ASPECTOS DA PLATAFORMIZAÇÃO EDUCACIONAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA BRASILEIRA

a “Escola do Cansaço” na era do Big Data

Valéria Cristina Lopes Wilke[1]

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

valeria.wilke@unirio.br

Marcelo Santos Feijó[2]

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

marcelo.feijo@edu.unirio.br

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Resumo

Vivemos nos desdobramentos daquilo que Manuel Castells (2005) nomeou de Sociedade em Rede, em cujo cerne estão as Tecnologias de Informação (TIs). Ele indicou as características-chave do novo cenário que diagnosticou, a saber, são tecnologias que agem sobre a própria informação e que também introduziram a lógica das redes; que promovem a convergência tecnológica e, por conseguinte, um sistema altamente integrado de aparatos técnicos; e que acentuadamente penetram pelos diferentes processos e âmbitos sociais. De lá para cá testemunhamos grandes e rápidos saltos tecnológicos bem como o adensamento das transformações na dinâmica econômico-política organizacional e institucional e na construção das vidas humanas e não-humanas no planeta. Essas mudanças alcançaram não apenas modos informais de aprendizagem, mas também a educação formal. O objetivo desse artigo é discutir aspectos atuais da plataformização educacional presentes na educação básica brasileira, tendo como referência o ensino de Filosofia no Ensino Médio. Para tanto será desenvolvida reflexão sobre a plataformização educacional, fenômeno que diz respeito ao modelo de negócios presente na atual fase do capitalismo e que utiliza as plataformas sustentadas pela IA e também a constante extração de dados de quem transita pelas infovias do ciberespaço; sobre o que nomeamos como Escola do Cansaço, em diálogo com o conceito de Sociedade do Cansaço desenvolvido por Byung Chul Han; e sobre algumas implicações decorrentes que já se fazem presentes na administração do trabalho docente, na realização do trabalho docente e nas relações de ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: ensino de filosofia; plataformismo educacional; cibereducação; escola do cansaço; pedagogia em rede.

ASPECTS OF THE PLATFORMIZATION OF EDUCATION IN BRAZILIAN BASIC EDUCATION

the “School of Fatigue” in the Age of Big Data

Abstract

We live in the unfolding of what Manuel Castells (2005) named Network Society, whose core are Information Technologies (TIs). He indicated the key features of the new scenario that he diagnosed, namely, technologies that act on information itself and that also introduced the logic of networks; that promote technological convergence and therefore, a highly integrated system of technical apparatuses; and that sharply penetrate the different social processes and spheres. Since then, we have witnessed great and rapid technological leaps as well as the consolidation of transformations in the organizational and institutional economic-political dynamics and in the construction of human and non-human lives on the planet. These changes have reached not only informal modes of learning, but also formal education. The aim of this article is to discuss current aspects of the use of digital platforms in education present in Brazilian basic education, with reference to the teaching of Philosophy in High School. To this end, we will reflect on the platformization of education, business model present in the current phase of capitalism and that uses the platforms supported by AI, and also the constant extraction of data from those who transit through the Information Highway of cyberspace; about what we name as School of Fatigue, in dialogue with the concept of Burnout Society developed by Byung Chul Han; and on some implications arising that are already present in the administration of teaching work, in teaching practice and teaching-learning relations.

Keywords: teaching philosophy; platformization of education; cibereducation; school of fatigue; network pedagogy.

1  INTRODUÇÃO

Vivemos nos desdobramentos daquilo que Manuel Castells (2005) nomeou de Sociedade em Rede, em cujo cerne estão as Tecnologias de Informação (TIs), sendo que desde pelo menos a década de 1980 a chamada revolução digital foi fortalecida pelos novos incrementos técnicos que transformaram praticamente qualquer tipo de informação textual, sonora, visual, corpórea em bits.

Ele indicou as características-chave do novo cenário que diagnosticou, a saber, são tecnologias que agem sobre a própria informação e que também introduziram a lógica das redes; que promovem a convergência tecnológica e, por conseguinte, um sistema altamente integrado de aparatos técnicos; e que acentuadamente penetram pelos diferentes processos e âmbitos sociais.

Do momento da publicação das pesquisas de Castells para cá, ocorreram grandes e rápidos saltos tecnológicos bem como o adensamento das transformações na dinâmica econômico-política organizacional e institucional e na construção das vidas humanas e não-humanas no planeta. Essas mudanças alcançaram não apenas modos informais de aprendizagem, mas também a educação formal.

O objetivo deste ensaio é discutir aspectos atuais da plataformização educacional presentes na educação básica brasileira, tendo como referência a experiência no ensino de Filosofia no Ensino Médio. A discussão proposta faz parte da pesquisa do Mestrado Profissional em Filosofia em Rede, PROF-FILO – núcleo UNIRIO.

Para tanto serão considerados aspectos da relação da Sociedade em Rede com o processo em curso da Cibereducação, ressaltando implicações decorrentes que já se fazem presentes na administração do trabalho docente, na realização do trabalho docente e nas relações de ensino-aprendizagem, aqui considerados a partir do modelo educacional da Pedagogia em Rede, que é um tipo específico da Ciberpedagogia.  Como esse cenário ocorre no contexto da chamada plataformização educacional, serão apresentados alguns elementos do capitalismo de plataforma, fenômeno que diz respeito ao modelo de negócios presente na atual fase do capitalismo, que utiliza as plataformas sustentadas pela IA e também a constante extração de dados de quem transita pelas infovias do ciberespaço. Por fim, serão indicados alguns traços do que designamos como Escola do Cansaço, em diálogo com o conceito de Sociedade do Cansaço desenvolvido por Byung Chul Han, e também algumas considerações sobre algumas de suas implicações na vida dos e das docentes.

 

2   A CIBERPEDAGOGIA NAS REDES EDUCACIONAIS

Para a compreensão dos fenômenos da Ciberpedagogia ou da Cibereducação é necessário considerar as mudanças ocorridas com a as tecnologias de comunicação e informação digitais. Entretanto, como sugeriu Evgeny Morozov (2018), é preciso sair do mero debate acerca do digital e reintroduzir a política e a economia nessa discussão, a fim de que possamos sair da ideologia tecnoutópica e encarar de frente a realidade que nos cerca.

