Breve Reflexão sobre o Conceito de Modernidade e as Premissas para um Projeto Emancipatório de Futuro
Eugênia Vitória Camera Loureiro[1]
IBICT/MCT
eugenialoureiro@terra.com.br
Por séculos, a modernização ocidental assentou-se em economias de guerra e destruição ambiental. Agora, o centro dinâmico do mundo desloca-se para o Sul global e um novo projeto civilizatório pode surgir. (...).
(A modernidade ocidental em xeque, Márcio Pochman – (OUTRASPALAVRAS)
Sem pretender esgotar o tema, este trabalho visa refletir sobre o conceito de Modernidade aqui entendida como a construção de uma perspectiva ou projeto de futuro. O ponto de partida são as reflexões teóricas de Jurgen Habermas e nesse sentido pretende ser uma contribuição para a elaboração de uma noção emancipatória de Modernidade podendo também servir como contribuição para o debate entorno dos rumos de uma reconstrução do país também emancipadora.
Habermas se refere a um projeto inacabado de modernidade[2], mas a pergunta que se coloca é: no que consiste esse projeto inacabado e se ele ainda se coloca.
Desde o fim do século XVIII, a história é concebida como um processo mundial que gera problemas. Nele, o tempo é entendido como um recurso escasso para a superação prospectiva dos problemas que o passado nos legou. Passados exemplares nos quais o presente pudesse confiantemente orientar-se esvaneceram-se. A modernidade já não pode emprestar seus padrões de orientação de modelos de outras épocas. Ela encontra-se completamente abandonada a si mesma, tem de extrair de si mesma sua normatividade. Daqui em diante, a atualidade autêntica é o lugar onde se entrelaçam a continuação da tradição e a inovação.[3]
Os iluministas nos livraram da opressão e do subjetivismo religioso, nos apresentando o a realidade objetiva e a consciência e o direito do ser. Por outro lado nos legaram um projeto de modernidade ocidental emergente baseado na razão capaz de condicionar o uso da natureza como recurso ilimitado e
os ideais de perfeição proclamados pelas Luzes francesas, com a idéia, inspirada pela ciência moderna, de um progresso infinito do conhecimento e de uma progressão em direção a uma sociedade melhor e mais moral (...)[4]
Mas Armani compreende a confiança extrema dos iluministas no uso da razão e da ciência em seu trabalho A Modernidade e a Filosofia da História de Kant[5]
A questão é que Kant via uma urgência em predizer a história, de modo que a guerra se tornasse cada vez menos freqüente na civilização, até desaparecer completamente. O estabelecimento do fim moral do homem em direção à paz perpétua foi o seu principal objetivo em Questão renovada. O curso da história poderia ser insensato dependendo da maneira como o observador o percebesse. Se ele fizesse uso da razão, do mesmo modo que Copérnico e os cientistas da natureza o faziam, a predição se tornaria, outrossim, possível de ser sustentada. Dizia Kant: “Se ao homem se pudesse atribuir uma vontade inata e invariavelmente boa, embora limitada, ele poderia vaticinar com certeza a progressão da sua espécie para o melhor, porque ela diria respeito a um evento que ele próprio pode produzir (...)
Porchman faz uma critica da Modernidade e aponta não apenas para uma pós modernidade mas uma outra Modernidade. Habermas considera que embora não estejamos satisfeitos com os resultados, estamos fadados a lidar com as patologias dessa da Modernidade instaurada há mais de duzentos anos.
Para Porchman,
Vivemos o despertar de uma nova ordem mundial. São tempos confusos, cujas ideias parecem se fragmentar, pasteurizadas em torno das referências do passado. Mas a consciência que resulta dos problemas mundiais atuais está a demandar outro projeto de modernização. Os limites impostos pelo decrescente horizonte de expectativas mundiais refletem uma espécie de cancelamento do futuro, pois predominam imagens da guerra, da destruição ambiental, da desigualdade e do desemprego estrutural, acompanhado pela tragédia da pandemia viral.
As questões apresentadas por Porchman integram o rol do que Habermas considera como patologias da modernidade. Por meio da razão e ação comunicativas, que representam o paradigama intersubjetivo, devemos ser capazes de superar essas patologias que devem servir de ponto de partida para definição das características de aprendizado desse processo. A superação dessas patologias no interior de um processo de aprendizado explicaria porque Habermas considera o projeto da Modernidade como inacabado.
