CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS CONCEITOS DE AUTORREFLEXÃO E EMANCIPAÇÃO NA PESQUISA-AÇÃO

Letícia Soares Fernandes[1]

Universidade Federal do Espírito Santo

 fernandesletss@gmail.com

Allana Ladislau Prederigo[2]

Universidade Federal do Espírito Santo

 allana.prederigo@gmail.com

Rafael Carlos Queiroz[3]

Universidade Federal do Espírito Santo

rcqrafael@gmail.com

Gustavo Falcão Santana[4]

Universidade Federal do Espírito Santo

gustafal72@gmail.com

Mariangela Lima de Almeida[5]

Universidade Federal do Espírito Santo

 mlalmeida.ufes@gmail.com

 

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Resumo

Toma-se como objetivo tecer considerações acerca do conceito de autorreflexão e emancipação, entrelaçando-o à pesquisa-ação, por meio do diálogo entre Jürgen Habermas, Theodor W. Adorno, Wilfred Carr e Stephen Kemmis. Os conceitos de autorreflexão e emancipação surgem na Escola de Frankfurt através de Adorno e são incorporados por Habermas, que dá outro sentido a eles. Carr e Kemmis, ao refletirem sobre a pesquisa-ação emancipatória na educação, tomam Habermas como alicerce e constituem o conceito de autorreflexão crítica. A partir das considerações dos autores, o artigo reflete acerca da autorreflexão incorporada na metodologia da pesquisa-ação, principalmente no tocante à formação continuada de profissionais da educação. À luz dos pressupostos habermasianos, defendem-se os conceitos de autorreflexão e emancipação pela via da ação comunicativa, na qual o paradigma da consciência é transposto para o paradigma da linguagem. Compreende-se que para Adorno a autorreflexão está atrelada diretamente à liberdade, ao pensamento crítico e à autonomia, que guiam o indivíduo para a emancipação. Enquanto para Habermas, a autorreflexão vincula-se à linguagem e à comunicação, entre dois ou mais sujeitos, que os guiam para a emancipação. Carr e Kemmis inspirados na espiral cíclica proposta por Lewin e na autorreflexão de Habermas, vão defender a espiral autorreflexiva na pesquisa-ação. Diante disso, entende-se que os problemas da educação têm na racionalidade comunicativa perspectivas de mudanças sólidas, especialmente pela via de processos formativos.

 

Palavras-chave: Autorreflexão; Emancipação; Pesquisa-ação; Educação; Formação continuada.

 

CONSIDERATIONS ABOUT THE CONCEPTS OF SELF-REFLECTION AND EMANCIPATION IN ACTION RESEARCH

 

Abstract

The objective is to make considerations about the concept of self-reflection and emancipation, intertwining it with action research, through dialogue between Jürgen Habermas, Theodor W. Adorno, Wilfred Carr and Stephen Kemmis. The concepts of self-reflection and emancipation emerge in the Frankfurt School through Adorno and are incorporated by Habermas, who gives them another meaning. Carr and Kemmis, when reflecting on emancipatory action research in education, take Habermas as a foundation and constitute the concept of critical self-reflection. Based on the authors' considerations, the article reflects on the self-reflection incorporated in the action research methodology, mainly regarding the continued training of education professionals. In light of Habermasian assumptions, the concepts of self-reflection and emancipation are defended through communicative action, in which the paradigm of consciousness is transposed to the paradigm of language. It is understood that for Adorno, self-reflection is directly linked to freedom, critical thinking and autonomy, which guide the individual towards emancipation. While for Habermas, self-reflection is linked to language and communication, between two or more subjects, which guide them towards emancipation. Carr and Kemmis, inspired by the cyclical spiral proposed by Lewin and Habermas' self-reflection, will defend the self-reflective spiral in action research. In view of this, it is understood that the problems of education have prospects for solid changes in communicative rationality, especially through training processes.

Keywords: Self-reflection; Emancipation; Action research; Education; Continuing training.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

A ciência experimental se fortalece no Século das Luzes, em tempos de libertação dos conhecimentos dominados pela religiosidade, entretanto, é no século seguinte que as ciências da natureza e as ciências humanas, como temos hoje, se veem concretizadas, no berço de uma sociedade fortemente influenciada pela Revolução Industrial, pelos interesses da classe dominante - a burguesia - (MOREIRA; ROMAGNOLI; NEVES, 2007) e pelas concepções do  Positivismo, cujas abordagens aplicar-se-iam a todos os objetos de conhecimento.

