TRANSNACIONALIZAÇÃO DA JUSTIÇA EM NANCY FRASER

repensando a esfera pública habermasiana

Maria José Goulart Vieira[1]

Universidade Estadual de Londrina - UEL

majovieira24005@gmail.com

Pamela Pereira Prestupa[2]

Universidade Estadual de Londrina - UEL

pamelaprestupa@gmail.com

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Resumo

A partir da análise dos pressupostos teórico-sociais que ligam o relato inicial de Habermas acerca da esfera pública ao enquadramento westfaliano do espaço público, Nancy Fraser propõe a necessidade de uma reestruturação da esfera pública a partir de um enquadramento transnacional, diante da existência de arenas discursivas que transbordam os limites do Estado Nação, com forte influência na realidade social. Neste contexto, Fraser enfatiza que o conceito de esfera pública foi desenvolvido não apenas para compreender os fluxos de comunicação, mas também para contribuir com uma teoria política normativa da democracia. Nessa teoria, uma esfera pública é concebida como um espaço para a geração comunicativa da opinião pública. Na medida em que o processo é inclusivo e justo, a publicidade deve desacreditar pontos de vista que não podem resistir ao escrutínio crítico, com o propósito de garantir a legitimidade daqueles que participam do processo. Assim, importa quem participa e em que condições. Nestes termos, duas ideias são centrais para a análise da esfera pública: legitimidade normativa e a eficácia política da opinião pública. A ausência desses elementos torna o conceito vazio de crítica e ação política, de acordo com Fraser. Portanto, a autora busca repensar a teoria da esfera pública habermasiana, que é implicitamente guiada por um imaginário político westfaliano, uma visão que não mais corresponde à realidade globalizada contemporânea.

Palavras-chave: esfera pública; transnacionalização; enquadramento; justiça.

TRANSNATIONALIZATION OF JUSTICE IN NANCY FRASER’S THEORY: rethinking the Habermasian public sphere

Abstract

Based on the analysis of the theoretical-social assumptions that link Habermas' initial conception of the public sphere to the Westphalian framework of public space, Nancy Fraser proposes the need for restructuring the public sphere based on a transnational framework, given the existence of discursive arenas that go beyond the limits of the Nation State, with a strong influence on social reality. In this context, Fraser emphasizes that the concept of public sphere was developed not only to understand communication flows, but also to contribute to a normative political theory of democracy. In this theory, a public sphere is conceived as a space for the communicative generation of public opinion. Aiming to guarantee that the process is inclusive and fair, publicity should discredit views that cannot withstand critical scrutiny, for the purpose of ensuring the legitimacy of those who participate in the process. Therefore, it matters who participates and under what conditions. In these terms, two ideas are central to the analysis of the public sphere: normative legitimacy and the political effectiveness of public opinion. The absence of these elements renders the concept empty of critique and political action, according to Fraser. Therefore, the author seeks to rethink the Habermasian public sphere theory, which is implicitly guided by a Westphalian political imaginary, a vision that no longer corresponds to contemporary globalized reality.

Keywords: public sphere; transnationalization; framework; justice.

1  INTRODUÇÃO

No lapso temporal compreendido a partir do final da Segunda Guerra Mundial (1945) até, aproximadamente, os anos 1970, os limites territoriais dos Estados-Nação funcionavam como recorte espacial para o enquadramento das reivindicações, tendo em vista que o âmbito doméstico era o parâmetro mais adequado à realidade, na medida em que não se verificava uma conexão, interação e dependência entre os países como acontece no mundo globalizado.

Neste contexto, a questão da justiça voltava-se à resposta de uma pergunta central, que consistia no "O quê?" da justiça. Diferentes critérios de avaliação das condições para a justiça social eram debatidos, como, por exemplo, o acesso a recursos, o respeito, a igualdade de oportunidades, o acesso à justiça formal e material, entre outros. Assim, por mais que existissem divergências acerca da substância da justiça e, também, do procedimento para a justiça, pairava um consenso acerca do sujeito da justiça, uma vez que se partia da premissa de que os destinatários seriam os cidadãos nacionais.