Barbara Freitag fornece uma contribuição valiosa ao buscar descrever o conjunto do que poderia ser considerada uma teoria da modernidade de Habermas expressa em diversos momentos e escritos do autor. “Habermas e a Teoria da Modernidade” forneceu os elementos orientadores deste trabalho complementado por elaborações pessoais a partir das leituras da obra de Habermas, da consideração feita por Marcio Porchman[6] e observações politicas e de outros autores. Conforme Freitag
O início da “Modernidade” está marcado por três eventos históricos ocorridos na Europa e cujos efeitos se propagaram pelo mundo: a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Em outras palavras, a “modernidade” se situa no tempo. Ela abrange historicamente as transformações sociais ocorridas nos séculos 18, 19 e 20 no “Ocidente”. Nesse sentido, ela também se situa no espaço: seu berço indubitavelmente é a Europa. Seus efeitos propagam-se posteriormente pelo hemisfério norte, especialmente pelos países do Atlântico Norte.
Mas não só. Esse ideário de modernidade também foi difundido para outras regiões por meio do sistema colonial europeu.
Não se trataria então de um depois, mas de outra modernidade mais inclusiva, a partir do Sul Global e da China, conforme sugerido por Porchman. De qualquer forma não seria o caso de recuperar simplesmente o que essa modernidade já foi com os principios a partir dos quais ela foi gerada. Poderia se tratar talvez de um aprimoramento, envolvendo outras populações e outros territórios. Diferentes mundos da vida já quase colonizados por um sistema curiosamente indiferenciado e subsistemas economia e estado rigidamente controlados.
Mesmo se se pensar uma nova Modernidade a partir da inclusão do Oriente e não a partir de um processo de aprendizado exclusivamente eurocêntrico ou dito Ocidental é um processo difícil de imaginar uma vez que, além de assimetrias evidentes, instituições milenares do Oriente podem ser bastante divergentes em relação aquelas construidas pelo Ocidente.
Habermas aborda uma questão relacionada a aceitação de diferentes culturas em seu livro O Ocidente Dividido[7]
No decorrer de uma revisão de sua auto-imagem, o ocidente poderia, por exemplo, aprender o que deveria mudar em sua política para que fosse percebido como um poder constitutivo civilizatório (grifo no original). Sem uma domesticação politica do capitalismo desenfreado não se pode fazer face à estratificação devastadora da sociedade mundial. A dinâmica de desenvolvimento discrepante da economia mundial teria ao menos que ser balanceada – penso na depravação e na miséia crescente de regiões e países inteiros. Não se trata apenas de discriminação da ofensa e do rebaixamento de outras culturas. O tema “luta das culturas” é frequentemente o véu sob o qual desaparecem os interesses materiais palpáveis do ocidente (seja em dispor sobre as reservas de petróleo ou em asseguar a sua provisão de energia)
A partir do artigo de Porchman pode ser interessante refletir sobre a teoria da modernidade de Habermas até então restrita ao Ocidente e uma possivel mudança de eixo em direção ao oriente e a uma estratégia inclusiva a partir do que vem se denominando Sul Global. Daí permanece a pergunta, qual reconstrução?
O que Porchman denomina de Era Digital, Habermas também vê com bons olhos e assim a descreve no texto de 2022 sobre a Transformação da Esfera Pública Política, apesar da fragmentação resultante do uso das tecnologias de comunicação e da necessidade de aprendizado para dominá-las coletivamente em um sentido mais colaborativo e inovador para todos.
Para Bárbara Freitag
A Teoria da Modernidade de Habermas é parte integrante da Teoria do Agir Comunicativo. Ao lado de um conceito de sociedade que associa a perspectiva subjetiva (interna do “mundo vivido”) à perspectiva objetiva (externa ou sistêmica) e ao resgate de racionalidade dialógica, a teoria da modernidade habermasiana procura explicar a gênese da moderna sociedade ocidemtal, diagnosticar suas patologias e buscar soluções para sua superação. Neste sentido, a Teoria da Modernidade faz parte de uma teoria evolutiva mais ampla, preocupada em reconstruir os processos de formação, os princípios de organização e as crises pelas quais passam as formações societárias.
Essa teoria evolutiva procura evitar as falhas das antigas teorias da evolução (de Comte, Spencer e Darwin) via de regra unilaterais e simplificadoras, compreendendo os processos de transformação das formações societárias como processos coletivos de aprendizagem (…)
Penso ser importante destacar que essas teorias da evolução unilaterais e simplificadoras
citadas embasam uma teoria da modernidade vista como progresso contínuo e linear, conforme já abordado anteriormente, característica de um pensamento dito ocidental igualmente unilateral. Penso que a possibilidade de um processo de aprendizado coletivo conforme concebido por Habermas aponta para uma outra direção.