No entanto, a ontologia dos objetos das ciências humanas se diferencia dos objetos das ciências naturais, pois trata-se do ser humano e dos produtos de sua ação, fenômenos estes que possuem graus de complexidade e de imprevisibilidade enormes, o que dificulta a observação e experimentação dos fatos tais como eles são no aqui e agora. Ao contrário, é a partir da interrogação, interpretação e da sua visão de mundo, que o pesquisador vai construir o conhecimento sobre o fato pesquisado (SIMANKE, 2009).

No contexto de pensar o pesquisador como ator da própria pesquisa e considerando a conjuntura do século XX, marcado por guerras e pela necessidade das ciências humanas de explicarem os cenários sociais, bem como de procurarem superar os estigmas das atrocidades e dos extermínios e compreender as diferenças, as diversidades e as especificidades de cada ser humano, das culturas de povos, dos territórios e dos modos de viver (CHIZZOTTI, 2016), surge a metodologia de pesquisa-ação.

O termo pesquisa-ação foi utilizado inicialmente pelo psicólogo alemão Kurt Lewin no ano de 1946, que propõe uma espiral cíclica de estrutura de etapas que se constitui na ação-reflexão-ação. De acordo com Lorenzi (2021, p. 24), o propósito desta metodologia “[...] é permitir a compreensão e o entendimento dos fatos sociais que, em determinando momento histórico, aflige certo grupo social, de modo a propor e implementar ações que visem à mudança social desses fatos [...]”.

Trazendo esse método científico para o campo educacional, os australianos Carr e Kemmis (1986; 1988) avançam quanto ao desenvolvimento de uma pesquisa-ação crítica, propondo que o investigador esteja envolvido com o processo em colaboração com o coletivo, visando que a questão social seja observada, refletida criticamente, compreendida e transformada, envolvendo o diálogo com outros professores e a autocrítica. Os autores definem a pesquisa-ação como: “[...] uma forma de investigação auto-reflexiva que os participantes realizam em situações sociais, a fim de melhorar a racionalidade e a justiça de suas próprias práticas, sua compreensão delas e das situações em que ocorrem” (CARR; KEMMIS, 1988, p. 174, tradução e grifos nossos).

Carr e Kemmis desenvolvem seus processos teóricos baseados em Jürgen Habermas, filósofo da segunda geração da Escola de Frankfurt. Para Habermas (2014, p. 321): “um ato de autorreflexão, que ‘muda uma vida’, é um movimento de emancipação. Na compreensão de Maar (2007, p. 48, apud LIMA; MENEZES, 2016): “a auto-reflexão crítica para os frankfurtianos representa um elemento fundamental na luta pela emancipação. Por ela, os dominados podem ser esclarecidos a respeito de sua situação enquanto classe, no contexto de exploração e subordinação capitalista”.

Parece-nos que a autorreflexão proposta por Habermas, por se basear no paradigma do entendimento recíproco e entender que a resposta da crise da razão presente na modernidade está na própria forma de pensar a racionalidade, se dá de forma mais coletiva do que aquela proposta por Adorno, teórico da primeira geração de Frankfurt, que se baseia no paradigma da consciência, acreditando que a solução para a crise da razão é externa a ela.

Entretanto, cabe-nos neste momento entender as contribuições de cada teórico para pensarmos em como podemos nos libertar das amarras da racionalidade instrumental presente nas ciências positivistas, que implica na falta de reflexão e crítica sobre as condições impostas nas relações de produção. Ao passo que a ciência como um todo não está livre de relações de conveniência e de dominação, condicionada pela lógica capitalista, o saber científico passa também a atender interesses políticos e econômicos (RAMOS, 2017).

Desta forma, o artigo se apresenta como um ensaio e tem como objetivo central tecer considerações acerca dos conceitos de autorreflexão e emancipação, por meio dos autores Adorno, Habermas e Carr e Kemmis, entrelaçando-os à perspectiva metodológica da pesquisa-ação e suas reverberações na formação continuada de profissionais da educação.

Destarte, trataremos primeiramente dos conceitos de autorreflexão e emancipação a partir do filósofo Theodor Adorno e suas influências para a escola de Frankfurt. Em seguida, trazemos o nosso referencial teórico-epistemológico, Jurgen Habermas, e seus pressupostos. A partir de Habermas, Carr e Kemmis lançam mão do conceito habermasiano de autorreflexão e da ciência social crítica para propor a ciência educativa crítica, entendendo os profissionais da educação, principalmente o professorado como sujeitos capazes de emancipar-se pela via reflexão sobre a sua própria prática.

