TRABALHO E DEMOCRACIA
justiça e não retrocesso social
José Antonio Callegari[1]
Universidade Federal Fluminense
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Resumo
A relação capital-trabalho é cada vez mais complexa. Da fábrica hierarquizada ao sistema de produção pulverizado, tecnológico e digital, a concentração do poder econômico produz uma grave externalidade negativa: a descentralização do trabalho e do seu valor social. A concentração do capital cada vez mais descarta o trabalhador em sua condição humana e de cidadania. A partir do tema do Colóquio Habermas é possível identificar o enfraquecimento do Estado como promotor e garantidor de direitos fundamentais dos trabalhadores, afetando a adesão sindical como forma de lealdade da classe trabalhadora, ou em outras palavras a consciência de classe ou de solidariedade entre os trabalhadores. Por conseguinte, sindicatos enfraquecidos operam com déficit de legitimidade e de representatividade, tal como se dá com a estrutura do sindicato único por categoria profissional. Nesse contexto, refletimos sobre os efeitos dessa relação complexa e tensa, no momento de reconstrução ou de restauração da ordem democrática participativa e deliberativa, objetivando o não retrocesso social dos trabalhadores. Ancoramos o estudo na Constituição Federal, em princípios do Direito do Trabalho, em reflexões habermasianas sobre o tema. Situamos nossa pesquisa a partir de 2017, quando se deu a Reforma Trabalhista. Com essa abordagem, propomos um diálogo para além do direito positivado, uma vez que o valor social do trabalho e da livre iniciativa do empresário atravessam várias estruturas sociais que disputam espaço junto aos vários segmentos do Estado brasileiro.
Palavras-chave: democracia; não retrocesso social; participação; trabalho.
LABOR AND DEMOCRACY
justice and no social regression
Abstract
The capital-labor relationship is increasingly complex. From the hierarchical factory to the pulverized, technological and digital production system, the concentration of economic power produces a serious negative externality: the decentralization of labor and its social value. The concentration of capital increasingly discards the worker in his human condition and in the broader sense of citizenship. Based on the theme of the Habermas Colloquium, it is possible to identify the weakening of the State as a promoter and guarantor of workers' fundamental rights, affecting union membership as a form of working class loyalty, or in other words class consciousness or solidarity among workers. Consequently, labor unions operate with a deficit of legitimacy and representation, as is the case with the structure of a single labor union per professional category. In this context, we reflect on the effects of this complex and tense relationship, at the time of reconstruction or restoration of the participatory and deliberative democratic order, aiming to prevent social regression of workers. We anchored the study in the Federal Constitution, in principles of Labor Law, in Habermasian reflections on the topic. We situated our research from 2017, when the Labor Reform took place. With this approach, we propose a dialogue beyond positive law, since the social value of work and the entrepreneur's free initiative crosses several social structures that compete for space with the various segments of the Brazilian State.
Keywords: democracy; no social regression; participation; labor.
1 INTRODUÇÃO
Partimos da relação capital-trabalho, complexa e tensa, para identificar o papel dos trabalhadores na luta pela democracia.
Tensionado as relações democráticas, o sistema de produção capitalista perpetua ciclos de crises, com dramática externalidade negativa: a descentralização do trabalho e do seu valor social.
No Brasil, em particular, o desvalor social do trabalho remonta às origens históricas de um sistema de produção escravocrata baseado na monocultura.
Desumanizando as relações de trabalho, em sua origem, o Brasil perpetua, desde antes do sistema capitalista, uma relação senhoril e autocrata com os trabalhadores, agora e cada vez mais precarizados, ora na esfera privada das relações de emprego, ora na esfera pública institucional, e por meio de arranjos políticos e normativos das elites que ocupam os espaços de deliberação, criação e execução das políticas públicas.
No contexto atual, reacionário, conservador, de precarização e de retrocesso social, propomos uma breve análise sobre a relação entre trabalho e democracia.
2 TRABALHO E DEMOCRACIA
Ao refletir sobre a democracia, realçamos o papel dos trabalhadores como agentes políticos de transformação social, política, jurídica e econômica. Essas transformações estão ligadas com a pretensão dos trabalhadores por justiça e não retrocesso social.
Na dialética formação da sociedade brasileira, a luta dos trabalhadores, por justiça social, integra o contexto de luta pela democracia, que de tempos em tempos sofre com arroubos autoritários e reacionários de um sistema social arraigado ao seu passado patrimonialista, patriarcal e escravocrata.
