MEU ÓDIO SERÁ TUA HERANÇA

informação tóxica na sociedade do capital-informação

André Januário da Silva[1]

IBICT/UFRJ

andrejanuario.silva@gmail.com

Valéria Cristina Lopes Wilke[2]

UNIRIO

valeria.wilke@unirio.br

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Resumo

 

A relação informação e capital tem sido vital para a produção do habitus informacional no século XXI, seja pelo cada vez maior trânsito de usuários interconectados à grande rede, seja pela massificação da produção de artefatos infocomunicacionais que possibilitam a manutenção desse fluxo. Sob o ponto de vista econômico, a informação é a matéria que passa a estruturar a lógica de organização do capital, e, por conseguinte, também a ordem social, política e cultural das sociedades contemporâneas. Desse modo, é na atual vigência do capital, entendido aqui como capital-informação, que vimos emergir o modelo de negócios da economia das plataformas sócio-digitais amparado na cultura algorítmica, no paradigma comunicacional todos-todos e na mineração constante de dados de usuários. Esse modelo altamente lucrativo tem sido apontado como um dos principais responsáveis pela disseminação massiva de conteúdo desinformativo através do fenômeno das fake news, regime de pós-verdade, propensão a formação de filtros-bolha, câmaras de eco, cultura do cancelamento e disseminação de ódio nas infovias. Com isso, neste trabalho buscamos problematizar a noção de informação tóxica como reflexo de um ambiente informacional pautado pela toxicidade, virulência, sectarismo, polarização e predisponência a violência digital como dispositivos que tem perfilado o comportamento dos indivíduos nas redes e fora delas, evocando velhos estigmas, preconceitos, perseguições e falsas crenças direcionadas a grupos e indivíduos considerados material e simbolicamente como ameaças. Conclui-se assim, que a informação tóxica é um desafio a ordem democrática e civilizatória, constituindo-se como um sintoma de uma sociedade adoecida, bem como uma mercadoria de altos rendimentos na sociedade do capital-informação.

 

Palavras-chave: informação tóxica; capital-informação; plataformização; redes de ódio; desinformação.

 

 

 

 

 

 

 

 

MY HATRED WILL BE YOUR INHERITANCE

Toxic Information in the information capital society

 

Abstract

The relationship between information and capital has been vital for the production of informational habitus in the 21st century, either by the increasing transit of users interconnected to a large network, or by the massive production of infocommunicational artifacts that enable the maintenance of this flow. From the economic point of view, information is the matter that begins to structure the logic of the organization of capital and therefore also the social, political and cultural order of contemporary societies. Thus, it is in the current term of capital, understood here as capital-information, that we have seen emerge the business model of the economy of social-digital platforms supported by algorithmic culture, the all-everyone communication paradigm and the constant mining of user data. This highly lucrative model has been pointed out as one of the main responsible for the massive dissemination of disinformative content through the phenomenon of fake news, post-truth regime, propensity to formation of bubble filters, echo chambers, culture of cancellation and dissemination of hate on infohighways. Thus, in this work we seek to problematize the notion of toxic information as a reflection of an informational environment guided by toxicity, virulence, sectarianism, polarization and predisposition to digital violence as devices that have profiled the behavior of individuals in networks and outside networks, evoking old stigmas, prejudices, persecutions and false beliefs directed to groups and individuals considered materially and symbolically as threats. It is concluded that toxic information is a challenge to the democratic and civilizing order, constituting itself as a symptom of a sick society, as well as a high-income commodity in the society of information capital.

 

Keywords: toxic information; information-capital; platformization; hate networks; disinformation.

 

1 INTRODUÇÃO

Dataficação ou plataformização estão definindo nossas vidas sociais digitais. Não há quase nenhuma vida social que não seja permeada por plataformas baseadas em dados e algoritmos. (José van Djick, professora e pesquisadora holandesa) 

                                                  

Não há hoje no mundo um só espaço do cotidiano social que não seja permeado pelas infovias. Do labor ao lazer, indivíduos são estimulados, quando não obrigados, a recorrerem em algum momento do seu dia a algum aplicativo disponível em um artefato infodigital, smartphones, por exemplo, para uso de um serviço ou instrumentalização de alguma de suas atividades cotidianas. Estamos diante de um novo modus operandi essencialmente mercadológico e assustadoramente lucrativo, denominado economia das plataformas ou plataformização.

A plataformização opera num novo ambiente social onde o sistema capitalista ancorado na relação produção/circulação/consumo de informação busca constituir as bases sociais que determinam o habitus informacional de cidadãos/usuários em todo o mundo, ditando modos de pensar e agir no contexto contemporâneo. Para Marcos Dantas (1996, 1999, 2022), estamos diante de um novo estágio do capital, denominado por ele como: capital-informação. Na era do capital-informação, a produção informacional torna-se principal matéria-prima para obtenção e acumulação de riquezas, expansão de mercados, consolidação de monopólios e organização do trabalho, adquirindo valor estratégico no âmbito econômico e na produção de políticas públicas governamentais e corporativas. Sendo a lógica de organização do capital eminentemente informacional, logo todas as outras esferas sociais, do cultural ao religioso, alinham-se a essa mesma lógica.

Este novo modelo mercadológico e social é fortemente marcado pelo hiper-fluxo do trânsito de usuários em redes infodigitais e, por conseguinte, na produção e disseminação em massa de informações. Nas últimas décadas, este cenário tem propiciado novas conjunturas políticas, rearranjos mercadológicos e organização sócio-cultural que se legitimam por este ambiente, e, portanto, fomentam a produção em massa de aparatos infocomunicacionais, num novo ciclo do capital que produz novos monopólios e meios para a concentração de riquezas.