Neste sentido, o Grupo de Pesquisa “Formação, Pesquisa-ação e Gestão de Educação Especial” (GRUFOPEES – CNPq/Ufes) vem realizando ações formativas pela via da pesquisa-ação crítica alicerçada em Carr e Kemmis, sustentado por Jurgen Habermas. O Grupo assume os participantes das formações como sujeitos ativos de conhecimento, que podem transformar-se em autores e atores da prática cotidiana engajados com a pesquisa. Em sua maioria, participantes e coautores da pesquisa-formação são gestores e técnicos que trabalham nas secretarias de educação do Estado do Espírito Santo, no setor de Educação Especial ou no setor de Formação.

Desta maneira, no último momento do texto entendemos a necessidade de trazermos de que forma a pesquisa-ação crítica assumida como perspectiva metodológica no Grufopees (CNPq/Ufes) se entrelaça à formação continuada e aos conceitos de autorreflexão e emancipação discutidos ao longo do ensaio.

 

2 OS CONCEITOS DE AUTORREFLEXÃO E EMANCIPAÇÃO EM ADORNO

Começamos as discussões a partir dos conceitos de autorreflexão e emancipação de Theodor Adorno, um importante filósofo da primeira geração da escola de Frankfurt, que elabora sua visão crítica da sociedade a partir da experiência vivenciada pelo nazismo Alemão. Deste modo, influenciado diretamente pelas atrocidades cometidas por um povo em nome da coletividade de uma nação, Adorno passa a compreender que a emancipação dos sujeitos vai ocorrer de modo individual, na medida em que este, livre de coerções ou imposições externas, procure conhecimentos que permita o entendimento do mundo que o cerca e das condições que permeiam esta realidade (ADORNO, 2003).

É neste cenário que Adorno passa a se contrapor aos coletivos, acreditando que por mais que estes grupos possam gerar um sentimento de pertencimento entre os membros, se apresentam como inibidores da subjetividade individual, cerceando o potencial crítico e reflexivo do pensamento do sujeito, que se encontra em um movimento cercado de relações de poderes e de pressão, que resultam na massificação, no sufocamento da diversidade de pensamento e da centralização do poder de decisão, o pensamento do autor pode ser visto a seguir:

[...] o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto possa parecer ao entusiasmo participativo, especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem no começo a todos os indivíduos que se filiam a eles (ADORNO, 2003, p. 127).

 

Essa concepção do autor é reflexo do seu entendimento da existência de uma racionalidade que guia as ações na sociedade, a denominada racionalidade instrumental, voltada para a produção do desenvolvimento, em que se desconsidera os meios para se chegar a um fim desejado, sendo muito presente no modo experienciado no sistema capitalista, no qual a busca pelo lucro se faz predominante, mesmo diante da marginalização de determinados grupos sociais decorrentes deste movimento.

Assim, a autorreflexão para este autor está atrelada diretamente à liberdade, ao pensamento crítico e à autonomia, que guiam o indivíduo para a emancipação, é importante ressaltar que Adorno toma as obras de Kant para elaborar suas definições, nesse ínterim o filósofo irá defender que a autonomia individual é o poder contra as lógicas predominantes, que acarretam a reflexão. A emancipação irá ocorrer a partir desse movimento de autorreflexão, do não-aceite ao que está posto de modo autoritário, em um movimento de esclarecimento, que ocorre por meio da busca pela liberdade individual e que é alcançada pela livre vontade do sujeito em entender o mundo em que vive (ADORNO, 2003).

A educação tem importante papel neste contexto, sendo considerada por Adorno como uma via para o rompimento da racionalidade técnica presente e dominante na sociedade, porém, para que esta cumpra um papel como propulsor do esclarecimento do sujeito, deve ser aberta para o diálogo com as diferentes vertentes do conhecimento presente em nosso mundo, sendo necessário se voltar para a formação de indivíduos capazes de pensamento crítico. Por isso a educação para este autor pode também se transformar em um agente de manutenção de sistemas autoritários, pois pode privilegiar erroneamente um tipo de saber, fortalecendo a racionalidade instrumental criticada pelo filósofo.

 

3 O QUE PROPÕE JÜRGEN HABERMAS

Apesar de Jürgen Habermas estar inserido na mesma escola de Adorno e Horkheimer, o filósofo busca repensar a Teoria Crítica idealizada pelos frankfurtianos, na medida em que esses pensadores estavam presos à filosofia centrada no sujeito e à uma concepção instrumental de racionalidade, difundindo a ideia de que os avanços materiais levariam a um potencial de emancipação, alicerçados em uma frente marxista (MEDEIROS; MARQUES, 2003). Esse ideal centrado no sujeito se sustenta no chamado paradigma da filosofia da consciência, no qual os intelectuais acreditavam que as tomadas de decisões estavam alicerçadas na intencionalidade subjetiva de cada indivíduo.

