A racionalidade comunicativa como pressuposto na formação continuada de gestores de educação especial
Allana Ladislau Prederigo[1]
Universidade Federal do Espírito Santo
Letícia Soares Fernandes[2]
Universidade Federal do Espírito Santo
Mariangela Lima de Almeida[3]
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo
O trabalho tem como objetivo geral evidenciar a formação continuada de profissionais da educação a partir das contribuições dos pressupostos habermasianos no tocante à racionalidade comunicativa. Advoga-se acerca da necessidade de pensar novas formas de realizar ações formativas com os profissionais da educação, que os tomem como autores da sua própria prática e sujeitos ativos de conhecimento, por meio da pesquisa-ação colaborativo-crítica e da ação comunicativa de Habermas. Constitui-se como um recorte de um trabalho de conclusão de curso, que teve como foco analisar a trajetória de um grupo de estudo-reflexão com gestores de educação especial no estado do Espírito Santo. Toma Jürgen Habermas como referencial teórico-epistemológico, a partir da Teoria da Ação Comunicativa e dos conceitos de racionalidade comunicativa e instrumental. Como metodologia de pesquisa tem a análise documental dos documentos relativos ao grupo de estudo-reflexão, tais como relatórios e transcrições. Os dados evidenciam a mudança de postura, concepções e práticas dos profissionais envolvidos ao longo dos anos. Os gestores puderam construir ações formativas tanto para os profissionais da educação que atuam nas suas redes de ensino, quanto para si mesmos, de modo coletivo e colaborativo.
Palavras-chave: Formação continuada; Racionalidade Comunicativa; Pesquisa-ação; Educação.
THE COMMUNICATIVE RATIONALITY AS AN ASSUMPTION IN THE CONTINUING EDUCATION OF SPECIAL EDUCATION MANAGERS
Abstract:
This search had as main objective evidence the continuing education of professionals of education from contributions of presupposed habermasian about the communicative rationality. Defend about think necessity of new ways to make formative actions with professionals of education, to take writer them your own practice and active people of know, by means of critical collaborative action research and communicative action of Habermas.Constitutes final paper part, has focus to analyze the trajectory of a grup of study-reflection with education special managers of state of Espírito Santo. Take Jürgen Habermas as reference theoretical-epistemological, from communicative action theory and concept of communicative rationality and instrumental. As research methodology used document analysis of documents relatives a study-reflection group, like reports and transcript. The dices evidence the posture change, conceptions and practices professionals involved over the years. The managers can make formative actions for the professionals education who work in the schools, as well as for yourself, in collective and collaborative way.
Keywords: Continuing Education; Communicative Rationality; Action-Research; Education.
1 INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, vem sendo apontada a emergência da discussão acerca da formação continuada de profissionais da educação para melhoria da prática dentro dos contextos educacionais (PIMENTA, 2002). Isso se deve, pelo fato de a formação de professores no Brasil, historicamente ser pautada em uma visão do professor como um técnico, sendo seu espaço formativo esvaziado de teorização e criticidade, uma vez que a intencionalidade e o projeto de sociedade vigorado por muito tempo, era a de formação em massa da população a fim de gerar trabalhadores que pudessem realizar tarefas fabris, ideários que reverberam até hoje nas grades curriculares do ensino básico e superior (FERREIRA, BITTAR, 2006).
Em vista disso, o Grupo de Pesquisa, Formação, Pesquisa-ação em Educação Especial (Grufopees - CNPq/Ufes), tem se dedicado a investigar e promover processos colaborativos com redes de ensino capixabas, tomando justamente a temática da formação continuada de profissionais da educação. Neste sentido, o referido grupo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) realiza um trabalho colaborativo com Grupo de estudo-reflexão: Gestão de Educação Especial do Estado do Espírito Santo (Gergees-ES), que já dura 10 anos. Visto o tempo de investigação com estes sujeitos, propõe-se a análise desse movimento, tendo como foco principal como estes concebem e tratam a formação.
Ressaltamos que a base metodológica que sustenta o Grufopees é a da Pesquisa-ação Colaborativo-Crítica. Esta vem se mostrado um caminho promissor para realização de redes colaborativas entre a universidade e as redes de ensino, onde se considera que todos os sujeitos envolvidos possuem conhecimentos importantes, que auxiliam na ressignificação dos seus contextos. Esta perspectiva é baseada principalmente em Carr e Kemmis (1988), e possui o princípio da participação de todos os envolvidos, o da reflexão sobre a prática e do contexto vivido e a transformação do locus, que é acarretado pelos dois primeiros pontos.