Retrospectivamente, um fato fundamental ocorreu em 1992, nos EUA, com a promulgação da Lei de Tecnologia Avançada e Ciência, que permitiu a uma fundação se interconectar com redes comerciais, fato que permitiu a abertura digital do que era regra no ambiente não comercial ao cenário da propriedade privada. (Slee, 2017)

Aqui serão contemplados três aspectos: a Sociedade em Rede, a Cibercultura e o Ciberespaço que, imbricados, permitem abordar o modelo educacional da Pedagogia em Rede vigente em grandes empresas do campo educacional (as holdings da educação). Optou-se por usar essa expressão para diferenciar do conceito Educação em Rede, presente em reflexões sobre a educação da pesquisadora Margarita Gomez, assentadas sobre a pedagogia libertadora dialógica de Paulo Freire, sobre a concepção de rizoma de Deleuze e Guattari (1983), e a mudança paradigmática proporcionada pela cibercultura observada por Pierre Levy (1999).

Para ela, as novas tecnologias infocomunicacionais iriam contribuir para transformar a educação, de modo a emancipar os participantes nas relações ensino-aprendizagem. Professores e professoras atuariam como rizomas “ao estabelecer[em] nexos ou conexões com outros educadores, grupos, instituições, negociando com outras culturas, estabelecendo parcerias com fundações para constituir uma rede educativa”. (GOMEZ, 2004, p. 45) A proposta da pesquisadora apontava para um projeto educativo orientado para a pedagogia da virtualidade, ou a educação realizada via internet. Segundo ela, as tecnologias infocomunicacionais são instrumentos e por isso não fundamentam qualquer projeto educativo, o qual necessita ter uma base pedagógica norteadora. Ela apostou as fichas na educação emancipadora, dialógica. Nesses termos, a educação via internet, para ela necessitaria respeitar as subjetividades envolvidas, a cultura e o contexto dos participantes, permitindo a eles a possibilidade de intervirem e melhorarem seu contexto social e político.

O projeto educacional presente no que entendemos por Pedagogia em Rede é bem diferente. De comum, há o emprego das tecnologias digitais de comunicação, a teia rizomática que captura e congrega os diferentes pontos interconectados. Mas a paisagem que é estabelecida por esse projeto é bem outra e culmina na Escola do Cansaço.

A Pedagogia em Rede é uma extensão da sociedade contemporânea que se delineia por uma intrincada rede global de comunicação e informação, cujo modelo de ensino-aprendizagem resultou na metamorfose das interações humanas e no funcionamento das instituições. Essa nova forma de educação segue os mesmos princípios da "sociedade em rede" proposta por Manuel Castells, e representa uma integração no modelo global de transmissão de informações.

Para ele, a internet não é mera tecnologia, mas meio de comunicação que passou a organizar a sociedade contemporânea:

A internet é o coração de um novo paradigma socio-técnico, que constitui na realidade a base material de nossas vidas e de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a internet faz é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que vivemos. (CASTELLS, 1999, p. 287)

As redes constituem "a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”. (CASTELLS, 1999, p. 497). A rede é um conjunto de nós interconectados, que “configuram os processos e funções predominantes em nossas sociedades” (idem, p. 498). De acordo com Castells,

Redes são instrumentos apropriados para a economia capitalista baseada na informação, globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores e empresas voltadas para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínua; para uma política destinada ao processamento instantâneo de novos valores e humores públicos; e para uma organização social que vise a suplantação do espaço e invalidação do tempo. Mas a morfologia da rede também é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder. As conexões que ligam as redes (por exemplo, fluxos financeiros assumindo o controle de impérios da mídia que influenciam os processos políticos) representam os instrumentos privilegiados do poder. Assim, os conectores são os detentores do poder. Uma vez que as redes são múltiplas, os códigos interoperacionais e as conexões entre redes tornam-se as fontes fundamentais da formação, orientação e desorientação das sociedades. (idem, p. 566 - grifo nosso)

O sociólogo ressaltou também duas características do capitalismo da Sociedade em Rede

[...] é global e está estruturando, em grande medida, em uma rede de fluxos financeiros. O capital funciona globalmente como uma unidade em tempo real; [...]. Embora o capital financeiro, em geral, estivesse entre as frações dominantes do capital, estamos testemunhando a emergência de algo diferente: a acumulação de capital prossegue e sua realização de valor é cada vez mais gerada nos mercados financeiros globais estabelecidos pelas redes de informação no espaço intemporal de fluxos financeiros. A partir dessas redes o capital é investido por todo o globo e em todos os setores de atividade: informação, negócios de mídia, serviços avançados, produção agrícola, saúde, educação, tecnologia, indústria antiga e nova, transporte, comércio, turismo, cultura, gerenciamento ambiental, bens imobiliários, práticas de guerra e de paz, religiões, entretenimento e esportes. [...] (idem, p. 567 - grifo nosso)

 

Como a sociedade em rede é caracterizada pela ampla interconexão de indivíduos, organizações e dispositivos, e perpassa todos os âmbitos sociais, também a área da educação foi atravessada pelas infovias, sendo que atualmente testemunhamos a radicalização da cibereducação mediante o fenômeno das grandes empresas educacionais[3] em rede, que atuam na educação formal.

Outro vetor fundamental para o diagnóstico dessas holdings é o ciberespaço. Este termo tem origem na literatura de ficção científica de William Gibson que, no romance Neuromancer (1984), fixou o ciberespaço como o ambiente artificial não físico criado virtualmente e por onde transitavam dados, e eram constituídas as interações simbólicas e as relações sociais de diferentes tribos.