Instalado no Brasil, e com desumano sucesso mercantil, o sistema de produção escravocrata perpetrou um modelo político-jurídico-econômico complacente com a exclusão social dos trabalhadores. Assim, podemos notar que:
Os antagonismos e os conflitos escravistas se desenvolveram na e pela exploração e expropriação do trabalho e da vida das pessoas escravizadas. As pessoas escravizadas passaram por um processo de dominação total do seu corpo e da exploração total da sua força de trabalho. A classe escravizada teve a sua vida cotidiana irrestritamente condicionada ao cativeiro, sujeita à condição compulsória de escravizada(o), em uma relação social, política e econômica totalmente desigual, opressora e violenta. (ALVES, GHIRALDELLI, 2022, p. 62).
Esse antagonismo social, decorrente do modelo de produção escravista, alienou materialmente o escravo, como propriedade do escravocrata, como alienou o escravo em outras dimensões existenciais, dentre elas a dimensão política.
Com sua vida cotidiana limitada ao cativeiro e ao trabalho exaustivo, o ser humano, reduzido à condição de objeto, atuava como insumo de um sistema de produção cruel, que perdurou por séculos.
Tamanha opressão e alienação do ser humano escravizado, por um longo período, deixou marcas contundentes na construção dialética, contraditória e frágil de nossa democracia, sempre tutelada pelo autoritarismo dos “donos do poder” (FAORO, 2001), aliados com uma elite burocrática, política, jurídica, econômica e militar dependente e subalterna aos ditames das nações centrais no atual sistema de produção capitalista.
Com este cenário, podemos intuir que o “sistema escravista mercantil modelou a consciência social, relacionando, de forma complexa, as relações trabalhistas, econômicas, políticas, culturais, sociais, religiosas, raciais e de gênero” – (ALVES, GHIRALDELLI, 2022, p. 65)
O uso instrumental do ser humano, reduzido à condição de propriedade de outrem, pode ser identificado da seguinte forma:
O trabalhador-mercadoria foi introduzido em uma relação de produção extremante alienante, movida a instrumentos violentos, para ter sua produtividade impulsionada e a sua vida cotidiana condicionada ao cativeiro e ao trabalho forçado. Enquanto mercadoria, era a propriedade privada do escravocrata e, enquanto trabalhador(a), era o principal produtor de mercadorias, bens e artigos de luxo. (ALVES, GHIRALDELLI, 2022, p. 66)
Segregado em sua condição jurídica, em sua condição social, em seu campo de trabalho forçado, na senzala, o escravo é o protótipo do trabalhador coisificado em várias dimensões do capitalismo, ora reduzido à condição de insumo, ora reduzido à condição de força de trabalho-mercadoria, ora reduzido à condição de custo operacional e outras formas de alienação.
A partir dessa origem escravocrata, pois,
O racismo passou a impulsionar a segregação e a barreira racial, que bloquearam o acesso de trabalhadores e trabalhadoras negros(as) aos principais canais de mobilidade social ascendente. (ALVES, GHIRALDELLI, 2022, p.70)
Nos dias atuais e nas periferias distantes, desprovidas de saneamento básico e serviços sociais eficientes, o trabalhador coisificado, após horas em transporte precário e jornada de trabalho extenuante, recolhe-se em seu espaço de segregação social: as “novas senzalas urbanas”.
Desse modo, segregado no espaço físico, materializa sua alienação social, política e cultural, sob o domínio de vários medos: desemprego, opressão do empregador, opressão do tráfico, opressão das milícias, opressão estatal.
No campo das relações de trabalho, às barreiras raciais, que ao longo do tempo bloquearam a progressão social dos escravos e de seus descendentes, agregam-se as barreiras jurídicas, econômicas e estruturais como obstáculos à emancipação e participação política do trabalhador.
A segregação política se dá, dentre outros fatores, pela dominação masculina do jogo político, pela dominação patrimonialista nos currais e/ou redutos eleitorais, pela quase exclusividade do homem branco e rico nos parlamentos municipais, estaduais, nacional e no sistema de justiça.
Breves considerações históricas permitem notar que, a partir do trabalho negro escravizado, formou-se a massa proletária do Brasil, com nichos de trabalho livre para o trabalhador branco. Assim:
Essa é uma das características da formação da classe trabalhadora no Brasil, ou seja, a inclusão da mão de obra estrangeira branca e a exclusão da mão de obra que havia dinamizado todo o processo de produção de mercadorias, enquanto trabalhadores-mercadorias, por aproximadamente 400 anos no Brasil (ALVES, GHIRALDELLI, 2022, p. 72)
Nessa dialética, com arroubos reacionários:
O Brasil é um país que se inscreve no modelo de superexploração do trabalho e de cidadania restrita; relativizar esses elementos os normaliza e naturaliza em prol do funcionamento das relações sociorraciais no país.