Por outro lado, os elementos aqui destacados condicionaram o advento de um novo tipo de fenômeno informacional na atualidade, a produção massiva de fake news em redes digitais. Desse modo, a antiga prática da desinformação recebe uma nova roupagem quando dimensionada no ambiente das redes, pois os modos de produção no espaço infodigital possibilitam que qualquer indivíduo conectado em rede seja um produtor em potencial desse tipo de matéria informativa. A falta de regulação específica desses espaços e de suas ferramentas de acesso e o modelo de negócios transfronteiriço das grandes corporações que controlam os espaços virtuais constituem-se como entraves para combater o problema da desinformação.

Este novo contexto desinformativo não se restringe à produção das fake news, uma vez que carrega consigo vários outros elementos como a pós-verdade, a propensão à formação de filtros-bolha e câmaras de eco, a cultura do cancelamento, as milícias digitais e as redes de ódio. Juntos, eles têm atuado para a materialização de um novo horizonte que vem se firmando como um dos maiores desafios para a vivência democrática na atualidade.

As redes de ódio tornam-se cada vez mais um fenômeno preocupante na atualidade em virtude do seu potencial de agregar seguidores em curto espaço de tempo, os quais, por sua vez, estão cada vez mais predispostos a tecer rupturas com a ordem social que equilibra os sistemas sociais de suas vidas locais. Em escala global, a desinformação e os elementos que agem com ela têm estimulado uma conduta comum, que é o de moldar e insuflar, nas redes infodigitais e fora delas, comportamentos marcados pelo radicalismo, pela propagação do ódio às diferenças e pelo estado belicista permanente.

Esse tipo de ambiência tóxica tem sido, via de regra, um modelo comportamental observado em diferentes partes do mundo, embora de maneiras distintas. A verborragia, a instilação ao ódio, a recusa ao contraditório e o ódio às diferenças têm transformado a dinâmica dos espaços das infovias em experiências de adoecimento, as quais contribuem para um novo tipo de modus vivendi, em que a tônica é o permanente estado de acidez nas relações interpessoais em alto nível. Nesse novo contexto, os usuários são convidados a agir com o ímpeto de guerra e a destilar envenenamento informativo sobre indivíduos, grupos, reputações e ideologias que lhe são contrárias, aprofundando velhos estigmas e preconceitos, bem como estimulando velhas práticas de preconceitos e de exclusão e também a criação de novas.

Com isso, neste artigo buscamos retomar a noção de Informação Tóxica (Wilke, 2020) considerando-a a partir da crítica feita à concepção de sociedade da Informação e do diagnóstico estabelecido desde o conceito de Capital-informação (Dantas, 1996, 2022). Para tanto, em primeiro lugar, o conceito de Sociedade da Informação será questionado a partir da perspectiva do Capital-Informação. A seguir, serão abordados alguns aspectos da plataformização digital presente na sociedade contemporânea, tendo em vista apresentar como essa toxicidade informacional está conformando um novo habitus informacional marcado pela toxicidade, virulência, sectarismo, polarização e predisponência à violência digital, que são entendidos como dispositivos que configuram o comportamento dos indivíduos nas redes digitais e fora delas ao que evocarem velhos estigmas, preconceitos, perseguições e falsas crenças direcionadas a grupos e indivíduos considerados material e simbolicamente como ameaças. 

 

2 DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO A SOCIEDADE DO CAPITAL-INFORMAÇÃO

O conceito de Sociedade da Informação tornou-se corriqueiro seja nos espaços que configuram o saber científico, seja no discurso social cotidiano. Com muito pouco dissenso convém-se admitir que na contemporaneidade o que nos configuraria como sociedade seria a penetrabilidade da informação como elemento de identidade social, cultural e econômica. Segundo Duff (2007), esse conceito nasceu paralelamente nos Estados Unidos da América e no Japão. No panorama estadunidense, o primeiro argumento conceitual fortemente difundido advém dos estudos de Machlup, no ano de 1962, no qual observou que as indústrias que cresciam mais rápido nos Estados Unidos eram aquelas que estavam envolvidas em diversas formas de produção e disseminação do conhecimento. Por meio do mapeamento da produção e distribuição de alguns setores da economia, evidenciou que existia uma nova categoria econômica que se apartava do modelo tradicional. Entretanto, a expressão sociedade da informação, propriamente dita, nasceu no Japão em 1964, nas publicações do jornal Hoso Asahi, que recorrendo às análises dos meios de telecomunicação observou o crescimento maciço dos fluxos de informação nas esferas sociais. Os artigos publicados pelo esse veículo de notícias repercutiram na esfera local culminando com a publicação de Yoneji Masuda em 1968, Introdução à sociedade da informação, no qual o autor refletia sobre este novo contexto e também apontava para o fato de que, nesta nova conjuntura social, a posse de informações e não mais de bens materiais seria o motor por trás das transformações sociais e econômicas dali em diante.   

Duff (2007) observou que de certo modo estas teorias constituíram-se como os primeiros e mais abrangentes esforços para medir a amplamente citada “explosão informacional” do pós-segunda guerra mundial. Para o autor, as expressões por elas desenvolvidas ajudaram a explicar o significado social, econômico e político daquilo que tem sido denominado como “revolução” da tecnologia da informação, mas salientou também que grande parte desta produção caiu na armadilha do determinismo tecnológico.

Nehmy e Paim (2002) argumentaram que, a partir dos estudos de Daniel Bell (1973) na década de 1970, o termo Sociedade da Informação adquiriu maior visibilidade, inclusive no ambiente acadêmico, sobretudo por se encaixar, naqueles idos, como resposta a um novo tipo de leitura das transformações ocorridas no modo de organização e produção do capital ante a crise dos modelos de produção fordista e taylorista, até então hegemônicos.

