SOBRE O POLÍTICO DA INFORMAÇÃO

algumas considerações sobre a ontologia digital

Jackson da Silva Medeiros[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

jacksonmedeiros@outlook.com

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Resumo

O trabalho busca suscitar questões e inferências sobre a utilização de plataformas digitais de comunicação, como conformações capitalistas entendendo que esses ambientes agem na incorporação de significações, com seus sentidos, na mediação de um sistema ideológico-discursivo que age nos sujeitos e na sociedade. Para tal, situa a informação como um dispositivo, um infômato que sempre medeia e armazena e é capaz de formar e ser formada, alicerçada em conjuntos de pertencimentos em contínuos significados compartilhados. Reflete sobre a compreensão discursivo-ideológica da informação, sua capacidade de agir como máquina performativa. Ao olhar para uma ontologia sobre o político da informação é possível reconhecer uma reflexão crítica sobre as mediações que constituem a informação enquanto objeto social.

Palavras-chave: discurso; ideologia; plataformas digitais de comunicação; sentido; máquina performativa.

ON INFORMATION POLITICAL

some considerations about digital ontology

Abstract

The work seeks to raise questions and inferences about the use of digital communication platforms, as capitalist configurations, understanding that these environments act to incorporate meanings in the mediation of an ideological-discursive system that acts on subjects and society. To this end, it situates information as a dispositif, an information system that always mediates and stores and is capable of forming and being formed, based on sets of belongings in continuous shared meanings. It reflects on the discursive-ideological understanding of information, its ability to act as a performative machine. When looking at an ontology about the political of information, it is possible to recognize a critical reflection on the mediations that constitute information as a social object.

Keywords: discourse; ideology; digital communication platforms; meaning; performative machine.

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O trabalho que aqui é publicado não está em vias de conclusão e provavelmente nunca estará, mas é posto como um emaranhado de linhas, de leituras, de pensamentos, de possibilidades que por vezes se conectam, por vezes se distanciam. Não pretendo aqui uma ordem de pensamento, uma estrutura que subjugue as ideias, mas, sim, propor. Quero, então, propor uma reflexão sobre o político da informação e sua atuação no sujeito. Apresento, como disse, linhas; espero que paralelas e que se encontrem no infinito.

 

 

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Inicio recordando episódios recentes da história brasileira. No dia 12 de dezembro de 2022, golpistas tentaram invadiram a sede da Polícia Federal em Brasília em reação (?) à diplomação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Os vândalos, os quais se aglomeravam em acampamentos montados em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, exigiam golpe militar (ou intervenção federal) em favor do ex-presidente (e inelegível) Jair Bolsonaro. Além da depredação ao patrimônio público e privado, um soar discursivo da baixa repressão àquilo foi disparado. Já em 8 de janeiro de 2023, houve uma série de invasões e de depredações ao patrimônio público cometidos por uma multidão de fascistas que invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal na tentativa de instigar um golpe militar-teocrático contra o governo Lula e restabelecer o inelegível Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Tudo realizado com planejamento discursivo, em síntese, baseado em informações falsas sobre urnas eletrônicas e sobre o sistema eleitoral brasileiro, alicerçado em financiamento de acompanhamentos e de transporte para golpistas, constituindo entendimento sobre uma deterioração do compromisso democrático.

Ainda em 2022, no dia 24 de dezembro, a Polícia Civil do Distrito Federal detonou um explosivo colocado em um caminhão de combustível próximo ao Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, em Brasília. No mesmo dia, um dos responsáveis foi preso. Segundo as investigações, o homem era morador do Pará e teria ido para a capital federal para participar das manifestações golpistas-antidemocráticas que, naquela época, se assentavam nos arredores do quartel-general em Brasília. Com o homem foram apreendidas espingardas, fuzil, revólveres, pistolas, munições e uniformes camuflados, bem como emulsões explosivas.