Neste cenário, diversas teorizações acerca de critérios para a justiça foram desenvolvidas, visando repensar o que se considerava necessário à época. Contudo, o cenário pós-globalização mudou significativamente a gramática das demandas, uma vez que os efeitos de variadas esferas passaram a ser percebidos para além das fronteiras territoriais: trabalho, tecnologia, meio ambiente, saúde, política e economia. Diante deste novo cenário vigente, Nancy Fraser busca revisitar as teorias de justiça propostas num mundo “westfaliano” - assim chamado pela autora o período em que o enquadramento das demandas concentrava-se dentro dos limites territoriais dos estados nacionais, propondo a reformulação de teorias para fins de atender às necessidades da sociedade globalizada.

Para tanto, a autora examina o conceito de esfera pública habermasiana para avaliar sua adequação às complexidades da realidade atual, que transcende o modelo westfaliano. Isso envolve uma análise das bases estruturais do conceito de esfera pública e a consideração de possíveis adaptações necessárias no contexto contemporâneo globalizado, especialmente como ferramenta crítica para repensar ainda a própria democracia realmente existente em contraposição à democracia liberal.

 

2  GRAMÁTICA DA JUSTIÇA NA SOCIEDADE GLOBALIZADA

Classicamente, as teorias de justiça dividiram-se em duas correntes majoritárias: redistribuição e reconhecimento. Os ditos redistributivistas acreditavam que a desigualdade e a injustiça seria fruto da discrepância da distribuição de recursos existente na sociedade, vinculada à esfera econômica e material. Por sua vez, os defensores da esfera do reconhecimento percebem a injustiça como primordialmente vinculada à esfera social e cultural, não entendendo a desigualdade como meramente econômica. Para a gramática do reconhecimento, a justiça depende da forma como a identidade dos indivíduos é formada e valorada no meio social, estando também relacionada com a própria formação da subjetividade individual com base nos padrões de estigma social. Nesse cenário, as discussões de justiça pautavam-se na busca por redistribuição ou reconhecimento (substância da justiça) e nos meios para tanto, tomando por base o espaço territorial nacional, o qual construía os parâmetros dentro do qual as demandas eram analisadas (Fraser, 2009, p. 13).

Este cenário político que delineou o mundo como um conjunto de Estados soberanos delimitados por seus territórios é o que Fraser chama de “enquadramento westfaliano”.  A autora entende que esse conceito moldou os debates sobre justiça no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que os primeiros indícios da necessidade de um sistema pós-Westfaliano[3] de justiça começa a emergir:

 

[...] eu utilizo ‘Westfália’ como um imaginário político que mapeou o mundo como um sistema de Estados territoriais soberanos mutuamente reconhecidos. A minha tese é que esse imaginário informou, no pós-guerra, o cenário de debates acerca da justiça no Primeiro Mundo, ao mesmo tempo em que os primeiros sinais de um regime pós-Westfaliano de direitos humanos emergiram” (Fraser, 2009, pp. 160-161).

 

Contudo, a partir do cenário mundial globalizado, o paradigma Keynesiano-Westfaliano não parece mais ser  suficiente para abordar as questões de justiça, pois um paradigma que supõe que as demandas devem ser resolvidas exclusivamente a nível nacional e com base em princípios e estruturas internas, não mais corresponde à realidade vivenciada. Quando as reivindicações são limitadas ao âmbito nacional, as influências de poder que estão além do controle nacional não são consideradas, como os Estados agressivos, investidores financeiros internacionais de alto risco e empresas multinacionais. Esses e outros diversos fatores mudaram radicalmente a gramática das reivindicações na sociedade globalizada, uma vez que os efeitos das ações que ocorrem dentro dos Estados passam a repercutir para além das fronteiras territoriais que os delimitam (Fraser, 2009, p. 15).

Neste novo cenário vigente, passou-se a ser necessário repensar os modelos de justiça existentes, uma vez que é essencial que as fronteiras da justiça sejam questionadas, além do próprio “modo de sua constituição [das fronteiras da justiça], ou seja, do modo pela qual elas são desenhadas”, exigindo também uma análise dos procedimentos da justiça (Fraser, 2009, p. 24). Para tanto, a gramática da justiça (anteriormente dualizada entre redistribuição e reconhecimento) passa a carecer de uma nova esfera de reivindicação por justiça: a esfera política, que busca combater as falhas de representação[4].

A representação, inserida no contexto político, está intrinsecamente ligada à atuação do Estado e à elaboração e implementação das normas que regulamentam a interação na sociedade. Nesse sentido, é no âmbito político que se desenrolam os embates cruciais em busca das políticas de redistribuição e de reconhecimento. Segundo Fraser, o cenário “político fornece o palco onde as lutas por redistribuição e reconhecimento são conduzidas” (2009, p. 17).

