RECONSIDERAÇÕES HABERMASIANAS PARA O CONCEITO DE ÉTICA DA BNCC
Fábio Rodrigo Fernandes Araújo [1]
Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Ensino e Geografia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
fherodoto@gmail.com
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Resumo
Na história educacional, em particular nos PCNS (1997), a ética adquire o status de tema transversal para uma educação básica de qualidade, quando são inseridos os conceitos de justiça, dialogo, afetos e emoções, reciprocidade, diálogo e racionalidade enquanto conteúdos comuns para as práticas pedagógicas e para os conhecimentos específicos das disciplinas. Na BNCC, a referência exata a esse conceito se faz nas competências gerais 6, 7, 9 e 10, como também, na menção do termo formação que está presente na introdução dos tópicos que propõe bases para o pensar educativo das ciências humanas e sociais. Desta forma, a intenção é propor, pela filosofia de Jürgen Habermas, uma nova abordagem conceitual sobre ética presente na BNCC. A pesquisa se constitui por uma análise bibliográfica e interpretativa da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), das obras de Jürgen Habermas e de artigos referentes à educação e agir comunicativo. Logo, no campo educacional, o conceito de ética, na BNCC, pode ter uma estruturação com indicações racionais e comunicativas, conteúdos possibilitados pelo filosofar brasileiro, e mobilização de conhecimentos a partir de princípios e lógicas de ordem geográfica e simbólica. Esta ordem tem como base procedimentos, conceitos e entendimentos intersubjetivos, dimensões que são conduzidas através de aprendizagens construídas pelo discurso, tanto em sua forma multidimensional como concordante entre os atores sociais.
Palavras-chave: BNCC; ética; Jürgen Habermas.
HABERMAS’S RECONSIDERATIONS ON THE CONCEPT OF ETHIS ACCORDING TO BNCC
Abstract
In educational history, particularly in the Brazilian national curriculum guidelines (PCNs, 1997), ethics acquires the status of a transversal theme for quality basic education, when the concepts of justice, dialogue, affections and emotions, reciprocity, dialogue and rationality are inserted as common contents for pedagogical practices and specific knowledge of the subjects. At BNCC, the currect Brazilian curriculum guidelines for education, the exact reference to this concept is made in the general competencies 6, 7, 9 and 10, as well as in the mention of the term training/education that is present in the introduction of the topics that propose bases for educational thinking in the human and social sciences. In this way, the intention is to propose, through Jürgen Habermas’s philosophy, a new conceptual approach to ethics present at BNCC. The research consists of a bibliographic and interpretative analysis of the Brazilian common curricular base (BNCC), the works of Jürgen Habermas and articles referring to education and communicative action. Therefore, in the educational field, the concept of ethics, at BNCC, can be structured with rational and communicative indications, content made possible by Brazilian philosophizing, and mobilization of knowledge based on principles and logics of a geographical and symbolic order. This order is based on procedures, concepts and intersubjective understandings, dimensions that are conducted through learning constructed by discourse, both in its multidimensional form and in agreement between social subjects.
Keywords: BNCC; ethic; Jürgen Habermas.
1 INTRODUÇÃO
Previamente, as análises e contextos da presente reflexão serão situados em consensos comuns sobre documentos curriculares oficiais, como também, apontamentos sobre a filosofia e suas contribuições para um estudo reconstitutivo para a teoria, saberes e mobilizações do que se convenciona chamar de uma base comum curricular (BNCC).
Para esta compreensão, compreenderemos que o currículo e sua formulação em documentos oficiais é um campo discursivo da educação e seus atores político-sociais, os quais são apropriados por tensões e identidades plurais; negociação de poderes entre a linguagem, a cultura instituída e a revalidação dos mundos da vida escolar, e em específico, os que são construídos por populações indígenas, africanas, imigrantes e descendentes dos povos colonizadores do Brasil.
Deste modo, o seu campo epistêmico processa-se na produção histórica de orientações para ensinar papeis e funções na sociedade, seja pelo viés de uma racionalidade instrumental ou dramatúrgica.