Após ser autuado por terrorismo, informou que houve “motivação ideológica”. No auto de prisão em flagrante, a tal “motivação ideológica” para compra de armamentos, é descrita como advinda de uma declaração do ex-presidente (e agora inelegível) Jair Bolsonaro: “O que me motivou a adquirir as armas foram as palavras do presidente Bolsonaro, que sempre enfatizava a importância do armamento civil dizendo o seguinte: ‘um povo armado jamais será escravizado’”. No depoimento à Polícia Civil, ainda acentua que a intenção dele e do grupo golpista-antidemocrático era estabelecer uma intervenção militar e a decretação de um estado de sítio para “impedir a instauração do comunismo no Brasil”. Outro responsável pelo ato terrorista se entregou à Polícia Civil de Mato Grosso no dia 17 de janeiro de 2023 e foi transferido para Brasília no dia seguinte. Em depoimento à Polícia Civil do Distrito Federal, confessou participação na tentativa de atentado em Brasília, alegando a ideia de “provocar uma intervenção militar”.

Em 11 de maio de 2023 dois envolvidos no caso foram condenados a nove anos e quatro meses de prisão e cinco anos e quatro meses de prisão por expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outro mediante colocação de dinamite ou de substância de efeitos análogos em um caminhão-tanque carregado de combustível, bem como causar incêndio em combustível ou inflamável. Além disso, um deles ainda foi condenado por porte ilegal de arma de fogo e artefato explosivo ou incendiário. O terceiro, condenado a 6 anos de prisão, estava foragido e foi detido no Paraguai em setembro de 2023.

Comissões Parlamentares Mistas (ou não) de Inquéritos (CPI/CPMI) foram abertas tanto no Congresso Nacional quanto na Câmara Legislativa do Distrito Federal com o intuito de investigar os chamados Atos Antidemocráticos ocorridos em Brasília nos dias 12 de dezembro de 2022 e 8 de janeiro de 2023. Em sessão do dia 29 de junho deste ano, entre muitas declarações e supostos arrependimentos, um dos criminosos afirmou que grande parte dos protestos teria causa na necessidade de informações sobre o código-fonte das urnas eletrônicas. Ao ser indagado sobre o que é o código-fonte, objeto reclamado em sua protestação, sua primeira reação foi dizer “era isso o que eu queria saber”. Então seguiu: “Se fosse para não ter estimulado a população, por que deixaram as redes sociais informar sobre esse código que dava a certeza se o Bolsonaro havia ganhado ou não, se o Lula havia ganhado ou não? Então não cabe a mim dizer o que é porque eu não sou entendido e eu não sei responder essa pergunta. Então, se deixaram estimular as pessoas do Brasil inteiro, por que os parlamentares o deixaram, se eles poderiam impedir esse tipo de informação?”. Ao ser indagado mais uma vez sobre o que seria o código-fonte, finalmente foi assertivo: “Eu não sei o que é código-fonte.”.

Diversos outros cenários do Brasil atual poderiam ser lembrados, mas rememoro esses atentados para salientar um canal vetor de disseminação de informações: as plataformas digitais. Utilizo para suscitar questões e inferências sobre a utilização de plataformas digitais de comunicação como conformações capitalistas, a disseminação de informação e desinformação etc., mas entendo que há perguntas antecedentes: como esses ambientes, essas plataformas agem na incorporação de significações, com seus sentidos, como isso atua como mediação de um sistema ideológico-discursivo que age nos sujeitos e na sociedade? Claramente não terei resposta fechada para isso, mas trago as linhas que mencionei.