Enquanto as demandas por redistribuição buscam reparar a injustiça material e as demandas por reconhecimento tratam das  injustiças valorativas na convivência social, a injustiça política trata da injustiça do enquadramento, que pode ser percebida quando as atividades que estabelecem o enquadramento são negadas aos próprios sujeitos afetados no processo, sendo monopolizadas pelos Estados e elites transnacionais. Neste caso, temos uma esfera pública constituída apenas por públicos fortes[5], cujos interesses são tidos como superiores, enquanto que a grande maioria fica excluída dos processos de deliberação (Fraser, 2009, p. 26).

No período anterior à era da globalização, o princípio da territorialidade podia ser visto como suficiente para métrica das demandas, uma vez que a sociedade funcionava de maneira diferente. No entanto, no contexto atual de interdependência global entre nações, é evidente que as ramificações de certas ações transcenderam de forma ampla as fronteiras nacionais, sendo inegável que os territórios nacionais não podem mais ser considerados isolados das influências globais em várias esferas, incluindo economia, meio ambiente, produção e reprodução, e outros (Fraser, 2009, p. 15).

Nestes termos é que a autora questiona o conceito de esfera pública tal qual proposto por Habermas, argumentando que esse conceito foi originalmente formulado com base no enquadramento westfaliano. No entanto, em uma realidade globalizada, as estruturas nacionais já não são capazes de superar a injustiça e conferir eficácia à opinião pública partindo de premissas e estruturas vinculadas aos limites dos territórios nacionais.

 

3 Esfera pública habermasiana no cenário pós-westfaliano

O conceito de esfera pública, originalmente elaborado por Habermas em Mudança Estrutural da Esfera Pública (1962),  é considerado por Fraser como indispensável para o estudo dos limites da democracia nas sociedades do capitalismo tardio, uma vez que este conceito permitiu a compreensão da atuação do Estado e de seus aparatos, além das arenas públicas de associação e discursos dos cidadãos, os quais tiveram seus processos fundidos (Fraser, 2022, p. 94).

A ideia de “esfera pública”, no conceito habermasiano,  é a de um corpo de “pessoas privadas” que se reúnem para discutir assuntos de “caráter público” ou “interesse comum” e designa os espaços em que cidadãos e cidadãs deliberam sobre assuntos comuns, isto é, uma arena institucionalizada de interação discursiva, por meio da participação política e por intermédio da fala, de modo distinto da atuação estatal, atuação esta que pode inclusive ser objeto de críticas neste espaço, onde há produção e circulação de discursos. Fraser lembra ainda que,  no sentido habermasiano, a esfera pública é também conceitualmente distinta da economia oficial, ou seja, não é uma arena de relações de mercado, mas sim de relações discursivas, o que permite as distinções entre aparatos estatais, mercados econômicos e associações democráticas (Fraser, 2022, p. 95-96).

No entanto, Fraser argumenta que o modelo descrito por Habermas não é inteiramente satisfatório, necessitando passar por uma interrogação e reconstrução crítica a fim de produzir uma categoria apta a teorizar os limites da democracia realmente existente, o que passaria pela própria elaboração de uma concepção alternativa e pós-burguesa de esfera pública, uma vez que a publicidade de atos e acessibilidade de informações, na esfera pública oficial, vem sendo baseada em uma série de exclusões, em especial a de gênero, e essa relação entre a sociedade e o Estado se tornaram encenadas nos meios de comunicação de massa, gerando manipulação na produção da opinião pública (Fraser, 2022, p. 96-97).

Indo além, a autora levanta uma questão importante acerca dos públicos que compõem a esfera pública, que na visão habermasiana ficou restrita ao público burguês e desconsiderou a existência de uma série de contrapúblicos concorrentes, como camponeses, mulheres da elite, negros e a própria classe trabalhadora, públicos estes que  já existiam no fim do século XIX e não apenas no início do século XX, como sugerido por Habermas. Nestes termos, justamente pela identificação da existência de uma pluralidade de públicos concorrentes é possível identificar as relações conflitantes geradas com tomando por base exclusivamente o público burguês, tendo por consequência a estruturação de normas excludentes (Fraser, 2022, p. 101).