Em outros termos, currículo significa pôr em comunicação verbal e não-verbal, metas, objetivos e conteúdos referentes a um educar, emancipar e desenvolver uma sociedade pluricultural e etnicamente diversa em termos de ensino-aprendizagem, produção de conhecimentos escolares e formação humana integral para o consenso, comum acordo e resolução de dilemas ético-morais relevantes.
Consoante a isso, entende-se que, no Brasil, os PCNS (1997) exploram essa proposta ao propor que seja trabalhado o tema transversal da ética, através de um conjunto de temáticas que argumentam acerca da justiça, diálogo, afetos e emoções, reciprocidade, diálogo e racionalidade. Sempre com uma sólida adjetivação conceitual e pedagógica deferente ao ensino básico, com princípios e formas de se compreender a dimensão ética, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio.
A proposta desse volume dos PCNS advoga para uma proposição de ética própria à filosofia latino-americana, seus matizes e reconstruções teóricas para um pensar ético-moral fundamentado através de princípios que, segundo Aistran (2021), são a universalização dos discursos da vida moral; a interlocução entre memória e identidade dos povos latinos; o significado do conflito como médium de relação entre sistemas de valores, sistemas de mediação e de sistemas de conciliação de interesses.
Por outro lado, a Base Nacional Comum Curricular encontra problematizações superficiais e universalmente hegemônicas e centralizadores a respeito de temáticas centrais que deveriam balizar o conteúdo dos objetivos, competências, práticas e habilidades desejadas para uma educação de qualidade. As temáticas seriam a própria ética, as questões da diversidade cultural, o lugar da filosofia latina como referente central para os conceitos e aprendizagem requeridos, como também, o posicionamento das humanidades e ciências sociais como discurso fundamental nas proposições de pedagogia do documento.
Em consonância aos dois últimos pontos, é pertinente frisar que a crítica da literatura educacional, a base, não é referente às questões técnicas e objetivas do documento, mas aos posicionamentos discursivos e conceituais que são referentes às concepções centralizadoras e sem aprofundamento de temas específicos próprios a todas ciências, como também, à imprecisão crítica sobre o que seria a pedagogia, didática e filosofia educacional a serem desejados para o Brasil contemporâneo.
Nesse cenário, iremos investigar qual é a abordagem do conceito ética na Base Nacional Comum Curricular? E como ela poderá ser reconstruída a partir de aportes teórico-metodológicos da filosofia de Jürgen Habermas?
A pesquisa se constitui por uma análise bibliográfica e interpretativa da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), das obras de Jürgen Habermas e de artigos referentes à educação e agir comunicativo. Utilizamos, como fontes de busca para os textos de periódicos, as plataformas Scielo, Redalyc, Google Acadêmico, e portal de periódicos CAPES.
A seleção dos achados em periódicos decorreu em dois critérios: publicação dos trabalhos no período 2001-2022; a ênfase sobre educação, ética e agir comunicativo presente nos resumos e palavras-chave dos artigos. Partindo disto, procedemos com a leitura integral dos componentes resumo, introdução e considerações finais para subsidiar a análise do presente texto.
No estudo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e das obras de Habermas procedemos com a leitura integral dos textos, destacando, para isso, a interpretação do conceito de ética, referências a ele, caso não houvesse a identificação explícita desse termo, além do destaque dos estruturantes da dimensão ética, com as condições e normas para sua compreensão.
A presente reflexão se propõe a contribuir para o âmbito da educação geográfica e seu pensamento sobre a ética e seus processos formativos no ensino escolar, e insere-se nos projetos Educação Geográfica do Agir Comunicativo do Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Ensino e Geografia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e Didática da Geografia em contextos ibero-americanos, cujas discussões ocorreram na Rede de Investigadores Ibero-Americanos em Educación Geográfica.
Desta forma, o artigo intenciona reconstituir, pela filosofia de Jürgen Habermas, a abordagem conceitual sobre ética presente na BNCC. Para tanto, a utilização de conceitos como mundo da vida e ética do discurso serão imprescindíveis para esse texto.