 

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Aproveitando o tema central dos Colóquios (“Democracia em reconstrução: justiça social e sustentabilidade ambiental”), quero entrar em uma discussão que, obviamente, considero profícua, sobre o político da informação. Sinto-me compelido a trabalhar esse ponto porque, embora busque elementos ligados à Filosofia da Informação para uma tentativa de analisar determinados fenômenos, profissionalmente situo-me na área de Ciência da Informação e tenho percebido, já de longa data, que, em alguns casos, os estudos de informação deixam escapar elementos mais aprofundados sobre questões epistemológicas e ontológicas, principalmente quando ligados às técnicas e às tecnologias, visualizando objetos que se findam neles mesmos e deixando ao largo o entendimento político dos sentidos, a própria desmistificação dos objetos, enfim, aglomerando analistas de objetos-síntese em sua forma alienante, ou, como nota Bucci (2023), num fetiche sobre a impessoalidade maquínica, ocasionando, assim entendo, uma espécie de condescendência criadora de naturalizações que se impõem a partir de relações de poder na sociedade, afugentando ou silenciando discussões de cunho não dominante e deixando de perceber o sentido político da informação, o que pode levar ao controle de comportamentos e a destituição de sistemas democráticos, por exemplo.

Essa não é uma crítica endereçada exclusivamente aos estudos de informação. Colin Koopman (2019) tem uma visão próxima a isso no que se refere aos estudos de comunicação. Para o filósofo, as teorias críticas contemporâneas focadas nas teorias da comunicação perpetuam a negligência da própria discussão sobre política da informação porque não interrogam a informação. Dessa maneira, há necessidade de confrontar de forma mais completa o significado social da informação ou dos dados para além das suas funções comunicativas. A preocupação de Koopman está na analítica dos formatos, levando aos estudos sobre a política de algoritmos, plataformas e protocolos que sugerem uma mudança além do horizonte da comunicação, avaliando outras modalidades de mediação tecnológica da comunicação, o que traria à luz a política endógena da própria informação, promovendo vínculo entre comunicação e informação.

Estabelecer esse tipo de crítica só pode ser feito quando se interroga o sentido, o reflexo da informação ao nível da sua existência e não em modelos prontos que ignoram a análise de regimes em prol da quantidade ou da organização daquilo que alguns estudos de informação compreendem como informação. Os sentidos da produção e da recepção não possuem transparência e unilateralidade, fazendo parte do processo a ser investigado.

Isso não significa um alijamento de pensar os parâmetros técnicos – as tecnicalidades dos instrumentos –, uma vez que estes são componentes de manejo do receptor, inclusive com sua utilização sendo facultada à própria ferramenta. Não é aqui instigada uma ruptura que pretenda deixar de lado a relação com a forma, a qual é condicionante da técnica, do uso, mas, sim, como colocado a partir de Roberto Schwarz, no estabelecer um olhar sobre a crítica dialética, propondo que a obviedade não vale a pena; o sentido de algo está no investigar, desconfiar, pesquisar, recusar as aparências, consubstanciar intuições difíceis. A ideia, seguindo ao encontro de Schwarz, é um olhar sobre a forma a partir de um aparato social, possibilitando o exame dos seus aspectos sociais; a atuação da forma é como um “esquema prático” programado a partir das condições históricas que a constituem, requisitando o estabelecimento de confrontos que permitam reconstruir a condição prática mediadora, deixando de encerrar qualquer análise na manifestação singular da própria forma.

Tomo a inscrição de Safatle (2020, p. 20) de que “Cada regime de corporeidade tem seu modo de afecção” para designar que o político, e até mesmo a política, são baseados em incorporações das relações sociais experienciadas e à espera da normalização de afetos, das sensibilidades em situações diversas, com vistas à compreensão de autorreferência. Ou seja, uma normalização pela pretensa liberdade compreendida como “aquilo que se é” com a capacidade de identificar a diferença.

Entendo que há, aqui, um caminho para compreender a informação enquanto elemento de subjetivação do ser humano através da sensibilidade requerida pelas ações sociais que se moldam em relações de poder e de repetição que circulam e buscam impedir qualquer revolução. Entendo que esse caminho para olhar a informação a coloque como um dispositivo (Medeiros, 2017), mas também, ela própria, como um infômato (Han, 2022a) que sempre medeia e armazena (Trawny, 2020), sendo capaz de formar e ser formada, alicerçada em conjuntos de pertencimentos em contínuos significados compartilhados, em identificação (Hall, 2019).