As questões começam então a pairar em torno das flagrantes exclusões existentes e conflitos sociais, um tanto negligenciados pelo estudo de Habermas, o que demandaria uma mudança ainda maior nas bases estruturais da esfera pública, já que o atual modelo liberal de esfera pública funcionaria em direção à legitimação de uma forma emergente de domínio de classe, raça e gênero, considerando-se ainda como um veículo institucional de uma grande transformação histórica na natureza da dominação política, passando de um modo repressivo para um modo hegemônico. Nesse novo modelo de dominação política, é permitido a um estrato da sociedade, ter o domínio sobre os estratos restantes, de tal modo que a esfera pública tornou-se o principal espaço institucional de construção do consentimento que define o novo modo hegemônico de dominação (Fraser, 2022, p. 102).

Ainda sobre o tema, Fraser elenca outros pressupostos problemáticos acerca da estrutura da esfera pública tal qual proposta por Habermas, que são eles: a  possibilidade  de suspensão das desigualdades na esfera pública; a existência de uma única esfera pública em detrimento de uma multiplicidade de públicos concorrentes; a restrição à deliberação sobre o bem comum e a separação entre sociedade civil e Estado (Fraser, 2022, p. 103 – 104)[6].

Nestes termos, a autora pretende analisar o conceito habermasiano de esfera pública sob um olhar crítico, voltado a atender efetivamente os anseios da deliberação democrática no cenário da sociedade atual, reformulando-o.

 

4 Legitimidade normativa e eficácia política da opinião pública no cenário pós-westfaliano

Com o advento da globalização, tornou-se possível observar que os processos sociais que moldam a vida das pessoas transbordam rotineiramente as fronteiras territoriais de um Estado-nação. Aliado a isto, as decisões tomadas num Estado territorial têm frequentemente impacto nas vidas daqueles que estão fora dele, tal como acontece com as ações de corporações transnacionais, especuladores monetários internacionais e grandes investidores institucionais. Na contemporaneidade, há uma crescente importância na atuação de organizações supranacionais e internacionais, tanto governamentais como não-governamentais, bem como de uma opinião pública transnacional, que flui pelas mídias com supremo desrespeito às fronteiras através dos meios de comunicação de massa globais e da cibertecnologia.

Surge assim, cada vez mais o debate em torno da denominação “esferas públicas transnacionais” ou “esfera pública global”. Disto resulta que os habitantes do globo, mesmo os  mais privilegiados, sentem agora a sua vulnerabilidade às forças transnacionais, sendo facilmente possível identificar a existência de uma esfera pública transnacional. No mesmo sentido, problemas como o aquecimento global, o terrorismo internacional e o unilateralismo das superpotências, tornam-se ameaças que se sobrepõem às fronteiras e dependem de medidas as quais ultrapassam as fronteiras dos estados territoriais no enfrentamento de questões de (in)justiça.

No cenário pós-westfaliano, caracterizado pela comunicação rápida e interconexão dos efeitos das ações em nível global como consequência da globalização, torna-se essencial abordar a terceira dimensão da justiça, juntamente com a redistribuição e o reconhecimento: a representação, esfera cuja injustiça é da espécie política. A inclusão da esfera política se dá pela necessidade de estabelecer quem é considerado como membro titular das reivindicações, quais são os parâmetros e regras para a tomada de decisões, da delineação dos procedimentos a serem observados e estruturação das decisões, tanto na esfera cultural quanto econômica. Nancy Fraser entende que a esfera política precisa atentar-se à questões relativas ao pertencimento social e ao procedimento para fins de verificar a justiça na tomada de decisões públicas, considerando ser necessário avaliar a validade das representações exercidas no cenário deliberativo (Fraser, 2009, p.18). 

A necessidade de reavaliar o potencial crítico da esfera pública depende de um diagnóstico real que considera a nova transformação estrutural das esferas públicas. Isso resulta na criação de novas condições de possibilidade para a teoria crítica na atualidade. Essa nova transformação estrutural é resultado de uma série de desenvolvimentos ligados à globalização neoliberal, nos quais os processos de comunicação, questões políticas, os públicos afetados por políticas e decisões, e os atores que as formulam e executam tornaram-se todos transnacionalizados (Melo, 2015, p. 25-26).

