÃO é:  1- O governo (rule) do povo sobre o povo. Não é a anulação de um poder pelo outro. Não significa o autogoverno do povo; 2- Um princípio segundo o qual todas as decisões são participativas. Isso significaria dissolver todas as decisões em decisões sobre decisões, num interminável aumento de carga sobre elas.  Essas negações já o distanciam de vez da perspectiva teórica habermasiana (Bachur, 2020). Então o que é democracia? De maneira bastante lacônica, Luhmann define: “Instead, I propose we understand democracy as the splitting of the summit: the splitting of the summit of the differentiated political system through the distinction between government and opposition” (itálicos do autor). O centro de gravidade desta definição está na expressão destacada: splitting of the summit,  divisão ou cisão, da cimeira, do cume ou da cúpula. O que está dividido desde seu cume, é o sistema político, mas a que esse sistema se refere? Conhecendo a TSS luhmanniana, sabemos que se refere ao meio simbólico de comunicação do Poder. Por isso, entendo esta definição sintética como dizendo que para Luhmann democracia significa um sistema político no qual há repartição de Poder. Mas para entender melhor isso, é preciso dar dois passos atrás para uma descrição sumária da TSS antes de prosseguir no ensaio sobre democracia.

 

2.2 ELEMENTOS GERAIS DA TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS NA PERSPECTIVA DE NIKLAS LUHMANN

Sistema social para Niklas Luhmann é um sistema autônomo com fechamento operacional. Isso significa que apenas o sistema é responsável por suas próprias operações. Na modernidade, o modo histórico do sistema social se dá pelo primado dos sistemas funcionais. Cada sistema funcional é um sistema operacionalmente fechado (autoprodutor ou autopoiético) que se distingue do ambiente (porém, cada sistema tem seu próprio ambiente). Isso implica que a sociedade é um sistema que se diferencia em subsistemas, cada um com sua função exclusiva. Não existe uma “hierarquia” dos sistemas. Todos cumprem uma função que é incomensurável com outra função e um sistema não pode, portanto, “substituir” a funcionalidade de outro sistema. Os sistemas são sempre “acoplados estruturalmente” uns aos outros. Portanto, há uma “região” de convergência entre eles, porém cada sistema observa essa região ao seu modo, baseado em seu próprio “programa”.  A função é a forma que é aplicada a um meio simbólico generalizado.

O sistema político é um desses sistemas funcionais cujo meio simbólico é o Poder, sendo um sistema entre outros. Os sistemas sociais possuem um único elemento: a comunicação. Logo, o Poder é um meio de comunicação. Todo ambiente “reentra” (reentry[6]) no sistema, assim toda distinção sistema/ambiente é replicada para seu interior com um lado referente ao sistema (autorreferente) e outro referente ao ambiente (heterorreferente). A democracia diz respeito apenas ao sistema político. O sistema político não cobre toda a sociedade e sobretudo não está acima dela. Portanto, o sistema político não tem como totalizar a sociedade sob a esfera do Poder.

A repartição democrática do Poder indica não apenas que o sistema não totaliza a sociedade sob sua égide, mas também que o próprio sistema político não pode totalizar a si mesmo sem gerar uma cisão em seu interior. É esta a consequência de se assumir o paradoxo gerado pela reentrada do ambiente em seu interior. O eixo comunicativo do meio é quebrado em seu interior em um lado autorreferente, denominado por Luhmann de governo, e outro lado heterorreferente denominado de oposição.

 

3  IMPLICAÇÕES DA CONCEPÇÃO LUHMANNIANA DE DEMOCRACIA          

Como mencionei, Luhmann avança uma concepção de democracia e extrai as consequências dessa perspectiva. Ela não é normativa no sentido de não ser a única verdadeira. A TSS tem esta característica basilar: implica o observador e sua perspectiva e assim a teoria é considerada um modo de observação. A observação é uma redução da variedade do ambiente observado, mas ela deve ser robusta para ter sua própria complexidade. Esta complexidade é importante, pois é ela que permite “desdobrar o paradoxo”, um termo frequente na obra do sociólogo.