Dessa forma, quanto a atividade de compreender uma ontologia sobre o político da informação o que se busca é a constituição teórica de uma dialética com a prática; não agindo na exclusão, mas na busca de contradições de processos de exploração, permitindo à teoria a negação da prática enquanto processo imediato, por isso sem mediação; a busca deve ser estabelecida a partir da compreensão da prática como atividade social, como algo produzido por esse entorno e que também o produz. Vislumbrar uma ontologia não significa uma definição estática, completa, fechada, rígida, muito menos transcendental, mas, sim, o questionamento do que a coisa é, bem como a possibilidade de enxergá-la na sua contingência, buscando mediações possíveis. Uma analítica que compreenda uma ontologia sobre o político da informação envolve a formação social do sujeito e deve ser centrada nos aspectos de sua historicidade. Significa, por isso, expor os elementos que fundamentalmente se colocam à experiência do ser através das mediações, das políticas que atuam na formação do sujeito como ser político e social. Ora, a informação, fazendo parte dessa constituição, como um problema a ser filosoficamente abordado, produz e é produzida por esses sujeitos em relações contínuas de ser, não apresentando forma ou temporalidade definidas; pelo contrário, muta-se a partir das especificidades que o político requer. Toda inscrição não é apenas isto ou aquilo, mas, sim, uma rede de sentidos construídos e desconstruídos que se coadunam e se afastam na perspectiva da própria ontologia.

Coloco isso porque as estratégias articuladas, como sabemos, não agem necessariamente de maneira explícita, mas, muitas vezes, no inconsciente humano, sendo capazes de alicerçar a construção de subjetividades, atuando na produção de sentidos, no aparato de conhecimento, nas formas de agir, no consumo, no pensar etc., em processos que moldam sujeitos e sociedades. Colocam-se, assim, na pauta do poder em que os sentidos (amplo senso) se colocam nos sujeitos, o que é potencializado pelas plataformas digitais de comunicação e sua ubiquidade atual e onde espaços aparentemente não delimitados são controlados por indústrias de dados. Para isso, tenho como fundo a noção, um tanto óbvia, de que não há plataforma midiática que não se constitua de sentidos, mas, pelo contrário, os constitui, organiza e dissemina por estímulos. A informação, enquanto parece neutra, enquanto pode parecer deslocada de sentido político, provê, ainda que seja de difícil análise, sentidos diversos que constituem sua ação política na constituição de sujeitos e da sociedade.

Encaro, com isso, a informação como uma espécie de dispositivo foucaultiano e que o trabalho de investigação deve ser dado sobre a linguagem. Informação pode ser assim compreendida como um tipo de código que, através de hibridação reúne elementos diversos e pouco visíveis e encapsulados nessa tecnologia, sendo capaz de estabelecer e ser estabelecida por uma política que acolhe discursos e os constrói e dissemina como verdadeiros. A informação seria assim um dispositivo de controle, deixando claro que informação não pode ser discutida exclusivamente por si mesma ou pelos meios de comunicação. A pesquisa sobre informação deve ser dada também pelo espaço que a constituiu e que admite a produção de sentido, ou seja, pelas mediações que se apresentam como neutras, naturais, mas que, em verdade, fabricam sujeitos a partir dos caminhos que [a informação] percorre, moldando, recolhendo estruturas e práticas, construindo e reconstruindo discursos. Os sujeitos também devem estar no rol de análises não como assujeitados a esses dispositivos, mas como partícipes ativos, sendo também um espaço a ser investigado (Medeiros, 2017; 2021).

 

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Não posso deixar de lembrar de Stuart Hall quando comenta sobre a constituição das audiências, as quais compartilham alguns referenciais de entendimento e interpretação, compartilhando significados que provêm de uma compreensão institucional, como o local de trabalho ou estudo, a família, a igreja etc. que, como “comunidades interpretativas” fornecem insights básicos e formalizados daquilo que constitui a informação a ser consumida e interpretada, podendo estar vinculadas às categorias sociológicas múltiplas e atravessadas, uma vez que “O discurso e a ideologia possuem suas próprias estruturas e elas não correspondem às estruturas econômicas ou sociais de maneira simples.” (Hall, 2013b, p. 421), excluindo a possibilidades de elementos isolados.