A importância deste ponto é fundamental, pois Fraser parte da interpretação dos problemas atuais da democracia como manifestações do que ela descreve como contradições políticas inerentes ao capitalismo financeirizado. Ela parte do pressuposto de que o surgimento da pós-democracia não é simplesmente um evento acidental, mas algo enraizado profundamente na estrutura da ordem social. Esse desenvolvimento sugere que as atuais demandas sociais não resultam apenas de uma crise política isolada, mas têm raízes mais amplas. Além disso, devido à crise abrangente dentro da ordem social que a autora rotula como capitalismo financeirizado, torna-se evidente que os atuais processos de desdemocratização sugerem que há uma falha não apenas na forma atual do capitalismo, mas também na sociedade capitalista como um todo. Essas questões não podem ser negligenciadas, inclusive na esfera transnacional (Fraser, 2018, p. 155).

A problemática surge ao se verificar a existência de uma esfera pública plural, conflitante e extraterritorial, na qual os limites da justiça se restringem ao âmbito político nacional. No modelo westfaliano, o  sistema concebia as comunidades políticas como unidades geograficamente delimitadas e ordenadas, associando essas comunidades a um Estado próprio, dotado de uma soberania exclusiva sobre seu território, soberania esta que impedia a interferência externa em seus assuntos internos, o que também afastava qualquer poder superior internacional. Ou seja, o espaço interno estava, deste modo, sujeito à ordenação jurídica interna, enquanto o espaço internacional permanecia em um estado de natureza, sem um ordenamento jurídico ao qual deveria estar submetido. Neste cenário, somente poderiam ser sujeitos da justiça os cidadãos de um Estado, submetidos à ordem jurídica daquele próprio Estado. Porém, tal cenário não se legitima mais na sociedade globalizada.

A teorização de Fraser compreende a ideia de que contrapúblicos subalternos são capazes de adotar estratégias informais e não governamentais, desempenhando um papel crucial na autocompreensão de diversas reivindicações na sociedade civil global. Vários grupos na sociedade civil global estão envolvidos em dois tipos de projetos políticos “invisíveis”: o primeiro envolve ações diretas contra organizações que perpetuam desigualdades estruturais e injustiças globais, como instituições financeiras internacionais e corporações transnacionais. O segundo consiste na criação de espaços na internet e instituições que atuam como contrapúblicos robustos ou quase robustos na sociedade civil. Eles desempenham um papel na geração de contrapublicidade e permitem que seus membros participem na determinação coletiva da organização de suas vidas sócio-políticas (Melo, 2015, p. 37).

Nesse contexto, embora a abordagem de Habermas tenha contribuído consideravelmente para a análise crítica da concepção da democracia moderna ao explorar conceitos como publicidade, razão pública, vontade geral e soberania pública, que estão relacionados ao âmbito social e às instituições políticas, fortalecendo a geração consensual de normas de conduta por meio do discurso público crítico, a sua concepção foi vinculada a um modelo de Estado territorial.

A esfera pública habermasiana foi identificada com a nossa política normativa mais importante, e tem sido associada a um princípio universal de participação entendido como um conceito de formação discursiva da vontade, ou seja, que enfatiza a determinação de normas de ação através do debate prático de todos os afetados por eles. Sendo assim, o trabalho de Habermas sobre a estruturação do sistema nacional esfera pública é relevante para uma teoria crítica da democracia por causa dos princípios normativos que ele foi capaz de reconstruir (Melo, 2015, p. 25-26).

Nessa teoria, uma esfera pública é concebida como um espaço para a geração comunicativa da opinião pública. Na medida em que o processo é inclusivo e justo, a publicidade deve desacreditar pontos de vista que não podem resistir ao escrutínio crítico e para assegurar a legitimidade daqueles que o fazem. Assim, importa quem participa e em que condições. Além disso, uma esfera pública é concebida como um veículo para mobilizar a opinião pública como uma força política. Mobilizando o considerado sentido da sociedade civil, a publicidade deve responsabilizar os funcionários e garantir que as ações do Estado  expressem a vontade dos cidadãos. Assim, uma esfera pública deve se correlacionar com um poder soberano. Juntas, essas duas ideias – a legitimidade normativa e a eficácia política da opinião pública – são essenciais para o conceito de esfera pública na teoria democrática. Sem eles, o conceito perde sua força crítica e seu ponto político.

Nesse sentido, Fraser propõe um conceito de esfera pública que incorpora um potencial crítico baseado na legitimidade normativa, promovendo o debate democrático entre todas as partes afetadas por um problema específico[7]. Além disso, esse conceito busca eficácia política, ou seja, a capacidade efetiva da esfera pública de influenciar ou mesmo moldar instituições políticas responsáveis que atuem em benefício de todas as partes afetadas através de leis e administrações vinculativas (Fraser, 2010, p. 77).