As autoras também assinalaram que aquele período coincidiu com o advento do conceito de Pós-modernidade, que teve na obra do filósofo Jean-François Lyotard (2015) uma das principais referências conceituais. Ele concebeu o pós-moderno basicamente como a circunstância epocal marcada pela crise e pela fratura das grandes narrativas que deram coesão à sociedade moderna, fato que abriria espaço para a relevância dos pequenos relatos, da multiplicidade de vozes e de perspectivas, mas também das grandes corporações; igualmente destacou a relevância que os discursos e a comunicação adquiriam na sociedade contemporânea, no cenário em que o saber aparecia, de modo explícito e acentuadamente, como moeda de troca nas mãos dos detentores do capital e dos experts, que otimizam performances. Por outro lado, o Pós-moderno constituía-se também como a expressão de uma sociedade pós-industrial, caracterizada pelo conhecimento como a principal força de produção social e econômica e pela transição de uma economia industrial para uma economia baseada em serviços, tecnologia e informação. Em suma, a experiência pós-moderna decorreria da fragmentação das visões totalizantes do processo histórico, prescrevendo novas regras de conduta política, ética e cultural para a humanidade. Não havendo mais as grandes metanarrativas de teor universalizante para fundarem os discursos aceitos até então hegemonicamente, ocorreria uma relativização de ideias modernas tais como os conceitos universais de democracia, liberdade, igualdade, direitos individuais, dentre outros.  

No que tange as postulações teóricas de Daniel Bell (1973) acerca da sociedade da informação, ele estabeleceu como principal sintoma o advento de uma sociedade pós-industrial movida por novos princípios de inovação, novos modos de organização social e ascensão de novas classes sociais. Bell teve como escopo de análise os dados estatísticos sobre a estrutura do mercado de trabalho nos EUA, onde observou o crescimento exponencial dos setores de serviço que já superavam as ocupações no campo da indústria. Por conseguinte, a sociedade pós-industrial seria uma sociedade do conhecimento porque suas bases de inovação decorreriam, sobretudo, da pesquisa, do desenvolvimento e dos fluxos informacionais, sendo estas as molas propulsoras desse novo contexto. O autor defendia que na sociedade da informação a tecnologia atuaria como condutora das transformações sociais, bem como apontava o desenvolvimento sistemático da ciência e do conhecimento a partir do modelo de produção do mercado.     

Anos depois, Marc Porat (1977) abraçou o conceito de Sociedade da informação. Entretanto, diferentemente de Bell (1973), concebeu aquela nova conjuntura em termos da economia da informação, e também consolidou a expressão através de inúmeras análises por ele realizadas. Ao empregar o termo “política de informação’, Porat (1977) direcionou o olhar para as políticas nacionais de informação enfocando os países desenvolvidos do Norte, Estados Unidos e União Europeia. Em suas análises, o pesquisador distinguiu aquele contexto em dois domínios. O primeiro diria respeito aos dominós da matéria e energia, incluídas a economia agrícola e as indústrias. No segundo, visto como setor da informação, tal como Machlup e Bell, observou o crescimento dos serviços relacionados à informação exceder aos dos outros setores da economia.

Já no fim da década de 1990, Manuel Castells (1999) relativizou algumas questões propostas por Bell (1973), entretanto, manteve o protagonismo da informatização como elemento estruturante da sociedade, sendo ela (a informatização) e sua extensão global, a sociedade em rede, os objetos centrais de suas investigações. O sociólogo considerou as particularidades econômicas, sob o ponto de vista do capitalismo pós-fordista, como ponto de partida para suas análises do que configurou como surgimento de uma sociedade em redes, alinhando o desenvolvimento tecnológico, a arquitetura das redes, as mudanças sócio-comportamentais, a conjuntura geopolítica (sobretudo pós-guerra fria), o contexto da pós-modernidade, dentre outros importantes elementos que tiveram como epicentro a informação. Contudo, diferentemente dos autores que o antecederam, Castells (1999) destacou que a tecnologia, condição necessária para a transformação, não deveria ser encarada como causa suficiente para uma nova forma de organização social. Para ele, a base dessa estrutura estava alocada a partir da intencionalidade das ações políticas que utilizariam, portanto, esse modelo tecnológico como forma de estabelecer a ordem de seus interesses. Para ele, a potencialização das sociedades em rede associada às tecnologias da informação e comunicação são o instrumento principal da nova forma de organização e a informação, a matéria-prima desse paradigma de transformação social em curso, que estabelecia a passagem do padrão capitalista de desenvolvimento industrial para um novo modelo de desenvolvimento, que nominou de produção informacional.

As particularidades conceituais dos autores recapitulados anteriormente convergem no entendimento de um novo modelo econômico, marcadamente pós-industrial, fundamentado pelo papel da informação como elemento estratégico de produção e, por conseguinte, como responsável direto de um novo tipo de organização social, seja ela entendida como sociedade da informação, sociedade em rede, economia da informação, sociedade do conhecimento, dentre outras denominações.

Na contramão dessas formulações, Marcos Dantas (1996, 1999, 2022) elaborou o conceito de Capital-informação ancorado na perspectiva dialética marxiana, e com a qual lançou olhar sobre a totalidade do problema, destacando o caráter mercadológico da informação.  Estaríamos experimentando, portanto, um processo de continuidade e não de ruptura de modelos de organização socioeconômica, e por isso colocou em xeque as particularidades elementares usadas para definir sociedade contemporânea como da informação, bem como refutou a tese de sociedade pós-industrial.

 

3 A SOCIEDADE DO CAPITAL-INFORMAÇÃO: ELEMENTOS CONCEITUIAS

Ao propor uma análise do capital sob o ponto de vista do desenvolvimento das telecomunicações, Dantas (1996) assinalou que este era o aspecto fundamental para entender a estrutura do modelo capitalista. O projeto de penetrabilidade e sucesso desse sistema em esfera global estaria profundamente imbricado com a capacidade de interatividade de redes de comunicação e do transporte de informação, seja em decorrência da produção e circulação de mercadorias, seja para a circulação e acumulação financeira capitalista. Segundo o autor, este tem sido um ponto cego nos estudos críticos de viés marxiano, mas nunca foi uma questão desconsiderada por Marx, que em seu tempo já notava a importância do papel das comunicações para o desenvolvimento do capitalismo. 