Em termos biológicos, as próprias estruturas básicas se sustentam a partir de dois pilares: a manutenção da vida, em sentido conservador, e a possibilidade de reprodução para perpetuação. Começando a pensar essa proposição sobre alterações corporais e fisiológicas a partir de percepções, propostas por António Damásio, a construção de mentes não se dá a partir de objetos isolados, mas, sim, em uma combinação que liga nervos e corpos e seu envolvimento social; a própria evolução desse caráter se dá nesse ambiente social que, em constituição, é político. Ora, não se há de separar por onde os sujeitos se constituem, pelas maneiras com que se constituem, pela composição social que lhes atinge e os forma em critérios de suas próprias subjetividades, mas compreender que não existe ser sem sentimento de existência, isto é, toda imagem (entendamos “imagem” em sentido amplo) recebida está acoplada em sentimentos. É possível dizer que no âmbito biológico os organismos buscam regular automaticamente os desvios que levam a limites máximos e mínimos, ou seja, atuam na otimização da busca pela regulação de possíveis variações. Essas atuações no corpo são educáveis, como maquinarias civilizatórias até certo ponto facilmente aprendíveis a partir de instruções que podem ser vistas em termos políticos, levando em consideração aspectos culturais que podem ser instituídos.

Como observa Araújo (2021), isso ocorre porque há ligação profunda entre ideologia e imagem pois imagens e ideias se posicionam como “re-apresentações” da dimensão ontológica do simbólico, constituindo uma ordem social que se coloca na, para e pela experiência do sujeito. Ainda segundo o autor, o ambiente digital secciona a atenção das pessoas, fazendo com que a imagem provoque sensações capazes de conduzir o sujeito a um modelo próprio de si e que faça isso a partir da oferta de conteúdos que coordenam relações sociais. Há então uma virada na constituição da ideologia de sua forma clássica para princípios argumentativos mais elaborados capazes de conformar a experiência social por meio de imagens. Arrisco dizer que esses discursos instituídos pelas plataformas digitais de comunicação preenchem lacunas que são próprias do sujeito como ser contingente. Deleuze, nos anos 1990, já mostrou esse caminho. Esse ser fragmentado é povoado por essas fissuras que necessitam de complemento, mas não vou entrar nesta discussão agora.

Assim, me filio a Stuart Hall para uma compreensão a partir de processos de contínuas significações e ressignificações das bases culturais existentes. Isso se desenvolve a partir de discursos que permitem significar o mundo, atribuindo sentido a ele, fundado em experimentações da ordem do discurso vigente e, por causa dessa capacidade experimentativa, passível de transformação dos sentidos já estabelecidos, já que os processos de codificação e de decodificação, como apresentados por Hall, são relativamente autônomos ao mesmo tempo em que se influenciam mutuamente a partir de articulações postas em prática, não fixando significados, mas coordenados por um mapa de sentidos.

A informação se coloca em dois movimentos, de estabilização e desestabilização. No primeiro caso, lança mão da construção de se sustentar em uma ordem discursiva que mantém a constituição hegemônica dominante e, ao mesmo tempo, na desestabilização, que não controla esses mecanismos de fixação. Dessa maneira há claramente a participação em um jogo de construção daquilo que é visto como “natural”, mas que, por características que necessitam de performance para acontecer, precisam ser construídas como imaginadas. Enquanto revela sentimentos, ilusões, imaginários, a informação pode despertar seu funcionamento mitológico, onde pouco importa a veracidade de algo, se os discursos são condizentes com o que factualmente ocorre, baseando-se em “narrativas”. O que ela busca é identificar e fixar significados, por mais inverossímeis que possam parecer, com a função performativa de construir um discurso, uma ideologia, estabelecer uma performance condizente com aquilo que opera o/no próprio corpo.