 Nos fins do século XX, Pierre  Lévy observou os efeitos culturais provocados pelas novas tecnologias digitais e estabeleceu que o ciberespaço, entendido por ele como uma rede, era o novo lócus de comunicação e de interação instituído pela interconexão mundial dos computadores e das memórias deles, sendo que a palavra especificaria a “infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”. (LÉVY, 1999, p. 16-17) Nesse espaço, os dados estariam à disposição dos e das interconectadas e ele se caracterizaria especialmente pela ubiquidade da informação, pela instantaneidade da comunicação, pela interconexão e interatividade dos documentos, pela telecomunicação recíproca e assíncrona de grupos e entre grupos. 

O filósofo naquela época já chamava a atenção para as mudanças que ocorreriam no campo educacional: para a necessidade de repensar as práticas pedagógicas, as metodologias de ensino em função de novos suportes pedagógicos, os conceitos de ensino e de aprendizagem, e o próprio papel dos docentes nesse processo.

Associada ao ciberespaço emergiu a cibercultura. André Lemos (2003) afirmou que ela deveria ser entendida como uma nova forma sociocultural resultante da relação simbiótica entre as novas tecnologias da microeletrônica, a sociedade e a cultura, e que por isso, estaria marcada pelas tecnologias digitais. Esse fato implicou a produção de dispositivos que facilitaram o acesso da população aos meios de comunicação e informação.

É no panorama da Sociedade em Rede, do Ciberespaço e da Cibercultura que localizamos a Cibereducação e a Pedagogia em Rede. A Cibereducação tem sido majoritariamente enfocada sob a rubrica do ensino-aprendizado e de construção do conhecimento, sendo que a modalidade de ensino à distância e o ensino híbrido e suas atividades síncronas e assíncronas são seus exemplos mais visíveis. Neste sentido, o termo abrange um conjunto de métodos didático-pedagógicos e suas práticas, o conjunto da infraestrutura tecnológica e seus aparatos, as formas de ensinar, e aprender e os comportamentos e hábitos desenvolvidos dentro da ciberescola, ou da dimensão da escola que trafega pelas infovias e pela nuvem. Entretanto, ela é mais ampla, uma vez que abrange também os processos administrativos e de gerenciamento das práticas educacionais nas redes públicas e privadas de ensino, desde o advento da internet. Devido ao escopo do artigo, esse aspecto não será abordado e sim, elementos da Pedagogia em Rede.

Para compreender esse fenômeno é necessário ainda um outro conceito, o de plataforma digital. É possível propor que a Pedagogia em Rede se refere a uma abordagem educacional que faz uso extensivo de plataformas digitais, majoritariamente comerciais, como aplicativos, sites e sistemas de gerenciamento de aprendizado, para oferecer conteúdo de forma remota. Ela está a reboque do que é conceituado como Plataformas digitais ou também como Capitalismo de Plataformas. 

De acordo com Nick Srnicek (2018), testemunha-se atualmente um novo regime de acumulação do capital, uma vez que a exploração econômica dos bits, dos dados, dos rastros que cada interconectado deixa nas infovias tornou-se hegemônica nas mãos de grandes empresas transnacionais que controlam as plataformas e que podem, portanto, monopolizar, extrair, analisar, comercializar quantidades cada vez maiores de informações que são registradas e coletadas a partir do fluxo do tráfego de dados na internet.

Plataformas são um novo tipo de empresa caracterizada por fornecer infraestruturas digitais que intermediam diferentes usuários interconectados, tais como, provedores de serviços, clientes, produtores, anunciantes, distribuidores e objetos materiais. Elas operam em qualquer lugar onde haja uma interação digital e dependem da lógica da rede, fornecendo a infraestrutura digital básica para as trocas comerciais. Elas [...] 1) garantem aos usuários a possiblidade de construir seus próprios produtos, serviços e espaços de transações; 2) produzem e dependem de efeitos de rede, ou seja, quanto maior o número de usuários presentes nas plataformas mais valiosas elas se tornam, resultando em tendências monopolistas; 3) as plataformas geralmente utilizam subsídios cruzados entre diferentes ramos do negócio; 4) a partir de sua posição intermediária, as plataformas ganham não só acesso a mais dados, mas também o controle e direção sobre as regras do jogo, ou seja, sua arquitetura “aprisiona” seus distintos grupos de usuários. (FERRARIO, SANTANA, p. 3)

A pesquisadora José van Dijck explicou, por sua vez, a plataformização da sociedade em uma entrevista à Digilabour (2019) 

A plataformização da sociedade refere-se à inextricável relação entre plataformas online e estruturas societais. Muitos dos nossos setores sociais, seja transporte, saúde, educação ou jornalismo, têm se tornado quase inteiramente dependentes das infraestruturas digitais providenciadas pelas cinco grandes empresas de plataformas dos Estados Unidos: Google (Alphabet), Amazon, Facebook Apple e Microsoft. Eles arquitetaram suas infraestruturas de acordo com os mecanismos de plataforma que nós definimos como dataficação, mercantilização e seleção algorítmica. Gradualmente, devido às nossas dependências em relação a determinadas infraestruturas, esses mecanismos começam a estruturar nossas vidas inteiras. Por exemplo, as organizações jornalísticas estão cada vez mais dependentes dos mecanismos de distribuição online possuídos e operados por Facebook e Google. As escolas e universidades começaram a reestruturar seus currículos a partir dos ambientes personalizados de aprendizado fornecidos por Google, Amazon, Facebook e Microsoft.

Esses diagnósticos rebatem o difundido discurso da economia digital como uma “economia de compartilhamento”, porque estamos para ver algum compartilhamento dos estratosféricos lucros dessas empresas. Como Armand Mattelart advertiu, “nenhuma pedagogia de apropriação cidadã do meio técnico pode se eximir da crítica das palavras que, pretensamente apátridas, não cessam de se imiscuir na linguagem comum e de enquadrar as representações coletivas”. (MATTELART, 2006, p. 171).