O racismo não é uma construção recente, mas parte constitutiva e constituinte das relações sociais e da formação dos indivíduos no decorrer do processo histórico (ALVES, GHIRALDELLI, 2022, p. 78)
O “racismo estrutural” da sociedade brasileira, para ficarmos com Silvio Luiz de Almeida (2019), integra definitivamente um sistema social no qual a classe trabalhadora participa cada vez mais dos esforços de produção e participa cada vez menos da construção política de uma nação comprometida, no plano constitucional, com a igualdade, a justiça, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação.
Findo o sistema de produção escravocrata, o modelo de produção nacional, baseado na monocultura rural, primordialmente do café, e numa incipiente industrialização brasileira, vai estruturando um capitalismo dependente e fortemente estatal-intervencionista, como se deu no período do Estado Novo ou Era Vargas, de 1937 a 1945.
No campo jurídico, o Decreto Lei 5452/43 instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho com dois eixos importantes: o direito individual do trabalho e o direito coletivo do trabalho.
Enquanto no primeiro eixo, temos a centralidade das relações entre empregado e empregador, com base no contrato de trabalho; no segundo eixo, destaca-se a atuação coletiva das empresas e dos sindicatos, regulamentando direitos e obrigações no âmbito das categorias profissionais e econômicas
É no segundo eixo que o trabalhador, como integrante de uma associação sindical, tem oportunidade de exercer a cidadania política decorrente de sua condição laboral.
Logo, a sindicalização e a atuação nos sindicatos representam um processo de aprendizagem e de prática democrática com efeitos na ação política interna (sindicatos) e na ação política externa (sistema eleitoral municipal, estadual e nacional). Desse modo, a participação sindical é um exercício profissional e político de cidadania e de democracia.
Não obstante, a primeira fase do sindicalismo nacional é marcada pelo intervencionismo estatal, desconfigurando a atuação dos sindicatos pelo financiamento estatal e pela modelo de cooptação das lideranças sindicais. Como dizem Levitsky e Ziblatt (2017), a cooptação de lideranças é uma forma de enfraquecer e fragilizar a democracia. Tal hipótese pode ser aplicada no exercício da democracia sindical, quando suas lideranças são cooptadas pela intervenção estatal.
Analisando a intervenção do Estado, no sindicalismo brasileiro, Mascaro (1998) identifica o início desta fase a partir de 1930. Para ele:
A fase é intervencionista em decorrência da estrutura legal que, de forma heterônoma, passou a interferir na organização e na ação dos sindicatos, à luz de princípios políticos autoritários, bastante difundidos na época em países europeus, com largos reflexos em nosso ambiente. (MASCARO, 1998, p. 83).
Esse modelo intervencionista atribui aos sindicatos a função de colaboradores com o poder público, desvirtuando sua essência como órgão de atuação da vontade coletiva dos trabalhadores e dos empresários.
A intervenção estatal, no contexto autoritário de época, gerou um sistema de controle e de subordinação dos interesses coletivos dos trabalhadores aos interesses do Estado, comprometendo a participação democrática dos trabalhadores na luta sindical.
Muito embora a Constituição Federal de 1988 elimine a intervenção estatal, manteve um tipo de intervenção ao adotar o sindicato único por categoria:
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
II - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município (BRASIL, 2023).
Ao limitar o poder de escolha e de criação sindical, a Constituição Federal interfere nos aspectos democráticos da liberdade sindical e na atuação política dos trabalhadores.
Não obstante, essa mesma Constituição Federal adota o pluralismo político como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.
Não se pode negar que a opção pela constituição de mais de um sindicado na mesma base territorial é um dos aspectos do pluralismo político.
Tal contradição sugere que o sindicato único, previsto no artigo 8º da CLT, é incompatível com pluralismo político e, por conseguinte, inconstitucional; pois uma regra jurídica constitucional não pode confrontar um princípio fundamental, ante sua natureza de cláusula pétrea.
Em que pese as contradições e os obstáculos jurídicos, dentre outros, a classe trabalhadora, através dos sindicatos, vem travando lutas pela democracia interna e pela democracia externa. A respeito, vejamos o contexto das lutas trabalhistas no Regime Militar:
Considerando o contexto das lutas de classes no panorama da década de 1970, é possível afirmar que as lutas da classe trabalhadora adquiriram significativa amplitude frente ao caráter da ditadura então vigente, que tencionava consolidar o sistema de dominação autocrático-burguês no país. Daí decorre que tais lutas também tiveram um caráter político, na perspectiva do questionamento do modelo de dominação que o regime ditatorial representava e implementava, tendo sido por isso fortemente combatidas pelo Estado, principalmente por meio da promulgação do AI-5 em 1968.