Saliento que a reflexão será dividida em três momentos. A BNCC e o seu conceito de ética que fará uma breve investigação da conceituação de ética que possa estar ou não estabelecida na BNCC. Contribuições Habermasianas para o conceito de ética da Base Nacional Comum Curricular, que demostra as possíveis considerações da filosofia habermasiana para a reconstituição teórica do citado conceito e, por fim, as considerações finais acerca do que foi discutido e interpretado.
2 A BNCC E SEU CONCEITO DE ÉTICA
Na presente seção, analisaremos os elementos e sentidos do conceito de ética na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017). Para tanto, a observação terá como escopo os componentes competências gerais e o texto de introdução para a seção de ciências sociais aplicadas e humanas no ensino médio e fundamental.
As competências são “mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2017, p. 08). Ou seja, condições gerais para o pleno desenvolvimento humano e das aprendizagens do educando de acordo com a unidade entre saberes sociais, subjetivos e científicos. Porém, como orientações para o âmbito educativo, as competências representam demandas para uma sociedade não-complexa e homogenia.
Dentre isso, a BNCC elege dez competências como centrais para seu conteúdo, sendo que a análise da presente reflexão é acerca das competências 6, 7, 9 e 10 (Quadro 01).
Quadro 01 – Competências referentes a ética
Número |
Texto |
6 |
Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. |
7 |
Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. |
9 |
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. |
10 |
Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. |
Fonte: Brasil, 2018.
O quadro revela que as competências gerais 6, 7, 9 e 10 fazem referência implícita à ética como um conceito não vinculado às matrizes filosóficas da educação, o qual deverá ter sua própria estrutura de elementos e reformulações de acordo com os espaços e tempos de evolução do pensamento filosófico na América Latina.
Em outras palavras, compreende-se que a dimensão da ética não é propalada como dimensão constitutiva e central do educar, cuidar e pensar por e através das referências conceituais da BNCC. As próprias competências esclarecem isso ao posicionar a ética como um adjetivo indireto ou direto ao valorizar (6); argumentar (7); exercitar (9) e o agir (10) por e através de princípios de eticidade na e com a escola. Nesse sentido, faremos uma breve análise sobre o que seria ética em cada uma das competências citadas.
Na competência 6, apesar de não haver a presença do termo ética, seu texto implica na valorização da diversidade cultural como algo hegemônico, universalista e que não considera as assimetrias do entendimento entre povos colonizadores e povos originários do Brasil. Isto é, a ética é processada como entendimento, sem consenso e compreensão crítica acerca de mundos da vida plurais das escolas formais e não-formais.
Em outros termos, valorizar nessa competência não elucida os relacionamentos complexos entre a igualdade e desigualdade de pessoas, identidades e culturas, nos quais a ética, enquanto matriz da filosofia educacional, observa e justifica racionalmente.
A competência 7 traz a dimensão ética como argumentação valida para docentes e discentes acerca de responsabilidades com as pessoas e com o mundo da vida que os cerca. Para tanto, ela atribui ao argumentar papeis que não necessitam de normas e proposições de racionalidade.
Em outras palavras, o processo de argumentação é reduzido ao aceitar injustificável sobre direitos humanos, consciência socioambiental e consumo consciente diante da realidade local, regional e global. Nele, a informação é o ator do falar e aceitar proposições, enquanto que o consenso e comum acordo intersubjetivos não são previstos no texto da referida competência.
Por sua vez, a competência 9 prevê a aceitação de grupos, diferenças, saberes e identidades culturais a partir da empatia junto com o diálogo, resolução de conflitos e cooperação entre indivíduos. Ela delimita isso como uma concepção universalista e eurocêntrica, a qual não tem apoio nos preceitos de amor, amizade e respeito das culturas de matriz indígena e africana.
Entende-se isso a partir da não consideração dos conceitos de viver junto, aprendizagem e conflito dos povos tradicionais do Brasil, quando a redação das competências, em particular da 9, não comtempla as racionalidades cognitivas, afetivas e comunicativas das identidades plurais da nação.