 

3.1  Os códigos binários

Os sistemas funcionais lidam com o paradoxo através de códigos binários. No caso do sistema político, a divisão ou repartição do Poder permite a codificação pela distinção governo/oposição. Ou melhor, a distinção permite a existência de um código binário, na qual apenas um lado de cada vez prevalece. Para Luhmann, é através da binarização do código e da indicação de um dos lados que se estabelece um sentido. O sentido é a principal variável social, ou mesmo universal[7]. O sentido é a resolução da distinção atualidade/potencialidade (Luhmann, 1995a). A indicação da atualidade deixa outras possibilidades em estado virtual ou latente. O código permite manejar o paradoxo pela sua temporalização: apenas um lado alternadamente é observado. É isso que Luhmann chama de “desdobrar o paradoxo”. O interessante não é que o paradoxo é desdobrado no tempo, mas que o seu desdobramento produz o tempo, como se fosse um pulso de oscilação, variando de um lado a outro. Assim, cada sistema funcional cria a sua própria referência temporal.

O código permite “deparadoxizar” o sistema, outro termo também frequente na TSS. O principal paradoxo da política é levar em conta a impotência dos poderosos e o poder dos sem-poder. No sistema político, o governo significa o exercício (operações) daqueles que têm poder no interior do sistema (autorreferência), mas limitado pela oposição que representa aqueles que estão de fora, em seu ambiente, i.e., aqueles sem-poder (heterorreferência). É esta a partição política proposta pelo sociólogo alemão no termo democracia. Com isso, há a superação da ideia do Poder como uma esfera que paira sobre a sociedade (distinção superior/inferior), horizontalizando o exercício do Poder. Esta horizontalização não significa, como mencionado, uma ideia participatória da política, mas apenas que os dissensos e as contestações políticas não podem ser solucionadas por decisões verticais hierárquicas, em outras esferas ou sistemas funcionais. Elas precisam ser resolvidas no próprio eixo de disputa do Poder.

 

3.2  PROBLEMAS E AMEAÇAS

Como mencionado, Luhmann começa seu artigo com uma nota de pessimismo, contrária à expectativa da democracia liberal. Ele destaca três pontos que efetivamente o preocupavam. O primeiro é a perda de espontaneidade: o uso do código leva à adoção de programas e rotinas acarretando um enrijecimento do sistema. Na TSS, a distinção código/programa é importante. O código tem uma característica universal para o sistema, enquanto o programa é responsável por sua particularização, sua aplicação em contextos específicos (Luhmann, 1995a). Todo sistema adota programas para lidar com suas condições. Um sistema traz consigo uma série de determinações, enquanto por sua vez o ambiente traz as condicionantes. A distinção determinação/condição é resolvida pelo programa. Os programas trazem em seu bojo rotinas de procedimentos que tornam mais simples suas operações. Mas as rotinas acabam por enrijecer os programas e o próprio desenvolvimento dos sistemas. Em outros termos, as funções do governo e da oposição são sistematizadas por uma série de procedimentos.  Daí  tornam-se frequentes as tentativas de “recaotização” que causam crises e instabilidades. Podemos enxergar como toda a história do século XXI, desde a “guerra ao terrorismo”, ou as revoltas sucessivas da segunda década, a partir da Primavera Árabe, até o estabelecimento mais recente dos movimentos autoritários de extrema-direita são exemplos de movimentações para gerar perturbações ou “irritações”[8] (caos) no sistema político.

O segundo ponto, segundo o sociólogo, é que há oscilação entre governo e oposição, com frequentes trocas de papéis. Por um lado, a codificação política leva a uma binarização dos programas, como progressista/conservador, com orçamentos expansivos/restritivos, ou seguindo preferências econômicas/ecológicas. Essas dicotomias podem levar ao longo do tempo a programas por demais abrangentes que “sirvam” aos dois lados, reduzindo (afrouxando) a marcação das diferenças entre elas. Há, neste caso, uma diluição da cisão do Poder, ficando os dois lados cada vez mais parecidos entre si. Este fenômeno também foi observado no Brasil, nas duas primeiras décadas após a redemocratização, ou em outros países em que a distinção entre partidos de direita e de esquerda foi bastante abrandada. 

O terceiro ponto apontado por Luhmann decorre desse segundo como sua compensação: a moralização da política procura substituir o acirramento político das controvérsias. O sociólogo observa que isso decorre também da escassez de dinheiro, que funciona como meio de barganha[9]. A confrontação moral substitui o debate franco entre as oposições políticas. No entanto, para o sociólogo: “Meu ponto é antes que a ação política na democracia precisa tomar lugar num nível de alta amoralidade”[10]. Em várias oportunidades Niklas Luhmann contesta a validade de distinções morais para formar sistema. A moral é o recurso mais baixo que um sistema deve buscar para obter suas distinções (Luhmann, 1995a). A razão disso é simples: a moral não conduz a programas, pois é submetida a um alto grau de aleatoriedade. É fácil observar que este terceiro ponto tem sido bastante frequente, sobretudo com a emergência dos movimentos de extrema-direita, que fazem largo uso de questões morais para acirrar o debate público.