Como base teórica, corroborando com a metodológica, temos o filósofo Jürgen Habermas, em principal, a sua teoria do agir comunicativo e seu conceito de discurso, que baseiam as ações do grupo na busca da construção de espaços democráticos pela via dos grupos de estudo reflexão, onde buscamos promover as regras do discurso, principalmente no que se trata a inclusão de todos na busca da concretização do objetivo grupal (SILVA, 2019; ALMEIDA, 2010; HABERMAS, 2003).
Deste modo, para análise deste trabalho, que se constitui recorte de uma pesquisa maior, optamos pela metodologia de análise documental, que contou com a consulta de 219 documentos, sendo estes transcrições e relatórios de encontros e planejamento do grupo de estudo-reflexão, vídeos produzidos com os participantes, questionários e diários de campo.
Para este momento, nos apoiamos principalmente nas ideias de racionalidade instrumental e racionalidade comunicativa em Habermas. Compreende-se a racionalidade como “uma disposição de sujeitos capazes de falar e agir. Ela se exterioriza nos modos de comportamento para os quais, a cada caso, subsistem boas razões. Isso significa que exteriorizações racionais são acessíveis a um julgamento objetivo” (HABERMAS, 2012, p.56).
Com base na obra Conhecimento e Interesse (HABERMAS, 2011), elucidamos que a racionalidade instrumental é um tipo de racionalidade que vai se concentrar na obtenção e sucesso de uma ideia ou um objetivo predeterminado. Tem-se então, uma lógica de pensar-se os meios apenas para obtenção de um fim. Nesse sentido, prevalece uma ação estratégica, privilegiando a eficiência, mesmo que esta acarrete a submissão dos sujeitos ou da natureza durante o processo.
A racionalidade comunicativa está em contraponto à racionalidade instrumental na medida que se posiciona a partir da busca pela igualdade, na democracia, na compreensão mútua e nos consensos. Nesse sentido os sujeitos estabelecem uma relação de igualdade e cooperação para se chegar à resolução de objetivos em comum. Acredita-se que este tipo de racionalidade possa promover a emancipação humana, devido ao seu princípio de liberdade e igualdade que se dá por via do discurso e da argumentação (HABERMAS, 2012).
Compreendemos que a racionalidade instrumental encontra-se presente nas diferentes nuances da vida, seja na política, na economia, bem como em outros campos de saberes e ação. Na formação continuada de profissionais da educação, que é nosso foco de estudo, visualizamos a prevalência desta racionalidade, percebe-se que em vistas de um alcance maior de profissionais, são implementadas formações continuadas pensadas por pessoas de fora do contexto escolar, muitas vezes são pacotes prontos, preparados para serem disseminados em contextos distintos, sem considerar a real necessidade dos educadores ou sua opnião e saberes (ALMEIDA, BENTO, SILVA, 2018).
Esse movimento acaba por acarretar uma dicotomia entre teoria e prática dentro do contexto educacional, prejudicial à identidade profissional docente, à criatividade do educador e ao trabalho colaborativo. Tudo isso sem dúvida reflete nas práticas pedagógicas e no aprendizado dos alunos (NÓVOA, 2007). Por isso, acreditamos que experiências como esta desenvolvida pelo Grufopees, que terá seu movimento apresentado a seguir, são importantes para evidenciar uma outra lógica de se fazer formação, no intuito de que estas possam servir de relato para desenvolvimento de novas possibilidades que resultem na melhoria deste processo.
2 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL
O trabalho com o grupo, se inicia no ano de 2013, com um grupo de profissionais que já havia participado de um projeto de extensão na UFES, deste modo, alguns pesquisadores envolvidos no movimento anterior buscaram compreender possíveis desdobramentos do projeto nos contextos capixabas onde os participantes atuavam e também auxiliar os sujeitos em suas novas demandas. Nesse sentido, observa-se que nos primeiros anos de trabalho do grupo é notável que a demanda trazida pelos gestores e técnicos era a de realizar formações de modo acelerado para atender as necessidades de suas regiões. Dada essa solicitação, muitas de suas falas e sugestões de trabalho indicavam uma racionalidade instrumental, que demonstra um modelo de conhecimento positivista e técnico, tratando o conhecimento como estático e hierárquico.