Isso nos remete a algo que muitas vezes é perdido em análises: a sensibilidade. Diego Sztulwark, em A ofensiva sensível, alerta para técnicas que são capazes de realizar essa gestão da sensibilidade, atuando como peça-chave do neoliberalismo. Nesse aspecto, as técnicas de modulação emocional são aspectos que devem ser analisados como regulações do fluxo emocional dos envolvidos, o que aparece como eventos aleatórios que circulam silenciosamente e tomam as micropolíticas como favorecimento ou bloqueio de acontecimentos históricos e permitem tanto a subordinação quando o aparecimento de novas formas. Isso remete, ainda de acordo com Sztulwark (p. 46), ao objetivo último da disputa pela sensibilidade: “[...] o saber sobre os corpos que a razão pura não chega a compreender.”.

E se “Sentimentos não são eventos apenas neurais. [...] Sentimentos são fenômenos cem por cento simultâneos e interagentes do corpo e do sistema nervoso”, como observa Damásio (2018, p. 147), indo ao encontro político mencionado, ensina Foucault, entre outros, que a relação com o mundo se dá pelo corpo e no corpo, onde a constituição dessa sensibilidade está diretamente ligada à constituição do corpo como objeto político, social, o que permite as intervenções em sistemas ligados a ele, isto é, a utilização da informação como processo de constituição do próprio sujeito e do mundo que o cerca. A informação, neste sentido, se torna a própria imagem do corpo como objeto social, uma vez que isso proporciona uma relação de compreensão do sistema externo baseado em continuidades que dão estabilidade, ao menos em percepção, ao sistema interno (Damásio, 2018).

Considerar os sentimentos, o sensível, como emoções, é colocar esses fenômenos em condição de não cumprir papel inferior ou descartável na constituição do sujeito, deixando de lado uma pretensa acreditação no racionalismo cartesiano para apreender o mundo. Ao assumir que sentimentos têm papel relevante nessa hipótese, são capazes de assumir e dispor significados cooptados e colocados em “estado político”, associando o processo de significação a algo que sempre estabelece linhas de fuga, sendo sempre indeterminado, constituídos a partir de situações performativas que visam coordenar pontos políticos da vida social. Aqui, para deixar claro, não falo de significações conscientes, de imagens bem definidas e ponderadas daquilo que constitui o político, mas, sim, de performances dessas formações que, subjetivamente, compõem o corpo e o mundo social a partir de determinados discursos e ideologias como guias de movimentos.

 

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Isso tem relação direta com as plataformas digitais, sobre a constante virtualização do mundo. É nesse cenário que, como anota, Byung-Chul Han (2022b, p. 37), “A racionalidade discursiva é ameaçada, hoje, também pela comunicação afetiva” capaz de trabalhar os sentidos que formam esse sujeito e que está ligado a um regime de informação como “[...] a forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos” (Han, 2022b, p. 7). Aqui falamos de um sujeito que não se dá por instâncias disciplinares, mas se constitui como ativo para o poder.

Ao pensar sobre plataformas digitais faz-se primordial refletir sobre suas estruturas técnica e política que atuam na manipulação de dados com intuito de gerar lucro para além do negócio financeiro, mas na financeirização da vida que se conecta ao modo neoliberal de existência, construindo uma lógica que, como apontam Bruno, Bentes e Faltay (2019), são uma nova moeda em que informações psíquicas e emocionais têm valor inestimável para além da ciência de dados atuando no controle do comportamento que pode orientar sujeitos para diferentes fins, fazendo com que o código por eles instituído seja visto como lei (Lessig, 2006) capaz de estabelecer a lógica permitida ou incentivada, limitando, oferecendo, incitando, conduzindo, enfim, controlando ações dos sujeitos. Isso faz com que esse sujeito não seja nem dócil, nem obediente, mas esteja engajado na sua constituição livre, autêntica e criativa, ao ponto de produzir-se e performar-se (Han, 2022b). Isso incita alguns questionamentos como “Se produz a partir de onde?” “Performa a partir de que modelo?” “Performa como imitação?”; o que se liga à reflexão de Han sobre a destituição do pensamento raciocinante que dá lugar ao gosto, às demandas criadas de inclinação de consumidores, em uma elevação do entretenimento como objeto superior à racionalidade.