A pandemia do Covid-19 incrementou o espectro ciber na educação brasileira, em todos os níveis, tornando-o necessária naqueles anos de escolas fechadas. Estudantes, professores, pais e responsáveis, gestores, escolas e as redes pública e privada de ensino da educação básica tiveram que fazer uso do ensino à distância ou do modelo híbrido. Para tanto, o processo de ensino-aprendizagem foi mediado pelas plataformas tecnológicas transnacionais, aspecto que gerou o fenômeno conhecido como “plataformização da educação” ou “plataformismo educacional”. A pesquisa TIC Educação - 2019 havia mostrado que somente 14% das escolas públicas faziam uso de alguma plataforma de ensino à distância nas atividades desenvolvidas. Em 2020, em plena vigência da pandemia e do fechamento das escolas, as plataformas de videoconferência como Zoom, Google Meet ou Microsoft Teams, foram usadas por mais de 80% das escolas estaduais.

Segundo os dados da pesquisa do Observatório Educação Vigiada:

O Brasil é o país com o maior número de instituições públicas de ensino superior da América do Sul, com 144 instituições. Em números absolutos, das 281 instituições que utilizam soluções da empresa Google na América do Sul, 103 (37%) estão no país. Somente 21% das instituições públicas de ensino superior utilizam soluções alternativas de armazenamento de e-mails – o que está em consonância com a média do continente. Por outro lado, 72% das instituições brasileiras pesquisadas utilizam soluções da Google (a segunda maior porcentagem da América do Sul) e somente 8% utilizam soluções da Microsoft.

A pesquisa na Educação Básica mapeou as secretarias de educação dos estados, das capitais, e dos municípios com mais de 500 mil habitantes, totalizando 76 servidores analisados. Neste cenário, o número de servidores GAFAM e próprios está equilibrado em 50% para cada um. A exemplo do ensino superior, os servidores Google são maioria entre os que aderiram ao GAFAM sendo 32,9% (25 domínios), enquanto a Microsoft está com 17,11% (13 domínios).

 

Nas instituições de ensino superior, pesquisadas e informadas no sítio da organização, 79,17% das instituições utilizam os servidores das empresas reunidas na rubrica GAFAM (Google Amazon, Facebook, Apple, Microsoft); 71.50% utilizam o serviço de e-mail dessas empresas. As demais utilizam de empresas NÃO-GAFAM. Nas instituições da educação básica, pesquisadas e informadas no sítio da organização, 50% das escolas utilizam os servidores das empresas reunidas na rubrica GAFAM (Google Amazon, Facebook, Apple, Microsoft); 32,89% utilizam o serviço de e-mail da Google, 17,11% da Microsoft e 50% de empresas NÃO-GAFAM.

            Conforme o relatório da pesquisa sobre a plataformização da educação elaborado pelo Comitê Gestor da Internet – Brasil, a massificação desse contexto abriu um leque de possibilidades e também de problemas e preocupações de diferentes ordens. No âmbito do acesso à internet e aos aparatos, ficou visível o tremendo hiato entre as classes sociais, fato que ecoa a percepção da sociedade brasileira desigualitária. Foram constatadas a falta de dispositivos (como celulares, computadores ou tablets) e a de acesso de qualidade à internet, aspectos apontados como os mais desafiadores, sendo que “[...] 91% dos gestores entrevistados disseram ter criado grupos em aplicativos ou redes sociais como alternativa para comunicação e envio de atividades” (CGI-BR, 2022, p. 13). No domínio da oferta de infraestrutura tecnológica vigora a incompreensão majoritária de gestores, de pais/mães e responsáveis, de professores e estudantes acerca da lógica de funcionamento do capitalismo informacional que troca a aparente gratuidade do serviço prestado pelo acesso indiscriminado a dados pessoais e metadados relativos aos conteúdos e às informações compartilhadas e armazenadas pelas Big Tech. Como o relatório afirmou: “Tais empresas utilizam tecnologias de inteligência artificial (IA) para processar, analisar e identificar maneiras de monetizar os dados pessoais e sensíveis de usuários de forma automatizada, os quais são um dos principais ativos da economia digital hoje [...]” (id, p. 14) No campo da capacitação docente para o emprego do instrumental necessário para a condução do processo de ensino-aprendizagem mediado tecnologicamente, as redes

de ensino têm incentivado educadores a participarem diretamente de treinamentos oferecidos pelas empresas fornecedoras de plataformas (BLIKSTEIN et al. 2021), criando uma dependência crescente do setor educacional em relação aos serviços oferecidos pelas grandes plataformas digitais. A falta de diversidade na adoção de aplicações e outras soluções digitais existentes parece ir de encontro ao pluralismo de ideias estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). Tudo isso apresenta também uma discussão relevante não só do ponto de vista jurídico, mas também da autonomia das redes de ensino e, direta ou indiretamente, sob o olhar pedagógico do uso de tais ferramentas. (id., p. 15)

 

Na esfera da capacitação dos gestores, a terceirização dos serviços de TI para a iniciativa privada desestimula “a capacitação técnica de profissionais gestores públicos e estudantes, tornando-os cada vez mais dependente de tecnologias fechadas e estrangeiras”. (idem, p.16) Por fim, o processo de plataformização da educação obrigou os cidadãos, no cenário da educação garantida constitucionalmente como direito, a aderirem compulsoriamente ao mercado privado e à lógica assimétrica da relação entre empresas e consumidores, tal como explicitou Shoshana Zuboff. (2021)

 

3  A PLATAFORMIZAÇÃO NA PEDAGOGIA EM REDE[4]    

No que está sendo diagnosticado como Pedagogia em Rede, as plataformas digitais garantem o trânsito de uma ampla gama de recursos, como textos, vídeos, quizzes interativos e materiais multimídia. Isso permite que os/as educadoras escolham os recursos que melhor se adequem ao estilo de aprendizagem dos/das estudantes. Essa abordagem docente se baseia no uso estratégico da tecnologia para impulsionar o consumo de produtos educacionais, proporcionando acesso aos recursos ciberdidáticos que auxiliam o ensino-aprendizagem nas redes. 