Nesse momento, compreendemos que os participantes tinham a conceituação de que teoria e práxis são esferas separadas nos processo de ação dos profissionais, assim, as formações ofertadas não deveriam dar espaço para que os profissionais se colocassem, mas sim apenas ouvissem e recebem as informações passadas e necessárias a sua atuação, se configurando então, em um agir estratégico.
Nos anos de 2013 e 2014 a participação dos gestores e técnicos das secretarias municipais e superintendências regionais de educação demonstraram indícios que estes estavam nesse processo formativo entendendo serem apenas participantes de uma formação ofertada pela Universidade, ou seja, sem serem ativos no processo. Esta postura mediante ao grupo, nos revela que esses participantes estavam acostumados com formações engessadas, muitas vezes em formatos de palestras, onde não se valoriza a participação dos profissionais.
A fala a seguir de uma gestora do município de Castelo exemplifica esse contexto, ela relata que ao chegar para a formação já esperava apostilados e algo determinado. Mesmo com esta primeira idealização, um fato muito interessante, que se apresenta em seu discurso é como ela demonstra que mesmo sendo surpreendida pela nova perspectiva, considera como algo bom e necessário.
Tudo aquilo que tínhamos como verdade fechada de formação, deve ressaltar que no início do nosso trabalho pensávamos que chegaríamos aqui e teríamos algumas apostilas com uma série de conteúdos já formatados para que fossemos estudando, ou seja, com caminho traçado. Precisamos neste percurso desconstruir alguma coisa, que tínhamos como verdade enquanto processo de formação continuada [...] (GESTORA DE CASTELO, SEMINÁRIO DE GESTÃO, 2014).
Nóvoa (1992) nos permite refletir sobre a necessidade de se promover a ideia de professores críticos, pesquisadores e produtores de conhecimento, o que sem dúvidas, é válido também para os gestores de Educação Especial. Assim, deve-se ter o investimento nas formações desses indivíduos em estimular esses pontos, trazendo uma autonomia nesse processo. Ainda é preciso dizer que por se tratar de um profissional que tem por função planejar a formação continuada das redes de ensino, muitos não possuíam uma formação específica para a sua função. Essa relação de estarem presentes como apenas participantes ouvintes da formação, pode ser vista na seguinte fala:
Realmente vocês têm que fazer um trabalho com os gestores, tá? Porque por exemplo, infelizmente eu não estou vendo o meu município representado aqui na reunião hoje [se referindo a Jerônimo Monteiro] (GESTORA DA SRE CACHOEIRO, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 2013).
Destacamos essa fala pelo entendimento de que a sua formação e de seus pares está sob responsabilidade de outra pessoa, nesse caso, dos docentes da universidade, trazendo um conceito de hierarquização do conhecimento. Por outro lado, a fala pode ser interpretada no sentido de demonstrar a importância de se fazer um trabalho com os gestores, para que, de forma colaborativa, exista um processo formativo que auxilie no seu trabalho. De qualquer modo, nos dois ângulos observados, podemos inferir a negligência diante dos processos de formação continuada dos gestores de Educação Especial.
Essa colocação reforça mais uma vez o argumento posto por autores da área que defendem a formação continuada dos gestores como possibilidade para melhorias sociais. Nessa linha, Nóvoa (1992, p. 28) diz que “[...] é preciso trabalhar no sentido da diversificação dos modos e das práticas de formação, instituindo novas relações dos professores com o saber pedagógico e científico”, principalmente ao considerarmos que a formação do educador se alimenta “[...] de modelos educativos, mas asfixia quando se torna demasiado (educado)” (p.28).
Dando continuidade ao raciocínio, os sujeitos envolvidos almejavam, em um primeiro momento de constituição do grupo, a construção de propostas em larga escala, envolvendo um
número elevado de profissionais para suprir essa demanda cobrada pelo município e, nesse sentido, não olhavam para sua própria formação continuada como potenciadora de melhoria na elaboração de propostas.
Entendemos, entretanto, que a racionalidade instrumental, presente nas formações continuadas e nos discursos dos profissionais do grupo, se trata de um viés advindo da própria formação inicial e das políticas governamentais que regem as estruturas educacionais, sociais
e econômicas. Muitos estudos nos ajudam a entender essa questão, na medida em que evidenciam como o professor, no modelo capital neoliberal é visto como capital humano e nessa perspectiva o homem vale pela sua capacidade de produção de trabalho, gerando assim maiores resultados que podem ser aproveitados pelo próprio homem ou por quem o emprega (SCHULTZ, 1973).