Marx ([1885] 1996) em O capital: Volume II, mais precisamente no capítulo XIII, Maquinaria e grande indústria, apontou como os processos de circulação e rotatividades afetavam as taxas de valor excedente, e consequentemente, o lucro e a acumulação capitalista. Desse modo, para encurtar os tempos de circulação, volume de negócios e realização de investimentos, desde o século XIX, o sistema capitalista veio desenvolvendo meios de comunicação e transporte, desde locomotivas telegráficas e a vapor, que suprissem o tempo/espaço em relação à produção, circulação e consumo do capital. 

[...] a revolução no modo de produção da indústria e da agricultura exigiu também uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, isto é, nos meios de comunicação e transporte. Os meios de comunicação e transporte, de uma sociedade cujo pivô, para usar uma expressão de Fourier, eram a pequena agricultura com sua indústria acessória doméstica e o artesanato urbano, já não podiam satisfazer, de forma alguma, às necessidades de produção do período manufatureiro com sua divisão ampliada do trabalho social, com sua concentração de meios de trabalho, e trabalhadores e com seus mercados coloniais e, por isso, foram de fato revolucionados. Da mesma maneira os meios de transporte e de comunicação oriundos do período manufatureiro logo se transformaram em insuportáveis entraves para a grande indústria, com sua velocidade febril de produção, sua escala maciça, seu contínuo lançamento de massas de capital e de trabalhadores de uma esfera de produção para a outra e suas recém-estabelecidas conexões no mercado mundial. Abstraindo a construção de navios a vela totalmente revolucionada, o sistema de comunicação e transporte foi, pouco a pouco, ajustado mediante um sistema de navios fluviais a vapor, ferrovias, transatlânticos a vapor e telégrafos, ao modo de produção da grande indústria (MARX, 1996, p. 18-19).          

 

Valendo-se dessa lógica, não há porque desassociar o caráter progressivo da economia e da indústria do capital como um processo de ruptura oriundo de grandes eventos e descobertas tecnológicas, pois, ao contrário, deve ser entendido como parte de um processo histórico, contraditório e em constante movimento.  Ao investigar o contexto da chamada Sociedade da informação deve-se levar em conta que a lógica de produção mercadológica presente nela não se constituiu rapidamente, ou seja, não foi articulada apenas com o advento do setor de serviços ligados à produção do conhecimento, e nem com a organização social em redes digitais, fato que justificou Manuel Castells (1999) a propor o conceito de sociedade em rede, mas resultou da própria totalidade da relação informação e capital ao longo da historicidade humana.

Quando propôs o conceito de Capital-informação como uma chave-de-leitura da nova face do capital, Marcos Dantas (1996) tinha em seu horizonte imediato um cenário cada vez mais crescente da penetrabilidade de dispositivos tecnológicos de informação e comunicação no cotidiano social. Embora reconhecesse que, paulatinamente, as condições de produção provocavam rearranjos sistêmicos na ordem social, para tecer suas análises não se ateve apenas a aquele contexto de produção. Desse modo, percebeu que esse caminho foi pavimentado por ações e escolhas políticas através de alianças e conflitos entre grupos e classes, ao longo do curso da história moderna, admitindo que este percurso se confundia com o próprio advento e trajetória do capital. Lançando mão da totalidade, própria da dialética marxiana, interessava a Dantas (1996) desvendar o trajeto dos meios de comunicação e do papel da informação como forças produtivas essenciais ao modelo capitalista. Traçando um panorama do desenvolvimento das telecomunicações e das tecnologias como um todo (rádio, telefonia, cinema, TV, etc.) em relação aos processos sócioculturais e econômicos ao longo do século XX, Dantas (1996; 1999) observou que havia uma importante convergência das tecnologias da comunicação e informação em direção a uma nova formatação econômica alicerçada sobre a informação para a expansão de mercados, para a acumulação de riquezas e para novas relações de exploração do trabalho, que culminaram na atmosfera que vivemos nos dias atuais.

Entretanto, é necessário pontuar que o caráter democratizador das infovias, uma vez que tornou-se possível a comunicação direta entre um ou mais usuários por diferentes canais midiáticos, foi dissolvida em uma lógica reprodutiva marcada pela espetacularização da realidade e por uma lógica de exploração do usuário consumidor, desde um sistema incessante de retroalimentação de dados, com as finalidades de instituir tendências e agrupamentos, e gerar lucros estratosféricos as grandes corporações.      

[...] na medida em que as redes, crescentemente interativas, sirvam fundamentalmente ao transporte da informação que interesse à acumulação capitalista. A interatividade, então, longe de vir a ser uma prática real da democracia, não passará de um ato de escolha plebiscitária entre as opções oferecidas pelo “mercado”, ou seja, valorizadas pelo capital. O mais grave é que este “mercado” tende a ser cada vez mais um mercado de ideias, vistas não como exercício de racionalidade autônoma destinado à construção de um homem livre e senhor de seu mundo, mais como “produtos” que se compram e vendem em função das estratégias de acumulação dos produtores culturais, sejam estes industriais do cinema ou do disco, produtores de programas de computador, ou projetistas e fabricantes de automóveis, peças de vestuário e etc. (DANTAS, 1996, p. 123).

 

As circunstâncias apontadas por Dantas através do conceito de capital-informação, como novo estágio do capital, permite redimensionar a consolidada noção de Sociedade da informação tomando-a conceitualmente como sociedade do capital-informação, para reforçar o protagonismo do capital na produção do habitus informacional como regra de pertencimento identitário na sociedade contemporânea. Por outro lado, admitir que nossa sociedade seja a da informação unicamente por tratar-se do resultado de um novo processo de produção socioeconômico, cujo protagonismo da informação é condição sine qua non para o seu desenvolvimento, é desconsiderar a relevância e o papel fundamental da informação no processo histórico da humanidade.