A interconexão das vias informacionais possibilitou um novo modelo de organização escolar, onde os educadores se tornam colaboradores e produzem em âmbito nacional. O controle da produção é regido por métricas cíclicas que são revisadas anualmente. O desenvolvimento dos produtos educacionais na educação em rede é promovido por meio de práticas que valorizam o consumo coletivo, que é realizado por meio de pacotes padronizados que fazem parte do designer dos produtos educacionais. Constata-se empiricamente que os produtos educacionais em rede estão transformando a relação estabelecida com o material didático. As plataformas de ensino on-line, as redes sociais educacionais, os ambientes virtuais de aprendizagem, as bibliotecas digitais, os sistemas de gerenciamento de aprendizado (LMS), os aplicativos de aprendizagem móvel, os recursos de realidade virtual e aumentada, os jogos educacionais on-line e a interação com as IAs são exemplos desses produtos que têm redefinido a moldura do novo cenário educacional. A lógica da rede é, por sua vez, imposta aos produtos e sua aplicação corrobora com a padronização da prática do ensino-aprendizagem nos espaços da educação básica.

Como na era da informação digital a cibereducação emergiu como um dos principais setores de negócios, atraindo o olhar de investidores de fora do setor, a rede privada de ensino é um seguro lócus para a percepção desses fenômenos interconectados.

A educação em rede está sempre em movimento, e demanda uma adaptação constante às inovações tecnológicas e sociais, o que é um grande problema uma vez que a desigualdade digital é cotidianamente observada no trabalho em sala de aula. Outra preocupação recorrente é a coleta e armazenamento massivo de dados pessoais, que levantam suspeitas sobre vigilância e controle. As empresas podem usar esses dados para influenciar a vida das pessoas, como ressaltou Shoshana Zuboff (2021).

Nos últimos anos, observa-se uma crescente demanda de empresas de outros setores investindo na educação básica das redes privadas no Brasil. Esse movimento levanta várias discussões e a educação pública é citada como precária por falta de investimentos, o que alguns estudos apontam como fator determinante para o crescimento das escolas privadas em rede. A oportunidade de obter lucros é diversificada de acordo com os tickets médios do público atendido, através dos ciclos de mensalidades, venda de materiais didáticos e da oferta de serviços adicionais, como transporte escolar e atividades extracurriculares. Além disso, a privatização da educação básica tem se expandido no país, o que pode resultar em uma maior demanda por escolas particulares e, consequentemente, aumentar os ganhos dessas empresas. No entanto, é crucial destacar que a educação não deve ser encarada como um mero empreendimento comercial, mas sim como um direito fundamental e um investimento na formação de cidadãos críticos e conscientes.

O ensino mediado por sistemas virtuais sofisticados gera um padrão algorítmico de dados que são controlados por empresas ligadas às Big Techs e aos fundos de investimentos sediados em países que monopolizam essas tecnologias, fato que estabelece novas demandas no mercado. Como as redes de ensino privado na educação básica no Brasil têm como premissa central o foco nos resultados educacionais e econômicos, para alcançar esses objetivos elas utilizam uma ampla gama de recursos e dispositivos tecnológicos para melhor gerenciar as necessidades dos negócios da educação. Esses recursos tecno-informacionais estão integrados à rede escolar e incluem aplicativos dinâmicos, plataformas inteligentes, salas virtuais, programas de educação personalizados e ensinos segmentados, dentre outros produtos. No entanto, em muitos casos a integração de tecnologia nas escolas em rede não segue um modelo inclusivo, uma vez que se limita principalmente à esfera administrativa, que se posiciona através de um núcleo pedagógico que administra as métricas da empresa. Os recursos tecnológicos se concentram na melhoria da comunicação entre os colaboradores, customização, capacidade de incorporar conteúdo multimídia padronizado, relatórios em tempo real para acompanhar o progresso do sistema de ensino, construção de interfaces amigáveis e confiáveis.

            É indubitável que Pedagogia das redes oferece muitas vantagens, tais como a integração de vários aplicativos que facilitam a comunicação e o compartilhamento de ideias e materiais entre professores/professoras e estudantes, o estímulo ao desenvolvimento de habilidades criativas como vídeos, edição de fotografias, criação de conteúdos digitais e noções de tráfego nas infovias. Por exemplo, em alguns casos de disciplinas do Itinerário Formativo do NEM, os e as estudantes trabalham autoconfiança, autonomia no exercício de algumas atividades e flexibilizam seus planejamentos através de calendários dinâmicos. Contudo, existem alguns pontos que precisam ser considerados quando estamos tratando de educação. O uso em tempo integral e massivo de plataformas digitais pode levar a uma dependência excessiva de tecnologia, aspecto que pode afetar negativamente o desenvolvimento de habilidades sociais e de comunicação. Em diálogo com a proposta de Lúcia Santaella (2013) sobre a ubiquidade computacional, os dispositivos tecnológicos portáteis são cada vez mais comuns no ambiente ensino-aprendizagem, e no panorama educacional contemporâneo, admitimos que os sujeitos envolvidos na relação ensino-aprendizagem são parte dessa construção da revolução 4.0.

Por vezes parece que estamos diante da (possível) extinção da escrita à mão, hoje, uma vez que os/as estudantes usam suas câmeras para registrar os escritos nas lousas e transformam tudo em arquivos digitalizados. As interações físicas entre os e as estudantes estão num processo híbrido de ressignificação: como os espaços de fluxos ganharam notoriedade, aspecto já percebido por Castells, percebe-se que atividades em grupos, diálogos sobre os conceitos estudados e resolução de exercícios, que antes eram feitos em ambientes físicos, agora são assistidos por plataformas de Inteligência Artificial. A interação online tende a ser menos envolvente do que a interação pessoal, o que, por sua vez, pode afetar diretamente a participação das e dos discentes.

Quando estamos presentes fisicamente em uma sala, há maiores oportunidades de receber e transmitir sentimentos, de aproximação uns dos outros, e como há a proximidade para construir diálogos inclusivos, essa interação revela a amplitude ou os limites de compreensão dos e das alunas em relação aos conceitos apresentados na aula. É através do exercício da pedagogia dialógica, presencialmente realizada, que notamos melhor a pluralidade dos ambientes físicos de ensino-aprendizagem, os quais são extremamente dependentes da criatividade daqueles que estão presentes no encontro.