Esses três pontos reforçam o pessimismo de Luhmann em relação ao futuro da democracia. Ele considera esta não um “ideal normativo”, mas uma verdadeira conquista (achievement) evolucionária, improvável, entretanto efetiva. Porém, a pergunta central é: “por quanto tempo”? Dois aspectos o preocupam mais: o primeiro se relaciona ao desafio do código democrático governo/oposição lidar com questões contemporâneas (no final do século XX) tais como as tecnologias genéticas, gastos crescentes do Estado de Bem-estar, corrida armamentista nuclear, problemas ambientais, etc. O segundo aspecto decorre do terceiro ponto: se a política conseguir se abster de funcionar moralmente, como imaginar o diálogo entre governo e oposição sem um fundo educacional e cultural comum? Ou, invertendo este aspecto (em minha observação): para que a política funcione sem moralizar-se, é preciso supor a difusão de princípios educacionais e culturais comuns.

 

3.3  INFERÊNCIAS E CRÍTICAS

Niklas Luhmann termina seu artigo sem responder às questões anteriores, deixando-as em aberto. São questões que colocam em xeque a viabilidade de sistemas políticos baseados no código governo/oposição. Isso pode levar por um lado a tendências autoritárias, que confundam autoridade (para realizar decisões) com autoritarismo (imposição de decisões). Voltarei a este assunto no final deste artigo. Antes, procurarei tirar algumas inferências da formulação luhmanniana, como também algumas críticas.

Para o sociólogo, a divisão da “cimeira do Poder” é o que permite a sua codificação binária.  O uso da lógica binária é objeto de críticas à teoria luhmanniana. Se por um lado, ela permite compatibilizar a teoria social com a “era digital” (Roth, 2019), por outro ela limita o escopo de alcance lógico dessa teoria, sobretudo quando ela se dispõe a assimilar os paradoxos de sentido que surgem da coexistência dos dois lados da distinção. Como a TSS de Luhmann já se utiliza da lógica não-clássica desenvolvida pelo engenheiro George Spencer-Brown, é possível então estender a lógica binária a uma lógica multivalente utilizando-se do tetralema[11], como sugerido pelo pesquisador Steffen Roth (2017). Devido às limitações de extensão deste artigo, não prosseguirei nessa linha de pesquisa aqui.

Mais importante, é observar que o código governo/oposição não é o único possível para operar e descrever o sistema político. Outros códigos binários disjuntivos são igualmente possíveis: esquerda/direita (liberal), progressista/conservador (socialista) desenvolvimentista/fiscalista (keynesiano), povo/oligarquia (populista de esquerda), amigo/inimigo (populista autoritário). A questão não é indicar qual o melhor código para descrever o sistema político, mas admitir que cada um desses códigos expressa diferentes perspectivas de observação do sistema. Não se trata, portanto, de uma questão “substitutiva”, em que um código substitui o outro, mas da coexistência de diversos códigos dentro do mesmo sistema[12].

Esses códigos são operativos, i.e., eles se referem a “observações de primeira ordem". A rigor, eles não são nem mesmo códigos, no sentido semiótico da distinção significante/significado, ou sintaxe/semântica, pois ambos os lados da distinção são significados, conceitos. Podemos dizer que eles são “fórmulas mínimas de referência”. Cada fórmula dessas implica em diferentes programas políticos, que representam sua “observação de segunda ordem”. As diversas fórmulas são derivadas e permitem combinar comunicações reais e produzir sentido a partir de seus programas. Cada programa apresenta uma “representação canônica” do sistema, segundo seus próprios critérios. Eles competem entre si, numa espécie de “agonismo político” das representações. Esta disputa relativiza e limita a tendência à moralização da política prevista pelo sociólogo.

Caso recente é a disseminação das fórmulas populistas, de esquerda e de direita. Por exemplo, a fórmula povo/oligarquia parece ter prevalecido em países bolivarianistas, como Bolívia e Venezuela. Se a função da política, segundo Niklas Luhmann, é a produção de decisões coletivas vinculantes[13], povo indica o vínculo que se baseia em maior simetria das relações (igualdade), enquanto oligarquia indica a prevalência de vínculos por assimetria[14]. A fórmula permite assim basear programas de diferentes matizes, antagônicos entre si.