De modo crítico, Wilke (2009) chamou a atenção para o fato de que a informação e seu trânsito sempre foram essenciais à constituição de qualquer sociedade. Apoiando-se em Anthony Giddens (2001) destacou que todas as diferentes modalidades de Estado foram sociedades da informação, pois “[...] a geração de poder de Estado sempre supõe um sistema de reprodução reflexivamente monitorado, envolvendo a reunião regularizada, armazenamento e controle da informação voltados para fins administrativos”. (GIDDENS, 2001, p. 199). Também foi destacado como o advento do Estado-nação potencializou essa situação do uso das informações. Nesse processo, tal como observado por Marx (1996), as tecnologias de comunicação e informação foram fundamentais para a concepção do Estado Moderno e consolidação do modelo capitalista.

Para a consolidação da unidade administrativa do Estado-nação, a extensão da comunicação foi aspecto fundamental. Os fatores relativos a essa expansão foram: a mecanização dos transportes, a separação entre comunicação e transportes devido às mídias massivas modernas, a expansão das atividades “documentais” do Estado (coleta e confronto de informação para fins administrativos). Ao longo do século XX, o segundo e o terceiro fator foram expandidos por causa do modo eletrônico de armazenamento informacional (WILKE, 2009, p. 112).

    

Outrossim, para Wilke (2009), o conceito de Sociedade da informação consistiria muito mais em uma construção ideológica com a finalidade de fortalecer o projeto de sociedade liberal burguesa capitalista, que concebe a informação e o seu uso sempre de modo objetificado, articulando-os à acumulação e produção do capital e à competitividade e à inovação voltadas para o mundo dos negócios.

Ao tecer críticas à noção de sociedade da informação e sociedade do conhecimento, o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (2005)[3] destacou, por sua vez, que estas denominações cairiam como luvas para um tipo de pensamento que ele denomina por “ideólogos dos centros imperiais”, de onde emana o poder. O pensador, avesso a qualquer determinismo tecnológico como ponto de virada sócio-histórica, afirmou que nem as tecnologias e nem a informação constituem-se como condutoras da história pois, embora sejam elementos vitais para a ação social humana, são secundárias em face ao real determinante do processo histórico, a atividade produtiva humana na forma trabalho.

O homem tem de satisfazer suas necessidades materiais, está obrigado a criar os bens que o conservem em vida, o que faz no plano da realidade que lhe é própria, o plano social, e com os meios que dispõe, naturalmente encontrados ou por ele fabricados para agir sobre a natureza e relacionar-se com os semelhantes (PINTO, 2005, p. 446).   

 

Outro ponto destacado por ele é que tanto a comunicação quanto a informação são elementos próprios da natureza social dos humanos, e, portanto, não devem ser concebidos como objetos externos a sua realidade social, uma vez que estiveram presentes no curso de nossa materialidade histórica, dos primórdios até os dias atuais. Ocorre que a informação ao ser objetificada pelo sistema capitalista, como meio de produção e acumulação de riquezas, ou seja, condicionada ao status de mercadoria, é também condicionada, em última instância, à manutenção da ordem hegemônica, um sistema de produção de mais-valor e concentração de lucro. Ao ter como princípio orientador a estrutura mercadológica do capital, o corolário da produção informacional a separa de sua correlação essencial para a subsistência humana de natureza social. Tornada, assim, um produto que nos é (aparentemente) externo, a informação adquire caráter venal, manipulada como outra mercadoria qualquer, sujeita à estrutura do sistema econômico, onde é produzida e consumida (PINTO, 2005).

 

4 A PLATAFORMIZAÇÃO DA VIDA E O HABITUS INFORMACIONAL 

Sob a vigência do capital-informação, a matéria informativa tornou-se epicentro da produção socioeconômica capitalista, fato que particulariza os tempos presentes como sociedade do capital-informação. Desse modo, qual seriam as características que singularizam esse contexto pelo qual estamos atravessando?

Wilke (2009; 2020) destacou que o fio condutor dessa lógica é a convergência tecnológica realizada mediante a produção de diversos aplicativos de softwares, hardwares e outros componentes telemáticos decorrentes do desenvolvimento tecnológico alinhado a produção industrial do capital. Estes componentes, por sua vez, são responsáveis pela transmissão de informações por meio das infovias, à distância e de modo trans-fronteiriço. Com isso, a substituição da linguagem analógica pela digital tornou possível a transformação das informações textuais, imagéticas e sonoras em bits que circulam instantaneamente pelas infovias.

Nesse novo ambiente foi desenvolvido um novo modelo comunicacional que possibilitou o advento das plataformas sócio-digitais e das famosas “redes sociais”, controladas por grandes corporações, as Big Techs, que auferem lucros estratosféricos. Este modelo tem como principais características: i) a possibilidade de interação entre todos os usuários conectados; ii) a capacidade de transmissão de conteúdo em tempo instantâneo, via dispositivos infocomunicacionais; iii) e a capitalização permanente de dados fornecidos pelos usuários conectados à internet. 

Wilke (2019) argumentou essa organização social em redes digitais de comunicação espelha um novo paradigma comunicacional, todos-todos, onde todos os conectados podem receber e enviar informações, bem como produzir e armazenar conteúdos. Essa nova possibilidade interacional também tem sido ressaltada por Dantas (2019) ao analisar o funcionamento e o ambiente de navegação de usuários no modelo de negócios das plataformas sócio-digitais. Para ele, o lucro estratosférico das Big Techs, que gira em torno de cifras trilionárias, mediante o consumo e a alimentação contínua e diuturna de dados do usuário, impulsiona imediatamente o mercado de produção de artefatos de navegação, num ciclo de consumo/produção que remete à premissa de Karl Marx ([1857-1858] 2011) apresentada em os Grundrisse: “[...] a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente seu contrário. [...] Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem consumo, nenhuma produção [...]”. (MARX, p. 46, 2011).