Essa reação violenta por parte do Estado demonstrava que a realização de tais lutas em 1968, em plena ditadura civil-militar, expressava a combatividade e a capacidade da classe trabalhadora e das forças populares de se organizarem – apesar do difícil histórico de luta e da repressão aberta da época – em defesa dos seus interesses e objetivos (ELIAS, 2022, p. 87).
Não se pode negar que as contradições sociais decorrentes do modelo escravagista, agravado pelas contradições sociais decorrentes do sistema capitalista, acirram os ânimos e provocam movimentos pendulares de progressão social e de reacionarismo elitista, como se pode observar no período entre 2003 e 2022.
No auge do Regime Militar, por exemplo, havia uma ilusão de crescimento espetacular da economia brasileira, o chamado “milagre brasileiro”. A fé na economia, sob o intervencionismo estatal, profetizou o crescimento do bolo da riqueza nacional com posterior repartição social dessa iguaria econômica.
Como em todo contexto messiânico, a promessa vinda do Olimpo econômico não se concretizou.
Seguiu-se na década de 1980 uma escalada inflacionária decorrente de políticas econômicas sem responsabilidade fiscal, aumentando o bolo da miséria e a concentração de renda em parcela mínima da sociedade.
A respeito, podemos dizer que:
o que ocorreu a partir da segunda metade da década de 1970 foi que o contexto de crise econômica, manifestado principalmente pelo esgotamento do “milagre brasileiro”, de intensificação da superexploração sobre os(as) trabalhadores(as) e de violência por parte do regime ditatorial, – associado ao histórico de lutas que vinha se dando desde a década de 1950 e que, apesar dos seus limites, tinha propiciado importantes experiências políticas de disputas frente à burguesia –, acabou fomentando uma “repolitização” da classe trabalhadora, conforme afirma Ianni (1981).
Esse processo resultou na expansão das suas formas de luta dessa classe, com o protagonismo dos segmentos de trabalhadores(as) dos maiores centros urbanos do país, em defesa dos direitos sociais e, trabalhistas e das liberdades democráticas (ELIAS, 2022, p. 90)
Se, num momento, a intervenção estatal bloqueou as lutas democráticas internas e externas na ação coletiva dos trabalhadores, a crise econômica da década de 70 permitiu eclodir, sobretudo na década de 80, o protagonismo dos trabalhadores em defesa das liberdades democráticas, como podemos ver a seguir:
Com a crise econômica estabelecida a partir de 1974, que penalizou ainda mais os(as) trabalhadores(as), ampliou-se no âmbito da classe trabalhadora a revolta contra a política salarial efetivada desde o início da década de 1970. E, mesmo com a permanência da repressão, multiplicaram-se manifestações como greves, paradas, frenagens nos locais de trabalho e organizações de comitês de fábrica. Foram diversas as formas de resistência construídas na luta por condições dignas de vida e trabalho, e pelo exercício de seus direitos sociais, políticos e civis. (ELIAS, 2022, p. 90, 91).
Como efeito, deu-se a ampliação das lutas cada vez mais inclusivas com a participação de igrejas, de artistas, de professores e de intelectuais. O contexto social, político, econômico e cultural da época permitiu a aproximação de vários espectros do corpo social, tematizando suas pautas em uma pauta convergente e abrangente: a redemocratização do país.
Em termos de atuação da classe trabalhadora, as greves tiveram papel fundamental como forma de manifestação política pela democracia:
Tal fato se confirmou com as greves e mobilizações ocorridas em 1978 e 1979, em que o movimento sindical do ABC paulista – região Metropolitana de São Paulo que incluía as cidades de Santo André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano do Sul (C) e que já era um dos principais polos industriais do país – adquiriu um significativo protagonismo político.
Nessa época, os sindicatos do ABC começaram a se destacar por meio de suas atividades de mobilização e organização – como congressos, campanhas salariais, protestos contra as demissões em massa e paralisações – junto às bases de diversas categorias, principalmente dos metalúrgicos (ELIAS, 2022, p. 94)
Se de um lado a repressão estatal era firme, prenunciado o estertor do Regime autoritário, por outro lado o anseio democrático fomentava a consciência política dos trabalhadores, como se deu no ABC paulista:
Com isso, o movimento sindical do ABC paulista, principalmente por meio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo – em que se iniciou a liderança sindical de Luiz Inácio Lula da Silva – e da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSMSP) foi adquirindo uma significativa representatividade nas disputas sindicais, passando a incidir politicamente nas lutas da classe trabalhadora no país.