As autoras Miguel e Vieira (2008) realizam um estudo sobre as influências, investimentos e concepções acerca dos projetos e programas que são financiados e apoiados pelo Banco Mundial, sob a lógica do neoliberalismo. Verificam que a nova política social, que tem ações voltadas para grupos específicos da população em geral, como os grupos sociais de baixa renda, direcionou o sistema educacional para as demandas do mercado de trabalho e fez com que os professores começassem a realizar sua formação continuada no próprio serviço ou em cursos à distância. De acordo com elas, na lógica neoliberal, a formação em serviço se constitui em uma “[...] forma mais barata e eficiente de formar profissionais para a educação”
(MIGUEL; VIEIRA, 2008, p. 137).
Portanto, as autoras supracitadas nos ajudam a entender como o profissional da educação, principalmente nas políticas educacionais financiadas pelo Banco Mundial ou por outras instituições privadas, é tomado como um capital humano, que deve ser formado sob uma ótica técnica e instrumental, para atender as demandas mercadológicas. Nesse sentido, as formações continuadas em serviço, esvaziadas de teorias, se modelam na tentativa de serem mais rápidas e mais baratas, de formarem profissionais capacitados para seguirem modelos previamente definidos em sua atuação (SCHULTZ, 1973; MIGUEL, VIEIRA, 2008).
Sobre essa questão da necessidade de se fazer formações para atender as lógicas do modelo capitalista, que como vimos está tão presente nas políticas governamentais, as falas a seguir da gestora do município de Santa Maria de Jetibá e da gestora da SRE de Guaçuí nos relatam sobre a angústia e necessidade de atender às demandas do sistema, corroborando o que vimos com os autores anteriormente:
[...] que a gente não conseguiu avançar ainda foi na questão da formação. Primeiro porque Santa Maria está sempre cheio de formação disso e daquilo, mas nunca abre espaço para a gente estar colocando a temática da Educação Especial, sempre tem uma desculpa. [...] aí tem agora um programa do Governo Federal que a gente tem que está fazendo com emergência, com urgência né, porque senão a gente vai perder a verba, vai acontecer isso e aquilo [...] (GESTORA DE SANTA MARIA DE JETIBÁ, TRANSCRIÇÃO DO ENCONTRO NA SRE AFONSO CLÁUDIO, 2013).
Em nosso contexto de atuação temos a exigência de articular momentos de formação continuada em serviço de profissionais da educação em nosso sistema de ensino (GESTORA DA SRE DE GUAÇUÍ, QUESTIONÁRIO, 2013).
Vemos novamente as formações idealizadas a partir da racionalidade instrumental, gerando processos formativos que servem como processos de dominação por serem utilizados sob interesses de outrem, mais uma vez afirmamos que quando concebemos a formação continuada como um processo apenas para suprir demandas e para qualificar o maior número de profissionais possíveis em um menor tempo e com custo baixo, estamos falando de uma perspectiva técnica ou instrumental de formação. Essa perspectiva não possibilita ao profissional uma reflexão sobre a práxis, não dialoga com suas realidades e não possibilita que esse educador seja transformador de suas práticas e consequentemente dos espaços em que está inserido.
No ano de 2013, ao avaliar o processo formativo vivido, as gestoras das SREs de Cachoeiro de Itapemirim e Afonso Cláudio nos trazem duas questões importantes, sendo estas sobre a reflexão das formações ofertadas com base na racionalidade instrumental em seus municípios e a participação no grupo da UFES:
São oferecidas algumas formações em meu município, porém muitas com palestras técnicas já pré-estabelecidas. Já iniciamos modificações em nosso contexto de atuação derivadas dos estudos e análises dos encontros na UFES (GESTORA DA SRE DE CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM, QUESTIONÁRIO, 2013).
Todos participantes terem que apresentar algo (sinto falta da fala de todos os cursistas – tenho a impressão que estão ali somente para preencherem a vaga) (GESTORA DA SRE DE AFONSO CLÁUDIO, QUESTIONÁRIO, 2013).
Tomando a fala da gestora da SRE de Afonso Cláudio, levanta-se a questão da produção de certificados. Considerando a pesquisa realizada por Santos (2011), pode-se compreender o vínculo da formação continuada com o processo de atualização do professor frente às necessidades da sociedade contemporânea, o que contribui para crescimento do número de ações e programas de formação continuada que cumprem “[...] a tarefa de simplesmente certificar os professores e/ou preencher lacunas de uma formação inicial considerada insuficiente” (SANTOS, 2011, p. 10).