Outro aspecto relevante ressaltado pelo autor e já destacado neste ensaio é o entendimento da díade consumo-produção no atual estágio do capital a partir da lógica prevista por Marx ([1885] 1996) no Volume II do Capital: a redução do tempo de circulação do capital ao limite de zero, mediante a determinação do volume de negócios do capital. Desse modo, no mercado das plataformas sócio-digitais a relação produtor-consumidor que outrora costumava ocorrer num fluxo unidirecional de mercadorias, geralmente mediada por um vendedor, é agora redimensionado a partir de um contato que acontece num ambiente digital ilustrado por uma vastidão de compradores e vendedores, reduzindo os tempos de transação dos negócios até o limite de zero (DANTAS, 2019).

Este cenário atrativo para a expansão do capital possibilitou a migração de interesses dos investidores para um novo modelo de negócios denominado Economia das plataformas. Poell, Nieborg e Van Dijk (2020) sublinharam que estas condições de produção favoreceram a formatação de uma sociedade de plataformas, onde o tráfego social é cada vez mais canalizado por um ecossistema global de plataformas on-line, esmagadoramente corporativo, conduzido pela programação algorítmica e alimentado por meio de coleta sistemática e monetização de dados dos usuários conectados.

Assim, definimos plataformas como infraestruturas digitais (re)programáveis que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coletas sistemáticas, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados (POELL, et al., 2020, p. 4).    

 

Desta feita, deu-se a constituição de um ecossistema por um conjunto de tecnologias, por estratégias econômicas e por práticas sociais que atuam, juntas, para o estabelecimento do fenômeno da plataformização da sociedade. Para além da arquitetura das plataformas, a plataformização seria um novo processo social de existir e estar no mundo, onde os sujeitos são convidados a coabitar suas realidades a partir da produção de perfilamentos em plataformas sócio-digitais, que redimensionam a ambiência social e coletiva instalando novo status quo de diferentes matrizes, econômica, mercadológica, ideológica, política, religiosa, cultural, dentre outras, pois 

Seguindo pesquisas em estudos de software, na área de negócios e na economia política, compreendemos plataformização como a penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais de plataformas em diferentes setores econômicos e esferas da vida. E a partir da tradição dos estudos culturais, concebemos esse processo como a reorganização de práticas e imaginações culturais em torno de plataformas (POELL, et al., 2020, p. 5).    

  

Esses pesquisadores assinalaram três mecanismos essenciais para a lógica de produção desse contexto: a datificação, a comodificação e a seleção. A datificação diz respeito à conversão em dados de qualquer interação ou ação on-line. A comodificação é a transformação da atividade de navegação, ou seja, dos dados fornecidos pelos usuários, em mercadoria a ser negociada. Por fim, a seleção é o que permite a filtragem pelas plataformas da atividade dos usuários por meio de algoritmos, bem como a influência dos usuários sobre a visibilidade e a disponibilidade dos serviços dispostos nas redes (POELL, et al., 2020).

Não é difícil imaginar que dadas às condições de produção aqui expostas - que evidenciam um universo altamente instrumentalizado por aparatos e dispositivos infocomunicacionais, atravessado pelas infovias e modificado pela inserção dessas ferramentas nos diferentes usos cotidianos que incluem desde o universo do trabalho, aos aspectos culturais -, esteja sendo constituído certo habitus informacional que molda, dentre outros aspectos, o imaginário social, a cidadania e as práticas de vivência, segundo os interesses das grandes corporações infocomunicacionais, a fim de que sejam essenciais para a manutenção da engrenagem desse sistema. Fundamentalmente esse tipo de habitus não está alicerçado na ética do cuidado e da responsabilidade, na educação dialógica como prática da liberdade, nos valores da democracia e na emancipação social dos sujeitos, mas segue apenas a cartilha mercadológica voltada para a acumulação do capital.     

O habitus informacional pode ser entendido, nesse contexto, como as disposições permanentes que fazem com que um determinado sujeito se apresente como produtor, emissário e usuário de diferentes tipos de informação. Com isso, é necessário que ele transite, com um mínimo de desenvoltura, pelos locais de armazenamento informacional, pelos processos de recuperação da informação relativos ao usuário, de significação da informação e das técnicas e tecnologias envolvidas. Neste sentido, ele está ligado ao nível educacional e ao capital cultural, constituindo-se como um conjunto de habilidades para lidar com os diferentes tipos de informação, especialmente aquelas oriundas dos espaços infodigitais, no contexto dos dispositivos infocomunicacionais e da miríade de aplicativos próprios da economia das plataformas.  Portanto, essas disposições têm sido consideradas como aquelas que visam ser desenvolvidas pela educação midiática e/ou pelo letramento digital.

O desenvolvimento de dispositivos “inteligentes” (os famosos smartphones) e redes sem fio de alta velocidade (3G, 4G, 5G), as telecomunicações móveis passaram a representar grande parte do tempo de navegação das pessoas na internet. Entre os anos de 2008 e 2015, o percentual de tempo conectado gasto nestes dispositivos móveis em todo o planeta subiu de 12% para 54,6%. Só em 2016, 78% da receita publicitária do Facebook veio de telefones celulares (Dantas, 2019)  

Na esteira do fenômeno do hiper-fluxo informacional, não foi somente o trânsito informativo que aumentou, mas também, o trânsito desinformativo. Marco Schneider (2022) argumenta que embora a prática desinformativa seja antiquíssima, podendo ser observada em outros contextos históricos, é na contemporaneidade que ela atinge índices inéditos, graças à escala de propagação do Big Data e a popularização de artefatos de acesso às redes digitais de infocomunicação, pontuando o cerne da questão a partir daquilo que denomina como desinformação digital em rede. A circulação massiva das famigeradas Fake News - notícias falaciosas e fraudulentas com o intuito de enganar -, tomaram centralidade nesse novo ambiente. Nesse espaço infocomunicacional plataformizado os pontos críticos já identificados nas mídias tradicionais foram potencializados, aumentando exponencialmente as possibilidades de deturpação e desvios da matéria informativa em virtude da própria arquitetura e organização do modelo de negócios. Nesse contexto, assiste-se também ao surgimento de novos atores políticos (digital influencers, youtubers, dentre outros) e novos atores digitais como os robots, bots que somados à cultura algorítmica de programação propiciam a criação de filtros bolha, câmaras de eco e as redes de ódio, que se tornaram sérias ameaças ao ambiente democrático no espaço digital e fora dele.