Além disso, Fraser enfatiza a importância de considerar o contexto histórico anterior a esses princípios. Ela argumenta que é necessário reconhecer que o pensamento de Habermas sobre a teoria da esfera pública está confinado a um específico "contexto de origem", que ela identifica com o quadro westfaliano. Por essa razão, a autora destaca os seis pressupostos teórico-sociais que claramente ligaram a narrativa inicial de Habermas sobre a esfera pública ao enquadramento político westfaliano (Fraser, 2010, p. 79-80):

O primeiro pressuposto diz respeito ao surgimento da opinião pública junto com um aparato estatal moderno. Ou seja, a opinião pública, da forma como a entendemos hoje, teve origem e se tornou relevante na mesma época em que os Estados modernos e suas estruturas administrativas e políticas foram se moldando e se consolidando, sendo essencial entender essa ligação para a compreensão da esfera pública de Habermas.

Em segundo lugar, Habermas identificou como membros do público os cidadãos de um Estado democrático da Vestfália, ou seja, uma comunidade política limitada territorialmente. Portanto, a concepção de esfera pública de Habermas está vinculada à ideia de que a esfera pública e seus participantes estão associados a comunidades políticas específicas, as quais possuem limitações geográficas definidas pelas fronteiras, o que configura um problema no cenário da globalização.

 O terceiro pressuposto diz respeito à preocupação inicial majoritariamente focada em questões econômicas no território nacional – especialmente na fase de desenvolvimento da esfera pública. Neste cenário, a discussão na esfera pública foi ligada às relações econômicas desta própria comunidade política. Isso significa que o foco principal da preocupação do público, ao menos em seu aspecto histórico inicial de formação, era a economia nacional regulada pelo Estado. Na atualidade, contudo, a esfera pública é um ambiente que deve lidar com uma variedade robusta de temas que extrapolam as questões econômicas.

A forma dos meios de comunicação diz respeito ao quarto pressuposto: conceito de esfera pública associado aos meios de comunicação modernos, assumindo então uma infraestrutura de comunicação nacional disponível em um estado westfaliano. Relacionado ao quarto pressuposto, partimos para o quinto: o debate público linguisticamente compreensível, o que pressupõe a existência de uma língua padrão como parte fundante da esfera pública, configurando-se como mais uma limitação que se enquadra exclusivamente ao cenário westfaliano. 

Finalmente, o sexto pressuposto de existência da esfera pública habermasiana refere-se a uma vinculação da cultura a uma comunidade nacional. Isso implica um cenário cultural restrito à cultura e identidade de um povo inserido em um território nacional. Tal pressuposto é problemático, especialmente em um cenário globalizado , na medida em que fornece uma limitação cultural, mostrando-se incompatível com sociedade multiculturais, além de excluir perspectivas culturais diversas da majoritária.

Nesse contexto, a legitimidade democrática das instituições em uma governança global exige que seja considerada a possibilidade de uma esfera pública política desempenhar um papel fundamental nas interações globais, desde que possamos ampliar a ideia de uma esfera pública além dos limites do Estado-nação. Portanto, é necessário reconsiderar a teoria crítica da esfera pública, tornando-a mais adequada para abordar questões transnacionais, com o objetivo de restaurar o seu potencial crítico em relação a conceitos normativos, legitimidade e eficácia política, enquadrando-a no contexto atual.

Ao focar na articulação dos ideais normativos com uma historiografia engajada e baseada nas condições sociais, Fraser fixa a sua principal intenção teórica quanto à esfera pública na reconstrução da teoria de Habermas, identificando a necessidade real de uma teoria crítica em ambiente pós-nacional. Apesar disso, surpreendentemente, a sua estratégia não consiste em obter novos elementos críticos do novo quadro pós-westfaliano vivenciado, mas sim manter o que tem sido considerado como critério crítico perante todas as transformações, reconstruindo-os no mundo pós-westfaliano:

 

Minha proposta centra-se nas duas características que juntas constituíram a força crítica do conceito de esfera pública na era vestfaliana: a saber, o normativo, a legitimidade e eficácia política da opinião pública. A meu ver, essas ideias são elementos intrínsecos e indispensáveis ​​de qualquer concepção de publicidade que pretenda ser crítico, independentemente das condições sócio-históricas em que se encontra. A presente constelação não é exceção. A menos que possamos imaginar condições sob as quais os atuais fluxos de publicidade transnacional poderiam tornar-se legítimos e eficazes, o conceito perde o seu caráter crítico e o seu sentido político. Por isso, a única maneira de salvar a função crítica da publicidade hoje é repensar a legitimidade e eficácia. A tarefa é separar essas duas ideias de premissas westfalianas que anteriormente as sustentava e reconstruí-las para um mundo pós-westfaliano (FRASER, 2010, p. 93).