Já a fórmula amigo/inimigo, do populismo autoritário, tem sido a de maior disseminação global, através dos movimentos e partidos de extrema-direita que, sobretudo a partir da segunda década do século XXI, cresceram em muitos países. Esta fórmula foi sabidamente proposta por Carl Schmitt como fundamental para descrever a política (2021)[15]. Tal fórmula, no entanto, possui uma grande dificuldade de gerar um programa político coerente, devido à arbitrariedade da distinção. Como definir num programa quem é amigo e quem é inimigo? O resultado é a dependência desta fórmula da decisão de um líder carismático, conforme o próprio Schmitt previa. Na conclusão deste artigo farei uma reflexão sobre essa deficiência intrínseca do populismo autoritário.

Finalmente, em relação à Teoria do Agir Comunicativo, de Habermas, é possível fazer uma aproximação com a TSS de Niklas Luhmann. O conceito de “esfera pública” pode ser reapropriado por esta teoria como a heterorreferência do sistema político. A autorreferência, neste caso, seria o consentimento às ações do Poder restringidas pelas condições dadas (governabilidade). Por sua vez, a heterorreferência representaria o lado ambiental, i.e., a reentrada no sistema do lado ausente de Poder. Como o sistema político é delimitado tanto por outros sistemas funcionais, bem como por outros tipos de organizações sociais e também pelas consciências individuais (sistemas psíquicos), então as comunicações das organizações associativas da sociedade civil, dos movimentos sociais e da opinião pública (representando a pessoalidade da consciência dos indivíduos), como participantes da esfera pública, teriam papel importante como as vozes de contestação às ações de governo (o poder dos sem-Poder); em outros termos, a constituição da esfera pública delimitaria a distinção consentimento (adesão ao Poder)/contestação (resistência ao Poder)[16].

 

4  CONCLUSÃO

A concepção de democracia de Niklas Luhmann, proposta em 1990, se mostrou eficaz para descrever e compreender muitos dos problemas e dos dilemas do sistema político desde então. O desenvolvimento que propus aqui, com as fórmulas alternativas para sistema e seus programas respectivos, permite entender alguns fenômenos recentes, notadamente o crescimento da extrema-direita e mesmo o ressurgimento do fascismo. É preciso, no entanto, advertir que, embora tantas vezes considerado como um autor conservador, não há cumplicidade entre a TSS e esses novos movimentos de direita. Não há em sua concepção democrática espaço para vias autoritárias que pretendam uma “integralização” do Poder sob uma única instância. Democracia significa aceitar a partição do Poder. Ao mesmo tempo, a teoria luhmanniana inclui uma visão do conflito e do dissenso como inerentes à política[17]. O consenso não pode ser alcançado via uma racionalidade argumentativa como em Habermas, nem sequer esta é necessária à comunicação do Poder. Por outro lado, o dissenso como base da política não supõe a exclusão do inimigo. A distinção governo/oposição não pode ser substituída com sucesso pela distinção amigo/inimigo, como na teoria de Carl Schmitt, pois governo e oposição são lados cocriados pela própria distinção, de modo que a exclusão do outro (da oposição) não pode ser considerada. Isto torna impossível a cooptação da teoria de Luhmann pelos novos fascismos, ou autoritarismos populistas, que trabalham com a distinção schmittiana.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

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RIBEIRO, Pedro Henrique Gonçalves de Oliveira. Entre eclusas e espelhos: a esfera pública vista a partir de uma leitura crítica de Niklas Luhmann e de debates contemporâneos. Dissertação de Mestrado, USP, São Paulo, 2012. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-25062013-091439/pt-br.php.

 

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ROTH, Steffen. Digital transformation of social theory. A research update. Technological Forecasting & Social Change 146, p. 88-93,  2019.

 

SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Lisboa, Edições 70, Almedina, 2021.

 



[1] Guilherme Preger é engenheiro eletricista, com ênfase em Telecomunicações, Mestrado em Eletromagnetismo Aplicado, Doutorado em Teoria da Literatura na UERJ (2020). É autor de "Fábulas da Ciência: discurso científico e fabulação especulativa”, editora Gramma, 2021.