Para Habermas existe um arranjo entre “mundo da vida” e “sistema”, uma complementariedade O desenvolvimento do capitalismo e suas crises causou desequilibrios nesse arranjo. Importante retomar essas significações, e a compreensão de mundo da vida e sistema como componentes da teoria da modernidade, e necessários ao processo de aprendizado coletivo. Retomando Freitag
O mundo vivido compõe-se da experiência comum a todos os atores, da língua, das tradições e da cultura partilhada por eles. Ele representa aquela parte da vida social cotidiana na qual se reflete “o óbvio”, aquilo que sempre foi, o inquestionado. O mundo vivido apresenta contudo duas facetas: a faceta da continuidade e das “certezas” intuitivas e a faceta da mudança e do questionamento dessas mesmas certezas. O que sempre foi aceito como verdade pode ser questionado graças às características intrínsecas da acão comunicativa.
(…) o discurso teórico permite questionar a verdade afirmada sobre os fatos, buscando elaborar, à base de argumentos mais convincentes e coerentes, uma nova teoria.(...)
Em suma, o mundo vivido constitui o espaço social em que a ação comunicativa permite a realização da razão comunicativa, calcada no diálogo e na força do melhor argumento em contextos livres de coação.
O fascismo e o ascenso da extrema direita promovem contextos sob coação e impeditivos de argumentação. O Brasil vive hoje uma situação onde esses dois conceitos representados por forças antagônicas em luta se enfrentam.
O conceito de sistema não se opõe ao de “mundo vivido”, mas o complementa. Esse conceito torna possível descrever as estruturas sociais que asseguram a reprodução material e institucional da sociedade: a economia e o Estado, dois subsistemas que desolveram mecanismos auto-reguladores: o dinheiro e o poder que asseguram a “integração sistêmica”. No interior do sistema a linguagem é secundária, predominando a ação instrumental ou estratégica. O sistema é regido pela razão instrumental.
A economia e o Estado asseguram a reprodução material e institucional da sociedade moderna, sem contudo admitir o questionamento dos princípios que regem seu funcionamento.
Freitag descreve 4 tipos de processos que influenciam o arranjo entre “mundo da vida” e “sistema”: diferenciação, autonomização, racionalização, dissociação. Os dois primeiros seriam considerados por Habermas positivos e os outros dois negativos. Desses últimos decorreriam as patologias da modernidade. Não vamos nos deter por hora na descrição desses processos, mas é importante destacar que para Habermas o processo de dissociação implicou no desengate entre “mundo da vida” e “sistema”
A racionalização por outro lado não somente contaminou os dois subsistemas (economia e Estado) como se expandiu a certas instituições do mundo da vida visto por Habermas como a colonização do “mundo da vida” pelo “sistema”.
A terapia para este diagnóstico das patologias da modernidade seria segundo Habermas reverter os processos de desengate e colonização, propondo o reacoplamento do sistema com “mundo da vida” permitindo aos atores uma visão de conjunto, em sentido oposto a uma dissociação crescente da visão de sociedade. E Freitag explica que
(…) o reacoplamento não significa regressão a formas de indeferenciação anteriores, não significa a extinção dos limites estabelecidos e das autonomias adquiridas. A diferenciação e autonomia representariam um ganho em ambos os lados, sistema e mundo da vida, (…) O reacoplamento se impõe para manter a integridade e complexidade do todo, a ser controlado e corrigido por todos os “envolvidos”. A descolonização se impõe para permitir a livre atuação da razão comunicativa em todas as esferas e instituições do mundo da vida e na busca dos fins últimos do sistema. As regras do jogo para a sociedade como um todo precisam ser buscadas em processos argumentativos no qual todos participem, definindo os espaços de atuação e fixação de objetivos do sistema. Em outras palavras, a razão comunicativa elabora comunicativamente os espaços de atuação da razão instrumental.
Assim a fragmentação com a qual nos deparamos na internet por exemplo não seria a causa ou obstáculo instranponível mas a consequência do desacoplamento entre mundo da vida e sistema e da colonização do primeiro pelo segundo. É preciso lutar para reverter isso.
Da mesma forma a desigualdade e exclusão precisam ser os fins últimos de um sistema reacoplado com o mundo da vida e orientado por sua vez para emancipação pela razão comunicativa.