 

5 AS REDES DE ÓDIO E A INFORMAÇÃO TÓXICA

Não por coincidência o título deste ensaio faz referência ao cultuado filme de faroeste de Sam Peckinpah, Meu ódio será tua herança (Wild Bunch), de 1969. Na trama, o criminoso Pike Bishop, interpretado pelo ator William Holden, junta sua antiga gangue para cometer um último crime antes de se aposentar, no entanto, as coisas saem de controle culminando com um grand finale regado a tiroteios, mortes, sangue e fatalidades inesperadas.

Já faz algum tempo que as coisas saíram de controle no ambiente da internet, sem uma regulação estruturada na maioria dos países e com a dificuldade jurídica de culpabilizar os responsáveis pelos crimes de todas as espécies cometidos que proliferam nas redes e plataformas digitais. Cresce a percepção social e o entendimento de que as infovias, tal qual o Velho Oeste, dos filmes de bang-bang, são uma terra sem lei. Os episódios de invasão ao Capitólio nos EUA em janeiro de 2021 e a invasão e depredação aos prédios dos três poderes em 8 de janeiro deste ano no Brasil, só expuseram os custos que a virulência em rede tem causado nos últimos anos.  

No documentário produzido pela rede HBO Depois da verdade: desinformação e o custo das fake news (2020), cientistas, jornalistas e intelectuais norte-americanos alardearam, a partir de alguns episódios ocorridos nos EUA, sobre os perigos e os custos da desinformação para as sociedades contemporâneas. Facilmente constata-se que cada vez mais as redes de ódio, as bolhas e as milícias digitais, alimentadas diariamente por fake news, por teorias da conspiração e por conteúdos desinformativos, fomentam ações realizadas não apenas no espaço virtual, mas também no mundo físico do encontro tête-à-tête. O Facebook, por exemplo, utiliza os dados dos usuários de modo a cercear o espaço de interação dos mesmos em suas redes, constituindo assim verdadeiras bolhas tornando-se um espaço frutífero para agentes tendenciosos que buscam manipular a informação, propagar mentiras e semear o ódio. Chamado a depor no senado norte-americano no ano de 2019, em Comissão Parlamentar de Inquérito, a respeito da propagação de fake news na grande rede, Mark Zuckeberg se esquivou das perguntas sobre a responsabilidade de sua rede sócio-digital no combate às fake news, teorias conspiratórias e desinformação, invocando a liberdade de conteúdo individual dos participantes (DEPOIS DA VERDADE, 2020). O que o bilionário não alegou é que ao vender dados e a projetar o acesso ao perfil de usuários não só restringe como sedimenta o caminho para a propagação de desinformação e do estabelecimento de um ecossistema desinformativo e cada vez mais nocivo.

 Farto quantitativo recente de pesquisas demonstra que a principal fonte de receita das Big Techs e do modelo de negócios das plataformas é a monetização de seu recurso primário: os usuários, independente de qual lado de transação eles estão. O ato de navegação pelas infovias deixa vestígios que são capturados em tempo real pelos algoritmos desenvolvidos nos laboratórios dos proprietários das grandes corporações. Esse enorme volume de dados é reunido, articulado, rearticulado para gerar informações completas sobre todo o mercado em que operam. É com base nesse conhecimento que as Big Techs se beneficiam de sua posição privilegiada para definir as regras de acesso e uso de suas plataformas.    

Em A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital a jornalista Patrícia Campos Mello (2020) relatou o contexto das redes de ódio no Brasil a partir de sua própria experiência, quando foi alvo da chamada rede de ódio de seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro e do próprio ex-presidente, após ela ter iniciado uma investigação sobre redes de disparo em massa de mensagens com conteúdo falacioso, as chamadas fake news, direcionadas ao seu opositor, o então candidato Fernando Haddad do Partido dos Trabalhadores (PT), nas eleições de 2018. A jornalista mapeou uma rede composta por diversos atores (pessoas, instituições e grupos de empresários) que disseminavam fake news em mídias infodigitais como parte da estratégia de campanha do então candidato Jair Bolsonaro. Após ser acusada por uma de suas fontes jornalísticas de ter oferecido sexo em troca de informações desse esquema, fato que foi amplamente desmentido por ela e verificado como conteúdo falacioso por diversos veículos jornalísticos, Patrícia Campos Mello sofreu ofensas de Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo estado de São Paulo e depois do próprio ex-presidente.

O deputado Eduardo Bolsonaro logo tratou de espalhar todas essas calúnias. Fez vídeo ecoando a mentira e postou nas redes sociais. Reproduziu as ofensas de Nascimento em diversos comentários em sua conta no Twitter, que tem 2 milhões de seguidores. Fez questão de subir na tribuna da Câmara dos Deputados e dizer, enquanto era filmado: “Eu não duvido que a sra. Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o Sr. Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro (MELLO, 2020, p. 83).

 

 Sete dias após este incidente, em coletiva em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro completou: “‘Ela [repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo’, afirmou, diante de um grupo de simpatizantes. Após uma pausa para as risadas dele e dos apoiadores, o ex-presidente concluiu a frase: ‘A qualquer preço contra mim’” (Mello, 2020, p. 84).

 Esse sintoma comportamental vivenciado na atualidade a bem da verdade, já havia sido apontado, pouco mais de vinte anos por Benjamin Barber (2003), que indicava que o modo de organização do capital travestido de globalização tendia a acirrar os radicalismos numa espécie de jihad (entendida no Ocidente como guerra santa) dos descontentes. Para o autor, a promessa de diversidade e democracia do mercado global mascarava o reducionismo econômico e a homogeneização mercantil que geravam o clima de desespero e desesperança, tão bem explorado pela cultura do terrorismo. Esta não se restringia aos radicais do islã, mas também à cristandade, a grupos políticos e a qualquer outro tipo de grupo seja ele tribal ou cultural, que se sentisse ameaçado e ressentido pelas pautas e práticas da economia global.         