Permito-me realizar aqui mais um jogo com as palavras de Butler (2020). A filósofa visualiza que o status imaginário do desejo, da sua relação de fantasia não tem no corpo sua base ou causa, mas, sim, como ocasião e objeto. Isso permite entender que o prazer tem uma parte imaginada daquilo que eventualmente a pessoa não possua, requerendo o exagero ou a diminuição. Então diz que a condição do desejo sempre excede o corpo físico pelo qual ou no qual age, o que faz com que o corpo culturalmente estabelecido seja produtor de imaginários e a eles esteja disponível. O sujeito se coordena por uma certa aparência de fixidez, de identidade que lhe seria própria, mantendo para si uma razão, um olhar que aponta para sua concepção autônoma de constituição de vida; o sujeito sempre alicerça o conhecimento sobre si próprio a partir da visão de unidade, indivisível, completo, o que o empreende como naturalizado.

Deve-se atentar, neste sentido, para o valor dado por Butler à questão da performatividade. Ainda que geralmente atrelada à questão de gênero, essa concepção, entendo, traz contribuições que, embora não seja possível tratamento completo aqui, quero deixar alguma tinta de registro, pois em tempos de plataformas digitais, a informação atua na surpresa, sem estabilidade, ainda que busque fixar sentido daquilo que apreende através de sua situacionalidade acessível e consumível, sempre disponível através da coisificação da linguagem, tornando seus aspectos datificados e capazes de predizer o comportamento humano, como uma máquina calculadora de desejos. O ambiente digital significa controlável, calculável, sem interesse na indisponibilidade que, quando existe, é apenas momentânea (Han, 2021).

Assim sendo, a noção de performatividade aqui trabalhada assume, ainda que em modo genérico, características daquilo que foi apresentado por Butler com a ideia de que o corpo reflete a partir da informação que o rodeia, o conduz, enfim, o produz e o incita em performance, como quando Butler cita o saber existente nos manuais de psiquiatria que produzem imagens sobre a (homo)sexualidade e conduzem modos reproduzidos pelos sujeitos que produzem a imagem modelar de si mesmos. Com isso, a condução dos corpos pelos próprios sujeitos remete ao modelo apresentado, seja de forma consciente ou inconsciente. A isso é permitido associar, ainda nas palavras da filósofa (2021, p. 124) que “[...] a comunicação é, em si mesma, uma forma de conduta.”, o que levaria o sujeito a performances naturalizadas que são construídas pelo compelir de atos performativos em conjuntos flutuantes que permitem criar corpos performativamente produzidos pelas práticas reguladoras de uma pretensa coerência (Butler, 2021) onde sujeitos performam a compreensão da racionalidade do sensível a partir de elementos históricos e socialmente construídos regidos pela linguagem coordenadora do que é aceito ou esperado do sujeito. “[...] por meio dos atos de locução dos sujeitos falantes” (Butler, 2020, p. 200), onde “[a linguagem] pressupõe e altera seu poder de ação sobre o real por meio de atos elocutivos que, repetidos, tornam-se práticas consolidadas e, finalmente, instituições” (Butler, 2020, p. 202) que se posicionam por “[...] práticas reguladoras da coerência cultural, impostas ao corpo por um regime de poder compreendido como uma vicissitude da “história”.” (Butler, 2020, p. 226).

Isso é relacionável com aquilo que já é claro em Foucault (pelo menos a partir de seu entendimento sobre biopoder) sobre a dificuldade em constituir o sujeito por meio da exclusiva disciplina, por caminhos que impõe situações de coerções declaradas; a atividade de produção de um sujeito por meios disciplinares deixa a desejar. A isso, Butler (2017, p. 99) acrescenta: “O corpo não é um lugar onde acontece uma construção; é uma destruição em cuja ocasião o sujeito é formado. A formação desse sujeito é, ao mesmo tempo, o enquadramento, a subordinação e a regulação do corpo, e o modo como essa destruição é preservada (no sentido de sustentada e embalsamada) na normalização.”.