Cabe então a título de orientação para que reconstrução afinal queremos deva estar submetida a esse processo de reacoplamento em novas bases entre mundo da vida e sistema onde a razão comunicativa defina para a razão instrumental sua razão de ser, saindo dos limites impostos pelo neoliberalismo e sua versão atual cada vez mais destrutiva que é o fascismo.
No caso do Brasil, as conferências nacionais (entre outros processos de participação argumentativos) podem desempenhar um papel fundamental nesse processo de reconstrução orientado por um rearranjo entre mundo da vida e sistema. O eixo da transição energética tambem tende a desempenhar papel importante no resgate de uma sustentabilidade ambiental que por sua vez se constitui em um condicionamento do desenvolviemtno social.
A informação científica bem como a informação ascendente (oriunda das lutas populares) devem (re)assumir certo protagonismo. Não foi por outra razão o embate entre Helena Landau defensora contumaz do neoliberalismo e a indicação de Marcio Porchman para o comando do instituto nacional de estatística - IBGE. As estatísticas, por exemplo, podem retomar um lugar relegado a certa irrelevancia pelo neoliberalismo para fazer valer a primazia dos indicadores do dinheiro, sobre os dados indicadores das condições de vida da população. Essas informações podem ser complementadas ou associadas a sistemas de informação ascendentes, ligados diretamente às experiências e lutas populares.
A gestão de Marcio Pochman à frente do IBGE procura hoje sensibilizar o governo federal para liberação de recursos para retomada da Pesquisa de Orçamento Familiar – POF que permitiria oferecer informações mais atuais sobre o padrão de alimentação dos brasileiros entre outras informações essenciais para elaboração de politicas públicas sociais aderentes ás necessidades da maioria da população.
Kant considerado um iluminista alemão marca digamos assim o inicio dessa trajetória de elaboração de uma perspectiva de futuro que aqui condiciona o conceito de modernidade. Marx fecharia esse ciclo do iluminismo europeu com o Manifesto Comunista que na opinião de Tariq Ali seria o ultimo grande documento do Iluminismo europeu a registrar um sistema de pensamento completamento novo: o materialismo histórico[8]. Essa ideia poderá ser abordada oportunamente em um outro trabalho.
Habermas retoma esse fio condutor também em o Horizonte da Modernidade está se Deslocando onde nos fala do envelhecimento da modernidade citando o exemplo da arquitetura.
Haverá semelhanças com uma arquitetura pós-moderna, a qual se volta novamente, de modo pouco provocativ, ao adorno histórico e aos ornamentos proscritos?
Tendo em vista que o projeto de modernidade até então se definiu como eurocêntrico a entrada em cena do Sul Global, por meio de novos arranjos econômicos como o BRICS, pode lançar novas bases para um projeto de modernidade mais includente e emancipatório.
Referências
ARMANI, Carlos Henrique. A modernidade e a filosofia da história em Kant. BIBLOS, v. 22, n. 2, p. 109-114, 2008. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/download/57042. Acesso em: 30 out. 2023
FREITAG, Barbara. Habermas e a teoria da modernidade. Caderno CRH, v. 8, n. 22, 1995. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/18781. Acesso em: 30 out. 2023
HABERMAS, Jurgen. A Modernidade – um projeto inacabado – Ed. Vega, Lisboa, 2017;
HABERMAS, Jurgen. O Ocidente Dividido Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2006
HABERMAS, Jurgen. Pensamento Pós Metafísico – estudos filosóficos, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2002
HABERMAS, Jurgen. A Nova Intransparência A crise do estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas - Novos Estudos CEBRAP - nº 18, setembro 1987 pp. 103-114;
- Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto Comunista – Ali, Tariq (Introdução) – Editora Boitempo, São Paulo, 2017
[1] Graduada em Arquitetura e Urbanismo – FAU/UFRJ. Doutora em Ciência da Informação – Convênio ECO/UFRJ – IBICT/MCT
[2] Habermas, Jurgen – A Modernidade – um projeto inacabado, Editora Vega, Lisboa, 2017
[3] Habermas, Jurgen A Nova Intransparência, 1987
[4] Idem (1)
[5] Armani, Carlos A Modernidade e a Filosofia da História de Kant
[6] Porchman faz referência à mesma questão não por caso quando da posse como presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
[7] Habermas, Jurgen O Ocidente Dividido Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2006
[8] Marx, Karl e Engels, Friedrich – Manifesto Comunista – Ali, Tariq (Introdução) – Editora Boitempo, São Paulo, 2017