Nesse mesmo período, também houve a retomada do sindicalismo rural e a expansão de movimentos sociais, cujas reivindicações eram voltadas principalmente para a garantia dos direitos sociais, a reformulação e ampliação de serviços e políticas públicas, a realização de reformas sociais, a retomada do regime democrático, a efetivação do direito à participação política, a igualdade étnico-racial e de gênero e, a liberdade sexual, dentre outras. Esse processo, segundo Santana (2017), proporcionou a formação de movimentos como os de luta por moradia e pela terra, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pela saúde pública, pelo meio ambiente e pelos direitos dos LGBT, fortalecendo movimentos como o estudantil e o feminista, assim como, o movimento negro que havia se formado desde o final do século XIX (ELIAS, 2022, p. 95).
Nesse ambiente, os movimentos sindicais da época revelam um novo estágio de consciência trabalhista que:
interferiu na dinâmica da transição para o regime democrático para além do domínio exclusivo das classes dominantes, que, depois de terem sustentado o regime ditatorial e lucrado com ele, passaram em parte a se colocar, cinicamente, desde o início dos anos 1980 – dado o contexto geral de esgotamento da ditadura – na dianteira do movimento de democratização. Apesar disso, os segmentos burgueses não apagaram o protagonismo da classe trabalhadora, que conseguiu incorporar um caráter popular ao movimento de democratização (ELIAS, 2022, p. 98)
Nota-se, portanto, um fortalecimento político da classe trabalhadora, cujo passo seguinte se deu com a fundação, em fevereiro de 1980, do Partido dos Trabalhadores (PT).
Consolidava-se então um novo sindicalismo, contextualizando as pautas trabalhistas num aspecto maior de participação política.
Desse modo, a atuação política, através de um partido, permitiu à classe trabalhadora levar as reivindicações sociais, laborais, econômicas e políticas dos trabalhadores para o campo onde são discutidas, elaboradas e executadas as políticas públicas: o Parlamento e o Executivo.
Ampliando o campo da ação sindical, através de uma estrutura partidária, as pautas trabalhistas, antes delimitadas à uma base territorial mínima, passou a transitar no cenário nacional como pautas fundamentadas na democracia social.
O cenário do jogo político mudou e os jogadores também. Se os sindicatos verbalizam, em negociações coletivas, a força dos trabalhadores, organizados por categorias profissionais, o partido político verbaliza, na atuação parlamentar e na administração púbica, a força política dos trabalhadores, forjando as bases para uma gestão pública mais democrática e comprometida com a justiça social.
Como podemos ver:
Essas lutas e o avanço da organização sindical demonstravam que a classe trabalhadora – apesar das diversas dificuldades objetivas e subjetivas enfrentadas – ia conseguindo tensionar, a partir da formação do novo sindicalismo, o padrão de dominação capitalista predominante na época, que desde 1964 registrava um histórico de intensificação da superexploração da classe trabalhadora de forma associada à repressão característica dos regimes ditatoriais, cujo ápice ocorreu durante a fase do “milagre brasileiro” (ELIAS, 2022, p. 104)
Não obstante, persiste um grave problema, como herança do sistema autoritário e reacionário que moldou as elites brasileiras:
Nessa perspectiva, não estamos secundarizando a importância da luta pelo retorno do regime democrático e os avanços sociais e políticos que houve durante o período da transição democrática. Mas, diante do histórico da formação social brasileira durante a fase de consolidação do capitalismo e de expansão do capitalismo monopolista no país, assim como, do sistema de dominação autocrático-burguês por este engendrado, chamamos a atenção para o fato de que, devido à forma como se deu a transição democrática, – determinada pela dinâmica das lutas de classes – essa transição não significou a superação das características basilares do sistema capitalista brasileiro, a exemplo do caráter dependente da economia e da condição de superexploração da maioria da classe trabalhadora (ELIAS, 2022, p. 105)
Esse fator histórico reacendeu no Brasil um reacionarismo autoritário de viés burguês-militar no período de 2016 a 2022, culminando com uma tentativa frustrada de golpe de estado em 08 de janeiro de 2023.
A partir das lutas sindicais na década de 70, podemos entender esse movimento reacionário atual:
os segmentos burgueses demonstravam imenso receio frente a qualquer possibilidade de mudanças econômicas e políticas mais profundas, que colocassem em risco o padrão de exploração e dominação estabelecido historicamente no país, via-se uma realidade de acirramento das lutas de classes, em que a classe trabalhadora passara a atuar enquanto sujeito político, ao tempo em que a burguesia buscava formas de estabelecer a transição para o regime democrático sob o seu domínio (ELIAS, 2022, p. 104)
Um exemplo disso se deu com a participação dos trabalhadores no movimento pela Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), após a derrota das “Diretas Já” na década de 80.