Quando a aula acontece de forma virtual, a primeira percepção é que estamos falando aos ventos, a participação dos e das alunas é infinitamente menor, muitos deles não ligam as câmeras por diversos motivos e não se sentem confortáveis para abrir os microfones ou escrever textos como as perguntas no chat. É perceptível também que as dificuldades no acesso às salas virtuais potencializam as desigualdades digitais. Por isso torna-se importante que as e os educadores estejam cientes desses possíveis problemas e trabalhem para mitigá-los, a fim de garantir que a pedagogia das plataformas seja eficaz e beneficie todos os e as estudantes.

Na busca de repensar os espaços de ensino de Filosofia no contexto das multiformas da cibereducação é interessante fazer o exercício preliminar de entender as dinâmicas das escolas que adotam estes projetos pedagógicos e implementam de forma coercitiva a aceleração das potencialidades dos/das estudantes no novo cenário tecnológico da escola. Entender também os limites éticos que sustentam essa discussão faz-se necessário diante da prospecção de dinâmicas futuras que afetarão diretamente os modelos gerados nesses ecossistemas, que são dependentes das tecnologias inteligentes para mediar os debates educacionais. 

Os assistentes digitais fornecem uma dimensão de dados significativa em um espaço curto de tempo, fato que alimenta uma série de perspectivas analítico administrativas   que corroboram para criação de métricas desumanas no panorama apressurado de evolução dos ecossistemas de ensino. A escola, a priori, é um espaço pluridimensional que reproduz as diversas competências/habilidades que se entrelaçam nessas ambiências, onde pensar sobre o ensino-aprendizado é um exercício contínuo do devir e precisa ser encarada como uma instituição de socialização e alfabetização, e não um centro de treinamento para atletas de alta performance. 

No âmbito da educação brasileira, pública e privada, percebe-se a presença de posicionamentos e lógica privados, porque os conglomerados empresariais passaram a controlar os projetos pedagógicos e suas aplicações por todo o país. Nesse cenário, a sala de aula e as práticas do ensino de filosofia estão passando por ressignificações, tendo em vista o conjunto de expectativas comerciais e de representações de setores privados.

            Nos ecossistemas educacionais de alta performance a produtividade também acelera os processos de exclusão. Nesses ambientes não existe espaço para pessoas improdutivas - segundo as medidas neoliberais que valorizam a busca excessiva pela eficiência e o alcance de resultados imediatos, e, por conseguinte, muitas vezes ocorre o risco de excluir alguns grupos de estudantes. Embora esse modelo possa ser eficaz para quem se enquadra na lógica da competitividade, ele tende a privilegiar os/as estudantes que se adaptam bem às estruturas e metodologias de ensino mais padronizadas, deixando de lado os sacrificáveis que não conseguem acompanhar o rebanho. As fraturas observadas no corpo de alunos demonstram a necessidade de uma releitura desse modelo pedagógico, porque nos espaços múltiplos, marcados pelas variedades de demandas pedagógicas e instabilidade em suas projeções, incontáveis discentes enfrentam barreiras socioeconômicas ou têm estilos de aprendizado não convencionais. A não adequação de muitos deles ao método torna-os excluídos ou marginalizados em um sistema que valoriza a uniformidade e a produtividade.

Por fim, pontua-se que nesse cenário também está presente o dilema pedagógico entre a utilidade e a qualidade na construção dos ecossistemas de ensino-aprendizagem na área da Filosofia. Conforme a reforma educacional do Ensino Médio de 2017, no já repetitivo movimento pendular da presença-ausência na educação básica, mais uma vez a Filosofia perdeu espaço como disciplina curricular obrigatória, sendo reprisado o velho argumento que questiona sua validade e utilidade para os estudantes. Nas escolas privadas em rede, o ensino de Filosofia permaneceu, uma vez que temas filosóficos são exigidos em vestibulares para importantes universidades brasileiras e no ENEM. Entretanto, o próprio modelo de ensino-aprendizagem vigente nessas escolas impacta a qualidade educacional.  Cotidianamente, uma sensação de insuficiência perpassa os olhares dos atores de todos os segmentos da disciplina que atuam nas escolas em rede da iniciativa privada, que expressam também o que será apresentado como Escola do Cansaço.

 

4 A ESCOLA DO CANSAÇO

Um dos nossos objetivos é apresentar o primeiro esboço do que estamos propondo como “Escola do Cansaço”, em diálogo com o conceito de Sociedade do Cansaço desenvolvido por Byung Chul Han. Mediante tal noção, o filósofo sul-coreano discute como a sociedade contemporânea, caracterizada por um ritmo acelerado de vida, constante conexão digital e pressões sociais, está gerando um fenômeno de exaustão física e mental generalizada.  

Para B. C. Han, na contemporaneidade neoliberal o sujeito da obediência, forjado na moderna sociedade disciplinar, deu a vez ao sujeito do desempenho. Na sociedade hiperconectada, das vivências marcadas pela temporalidade 24/7, de crescentes trânsitos pelas infovias, vivenciamos a sociedade positiva do desempenho a partir da introjeção do bordão yes, we can, e da sobrevaloração das motivações e atividades motivacionais e do empreendedorismo como chave de interpretação da vida e do significado de viver, na medida em que tais valores capturaram o inconsciente social. Tal sociedade, caracterizada pela pressão constante por eficácia, rendimento e produtividade, tem contribuído para o desenvolvimento de infartos psíquicos de várias maneiras, como a pressão por desempenho, a cultura do excesso (viver no hiper), a medicalização e a violência neuronal que conduz ao esgotamento mental, emocional e até físico.

Segundo Han,

O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. E nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. • O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. [...] O explorador é, ao mesmo tempo, o explorado. [...] Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal. (HAN, 2015, p. 29-30)

 

Em outra passagem o filósofo coreano observou, 

 

O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (HAN, 2015, p. 25)

 

E podemos acrescentar, cansados que padecem de infartos psíquicos (ou infartos da alma) sob a pressão dos valores, ritmos e mandato da sociedade do desempenho.