Habermas (2000), no entanto, entende que o paradigma da filosofia da consciência encontra-se esgotado e que a modernidade que está em crise, em virtude da sua visão racional reducionista e instrumentalista, pondo em risco a emancipação pela via da razão. Adorno, Horkheimer, Nietzsche e Heidegger ainda acreditavam que a modernidade passava por uma crise da razão, por evidenciarem a razão como absoluta e objetivada, o que Habermas concorda, porém, para o autor, a razão centrada no sujeito é a porta aberta pela qual entram as diversas críticas colocadas à razão (MEDEIROS; MARQUES, 2003).

Por isso, o autor acredita que a saída para tal crise está na própria razão, nos propondo a mudança de paradigma da consciência para o paradigma do entendimento recíproco (HABERMAS, 2000). No paradigma do entendimento recíproco, deixa de ser privilegiada a atitude objetivante em que o sujeito cognoscente se dirige a si mesmo como a entidades no mundo, passando a privilegiar a atitude performativa dos participantes da interação que coordenam seus planos de ação ao se entenderem entre si sobre algo no mundo. Essa atitude, para Habermas, deve se dar em uma interação mediada pela linguagem (HABERMAS, 2000).

Vemos, portanto, “a passagem de uma razão centrada na consciência para uma razão centrada na comunicação. Ao invés da relação sujeito-objeto, a relação sujeito-sujeito” (ALMEIDA, 2010, p. 36). Desta forma, os pensamentos habermasianos se fundamentam em lançar novas concepções acerca da compreensão da razão, do ser humano e da sociedade, uma vez que para ele os ideais iluministas não foram plenamente realizados e as promessas de liberdade e igualdade ainda não se cumpriram, assim como o ideal de emancipação, característico do movimento da modernidade (HABERMAS, 2018).

Em contraposição às teorias científicas advindas do movimento positivista, que requerem confirmação empírica por meio da observação e do experimento, Habermas vem nos propor uma teoria social crítica. Uma teoria social é uma teoria a respeito, entre outras coisas, das convicções dos indivíduos sobre sua sociedade e por estarmos inseridos nessa sociedade, a teoria social possui uma estrutura cognitiva reflexiva. Ou seja, se constitui como teoria social aquela que se propõe a refletir tanto sobre as concepções dos agentes de uma sociedade quanto sobre a própria estrutura social (GEUSS, 1988). Por sua vez, uma teoria crítica afirma como os agentes devem agir, para que se tenha uma ação racional, isto é, ela informa aos indivíduos sobre quais interesses são racionalmente aceitáveis. Deste modo, o efeito de uma teoria crítica bem-sucedida é a emancipação e o esclarecimento desses indivíduos racionais (GEUSS, 1988).

Em contraponto à racionalidade instrumental, das ciências empírico-analíticas, Habermas (2014) defende a possibilidade de construir uma teoria do conhecimento em conexão com o interesse, revelando que os diferentes tipos de conhecimento estão atrelados aos diferentes tipos de interesse. E, neste sentido, a razão na ciência crítica só pode portar um interesse por emancipação, constituindo-se como uma razão emancipatória. Para ele, interesse e emancipação dependem fundamentalmente da autorreflexão, que “traz à consciência [...] os elementos que determinam ideologicamente uma práxis presente da ação e da interpretação de mundo” (HABERMAS, 2013, p. 56).

Desta forma, a partir do momento que o sujeito reflete acerca dos elementos que compõem a sua realidade, ele pode entender o que está determinando ideologicamente e dogmaticamente a sua práxis. E nesse sentido, a “autorreflexão conduz ao discernimento à medida que algo que era inconsciente se torna consciente de uma maneira prática cheia de consequências” (ibidem). Para Habermas (2013) há uma relação sistemática entre a estrutura lógica de uma ciência - a teoria - e a estrutura pragmática das utilizações das informações produzidas em seu marco - a prática.