Não obstante, permanecia firme o arranjo entre a elite burguesa e os militares, deliminando os rumos do processo de abertura política e de redemocratização constitucional do país. Tratava-se de arranjo na esfera pública para a “manutenção das características estruturais da economia brasileira e do seu padrão de exploração e dominação” (ELIAS, 2022, p.106).
Em que pese o arranjo elitista:
é importante colocar que o fato de as classes dominantes terem efetivado esse “pacto elitista” durante a transição entre a ditadura e o regime democrático, não significou a anulação política da classe trabalhadora nesse contexto (ELIAS, 2022, p. 106).
No contexto político-militar em 2016, é possível dizer que os golpes de estado “são elementos constituintes da cultura política brasileira, como estratégia de reestabelecimento da ordem social vigente quando essa ordem é desafiada ou surpreendida pela legitimação das demandas dos grupos subalternos” (NETA, 2022, p. 113).
Em sua busca por inclusão e não retrocesso social, os trabalhadores demandam sua participação na esfera pública como titulares de direitos políticos, através dos quais podem atuar no sistema de forças que tensiona vários subsistemas sociais, dentre eles o financeiro, o econômico, o administrativo, o legislativo e o judiciário.
Dentre outros propósitos, podemos dizer que a finalidade do golpe é impedir a distribuição de poder em favor de novos atores políticos, como por exemplo a classe trabalhadora. Não por acaso, o golpe de 2016, com eufemismo de impeachment, ocorreu na vigência de um governo do Partido dos Trabalhadores.
A questão de fundo aqui reside na luta hegemônica pela gestão da esfera pública estatal ou institucionalizada. Gestão que os “donos do poder” não deseja compartilhar com os estamentos, até então subalternos, da sociedade brasileira, dentre eles a classe dos trabalhadores. Nesse caso,
o poder econômico foi um dos mais beneficiados. Além de o golpe de 2016 explicitar a fragilidade da democracia liberal brasileira, por invalidar o resultado das urnas de 2014, ele representou também o avanço de uma agenda neoliberal de prejuízo para a sociedade, sobretudo para a classe trabalhadora, no que tange principalmente aos direitos sociais. (NETA, 2022, p. 115).
Com Nancy Fraser (2018), podemos dizer que a crise democrática, em países capitalistas, integra a lógica do capital: crise permanente.
O modelo capitalista, em seus vários estágios, contém uma “tendência de crise” ou “contradição” como destacou Fraser (2018). Com esse ponto de vista, revela-se o papel ambíguo do poder público, ora como “condição de possibilidade da acumulação de capital”, ora como subserviente ao impulso do capitalismo para acumulação sem fim, desejoso de uma acumulação sem regras, um novo laissez faire.
Concordamos com Fraser (2018, p. 156) quando afirma que o capitalismo “não é independente e não pode ser adequadamente compreendido caso seja abstraído de outros elementos constitutivos que são sua condição de possiblidade de fundo”.
Se o poder público é uma condição de possibilidade do capitalismo, sobretudo no seu papel regulador, julgador e repressor, a classe trabalhadora representa importante papel na construção ou reconstrução da justiça social.
Enquanto o capitalismo infiltra seus prepostos na alta burocracia estatal, os trabalhadores tendem a ocupar posição no jogo político, através dos sindicatos e dos partidos, tensionando suas pautas sociais com as pautas liberais, reacionárias e conservadoras que pregam o retrocesso social.
A resultante desse sistema de forças tende a impedir a ruptura do sistema capitalista, recompondo momentaneamente o equilíbrio instável desse sistema econômico.
Não obstante, o capitalismo gera crises constantes, seja pela concorrência feroz, seja pelo advento de novas tecnologias e de novas técnicas de gestão, sempre na busca incessante por eficiência, redução de custos e maximização de lucros e resultados.
A grande questão é como desenvolver e sedimentar a consciência da classe trabalhadora quanto ao seu papel de ator político central no sistema capitalista. Essa consciência individual e coletiva coloca em risco o papel que o sistema capitalista destina aos trabalhadores: reprodução social da força de trabalho. Daí as crises financeiras, econômicas, políticas e institucionais, na maioria das vezes artificiais, segundo os humores do “mercado”, frequentemente reacionárias à emancipação social, econômica e política da classe trabalhadora.
A transição de um trabalhador-insumo para um trabalhador-sujeito, subjetiva as relações das forças políticas e amplia o pluralismo político que atemoriza os “donos do poder”.
A tendência centralizadora do capitalismo (concentração de riqueza, de poder e de controle social) gera táticas reacionárias/conservadoras e óbices jurídicos que dificultam o acesso dos trabalhadores ao centro do poder, quando não o desalojam pela via do golpe militar ou do impeachment.