O que acontece, à luz de Butler, é que a constituição do sujeito a partir daquilo que apresenta como ato performativo é produzido como efeito da verdade de um discurso. Esse performativo é dado pela dita performance repetida que “[...] sugere uma construção dramática e contingente do sentido” (Butler, 2020, p. 240), rearranjando a experiência dos significados já autorizados e que ritualmente legitimam o sujeito e suas práticas como condizentes com o que deles é esperado, deslocando não a definição, a fundação, a determinação, mas, sim, a regulação pela repetição de regras ocultas, consoante com o que apresenta Hall (2013a; 2013b) em relação a capacidade da política de construir e de reconstruir sentidos a partir da sua significação.

A informação é construída no espaço comunicativo em movimento, o que não significa que toda informação ali gestada determine o comportamento dos sujeitos, mas procura situar o político a partir de práticas significantes que permitem controlar a criação dos sujeitos, em olhar atual e digital, pelas plataformas digitais de comunicação regidas por algoritmos que, pela sensibilidade, funcionam como leis que gerem o corpo que performa um quadro dramático como via de mão dupla também no assunto informação. Dessa maneira, a informação que age a partir de plataformas digitais de comunicação atua por rápidos estímulos que não permitem que uma racionalidade seja construída a longo prazo, sendo empregadas como máquinas performativas, para usar terminologia de Paul Preciado, onde, como diz Han (2022, p. 30), “[...] não se trata de argumentos, mas de performance”, onde “Notícias se tornam similares a uma narrativa. A distinção entre ficção e realidade desaparece.” (Han, 2022, p. 29).

 

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Ao encaminhar para o final deste ensaio, é preciso considerar que a informação se tornou um fator estruturante da sociedade e não pode ser lida exclusivamente por ela, mas, sim, tomando em consideração seu âmbito político. Sua compreensão discursivo-ideológica, sua capacidade de agir como máquina performativa, são elementos articuladores de aspectos que não podem passar ao largo de qualquer analítica. Se por uma ontologia sobre o político da informação é possível reconhecer uma reflexão crítica sobre as mediações que constituem a informação enquanto objeto político e social, compreendendo feixes que atravessam e que são atravessados por essa entidade nomeada “informação”, sendo capaz de escrutinar a política de exibição que existe neste fenômeno, é importante lembrar onde isso está ancorado.

Isso se torna importante porque a política de uma sociedade define os modos com que a própria política atua. Nesse sentido, deve-se considerar que isso se desenvolve em uma sociedade capitalista baseada na economia de mercado, a qual busca o lucro e a acumulação pelos dominantes. Preceito básico deste tipo de sociedade é uma relação complexa entre capital e trabalho, uma vez que o trabalhador, por não dispor dos meios de produção, vende sua mão de obra para obter um salário, o que o coloca em posição de submissão ao capitalista. Isso faz com que o trabalho não seja um instrumento de desenvolvimento do sujeito, mas que obedeça às ordens da reprodução com vistas ao lucro e à acumulação, disseminando discursos inculcados pelas big techs – e é preciso admitir, com grande sucesso – que a solução dos problemas políticos, sociais, econômicos, éticos, estéticos etc. estão ligados exclusivamente à ordem técnica da informação e da comunicação. O político da informação age na relação entre a ação humana e a existência fenomenológica que articula, de maneira a organizar os espaços em movimento, principalmente com a capilaridade das plataformas digitais de comunicação. Essas máquinas performáticas apreendem saberes sobre os corpos, sobre as emoções que os coordenam e são capazes de colocá-los em adequação, compatíveis com os protocolos capitalistas-neoliberais.

 

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[1] Doutor em Comunicação e Informação. Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.