 

Mesmo após essas considerações, ainda há várias questões em aberto na atualidade sobre como devemos continuar a identificar possíveis caminhos de emancipação e esclarecer questões políticas, especialmente à luz das perspectivas que podem surgir de novas conjunturas e contextos na esfera pública transnacional.

Embora Fraser apresente a necessidade de revisão à teoria habermasiana, é inconteste que através do conceito de esfera pública foi possível chegar a compreensão de que a opinião pública gera na sociedade globalizada uma verdadeira circulação de poder, justamente pela pluralidade de públicos que constantemente atuam nas demandas por justiça. O que Fraser demonstra é que, ao formular a ideia de Mundo da Vida (Lebenswelt), Habermas tenha negligenciado o potencial participativo de intervenção de públicos excluídos nos Sistemas  e, por esta razão, Fraser pretende conferir especial atenção à questão de legitimidade normativa e a eficácia política enquanto pontos essenciais para a compreensão do papel das instituições e do Estado na modernidade, procurando identificar o lugar que cada cidadão e cidadã ocupa na esfera pública e, consequentemente, nas democracias modernas.

Nesse contexto, o conceito de “circulação de poder” pode servir de auxílio para visualização de que o potencial crítico da esfera pública também depende de sua constituição enquanto espaço social e político conflitante, e através da experiências práticas de auto-organização na esfera pública poderíamos avaliar criticamente a condição da democracia transnacional existente (Melo, 2015, p. 34-35).

Segundo Fraser, a teoria da esfera pública deve ser reformulada para que possa manter sua característica de teoria crítica, devendo revisar e questionar a sua legitimidade normativa e a eficácia política da opinião pública no cenário atual, mas sem descartar a formulação habermasiana. A atualização da teoria da esfera pública num cenário mundo globalizado deve tratar de duas questões distintas – mas interligadas, que são a legitimidade pública existente e a eficácia da publicidade existente. A primeira depende do questionamento do modo como a publicidade funciona, e também de quem são as partes envolvidas no processo. Ou melhor, deve analisar a garantia da paridade de participação[8], questionando: paridade entre quem? Já a segunda exige a avaliação da forma como a opinião pública efetivamente exerce influência nas decisões políticas. Mesclando estes dois requisitos, deve vislumbrar novos poderes públicos transnacionais, que possam ser responsabilizados por novos circuitos democráticos transnacionais de opinião pública.

 

3 CONCLUSÃO

Ao discutir a legitimidade e eficácia democrática das instituições em um modelo de governança global, mais uma vez, o conceito de uma esfera pública política desempenha um papel crucial. No entanto, ainda estamos no processo de compreender a formação de uma esfera pública que transcende o Estado-nação. A crítica de Fraser inicialmente dirigida a Habermas é formulada em relação a públicos negligenciados em sua interpretação histórica, unicidade da esfera pública em contraposição a esferas públicas múltiplas, separação entre sociedade civil e Estado, despreocupação com a igualdade social e exclusão de “interesses privados” do ambiente de deliberação. No entanto, na visão da autora, todos estes pontos não alcançam propriamente o mérito do conceito de esfera pública, mas suscitam o debate, colocando em questão a concepção burguesa, masculinista e supremacista branca de esfera pública.

Quanto ao mérito da estruturação do conceito de esfera pública, a autora busca questionar os pressupostos sobre os quais a esfera pública habermasiana é construída, verificando se tais pressupostos podem ser legitimados na sociedade atual, cuja interação social não é mais vinculada a uma espaço geográfico territorial, e sim possui uma interação a nível global.

Na sociedade moderna, onde a esfera pública tem um alcance transnacional, há dois elementos essenciais que devem ser observados para a possibilidade de construção de uma democracia efetiva, os quais articulados formam o ponto crucial para a teoria crítica nos dias de hoje. O primeiro elemento é a legitimidade normativa, a qual destaca a importância de garantir a participação igualitária de todos os afetados na discussão, sejam eles membros ou não membros de uma determinada estrutura social. O segundo, a eficácia política, pretende que a esfera pública seja apenas um espaço de discussão teórica, mas também deve ter o poder de afetar a tomada de decisões políticas, criando deliberações vinculadas. As ferramentas para garantia destes dois elementos devem ser repensadas sob uma perspectiva de enquadramento pós-westfaliano, ou seja, para que tenham um enquadramento global.