Para B. C. Han, os infartos psíquicos são uma forma de sofrimento que surge na sociedade contemporânea, caracterizada pela pressão constante por desempenho e produtividade. Essa pressão leva a um esgotamento mental e emocional que pode se manifestar em sintomas como a depressão, a ansiedade, a síndrome de Bournout e outros transtornos. Os infartos psíquicos são, por um lado, uma forma de colapso ocorrido quando a pressão por desempenho e produtividade se torna insustentável, e podem ser vistos, por outro, como uma consequência da cultura do desempenho e da pressão constante por resultados. Para B. C. Han, os infartos psíquicos são também um sintoma da sociedade do cansaço, que é marcada pela pressão constante por desempenho e produtividade, e que leva a um esgotamento mental e emocional que pode ter consequências graves para a saúde mental das pessoas.

Sobre o adoecimento de docentes brasileiros, segundo Camilla Hoshino (2019),

 

Não é por falta de indicadores que o tema chama a atenção. De acordo com uma pesquisa realizada pelo site Nova Escola, com aproximadamente cinco mil docentes, 60% se queixam de sintomas de ansiedade, estresse e dores de cabeça, e 66% já sofreram com fraqueza, incapacidade ou medo de ir trabalhar. Dos entrevistados, 87% acreditam que os problemas de saúde são decorrentes ou intensificados pela profissão.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) também aponta que 71% dos 762 profissionais de educação da rede pública de várias regiões do país, entrevistados no início de 2017, ficaram afastados da escola após episódios que desencadearam problemas psicológicos e psiquiátricos nos últimos cinco anos.

Em outra passagem, a jornalista observou

 

Episódios como o narrado por Andressa foram encontrados pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da UFPR que realizou um estudo com 1.021 professores do ensino público no estado do Paraná, identificando a presença de distúrbios psíquicos menores em 75% dessa população, depressão em 44% e ansiedade em 70%. Os sintomas são associados ao sexo feminino, a outras doenças e às condições de trabalho.

Entre os fatores responsáveis pelo sofrimento docente estão a desvalorização do trabalho dos professores, desrespeito por parte dos alunos, baixos salários, salas superlotadas, pressão por produtividade e cargas horárias exaustivas.

“O professor vem assumindo uma gama de funções, além daquelas tradicionalmente conferidas à especificidade de seu trabalho, sendo, ao mesmo tempo, desqualificado e sobrecarregado. Estimulam o potencial de aprendizagem dos alunos, ensinam a conviver em sociedade, cobrem as lacunas da instituição escolar, garantem a articulação entre escola e comunidade, e buscam, por conta própria, sua requalificação profissional”, relata a pesquisa.

 

Por sua vez, os pesquisadores Kelen Braga do Nascimento e Carlos Eduardo Seixas (2020) apresentaram, num gráfico, os principais adoecimentos de docentes mostrados pelas pesquisas que investigaram.

Gráfico: Principais adoecimentos apontados pelas pesquisas (NASCIMENTO, SEIXAS, 2020)

 

Entre as principais causas, elencaram

 

Em relação aos fatores causais do adoecimento docente, os estudos apontaram principalmente questões relacionadas às condições de trabalho do professor, 13 estudos (52%), apontando questões como infraestrutura inadequada em sala de aula, salas em desconforto térmico, número excessivo de turmas, ausência de recursos materiais e humanos e a difícil acessibilidade às escolas (zona rural) – fatores percebidos principalmente na rede pública de ensino.  [...] Também sobressaiu a questão da sobrecarga de trabalho, presente em sete estudos (24%), com em casos em que este necessita levar tarefas do trabalho para casa, a sua excessiva carga horária de trabalho (16%), trazendo também a exigência de cumprimento de horas que acarreta em presenteísmo, fazendo com que o sujeito tenha de trabalhar mesmo adoecido, [...] Houve também uma importante relação do adoecimento com dificuldades dos professores com alunos, apontado em nove estudos (36%), trazendo questões como dificuldades com alunos especiais (4%), o desrespeito dos alunos com o professor (4%), número excessivo de alunos por turma (8%), falta de motivação e problemas comportamentais dos alunos (12%), agressividade dos alunos (4%), e a perda de autoridade do professor em sala de aula (4%). [...] A falta de apoio também foi fortemente ressaltada nas pesquisas, apontada em oito estudos (32%), citando questões como o apoio insuficiente ao professor, falta de funcionários na equipe de apoio, falta de apoio por parte da escola, ausência de suporte social ou da comunidade, fragilidade da parceria escola/família, falta de apoio da equipe gestora na ação pedagógica, ausência de amparo diante da violência escolar. [...]

 

Adoecimento. Sobrecarga de trabalho. Falta de infraestrutura do ambiente de trabalho. Baixa valorização social e baixos salários fazem parte da reclamação em qualquer grupo de docentes.

A partir dessas prévias considerações passamos a apresentar o esboço de nossa proposta. Entendemos que na Escola do Cansaço, no âmbito da Pedagogia em Rede, operam dispositivos pedagógicos que priorizam a incessante busca pelo desempenho e pela superação dos resultados. Nesse contexto, a eficiência e o sucesso, de docentes e discentes, são frequentemente considerados como métricas de desempenho, altruísmo e status social, que medem e comparam as pessoas. Essa mentalidade, que hoje permeia os espaços educacionais físicos e não-físicos, coloca uma lente direcionada à formação de pessoas competitivas, muito de acordo com valores apregoados pelo neoliberalismo. Tal modelo pedagógico está fundamentado na educação mecanicista de abordagem intensiva, carregada por discursos conteudistas, promessas de aprovações nos maiores concursos do país, o que exige dos atores envolvidos no processo uma espécie de anulação de si como pressuposto de desempenho excepcional. 