Logo, a competência 10 referencia implicitamente que o agir ético é dependente de fatores como autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, seja na individualidade ou coletividade dos atores que os complementam. O questionamento dessa percepção decorre da ausência de determinantes conceituais mais concretos para se entender o como aplicar, o que é e quais sentidos etimológicos aludem à redação dessa competência na BNCC.
Desta forma, o agir na competência 10 não se encontra como médium teórico e racional da BNCC, ao ser exemplificado como resultado qualificativo, superficial e não-concordante com concepções filosóficas de ética, principalmente as que são construídas pelo pensamento educacional do Brasil.
Nesse sentido, a BNCC prossegue centralizando a ética como adjetivo do conceito de formação que ela propõe, tanto para o ensino médio, como ao ensino fundamental na seção referente às ciências humanas e sociais aplicadas. Ela não menciona a ética, quais são os seus referentes nacionais e internacionais e como a escola poderá refletir sobre sua dimensão prática a partir de um contexto brasileiro plural inter e multicultural.
O que a BNCC alude é que as aprendizagens para uma formação ética sejam amparadas em uma composição isolada nas ciências sociais e humanas. Para isso, ela menciona que o formar ético é um dever único e orientação prescindível nas ciências humanas, sem, contudo, mencionar a estrutura concreta de um pensar eticamente para as todas as ciências. Além disso, é salutar transcrever uma das passagens que demonstrar o citado ponto
A BNCC da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – integrada por Filosofia, Geografia, História e Sociologia – propõe a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas no Ensino Fundamental, sempre orientadas para uma formação ética. Tal compromisso educativo tem como base as ideias de justiça, solidariedade, autonomia, liberdade de pensamento e de escolha, ou seja, a compreensão e o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2018, p. 561)
Portanto, na próxima seção, iremos propor quais possíveis tratamentos a ética poderão ter na Base Nacional Comum Curricular a partir do pensamento de Jürgen Habermas e sua filosofia do agir comunicativo.
3 CONTRIBUIÇÕES HABERMASIANAS PARA O CONCEITO DE ÉTICA DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
Primeiramente, deveremos entender que a ética habermasiana é constituída e problematizada a partir do discurso e seus condicionantes que sejam simultaneamente normativos e comunicativos.
Segundo, tentaremos propor com a teoria de Habermas proposta de ser aplicados na BNCC e na sua redação sobre a ética para, assim, se tentar constituir uma integralidade conceitual e metodológica do referido conceito.
Obra fundamental para a ética no/do discurso, a consciência moral e agir comunicativo (Habermas, 2013) pode explicitar algumas perspectivas para a reelaboração das competências referentes a ética, na qual pode haver uma possível consolidação do texto deste componente da BNCC em eixos de conhecimento gerais.
Uma das considerações é que, para a BNCC, a ética como lógica inerente à linguagem e educação deve-se pautar em pretensões de validade a serem sedimentadas pelo mundo da vida dos atores da escola, ou seja, regras que coordenam os planos de fala entre aqueles que dizem o que fazer, com pessoas que devem assentir sobre o sentido das normas morais.
Cabe esclarecer que isso acontece em âmbitos de interação social que sejam tanto comunicativos como intersubjetivos. Assim, o autor chama essas pretensões de verdade, sinceridade e correção normativa (Habermas, 2013). Elas são inferidas racionalmente pelas motivações recíprocas entre falantes e ouvintes, mediante aceitação de “garantia” e consistência de seu comportamento” (Habermas, 2013, p. 79).
Por essa concepção, um dos eixos de conhecimento seria a universalização – normas morais próprias ao mundo da vida escolar, que sejam justificadas a partir de pretensões validez cujo alcance seja num nível universal, prático e racional. Isso é, questões ético-discursos que estejam em comum acordo ou consenso para todos os destinatários.
Além disso, a ética discursiva com possibilidades de universalização pode ser garantida pela participação dos atores da escola em juízos práticos no mundo da vida, com ligações internas e externas a ideias do bem viver, sejam elas institucionalizadas ou não.