Para Carr e Kemmis (1988), Habermas deixa claro que o conhecimento investigativo gerado pela teoria social crítica não impede a ação, mas que deve existir um processo de esclarecimento imediato no qual os que participam de uma situação alcancem entendimentos verdadeiros dela. Nesse sentido, alicerçados nos pressupostos habermasianos trazidos até aqui, Carr e Kemmis (1988) propõem a ideia de uma ciência educativa crítica, na qual a prática não deriva exclusivamente da teoria, uma vez que implica um compromisso com o melhoramento da educação por parte dos pesquisadores de dentro e de fora do processo educativo.

Neste sentido, o Grufopees (CNPq/Ufes) alicerçado em Jurgen Habermas, entendendo a importância da autorreflexão para se chegar à emancipação humana, tem se dedicado em propor ações formativas pela via da pesquisa-ação em seu caráter crítico e colaborativo, ancorados também em Carr e Kemmis (1988). Destarte, adiante, apresentamos um breve histórico acerca da pesquisa-ação crítica e das formas como essa metodologia tem sido utilizada pelo Grupo, apresentando evidências da importância de se pensar em ações coletivas de formação e reflexão, a fim de se chegar à uma razão emancipatória.

 

4 A PESQUISA-AÇÃO E A FORMAÇÃO CONTINUADA

Antes de adentrarmos na pesquisa-ação crítica, é interessante entendermos o estado da pesquisa científica, da educação e da sociologia no século XIX e na primeira metade do século XX, décadas que antecederam o surgimento da pesquisa-ação. Em contexto europeu, na França, o sociólogo Émile Durkheim põe em evidência os fatos sociais “tudo aquilo que habita nossas mentes e que serve para nos orientar como devemos ser, sentir e nos comportar” (THOMAZ; SANTOS, 2012, p. 9), que passam a ser considerados objetos de estudo.

O autor traz grandes contribuições para o campo das ciências sociais, mas ainda havia um viés objetivista e empírico, nos quais apenas aquilo que é observável tem sentido, constituindo uma visão positivista do conhecimento científico. Desta forma, o positivismo pregava a objetividade e a unicidade deste conhecimento, considerando as condições necessárias para que o fato social pudesse ser observado e analisado, resultando em um conhecimento único, acabado e verdadeiro. As características dessa corrente de pensamento não encontraram forças nas ciências humanas e sociais, justamente porque nesses campos os objetos de estudo são fenômenos complexos, repletos de subjetividades e não podem ser tomados como verdades absolutas.

Surge, assim, a necessidade de analisar e compreender os fatos sociais e educacionais contextualizadamente, isto é, entender os contextos sócio-históricos dos objetos de pesquisa, posto que este objeto está colocado em um determinado momento histórico, em uma determinada sociedade, sofrendo influência dos modelos político e econômico vigentes e sendo transpassado pela subjetividade que constitui o ser humano. Nesse sentido, Marx, no século XIX já havia nos dado indícios da importância de se pensar a influência dos aspectos políticos e econômicos nas relações entre as pessoas, principalmente no tocante à vida para o trabalho, ressaltando a necessidade de os proletários refletirem sobre suas condições de vida, empreendendo processos emancipatórios (MELO, 2013). Sob influência do marxismo e do materialismo histórico-dialético, autores como Dilthey, Simmel e Weber defendiam a primordialidade de compreender as situações sociais antes de explicá-las (BARBIER, 2007).

Essa breve contextualização é necessária para produzirmos um panorama das ciências e entendermos como a pesquisa-ação surge enquanto metodologia de pesquisa científica. Kurt Lewin acreditava que a resolução de conflitos sociais poderia melhorar a condição humana e uma das possibilidades de solução desses conflitos se dava por meio do aprendizado, do entendimento e da reestruturação da percepção do mundo do grupo ao qual o indivíduo pertence (LORENZI, 2021). Deste modo, a pesquisa-ação surge como metodologia de pesquisa propondo como questão central a implicação do pesquisador proponente com o contexto em que estivesse pesquisando, propondo intervenções a fim de promover mudanças reais na realidade concreta.

No sentido de pensar a pesquisa-ação na área da educação, influenciados pelos pressupostos de Jürgen Habermas acerca da emancipação dos sujeitos pela via da construção do conhecimento e da ciência social crítica, os australianos Carr e Kemmis (1986), concebem a origem dos problemas educacionais enfrentados pelos docentes na diferença entre a realidade prática e a interpretação que eles têm sobre ela. Por consequência, argumentam que resolver as problemáticas enfrentadas, “implica em melhorar a efetividade das teorias que os professores utilizam para conceituar suas atividades” (SILVA, 2017, p. 230) e, para isso, apresentam a possibilidade da pesquisa-ação crítica, uma pesquisa que deveria ser realizada para a educação ao invés de sobre a educação.