A pedagogia de alto desempenho ergue-se sobre os pilares do discurso meritocrático, o que desvela o componente da ética neoliberal, e tem despertado preocupações em muitos docentes sobre os possíveis impactos desse modelo no processo pedagógico de ensino-aprendizagem. A carga horária excessiva, aliada à competição acirrada pelos “bons resultados”, é uma marca dos grandes grupos educacionais privados que controlam o atual cenário desses desdobramentos da educação no Brasil. As atividades são sincronizadas e obedecem a um formato único, estabelecendo naturalmente um padrão industrializado de produção, e nesse sistema a tecnologia da informação tornou-se a maior aliada na otimização das atividades em larga escala. A cultura do estudo é um dos pilares desses espaços, pois o aluno é incentivado a estudar até atingir um nível de exaustão; em alguns casos eles passam a maior parte dos dias da semana trancados em “salas de estudos”, se preparando para as avaliações semanais em busca de superação nos resultados ranqueados das turmas. O ranking consiste numa forma de diferenciar publicamente aqueles que se destacaram e que, em alguns casos, recebem uma certificação simbólica que os diferenciam dos demais membros do grupo. O aluno submetido ao modelo performático de educação encontra facilmente seus limites físicos e não-físicos. Nesse contexto não se trata de uma aceitação ou inclusão, mas, sim, um lugar garantido no podium. A quantidade de avaliações a que esses estudantes são submetidos anualmente ultrapassa, por vezes, os limites do bom senso. Diante dela frequentemente emerge a possibilidade de estarmos frente à desafiadora situação em que os/as estudantes estão experimentando uma espécie de doping cognitivo não medicamentoso, tendo em vista a aceleração dos processos cognitivos. 

Para suportar essa pesada situação a estética da escola revela o empobrecimento da negatividade e um excesso de positividade. As paredes são decoradas com frases de estímulo, ao mesmo tempo em que os sujeitos daquele espaço são submetidos, todos os dias, à desumanização da vida e/ou à positivação excessiva do ambiente de aprendizagem. Esse movimento exclui qualquer possibilidade dialética com a negatividade tornando as percepções limitadas ao estímulo competitivo. Esse aspecto vai ao encontro do diagnosticado por Byung Chul Han

A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. (HAN, 2015, p. 14)

 

A vida escolar do desempenho gera novas formas de violência diferentes das produzidas pela escola disciplinar, cuja trajetória serviu para disciplinar o corpo humano.

Um elemento importante no conceito de Han é a ideia de que, na sociedade contemporânea, muitas vezes nos tornamos nossos próprios opressores. A pressão para ser produtivo, estar sempre disponível e constantemente melhorar leva ao esgotamento mental e emocional. As escolas em rede embora possam conectar as pessoas, também contribuem para aumentar a ansiedade ao criarem um ambiente de comparação constante e de autopromoção. A Escola do Cansaço parece não ter como fim a autonomia ou liberdade, mas o aprisionamento das pessoas envolvidas nas relações de ensino-aprendizagem ao agenciamento do desempenho, da performance e à superprodução de resultados que estão atrelados ao trabalho que torna os indivíduos escravos de si. 

Essas questões levantam a necessidade de reflexões sobre os efeitos adversos desse modelo pedagógico e sobre a importância de buscar um possível equilíbrio entre desempenho nos estudos e a sociabilidade dos sujeitos ligados ao espaço escolar. Atualmente, os grupos educacionais ou sistemas de ensino estão concentrando seus esforços para perceber e compreender novas dinâmicas tecnológicas que possam auxiliar no desempenho cognitivo dos alunos, professores e os diversos atores envolvidos nesse cenário, porque na "Escola do Cansaço" a positividade excessiva, a falta de espaço para o negativo e a perda da capacidade de se entediar frequentemente contribuem para o esgotamento das pessoas. 

 

5 CONCLUSÃO

Este ensaio visou apresentar e discutir alguns aspectos da plataformização educacional presentes na educação básica brasileira, tendo como referência as discussões estabelecidas no âmbito da pesquisa sobre o ensino de Filosofia no Ensino Médio, desenvolvida Mestrado Profissional em Filosofia em Rede, PROF-FILO – núcleo UNIRIO. Para tanto, foram abordados a Cibereducação, enfocada desde o modelo educacional do que está sendo proposto analiticamente como Pedagogia em Rede, a partir das práticas educacionais presentes nas holdings educacionais privadas; o cenário da plataformização educacional, fenômeno que se encaixa no contexto do chamado capitalismo de plataforma; e apresentada, ainda em forma embrionária, o que está sendo proposto como Escola do Cansaço, observada a partir de algumas implicações presentes da vida e na prática docente de professores e professoras e dos/das estudantes do Ensino Médio que frequentam, especialmente, o terceiro ano do Ensino Médio numa grande rede educacional privada. Observa-se, por fim, a necessidade de aprofundar a reflexão sobre os desdobramentos presentes na Escola do Cansaço para encontrar maneiras de, pelo menos, aliviar o cansaço físico e emocional presentes no ambiente escolar, e também para realizar práticas dialógicas e críticas do ensino de Filosofia em meio a esses novos desafios. 

                                                

 

REFERÊNCIAS

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[1] Valéria Cristina Lopes Wilke: docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Doutora em Ciência da Informação (IBICT/UFF). Mestre em Filosofia (UFRJ). Graduação em Filosofia (UFRJ) e em Comunicação Social (UFMG)

[2] Marcelo Santos Feijó. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia – Mestrado Profissional em Filosofia em Rede – PROF-FILO UNIRIO. Licenciado em Filosofia e em História.

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[3] A esse respeito ver, por exemplo, os artigos A financeirização da educação: os fundos de investimentos nos “grupos educacionais” e Sistemas de ensino privados em redes públicas de educação: relações com a organização do trabalho na escola, referenciados por nós.

[4] Parte considerável das considerações apresentadas resulta da experiência do mestrando como docente numa grande holding educacional brasileira. Essa experiência está na base da pesquisa em desenvolvimento no PROF-FILO UNIRIO, desde o início de 2023.