O desenvolvimento da consciência moral deve ser considerado no percurso ético da BNCC, quando passa a adquirir contornos de processo racional e psicológico de construção interativa da identidade da pessoa. Em outras palavras, algo que é formado mediante a passagem gradual e interativa do indivíduo de uma consciência moral como criança para outro tipo de moralidade enquanto adulta. Isso é baseado na teoria dos estágios de consciência moral de Lawrence Kholberg
Sendo assim, Habermas (2016) mostra que esse caminho está dividido entre os níveis pré-convencional, convencional e pós-convencional dos estágios de desenvolvimento da consciência moral.
No nível pré-convencional, a criança assume a realidade ético-moral a partir de condições dualísticas do que é bom ou mal, certo ou errado, e o que a sua ação merece – punição ou não.
No nível convencional, a pessoa concorda com as expectativas e legitimações de valores conformadas pela sociedade, se tornando, assim, um indivíduo que assume funções sociais já consolidadas pelo grupo familiar ou estado-nação que atua como cidadão.
No pós-convencional, teremos a definição de princípios éticos de base universal e autônoma da própria pessoa, realizados pela consciência individual a partir de condicionantes de razoabilidade, universalidade e consistência lógica.
Esse processo tem como finalidade constituir uma identidade que seja igual e, ao mesmo tempo, diferente das outras, com capacidade de resolver conflitos moralmente relevantes, além de construir outras maneiras de identificação e interagir com suas antigas e atuais identidades de maneira procedimental e sob a orientação de princípios universais (Habermas, 2016).
Essa base poderá estar inscrita na fundamentação dos saberes que mobilizam os objetivos específicos da BNCC em relação a cada etapa da educação básica, quando eles poderão contemplar as matizes plurais de ensino-aprendizagem referentes aos povos originários e imigrantes do Brasil. Isso ocorre quando deve-se prever o que cada grupo populacional compreende para cada nível de desenvolvimento da consciência moral.
A observação proposta pressupõe que os participantes do discurso ético na escola devem atender a algumas exigências normativas, tais como estarem motivados racionalmente a cooperar uns com outros (Habermas, 2007). Em outros termos, eles devem buscar justificativas aceitáveis e razoáveis no enfrentamento de dilemas éticos que são referentes às concepções e práticas de cultura e autonomia da educação escolar.
Habermas (2007) complementa essas afirmações ao expor que os participantes da discussão devem assumir papeis de autoridade epistêmica da discussão em termos de sim e não, e também explica que eles serão mediadores de acordos racionais cujo objetivo final é construir soluções aceitáveis para todos os concernidos da argumentação.
Além do mais, o horizonte geográfico que deve mobilizar as competências é o mundo da vida enquanto lugar transcendental onde falantes e ouvintes se encontram para compartilhar certezas e interpretações consensuais de mundo.
Mas, em Habermas (1990, 2012b), esse conceito é complementar ao de um agir racionalmente comunicativo, quando as pessoas utilizam de vivências, solidariedades normativamente constituídas e saberes culturalmente validados para compreender os sentidos e significados das formas simbólicas de vida, das normas e das personalidades linguisticamente afirmadas. Isto é, algo que é organizado de imediato por aspectos espaciais e temporais.
Nos objetivos essenciais de aprendizagem da BNCC, é salutar que se destaque quais racionalidades poderão ser concernentes a eles, e como a razão deve ser empregada como saber filosófico e racional para um educar ético-moral pela e com a linguagem com função intersubjetiva (Habermas, 2012a).
Por esse sentido, a formação democrática-discursiva da opinião e vontade é considerável para esses objetivos, quando, a partir de Habermas (2014), atende as condições de incorporação total de todos os concernidos e representantes ao discurso, como também de religação das decisões democráticas a temáticas e fatos não-coercitivos.
Os paradoxos, continuidades e reflexões acerca dessa conexão podem ser pontuados com a BNCC através da mobilização de conhecimentos que prevejam a identidade da consciência enquanto aquela consciência que dá nomes, a consciência astuta e a consciência reconhecida (Habermas, 1997a).
Segundo Bannwart Júnior (2008), as duas primeiras representam as relações dialéticas entre o mundo das pessoas e dos objetos, enquanto que a terceira alude à contradição referente à relação entre o eu e o outro. Ou seja, interações que são constituídas pela afirmação intersubjetiva do sentido e identificação entre trabalho, luta por reconhecimento e representação.