Carr e Kemmis (1988) inspirados na espiral cíclica proposta por Lewin, vão defender a espiral autorreflexiva na pesquisa-ação. Espiral que “[...] vincula a reconstrução do passado com a construção de um futuro concreto e imediato através da ação. E vincula o discurso dos que intervêm na ação com a sua prática do contexto social” (CARR; KEMMIS, 1988, p. 198, tradução nossa), atribuindo aos autores do processo o papel de agentes históricos, que adquirem consciência de si mesmos como produto e como produtores da sua história.

Para Carr (2019) a pesquisa-ação crítica é tida como “resultado de uma tentativa de fornecer à pesquisa-ação o tipo de fundamentação teórica que tão obviamente carecia e fornecer a uma ciência social crítica o tipo de método de pesquisa que poderia dar-lhe expressão” (p. 17, tradução nossa). Nesse sentido, a pesquisa-ação crítica pode ser vista como um modo de superação das limitações da ciência social crítica e vice-versa.

Diante disso, essa perspectiva tem sido reiteradamente adotada quando se trata de formação continuada de profissionais da educação, tanto por professores universitários como por alunos da pós-graduação, dado que as pesquisas têm apontado a necessidade dessa formação estar ancorada nas demandas formativas dos professores, a partir de seu local de trabalho e de sua realidade, além de superar a dicotomia entre teoria e prática e o caráter pontual das ações formativas (FÜRKOTTER, et al., 2014).

Ao mesmo tempo em que a formação de professores tem sido encarada como a solução dos problemas para melhorar a educação, tem sido também objeto de críticas que remetem aos aspectos ligados à sua eficácia e relevância na preparação de professores para as escolas do século XXI (FLORES, 2015). Nesse sentido, Pimenta (2002) propõe que o professor seja um intelectual crítico e reflexivo, para que a prática de reflexividade não seja deslocada da realidade e nem se dê de forma individualizada pelo docente, para que não caiamos no praticismo da formação, ressaltando o caráter público e ético da reflexão e defendendo os espaços-tempo de formação necessários aos professores. Desta forma, a pesquisa-ação tem sido apontada como uma possibilidade de superação de práticas engessadas, como uma forma de compreender o professor como autor do seu próprio processo de formação, tanto na inicial (RIBEIRO, 2020), quanto na continuada (ALMEIDA, 2004; ALMEIDA et al., 2021).

Carr e Kemmis (1988) discutem como os diferentes modos de investigação educativa implicam diferentes enfoques da relação teoria e prática, incorporando diferentes tipos de transformações na educação. Apontam que o positivismo contempla a reforma da educação como um assunto técnico e a investigação interpretativa neste contexto tem um caráter prático. Em contrapartida, advogam acerca de uma ciência educativa crítica, de caráter participativo e colaborativo, atribuindo um viés crítico para a investigação educativa, na qual se insere a pesquisa-ação. Deste modo, concebendo a pesquisa-ação como uma forma de indagação autorreflexiva que empreende os participantes em situações sociais em vista de melhorar a racionalidade, a justiça e o entendimento das suas próprias práticas, os autores defendem os quatro momentos da pesquisa-ação no contexto educacional.

Observa-se que os momentos de organização e de reflexão ocorrem na condição do discurso entre os participantes, e os momentos de ação e observação são realizados na prática do contexto social educativo. Baseados na ciência social crítica de Habermas, os autores tomam a autorreflexão como possibilidade de superação e libertação de processos repressivos existentes no contexto educacional, portanto, por meio de movimentos auto formativos, os profissionais da educação que participam da pesquisa-ação podem se libertar das amarras que os prendem (CARR; KEMMIS, 1988).

Defendemos aqui uma concepção de formação continuada que transcenda o status de mero suprimento de carências da formação inicial ou como resultado do acúmulo de informações, e, ainda, que vá além de promover especializações ou pós-graduações em diversas áreas. No sentido de avançar quanto às ações formativas vigentes, Almeida (2004) considera que a formação continuada necessita transcender aos modelos instituídos e mais difundidos, como palestras e cursos no interior das escolas. A autora aponta a possibilidade de grupos de estudos e reflexão com pesquisadores acadêmicos e pesquisadores participantes, como forma de efetivarmos uma formação que dialogue com a teoria e prática, que busque, a partir da autorreflexão crítica e coletiva, o desenvolvimento profissional docente e, por consequência, o crescimento da escola como organização social.