Todos os pontos apresentados até o momento emergiram da discussão e estudo no grupo, a partir das demandas trazidas pelos participantes, que cada vez mais se sentiam parte de uma comunidade e à vontade para levantar suas problemáticas profissionais, que de certo modo eram compartilhadas e aceitas pelos outros sujeitos. Assim, pensando em seus contextos e em outros com realidades próximas, foi-se construindo momentos reflexivos que passaram a impactar na práxis dos envolvidos.
3 A RACIONALIDADE COMUNICATIVA
A partir do ano de 2015, pudemos compreender uma mudança significativa da racionalidade dos gestores ao falarem e fazerem formações em seus locais de atuação, mudanças que já apresentavam indícios nos anos anteriores, mas que aparecem com muita força nos anos posteriores (2015-2021), podemos averiguar essa afirmação na seguinte fala:
Eu sou do setor de formação em articulação com o setor de Educação Especial. Mas nós estamos vivendo essa transição paradigmática e há uma disputa de narrativa do conceito de formação continuada, porque naquele tempo histórico a formação era um movimento que como se ensinasse o professor coisas de educação, vamos canalizar toda a nossa energia né, alí, mas ao longo deste tempo nós fomos entendendo que foi necessário haver uma política de formação continuada e aí é muito diferente quanto eu articulo à condições legais, porque hoje nós temos a legislação, nós temos leis, o plano nacional, o plano municipal né?! Os municípios têm o PPA, toda uma articulação pensando nos profissionais e a formação está alí, é um dos pontos como a remuneração de carreira e enfim, então vivemos uma disputa de narrativas (SUBGERENTE DA SEDU, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 21/03/2019).
Essa disputa narrativa sobre a formação continuada, a qual a subgerente da SEDU se refere em sua fala, vai exatamente ao encontro quando trazemos aqui diferentes perspectivas de concepções nos contextos escolares. Entendemos que a educação é um pilar muito importante na sociedade, pois a partir dela podem ser revistos os âmbitos políticos, econômicos e sociais, por isso o controle da educação convém a muitos e atende a interesses externos.
Assim, retomando o desenvolvimento do discurso da representante da Sedu, muitas questões estavam e ainda estão em disputa no contexto educacional e o conceito de formação a que ela se refere, dependendo de como é pensada e posta em ação, pode mudar os panoramas e impactar os alunos dentro e fora de sala de aula.
A continuidade de práticas e formações continuadas desconexas com a realidade e que não se conectam com os anseios e vivências dos profissionais, se desdobra no desinteresse e ineficácia das mesmas, tornando o investimento em vão. À medida que os responsáveis por ofertar essas atividades vão tomando consciência disto, podem buscar ressignificar tais propostas, tendo como ponto de partida e chegada o próprio profissional, pois é ele que está dentro da escola, fazendo a mediação direta com os alunos.
No que tange a questão das metodologias das formações continuadas ofertadas pelos municípios participantes do Gergees, nos encontros os gestores relatavam como eram pensadas por eles e pelos profissionais de suas redes e como essas metodologias foram mudando com o tempo. Na fala a seguir, a gestora do município de Vitória faz uma explanação da formação que a equipe da Secretaria estava pensando para aquele ano de 2019:
O que a gente também avaliou do ano passado para esse ano é que as formações elas tinham muito caráter de palestra era 100, 120 pessoas dentro de um auditório e aquilo se perdia, a questão do diálogo, da escuta sensível, essa troca não acontecia e ficava muito no formato de palestra e aí então também em uma autoavaliação nós decidimos esse ano dos 5 encontros 2 serem em formato de palestras com temas mais amplos e convidados de fora [...] E dos outros dois encontros acontecerem em grupos menores, que a gente está chamando de subgrupos [...] (GESTORA DE VITÓRIA, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 14/05/2019).
Nesse processo, inferimos que o grupo entende que a formação continuada em formato de palestra acaba por não proporcionar diálogos, escuta sensível, por não haver uma troca entre os participantes e por haver um número elevado de pessoas participando. Entendemos assim, que formações em formatos de palestras têm caráter instrumental e técnico, que inviabilizam a reflexão e a crítica sobre a própria prática, mas que é um modo de aprendizado, que deve ser realizado, mas não pode ser o único meio para realizar formações.