Correspondendo a essa argumentação, as intenções objetivas e intersubjetivas para uma aprendizagem crítica e emancipatória na BNCC poderão fazer uso do conceito de liberdade comunicativa (Habermas, 1997b, p. 156), que “existe entre atores que desejam se entender-se entre si sobre algo num enfoque performativo e que contam com tomadas de decisão perante pretensões de validade reciprocamente levantadas”.
Assim sendo, a ordenação de espaços e tempos para o conceito curricular de ética e suas naturezas universais e particulares é feito através da promoção de espaços público-comunicativos (Carneiro, 2022) que atuam como rede de interação comunicativa entre conteúdos, tomadas de posição e opiniões (Habermas, 1997c).
Nessa compreensão, a linguagem é o médium para o entendimento racional e comunicativo acerca do mundo, no qual, assim, os atores da escola pretendem atingir pela facilidade das razões postas em fala, mas que serão concretizadas em enunciados e em seus modos de uso linguísticos, sejam eles não-comunicativos, orientados ao entendimento mútuo, orientado ao acordo ou orientado às consequências (entendimento mútuo indireto) (Habermas, 2004).
Considerando pelo que foi exposto, o conceito de formação ética como status teórico central em relação à BNCC deve integrar alguns princípios e lógicas para a sua formulação. Sobre eles, destacaremos algumas possiblidades por meio de interlocutores do pensamento de Habermas.
Observo com Carneiro (2020) e Carneiro e Araújo (2021) que o exercício pleno de uma eticidade constituída linguisticamente e interativamente deve prescindir da resolução de conflitos pela promulgação de princípios éticos e universais de base geográfica, os quais devem envolver a justiça espacial, o compartilhamento intersubjetivo entre os diferentes direitos humanos e o respeito às diferenças, independentemente da origem territorial de cada indivíduo.
O horizonte dessa afirmação é aprendido pela superação dos desafios didáticos e pedagógicos da modernidade que se pretendem formalistas, não consensuais e monológicos. Em outras palavras, no documento BNCC, o processo do educar deve ser reinscrito para ocorrer em aprendizagens coerentes com uma educação crítica, intersubjetiva e emancipatória, fundantes tanto na coordenação como na orientação para a liberdade, solidariedade, autonomia de pensamento e da argumentação (Medeiros e Brennand, 2021).
Ademais, Pizzi (2004) sinaliza que os níveis os quais a ética como latino-americana deve ter são o micro, meso e macro. Entende-se que o micro é referente à própria representação individual do sujeito pela socialização. O meso são as normas e valores dos grupos, comunidades e conjunto de identidades culturais. O macro é composto por problemas, dilemas e questões de ordem global, tanto para os proponentes quanto aos destinatários.
Uma das lógicas centrais a essa compreensão será a inserção do elemento corpo como enlace racional na ética do próprio discurso, ao se aduzir por abordagens do comportamento ético que sejam habituais ao mundo da estética e das emoções, assumindo-se, deste modo, a relação corpo, alma e mente. Hermann (2018, 2020) assume esse posicionamento quando demonstra que o ético é complementar às dimensões citadas, no sentido de gerar novas situações e contextos para o processo de formação humana.
Sendo que o pedagógico da ética para a BNCC exige a transformação geo e intercultural da razão (Pizzi, 2018) de uma posição eurocêntrica para uma racionalidade latino-americana, em particular, a brasileira, na qual o reconhecimento de novas perspectivas do filosofar e suas gramáticas estejam ligadas a tradições de origem ibero-afro-indígena-latino-americanas.
Portanto, as considerações elencadas exigem ainda reflexões de algumas questões e proposições mediante o exercício teórico de reconstrução e descentralização racional do conceito de ética na BNCC.
As questões problematizariam: quais vozes a BNCC deve ouvir sobre os processos de ensino-aprendizagem para uma ética de caráter brasileiro, geográfico e universal? Como unir, em termos curriculares, racionalidades específicas às dimensões filosófica, cultural e política da ética? A formação humana pela ética do discurso deve ser condicionada a quais problemas que se apresentem moralmente atuais, educacionais e emancipatórios?