Nessa perspectiva, Almeida et al. (2021) nos mostram como uma conduta de luta política promove um processo de emancipação de gestores públicos, pela via de uma formação continuada reflexivo-crítica, sustentada na perspectiva de uma pesquisa-ação crítica. Os movimentos dos gestores no processo de pesquisa e formação nos mostra a possibilidade de superação dos modelos técnicos e instrumentais. As concepções dos gestores sobre formação reflexivo-crítica e as suas consequências para a melhoria da qualidade educacional e a elaboração de políticas de formação inclusiva, reverberam no modo como eles têm se colocado como gestores-pesquisadores, constituindo-se como autores do processo formativo.

Da mesma forma, pesquisas realizadas pelos membros do Grufopees (CNPq/Ufes) têm apontado a pesquisa-ação como a metodologia capaz não só de constituir os participantes como pesquisadores, mas também como capaz de superar os desafios encontrados no cotidiano escolar (ALMEIDA, 2004; VIEIRA; RAMOS, 2012; ALMEIDA; SILVA; ALVES, 2017; BENTO, et al., 2018; BUSS, et al. 2018; SILVA F., 2019; SILVA N., 2019; BENTO, 2019; VIEIRA, 2020; QUEIROZ, 2021; BRITO, 2021).

Os autores Buss et al. (2018) discutem a necessidade da formação continuada voltada à inclusão para professores, quando apresentam um discurso frequente dos professores, ao chegar um estudante público-alvo da Educação Especial à sala de aula, que se exprime na fala “Eu não tive preparação [formação] para atender este aluno!” (p. 201). Para eles, a aprendizagem, por meio dessa formação, permite a criação coletiva compartilhando conhecimentos que sejam capazes de produzir transformações no contexto escolar e nos próprios profissionais educacionais, a fim de atender a diversidade na sala de aula.

Nessa perspectiva, a formação continuada requer a construção de espaços onde os profissionais da educação possam produzir conhecimentos coletivamente, preparando-os para os novos e crescentes desafios da educação. Os autores apontam as ações formativas realizadas no município de Santa Maria de Jetibá/ES, que partiram de temáticas sugeridas pelas profissionais participantes da pesquisa-ação, e foram produzidas com elas, tornando-as produtoras e colaboradoras dos conhecimentos construídos coletivamente no espaço escolar onde atuavam.

Corroborando os autores, Silva F. (2019) buscou compreender uma perspectiva de formação continuada que favorecesse a construção colaborativa e crítica, garantindo a participação ativa dos professores e demais profissionais da educação, considerando-os como autores-atores de seus contextos, bem como de seus processos de aprendizagem. Alicerçada na pesquisa-ação colaborativo-crítica, a autora empreendeu grupos de estudo-reflexão como uma alternativa à lógica tradicional de formação docente, propondo outra lógica, sustentada na racionalidade comunicativa (HABERMAS, 2012a).

Silva F. (2019) considerou ainda alguns pressupostos necessários às ações formativas voltadas à inclusão escolar, pela via da pesquisa-ação, tais como: Relação dialética entre teoria e prática, na qual o grupo de estudo-reflexão impõe um engajamento dos envolvidos para a compreensão da realidade por meio de aprofundamento teórico-prático; O professor como sujeito de conhecimento; A escuta sensível de Barbier (2007), a fim de assegurar espaços discursivos que garantam aos membros do grupo oportunidade de fala livre de restrições ou coações; e A autorreflexão colaborativo-crítica, pois ao passo que aprofundamos a compreensão da realidade e dos condicionantes que as determinam, construímos novos conhecimentos por meio de um processo investigativo.

No mesmo sentido de construção de espaços para produção coletiva de conhecimentos, Queiroz (2021) sustentado no agir comunicativo de Habermas (2012a), evidencia a necessidade de superação da perspectiva tradicional de formação de professores, baseada em uma racionalidade instrumental. Indica modos de se pensar a formação na perspectiva crítica, como possibilidade para sustentar práticas pedagógicas inclusivas, de cunho reflexivo-crítico e emancipatório, alicerçado na pesquisa-ação colaborativo-crítica.

Para ele, a política de inclusão necessita de um novo olhar por parte dos professores, se desvencilhando dos paradigmas dominantes e promovendo uma formação continuada sólida. O autor também nos chama atenção:

 

É necessário realizar a inclusão. É necessário acreditar na inclusão. É necessário errar tentando edificar a inclusão em nossas escolas. É necessário acertar nas diferentes formas de pensar e de buscar subsídios para a inclusão. E, acima de tudo, é necessário vencer os antigos paradigmas de que não se pode fazer o que não se sabe fazer. A inclusão na escola precisa de um misto de coragem e vontade, traduzidas em disponibilidade para o novo (QUEIROZ, 2021, p. 65-66).