Esse olhar da gestora é significativo uma vez que nele, ela demonstra que acredita nas formações com grupos menores, assim como também revela um olhar crítico acerca da própria prática. Tem-se aí, a importância da experimentação de outras/novas formas de formação continuada, onde a partir da vivência os membros são encorajados e se sentem seguros em pensar em diferentes perspectivas, que rompem com modelos instituídos em nossa
sociedade, em busca de uma relação mais democrática com seus pares que trabalham em outros setores escolares.
Outra fala para nos corroborar nesse sentido, é a da técnica do município de Santa Maria de Jetibá, que fala sobre a cobrança - e também transformação - dos próprios profissionais de suas redes em relação às formações ofertadas pelo município.
Quando a gente começou a formação eles nos cobraram o tempo todo “mas vocês não vão dar nada? Vocês não vão dar apostilas para a gente?” Então até hoje ainda tem disso, mas melhorou bastante, inclusive no final desta formação quando a gente levou alguns estudos de caso para eles estarem lendo, estudando e sentando junto e pensando estratégias e possibilidades para aquele aluno dentro da sala de aula (TÉCNICA DE SANTA MARIA DE JETIBÁ, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 27/03/2019).
Nesse sentido, acreditamos que seja papel do formador proporcionar espaços-tempo diferentes para seus profissionais, apresentando novas possibilidades de ações formativas, entendendo que, assim como os estudantes não aprendem de maneira homogênea, os professores e demais profissionais também constroem conhecimentos de diferentes formas.
Precisa-se, portanto, de proporcionar diversas formas para que o educador possa ser formado de maneira integral. Imbernón (2009, p. 37) nos alerta que devemos nos “opor frontalmente a toda manifestação explícita ou oculta da racionalidade técnica que, com outros nomes e procedimentos, nos leva de volta ao passado”. Para Habermas (2012), esse modelo de racionalidade subsidia um agir estratégico orientado para alcançar um objetivo determinado, normalmente baseado em interesses individuais. Como apontado pela técnica, precisamos que nossos profissionais estejam pensando em ações e possibilidades em conjunto.
Outra problematização é feita, agora pela gestora de Santa Maria de Jetibá, primeiro dizendo o termo “capacitação” para conceituar “formação continuada”, que não é usado no município e segundo levantando a questão de trazer pessoas que não conhecem a realidade da rede para dialogar com os profissionais:
Então o que ele está falando aqui, muitas vezes nós nos preocupamos com a formação, com a capacitação que é um termo que a gente aqui nem usa... é aquilo que a gente estava falando, eu vou lá dar a formação, uma palestra e eu trouxe aquilo que eu sei. É aquilo que a [gestora de Marilândia] traz,quando você dá a oportunidade do professor falar, expor a sua prática. Dar esse empoderamento a eles muitas vezes vai surtir um efeito muito maior, muito mais denso e é o que ele traz aqui, do que você trazer alguém que vem de fora, que não está alí implicado naquele cotidiano, naquela prática do dia a dia, então vai ter um embate maior mesmo que esse fazer dos pares, que é aquela troca entre os pares (GESTORA DE SANTA MARIA DE JETIBÁ, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 23/10/2019).
De acordo com Silva e Castro (2008), a formação continuada sob o formato de capacitação, permite ao professor tornar-se capaz, habilitar-se, convencer-se, formato este que dialoga apenas com as questões práticas do cotidiano e apresenta um déficit na relação com as questões teórico-metodológicas. Desta maneira, na fala da gestora ainda é apresentada a potencialidade de trazer outros modos de pensar ações formativas, proporcionando momentos
de fala, de empoderamento e de troca entre os pares.
Sobre esse ponto de empoderamento dos sujeitos, de pensá-los como autores do seu próprio processo formativo, capazes de transformar a própria prática por meio da reflexão e da ação, a técnica do município da Serra problematiza:
A gente precisa realmente voltar para a base, nós precisamos lá na Serra e a [gestora de Serra] concorda com isso, que os gestores estejam mais embasados nesse tipo de trabalho. Porque se não a gente divide os grupos, mas eles não sabem realmente qual é o rumo que vai tomar, por mais que a gente tenha planejado essa questão da ideologia que foi colocado agora, isso embasa o tempo todo o nosso trabalho, então... se você não estiver preparado para mudar mesmo, pensar na professora enquanto dona daquele espaço de formação, que vai gerenciar a sua aprendizagem, aí não vamos avançar (TÉCNICA DA SERRA, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 14/05/2019).