Com relação aos óbices jurídicos, podemos dizer que:
a acumulação de capital é inconcebível na ausência de uma estrutura jurídica que sustente a empresa privada e a troca no mercado. Ela depende, de modo crucial, dos poderes públicos para garantir direitos de propriedade, fazer cumprir contratos e julgar disputas; para suprimir rebeliões, manter a ordem e administrar o dissenso (FRASER, 2018, p. 157).
Visando estabilizar o sistema:
arranjos eleitorais inclusivos podem servir como uma força estabilizadora em tempos de normalidade, assegurando a lealdade das massas ao sistema, alertando as elites da necessidade de reforma e propelindo esforços para disciplinar o capital para o próprio bem dele. Ademais, uma ampla mobilização democrática pode fornecer a musculatura política indispensável em tempos de crise, quando o capitalismo deve reorganizar-se ou morrer. Em todos os períodos, portanto, o poder estatal eficaz e legítimo é necessário para sustentar a acumulação em longo prazo (FRASER, 2018, p. 158)
No caso brasileiro, a Constituição Federal estabilizou pretensões antagônicas, no processo de consolidação da democracia. Como vimos linhas atrás, o movimento das “Diretas Já” e a “Assembleia Nacional Constituinte” provocaram ampla mobilização democrática, fornecendo a musculatura política necessária para incluir pautas sociais e trabalhistas como direitos fundamentais dos trabalhadores.
Em outras palavras, dentro da ambiguidade do sistema capitalista, a esfera pública atuou para estabilizar o sistema de acumulação capitalista, que manifesta atualmente mais um ciclo de instabilidade econômica e financeira, reclamando do poder público subserviente medidas de retrocesso social. Como exemplo, podemos citar a Lei n. 13.467/2017 que implementou a chamada Reforma Trabalhista. Essa Lei cumpriu o papel jurídico de redução de direitos, desregulamentação e precarização das condições laborais e sociais dos trabalhadores.
Nesse aspecto:
arranjos eleitorais inclusivos podem servir como uma força estabilizadora em tempos de normalidade, assegurando a lealdade das massas ao sistema, alertando as elites da necessidade de reforma e propelindo esforços para disciplinar o capital para o próprio bem dele. Ademais, uma ampla mobilização democrática pode fornecer a musculatura política indispensável em tempos de crise, quando o capitalismo deve reorganizar-se ou morrer. Em todos os períodos, portanto, o poder estatal eficaz e legítimo é necessário para sustentar a acumulação em longo prazo (FRASER, 2018, p. 158)
Importa registrar que:
Enquanto a dinâmica da economia se centra na acumulação ilimitada e na apropriação privada de mais valor, a impulsão da política é desenvolver capacidades de ação pública e reservas de apoio público para legitimar o uso de tais capacidades. Assim, enquanto a economia valoriza o crescimento, a eficiência, a escolha e a liberdade negativa, a política apela ao interesse público, à igual cidadania, à legitimidade democrática e à soberania popular. Essas orientações podem entrar em conflito (FRASER, 2018, p. 160)
Enquanto a economia dirigida pela lógica da acumulação ilimitada produz crises, é na atuação política que a classe trabalhadora disputa espaços e desenvolve suas “capacidades de ação pública”.
Nesse aspecto, as observações de Fraser (2018) permitem concluir que, na política, os trabalhadores, seja pela atuação partidária, seja pela ação sindical, aglutinam os seus interesses com o interesse público.
Numa palavra, a atuação esclarecida dos trabalhadores integra espectros maiores da vida social, legitimando a democracia como espaço público e procedimental da cidadania (HABERMAS, 2003).
3 CONCLUSÃO
Considerando a relação entre trabalho e democracia, intuímos que a relação capital-trabalho é cada vez mais complexa, projetando reflexos na democracia brasileira. Da fábrica hierarquizada ao sistema de produção pulverizado, tecnológico e digital, a concentração do poder econômico produz uma grave externalidade negativa: a descentralização do trabalho e do seu valor social.
No Brasil, desde 2016, avança um movimento político reacionário, acentuando a tensão entre capital e trabalho.
O impeachment levado a cabo em 2016 simboliza, no campo político, vários retrocessos sociais que impactam de forma contundente os trabalhadores. Como exemplo, podemos citamos a Reforma Trabalhista que flexibilizou, reduziu e desregulamentou vários direitos sociais dos trabalhadores.