 

Nesse seguimento, Almeida, Silva e Alves (2017) defendem a importância de que os profissionais, sejam da educação básica ou do ensino superior, estejam envolvidos na construção de conhecimentos com o outro, como possibilidade de constituição de ações formativas que assegurem o direito à inclusão escolar. Os autores, ao empreenderem uma ação formativa com gestores de educação especial, figuras que atuam nos setores das secretarias de educação dos municípios capixabas, ressaltam o processo de conscientização e de aprendizagem no grupo. Pesquisadores-acadêmicos e pesquisadores-gestores elaboraram, juntos, novas propostas políticas de formação continuada para seus municípios.

Vieira (2020) entende que os gestores municipais ou de setores estaduais das redes de ensino são os profissionais responsáveis pela condução das políticas públicas, visando a garantir a educação como direito de todos, bem como pelos processos de formação, desenvolvimento e implementação de políticas públicas, além da gestão de recursos humanos e financeiros da área. Desta forma, a autora ressalta, por meio da pesquisa-ação, a trajetória formativa dos gestores de Educação Especial, os processos de negociação e organização para a constituição de um Fórum de Gestores de Educação Especial do Estado do Espírito Santo e as ações disparadas por esse movimento.

Ao contribuir com o avanço do conhecimento no que se refere a formação continuada do gestor público de Educação Especial, Vieira (2020) advoga pela necessidade dos gestores e demais profissionais da educação, ocuparem o espaço de discussão política, que interfere na gestão, buscando garantir a inclusão dos alunos público-alvo da Educação Especial na escola comum, contribuindo para superarmos a discriminação, trabalhando na perspectiva inclusiva, sensível às diferenças individuais e culturais das minorias.

Por fim, Bento et al. (2018) nos mostram como os pesquisadores-acadêmicos e os pesquisadores-gestores do município de Marataízes/ES construíram uma política de formação continuada na perspectiva da inclusão, por intermédio da metodologia de pesquisa-ação colaborativo-crítica, com base no diálogo. Para as autoras, o processo inclusivo é percebido “quando nas regionais os gestores começam a se organizar para receber e oferecer as condições de aprendizagem a todos os alunos, preocupando-se com a formação contínua de todos os profissionais da escola: isso é uma concretização da política inclusiva” (p. 197).

 

5 CONCLUSÃO

Compreendemos que para Adorno a autorreflexão está atrelada diretamente à liberdade, ao pensamento crítico e à autonomia, que guiam o indivíduo para a emancipação. Enquanto para Habermas, a autorreflexão vincula-se à linguagem e à comunicação, entre dois os mais sujeitos, que os guiam para a emancipação. Carr e Kemmis (1988) inspirados na espiral cíclica proposta por Lewin e na autorreflexão de Habermas, vão defender a espiral autorreflexiva na pesquisa-ação.

Entendemos a pesquisa-ação como uma metodologia de pesquisa que busca entender o contexto o qual se pesquisa, compreender quais são as problemáticas sociais e educacionais que são postas ali, para então refletir por meio da autorreflexão crítica e propor mudanças e transformações coletivamente e de forma democrática. A perspectiva da ciência educativa crítica aponta para a possibilidade de comprometermos os educadores, os educandos, a família e os gestores escolares com as análises críticas de suas próprias situações com vistas a transformá-las de tal maneira que essas situações melhorem para todos.

E, neste sentido, voltando aos pressupostos Habermasianos de autorreflexão e emancipação, a pesquisa-ação se torna uma possibilidade de melhorar a prática educativa, incorporando os valores de uma ciência educativa crítica, pois o grupo de participantes assume conjuntamente a responsabilidade do desenvolvimento da prática, dos entendimentos e das situações, socialmente construídos nos processos interativos da vida educacional. Assim, na pesquisa-ação crítica, as comunidades autorreflexivas de investigadores podem influenciar na política e na prática educativa (CARR; KEMMIS, 1988), indicando-nos contribuições dos postulados habermasianos para com a formação humana, pela via da emancipação dos sujeitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Mestranda em Educação (PPGE/UFES).

[2] Mestranda em Educação (PPGE/UFES).

[3] Doutorando em Educação (PPGE/UFES).

[4] Graduando em História e bolsista de Iniciação Científica (UFES).

[5] Professora Doutora (CE/PPGE/UFES).