Como já mencionado, a metodologia do Gergees está alicerçada em uma pesquisa-ação colaborativo-crítica, na qual os participantes são inseridos no processo de indagação autorreflexiva, levando-os a se questionarem sobre as contradições existentes nos atos educativos e sociais e, consequentemente à compreensão e à ressignificação das suas práticas (CARR; KEMMIS, 1988). Nessa metodologia, os sujeitos envolvidos vão se constituindo em pesquisadores de suas próprias práticas, produzindo conhecimentos com os seus pares, de forma colaborativa e crítica.
É nesse sentido que corroboramos os integrantes do Gergees no sentido de dar voz e de conceber os profissionais das suas redes como coautores dos seus processos formativos, uma vez que concebemos os próprios gestores como pesquisadores e transformadores de suas práticas. Para isso, nos pautamos em Habermas (2012), pois julgamos que a emancipação dos sujeitos se dá pela via do conhecimento.
Por esse ângulo, no final do ano de 2017, as integrantes da equipe do setor de Educação Especial do município de Marataízes que já faziam parte do Gergees, manifestam o seu desejo de estar junto com a Universidade pensando no plano municipal de formação na perspectiva da inclusão escolar. De acordo com Bento (2019), a colaboração entre Rede Municipal e Universidade, “tem suas bases na experiência da força emancipatória da autorreflexão na perspectiva da teoria da ação comunicativa (HABERMAS, 1987)” (p. 129) “e a interlocução entre os pesquisadores, sem imposições, extorsões ou manipulações, remete ao que Habermas (2012) denomina de entendimento mútuo” (p. 130).
Sobre esse movimento que foi realizado nos anos de 2018 e 2019, a técnica do município nos conta que houve um momento de voltar às ações estabelecidas a fim de refletir sobre elas. Isso é o que chamamos de espiral cíclica de reflexão-ação-reflexão (CARR; KEMMIS, 1988), presente na pesquisa-ação colaborativo-crítica à qual estão alicerçados o Gergees e o próprio movimento dos grupos de estudo-reflexão de Marataízes.
Então hoje a gente volta no segundo momento reavaliando aquela situação e já vendo outras possibilidades para esse trabalho, então isso foi bem bacana a possibilidade de a gente apostar e fazer, agora faz a reflexão, faz a avaliação dando a oportunidade de fazer novamente e continuar com essa formação. Então o movimento formativo lá é esse, quando foi feito a primeira vez no município eu pensei: nós temos que responder isso com vários processos de formação, porque como as meninas colocaram é o PNAIC que tem a formação pela escola, são outras formações que vem pelo PAE, que vem pelo FMDE, que vem pelo MEC, eu digo assim, estaduais e federais que também estão na rede, mas eu digo assim, como um projeto pensado e construído coletivamente com o núcleo da secretaria de educação hoje a gente tem com o Grufopees e com a [coordenadora do grupo]. (TÉCNICA DE MARATAÍZES, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 14/05/2019).
As potencialidades apontadas pela gestora dessa formação em parceria com a Universidade estão presentes também em diversas outras falas dos integrantes do Gergees, acreditamos que essa potencialidade se dá pela via do agir comunicativo, que possibilita, por meio do diálogo, da livre fala dos integrantes e do poder de argumentar, um entendimento mútuo forte, no qual não basta que o outro aceite os argumentos levantados sem questionar, mas sim entenda realmente as pretensões de validade dos atos de fala (HABERMAS, 2004).
Ainda seguindo esta lógica da racionalidade comunicativa, a técnica do município de Cariacica nos fala da metodologia abordada durante o período de pandemia no ano de 2020, em que essa vontade de se fazer uma formação continuada com bases no agir comunicativo esteve presente. Mesmo diante das dificuldades impostas, a equipe do município encontrou modos de se pensar essa formação de forma mais próxima da realidade de cada profissional:
A gente pensou em grupos menores exatamente para propiciar a oportunidade de capturar as vozes dos profissionais de forma mais próxima e efetiva, mas nós acabamos que tivemos que fazer algumas modificações né, os nossos encontros passaram a ser online. E até como falaram no início, a questão da iniciativa das lives foi muito inspiradora para a gente também, porque no momento que o grupo passou a investir nessas questões da live, acabou também servindo de inspiração para a gente no município. E foi assim, uma experiência riquíssima! (TÉCNICA DE CARIACICA, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 11/12/2020).