[2] Artigo (LUHMANN, 1990)  originalmente publicado em inglês, embora escrito em alemão. Este detalhe é importante para a discussão do conceito de “splitting of the summit” que farei mais adiante.

[3] Um viés equivocado de análise, pois Luhmann tinha Marx como seu paradigma de pensador, conforme algumas de suas entrevistas. Para a compatibilidade entre Marxismo e Teoria dos Sistemas conferir PREGER, 2022.

[4] The future of democracy appears differently according to the concept of democracy we adopt, and according to these different futures we can already observe problems in the present which we are convinced others do not see or do not take seriously enough. Todas as traduções deste artigo são de minha autoria.

[5] If democracy means reason and freedom, emancipation from socially conditioned tutelage, hunger and need, political, racist, sexist and religious oppression, peace and secular happiness of every kind-then indeed things look bad. And indeed so bad that there is a high probability that everything we undertake will only make conditions worse. I leave it to others to talk about these problems.

[6] Reentrada é uma noção que é muito aplicada na obra de Niklas Luhmann que a retirou da obra Laws of Form do engenheiro George Spencer-Brown. Trata-se de uma generalização do conceito de feedback na cibernética. A forma é a marcação de uma observação e possui dois lados, sendo o outro lado o não marcado. Toda observação marca apenas um lado de uma distinção e deixa o outro desmarcado. Este lado é a condição da marcação, já que toda observação é auto delimitada por uma região de sombra. Assim, há necessariamente a reentrada do lado não marcado no lado marcado. Isso se dá pela forma de um paradoxo. O paradoxo é inerente à operação de observação (Luhmann, 1995b). .

[7] Para Niklas Luhmann, o sentido e não a verdade é universal pois inclui tanto um lado da distinção (a forma do sentido) como o outro lado, o não-sentido. Mesmo o não-sentido precisa fazer sentido. Assim, por conter em si os dois lados, o sentido é a variável universal por excelência.

[8]Irritação” é um termo típico da obra luhmanniana e se refere à perturbação oriunda do ambiente que sem determinar sua estrutura o obriga a responder.

[9] Sobre a questão da barganha no debate político versus a argumentação racional BACHUR, 2020. 

[10] My point is rather that political action in a democracy must take place on the level of a higher amorality.

[11] O tetralema é a extensão do dilema para quatro valores. É desenvolvido a partir da lógica indiana do Catuskoti, proposta pelo lógico budista Nagarjuna, que é composta de 4 valores: ser, não ser, ser e não ser, nem ser e nem não ser. Ou, em lógica de programação: XOR, XOR, AND, NOR.

[12] A partir do código genérico governo/oposição, os demais códigos representam “vertentes” do sistema político, que o derivam. Podemos combinar os códigos e assim, por exemplo, falar de um governo progressista e outro governo conservador, e de oposições progressista e conservadora. Essa combinação de códigos aumenta a variedade descritiva de observação do sistema. Em vez de apenas uma distinção governo/oposição, temos agora duas: governo progressista/oposição conservadora ou governo conservador/oposição progressista. Podemos lidar com essas distinções através do conceito de “quadrado semiótico”, proposto pelo linguista Algirdas Julius Greimas. Conferir https://pt.wikipedia.org/wiki/Quadrado_semi%C3%B3tico.

[13] The concept I am trying to indicate here states that a determination of the function of politics-for instance the production of collectively binding decisions….

[14] Neste caso, sejam A e B dois elementos sociais quaisquer (comunicações). Simetria indica que há indiferença em relação às orientações AB e BA, enquanto assimetria significa que há privilégio em relação à ordem desses fatores. 

[15] Não é o lugar aqui de fazer uma crítica da teoria Schmittiana, bastante influente na ciência política. Porém, a nosso ver, a ideia de que, seguindo Aristóteles, em A Política, a amizade (philia) é a substância da política, como Schmitt e Agamben (2013) consideram, é uma tradução problemática do termo grego. Philia pode ser traduzido politicamente muito mais apropriadamente como “confiança”, i.e., como a capacidade de traçar “fios”, ou “laços” como “vínculos”. Neste caso, a obra de Aristóteles se torna compatível com a obra de Platão, do diálogo O Político, onde a arte do bom político é assemelhada à do tecelão.

[16] Sobre uma comparação entre a função da esfera pública em Habermas e Luhmann: RIBEIRO,  2012.

[17] Ver Chapter 9: Contradiction and Conflict em Luhmann, 1995a.