A partir de um breve recorte histórico, procuramos evidenciar como o trabalhador escravo, despossuído de sua dignidade existencial e segregado pelo trabalho forçado e pela vida recolhida nas senzalas, serviu de protótipo do trabalhador assalariado cada vez mais precarizado e segregado nas periferias como “senzalas urbanas”.
Em sua condição social, o trabalhador assalariado, extenuado e mal remunerado, encontra óbices para se realizar como agente político, seja pela ameaça do desemprego, seja pela vida totalmente absorvida no trabalho.
Isolado em suas relações individuais de trabalho, numa relação assimétrica com o seu empregador, que detém os meios de produção e direção do trabalho subordinado, o trabalhador encontra na associação sindical um espaço público de cidadania.
Através da associação sindical, a massa de trabalhadores, devidamente organizada, pode desenvolver uma consciência coletiva que permite aspirar novas pautas, além daquelas reinvindicações típicas da relação de trabalho: aumento salarial e melhores condições de trabalho.
Vimos, através de frames históricos, como a organização sindical elevou o status político dos trabalhadores, chegando ao ponto de criar um partido que vem disputando, nas arenas centrais da esfera pública institucional, espaços de poder executivo e de deliberação parlamentar.
Vincular o trabalho com a democracia tem como propósito ampliar o espectro de reivindicação e de atuação política dos trabalhadores, tendo como pano de fundo sua dignidade existencial. Numa palavra, a luta pelo não retrocesso e por justiça social integra a luta pela democracia.
Refletir sobre o trabalhador como agente político, individual e coletivo, é tarefa daqueles que desejam uma esfera pública comprometida com a condição social dos trabalhadores, eliminando ou reduzindo a ação estatal instrumentalizada pela lógica do ‘mercado”.
Com acerto, podemos dizer que:
As forças produtivas...na medida em que acumula processo de aprendizagem organizados nos subsistemas de ação racional com respeito a fins, são de fato o motor da evolução social (HABERMAS, 2014, p. 120).
Portanto, é através da consciência e da atuação política que o trabalhador pode confrontar-se com as formas de instrumentalização do ser humano que serve ao propósito de legitimar sua dominação.
E através da luta política sindical e da luta política parlamentar que o trabalhador emancipa cada vez mais sua cidadania engajando-se na ação e na negociação, como observamos em Habermas (2014, p. 143).
Por conseguinte, sendo a ação e a negociação elementos essenciais nas relações de trabalho, a condição social do trabalhador, no contexto atual, reduz sua capacidade de engajamento e de negociação. Desse modo, a dominação técnica afeta uma das estruturas centrais da democracia: capacidade de participação no circuito dos vários subsistemas que irradiam sobre e a partir do mundo do trabalho.
A conscientização política dos trabalhadores, no contexto de crises do capital, de inovações tecnológicas de instrumentalização da pessoa humana, permite:
pôr em marcha uma discussão politicamente eficaz que consiga estabelecer uma relação, de modo racionalmente vinculante, entre o potencial social do saber e poder técnicos como nosso saber e querer práticos. (HABERMAS, 2014, p. 148)
Ao final deste trabalho, percebemos que a mudança estrutural na esfera privada capitalista produz efeitos ou externalidades na esfera pública estatal, provocando crises para além das relações de trabalho.
O cenário de crise, típico desse modelo de produção, tornou-se mais caótico na medida em que se expande o modelo de capitalismo financeiro transnacional.
O fluxo constante de riqueza e de acumulação cada vez menos distributivo (concentração de renda) impacta o exercício da cidadania e as bases do Estado Democrático de Direito.
Numa perspectiva sistêmica (LUHMANN, 1995), o capitalismo financeiro, como destacou Nancy Fraser (2018), luta por sua hegemonia nos mais variados círculos de poder, alijando cada vez mais o trabalhador das disputas democráticas na esfera pública estatal, onde se pode construir os consensos de estabilização social do sistema.
Em tempos de ódio, ganância, ressentimento e negação das classes subalternas como parceiros emancipados, devemos refletir cada vez mais sobre o valor do trabalho na construção de uma esfera pública comunicativa, participativa; na qual o trabalhador seja reconhecido e incluído como ator no enredo democrático.
REFERÊNCIAS
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LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. (Aulas publicadas por J.T.Nafarrate). Petrópolis: Editora Vozes, 2009 (1995).
NETA, Avelina Alves Lima. A agenda neoliberal e antidemocrática e suas implicações para os direitos sociais no Brasil. In NEVES, Angela Vieira, Ghiraldelli Reginaldo (organizadores). Trabalho, democracia e participação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022.
[1] Doutor em ciências jurídicas e sociais pelo PPGSD – UFF. Professor Adjunto no Departamento de Direito de Macaé. Universidade Federal Fluminense.