O terrorismo tem-se revelado uma versão pervertida da globalização, não menos vigoroso que os mercados globais na busca de seus próprios interesses, não menos comprometido que os especuladores com a desgraça anárquica, não menos adverso à violência quando é do seu interesse do que mostram os adeptos do mercado adversos às desigualdades e à injustiça quando apresentadas como “o preço a pagar pelos negócios” (BARBER, 2003, p. 21).  

 

Ao aproximar o modus operandi da cultura terrorista às das práticas do capital, Barber (2003) já apontava que a indústria da informação seria crucial nessa relação que, embora paradoxal, era própria da organização capitalista. Assim, a ameaça do terror não representava um choque de civilizações, mas uma expressão dialética acumulada no interior da aldeia global, fomentada pela indústria da informação, pela indústria cultural e pelas inovações tecnológicas.        

O que talvez Barber (2003) ainda não tivesse em mente era a capacidade de articulação que grupos radicais teriam a partir da manipulação informativa alinhavada à indústria de dispositivos infocomunicacionais e sua possibilidade de reunir, num mesmo coro, diferentes grupos de ressentidos em torno de figuras messiânicas, tais como: o ex-presidente estadunidense Donald Trump, o ex-presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro, o presidente húngaro Viktor Orban, o presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, o presidente polonês Andrzej Duda, dentre outros. O advento de um novo bloco organizado da extrema-direita no mundo orquestrado em grande parte por figuras como Steve Bannon, empresário e ex-assistente de Trump e fundador da Cambridge Analytica, impõe novos desafios à sobrevivência da ordem democrática que, corroída por dentro do sistema, esvai-se e definha publicamente, abrindo a possibilidade da emergência de situações antidemocráticas e antissistêmicas.

Foi olhando para esse contexto que Wilke (2020) propôs o conceito de Informação Tóxica. A informação tóxica é qualquer conteúdo que tenha valor informacional para determinado ator social e que esteja associado ao ódio ou a violência, em forma de assédio, insulto, intimidação, depreciação, discriminação, instigando outro ator social a sua adesão. A informação é tóxica quando ela envenena o receptor ao injetar nele ódio, que o move a agir no ambiente digital e fora dele conforme os afetos relacionados ao ódio e a violência (ato de violar outrem). A informação tóxica é movida pelos medos, preconceitos e falsas crenças – e pela intolerância em relação a aqueles percebidos, material e simbolicamente como ameaças. A informação tóxica é comumente disseminada pelas mídias e mutiplataformas digitais, embora não raramente também seja disseminada pelas mídias tradicionais, nos formatos textual, sonoro ou imagético. Essa noção diz respeito a como as infovias tornaram-se também espaços da intolerância, do arbítrio e da violência, fato que põe em xeque o status democrático de Sociedade da informação e o sentido de cidadania digital. Por elas transitam informações elaboradas e propagadas diuturnamente por interconectados alimentados pelos discursos de ódio, pelos preconceitos velhos e novos, pela violência, e que retroalimentam tais discursividades e práticas.

Anteriormente indicamos que o contexto do Capital-informação gera hábitos informacionais, os quais estão transformando os diferentes campos do mundo da vida. As informações tóxicas produzidas, postadas, recebidas, enviadas, armazenadas, por sua vez, estão acidulando tais disposições, tingindo-as com diferentes matizes que vão da indiferença à dor do outro à violência explícita – simbólica ou física – e ao aniquilamento. Essa é a faceta do habitus informacional que tem sobressaído e que revela um ambiente informacional ácido a favorecer o desenvolvimento de uma sociedade doente.

Em certa medida observamos que o ambiente virulento e o trânsito de informação tóxica correspondem, de modo geral, ao processo sócio-histórico vivenciado nos últimos anos pela sociedade brasileira. Com a ascensão ao poder do ex-presidente Jair Bolsonaro, seu modelo político ultra-radical, denominado como bolsonarismo, rompeu a esfera dos processos políticos partidários, disseminando o desprezo pelo ambiente democrático, o estado contínuo de crise, beligerância permanente e toxicidade dirigidas, sobretudo, à diversidade, ou aquilo que não se enquadra em seu modelo de mundo.

 

6 CONCLUSÕES

A noção de Informação Tóxica foi retomada e enfocada sob o prisma do conceito de capital-informação e para apresentar esse conceito, ele foi contraposto à noção de Sociedade da Informação. Também foram abordados alguns aspectos do fenômeno da plataformização. Nesse contexto marcado pelo capital-informação e pela plataformização percebe-se que certo habitus informacional está sendo desenvolvidos nos sujeitos interconectados, segundo os interesses das grandes corporações infocomunicacionais, e moldando, dentre outros aspectos, o imaginário social, a cidadania e as práticas cotidianas da vida. Tais disposições habituais, por sua vez, estão sendo marcadas pelas informações tóxicas, associadas ao ódio e à violência, aos preconceitos, às falsas crenças voltadas contra quem é entendido, material e simbolicamente, como ameaça. Por fim, defende-se que a informação tóxica é um desafio a ordem democrática e civilizatória, constituindo-se como sintoma de uma sociedade adoecida, bem como uma mercadoria de altos rendimentos na sociedade do capital-informação.

 

 

REFERÊNCIAS

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[1] Arquivista, museólogo, mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atualmente é doutorando em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT/UFRJ, com bolsa CAPES. .

[2] Doutora em Ciência da Informação e professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). .

[3] A extensa obra O conceito de tecnologia de Álvaro Vieira Pinto, foi publicado em dois volumes vinte anos após a sua morte no ano de 2005, entretanto os manuscritos encontrados por seus familiares foram finalizados em 1973, o que torna ainda mais visionária e pioneira as discussões levantadas pelo autor brasileiro.