Segundo Fraser, a opinião pública é considerada legítima se resultar de um processo comunicativo no qual todos os que estão conjuntamente sujeitos às questões relevantes nas estruturas de governança possam participar como pares, independentemente de sua vinculação política. Por mais exigente que possa parecer, esta nova compreensão pós-westfaliana da legitimidade constitui um padrão genuinamente crítico para avaliar as formas existentes de publicidade na era atual.

Nesse contexto, a teoria da esfera pública precisa ser adaptada ao mundo contemporâneo, considerando a atual crise do sistema capitalista e tendo seus conceitos e princípios revisitados, com o objetivo de manter sua natureza crítica e sua capacidade de avaliação da legitimidade e eficácia em um contexto político em constante mudança e com potencial emancipatório das esferas públicas atuais relacionados a sua real vitalidade auto-organizacional para alcançar voz ativa contra o poder hegemônico já sedimentado nas instituições e no próprio Estado.

 

REFERÊNCIAS

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MELO, Rúrion. Public sphere and transnational democracy: a critical theoretical response to nancy fraser. Perspectiva Filosófica, vol. 42, n. 2, 2015.

PRESTUPA, P. Da efetivação da paridade de participação como requisito para uma esfera pública igualitária. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, RJ, v. 9, p. 60–74, 2022. DOI: 10.21728/logeion.2022v9nesp.p60-74. Disponível em: https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/6169. Acesso em: 23 out. 2023.

 



[1] Doutoranda em Filosofia. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul-RS, Pós-Graduada em Direito Público - Universidade Anhanguera (2012). Pós-Graduada em Direito Constitucional - Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2009). Graduada em Direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Advogada e pesquisadora, membro do Grupo de Pesquisa em Aprimoramento Humano e Justiça.

[2] Mestranda em Filosofia. Pós-graduada em Direito Público. Advogada. Integrante do grupo de pesquisa em Teorias da Justiça – CNPq.

[3] O enquadramento westfaliano pressupunha a resolução das demandas dentro do território nacional. Por sua vez, o sistema pós-westfaliano, como nomeado por Nancy Fraser, assume que as ações e consequências dos atos acontecidos dentro dos países possuem reflexos fora dos limites territoriais, diante do advento da globalização.

[4] Em obras anteriores, Nancy Fraser é conhecida por desenvolver a sua teoria de justiça bipartite ou bidimensional, que compreendia as esferas da redistribuição e do reconhecimento, sem as quais a autora entendia que não era possível efetivamente combater a injustiça. A partir da obra Scales of Justice (2009), a autora utiliza-se da análise da sociedade globalizada contemporânea e visualiza a necessidade da inclusão de mais uma esfera essencial de justiça: a representação. A partir de então, temos a chamada teoria tripartite, que compreende redistribuição, reconhecimento e representação. 

[5] Fraser (2022, p. 121)  faz a distinção entre “públicos fortes” e “públicos fracos” da seguinte forma: os "públicos fracos" por vezes geram opinião pública e pressão política, mas não têm o mesmo poder decisório que os "públicos fortes" dentro do estado, os quais possuem a capacidade de criar mandamentos vinculantes.

[6] Sobre o tema, verificar o artigo: Da efetivação da paridade de participação como requisito para uma esfera pública igualitária. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, RJ, v. 9, p. 60–74, 2022.

[7] Sobre este tópico, no texto “Justiça Anormal” (2008), a autora discute os possíveis princípios que poderiam guiar o enquadramento das demandas em um cenário pós-westfaliano, descartando princípios como filiação e territorialidade.

[8] A alguns grupos na sociedade é negado o status de participação paritária, o que gera ou perpetua injustiças. O Estado não promove políticas de inclusão, de reconhecimento e redistribuição econômica, justamente pela ausência de legislação específica que decorre da não participação e representação dos grupos excluídos nos espaços de poder, razão pela qual, Fraser propõe uma transformação estrutural na esfera pública transnacional que passaria por uma concepção tridimensional  de justiça, baseada em remédios de reconhecimento, redistribuição e representação, cada um vinculado a um dos eixos de justiça defendidos pela autora: econômica, cultura e política.