Acreditamos que essas questões devem ser pontos centrais para a refundamentação do papel da ética e de seus estruturantes na filosofia educacional proposta pela BNCC, com seus componentes conceituais e saberes didáticos-pedagógicos.
Eventualmente, outras proposições para o seu pensar podem ser consideradas pela emergência de uma pedagogia centrada na formação de competências, práticas e conteúdos acionados pelo uso coletivo e consensual da expressividade humana, na formulação de hipóteses para uma educação própria ao mundo da vida escolar e também pelo uso amplo e coordenado da linguagem pelas identidades pessoais e interpessoais. A enunciação de conhecimentos que sejam julgados pela justificação de seus valores éticos, cuja base deve ser plural, pública e espacialmente alcançável.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para fins conclusivos, indicamos comentários sobre as considerações referentes à BNCC e à ética, como também, a possível reconstituição desse conceito por meio do pensamento de Jürgen Habermas.
Por consensos provisórios, entendemos que a ética como dimensão filosófica do educar é construída em sua totalidade a partir das sucessivas reformas educacionais que o Brasil teve desde o início de sua representação como estado republicano e presidencialista.
Ela é incluída como parte dos objetivos civilizatórios e instrumentais da nação, em um primeiro momento, para depois ser inserida em documentos curriculares oficiais a partir do final da década de 90, com a publicação dos parâmetros curriculares nacionais. Neles, ela é consideração como uma temática formal para todas as disciplinas da educação básica, isto é, um tema transversal.
Em relação a como a ética é apontada pela BNCC, afirmamos que sua relação formal com o documento é de natureza qualificante e superficial na redação das competências referentes ao que seria ético e desejável na educação. Isto é, a ética assume a posição isolada de adjetivo, sem aprofundamento conceitual e metodológico nos textos em que é citado.
A BNCC deixa isso claro ao não argumentar, com mais precisão, o que seria uma formação ética, que racionalidade filosóficas e pedagógicas são inerentes a ela, como o professor deveria proceder para o formar ético na sala de aula, como também, quais conteúdos são imprescindíveis para isso mediante o contexto brasileiro de diversidades culturais e políticas.
Cabe sugerir que a BNCC retome o posicionamento para a ética dos parâmetros curriculares nacionais, atualizando, ao tempo presente, mediante reconstituição pela filosofia da linguagem, dos próprios sentidos e conceitos de afetividade, racionalidade, respeito mútuo, Justiça, diálogo e solidariedade (Brasil, 1997).
Contudo, as proposições habermasianas que foram enunciadas são de pertinência a isso quando são utilizadas de maneira performativa, argumentativa e interpretativa de acordo com os tipos de oferta de fala e os mundos da vida referentes a eles.
As considerações exigem que a ética na base tenha objetivos, aprendizagens e conhecimentos mobilizadores de acordo com uma lógica dialógica, discursiva e formalmente solidaria. Isso significa a construção do saber escolar para a convivência e uma emancipação humana a favor da identidade brasileira como plural, descentralizada dos hiperativos do poder político e financeiro e educacionalmente racional-cooperativa.
Nesse sentido, os conceitos de pedagogia e didática da base tem como tarefa reformular as superfícies conceituais e metodológicas que colonizaram sua redação, fazendo, para isso, exercícios teóricos que possam refletir sob pistas e apostas concretas, justificáveis criticamente e procedentes dos falantes e ouvintes professores e alunos.
Por fim, os caminhos descritos nesse texto apontam que o conceito de ética na BNCC pode ter uma estruturação coerente de indicações racionais e comunicativos, conteúdos possibilitados pelo filosofar brasileiro, e mobilização de conhecimentos a partir de princípios e logicas de ordem geográfica e simbólica. Ou seja, uma composição central do documento que ocupara um lugar solido em sua escrita e apresentação conceitual.
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[1] Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Licenciado em Geografia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pesquisador efetivo do Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Ensino e Geografia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.