Para Bannell (2006), o agir comunicativo é o meio pelo qual temos mais chances de desencadear processos de aprendizagem, tanto no nível coletivo quanto no nível individual, pois é pela via da comunicação que a racionalização da sociedade alcança seu nível mais avançado. Assim, de acordo com Almeida (2010), Habermas acredita que os argumentos são meios pelos quais o reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validade de um proponente, pode ser transformada em conhecimento.
Nesse sentido, acreditamos que para que uma formação continuada voltada para a inclusão escolar dos alunos PAEE tenha uma efetiva transformação da realidade dos profissionais das escolas e dos gestores da Secretaria de Educação, ela deve ter caráter reflexivo crítico. Para Almeida (2010, p. 55) “é pela crítica, entendida como autorreflexão que os momentos ocultos distorcidos pelo processo histórico do conhecimento, podem ser recuperados, reelaborados e conscientizados”.
Quando questionada sobre qual o conceito de formação continuada que havia nas ações instituídas em seu município, a gestora de Cariacica nos responde:
A formação continuada hoje, ela tem assim, uma perspectiva crítica, porque a gente tem um tempo todo revisitando ações passadas e trazendo os resultados e pensando o hoje, então tem uma perspectiva crítica. Ela é a partir do movimento que é feito lá na escola, então envolve também a questão das ações, que são propostas lá na escola e nós levamos os resultados pra trabalhar em cima daquilo que realmente eles esperam, as possibilidades (GESTORA DE CARIACICA, TRANSCRIÇÃO DO GERGEES-ES, 10/03/2020).
Entendemos, portanto, que a gestora compreende que uma perspectiva crítica de formação é justamente aquela onde estamos a todo o tempo revisitando ações realizadas, refletindo sobre os resultados, para pensar quais as próximas ações serão realizadas. Mais que isso, ela se dá a partir das ações que são realidades dentro da escola, das possibilidades que os seus profissionais apontam, das expectativas levantadas por eles.
Compreendemos então, que o grupo de estudo-reflexão, se mostrou durante o movimento de 10 anos como um espaço seguro para reflexão da práxis dos participantes, e mais que isso, um local que promove autonomia, que reverberam em outros contextos, como os das redes de ensino.
3 CONCLUSÃO
Retomando o objetivo geral deste trabalho, podemos indicar que nos primeiros movimentos do Gergees, prevalecia uma lógica racional instrumental acerca da formação continuada de profissionais da educação por parte dos sujeitos envolvidos na investigação. Percebe-se esta concepção tanto nas falas, quantos nas intencionalidades explicitadas no decorrer dos encontros, onde os participantes demonstravam em muitos momentos o desejo de realizar formações em grande escala em seus municípios de atuação, para atender à cobranças de seu setor, sem refletir sobre as necessidades formativas dos profissionais de suas redes ou mesmo sobre as suas próprias necessidades formativas .
A medida em que os estudos foram acontecendo e o trabalho entre rede de ensino e universidade foi se tornando mais colaborativo, os momentos vivenciados pelo grupo se tornaram um local em que todos os participantes se sentiam à vontade para exporem suas realidades e argumentos, nesse sentido, esse momento auxiliava na promoção de momentos reflexivos, que ao serem dialogados em grupo, podiam ser ressignificados.
A partir do ano de 2015, pode-se ver com maior latência a prevalência de uma racionalidade comunicativa, em que os profissionais passaram a enxergar seu próprio processo formativo como importante, procurando abrir espaços de formação para si mesmo e sua equipe, para proporcionar melhores momentos formativos para os profissionais que trabalham dentro das redes básicas de ensino. Isto fica mais uma vez evidente quando começa-se a ver indícios de movimentos de ressignificação dentro das escolas.
Assim, defendemos uma formação continuada, seja em uma perspectiva emancipatória, crítica, seja em uma perspectiva de autorreflexão. Como dissemos anteriormente, buscamos aqui possibilidades de superação de modelos tecnicistas, positivistas e instrumentais de formação. Para isso, apostamos nos pressupostos da racionalidade comunicativa de Habermas (2003), da qual surgem ações comunicativas, pautadas no diálogo, no entendimento mútuo e no consenso, ações que não são impostas e não atendem exclusivamente a interesses pessoais, mas sim a interesses coletivos.
REFERÊNCIAS
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