O CONCEITO DE VIOLÊNCIA NUMA PERSPECTIVA DECOLONIAL E O MODELO DISCURSIVO DE DEMOCRACIA
Charles Feldhaus[1]
Universidade Estadual de Londrina
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Resumo
Este estudo pretende reconstruir alguns traços gerais da concepção de feminismo decolonial de Françoise Vergès na obra Feminismo decolonial e na obra Uma teoria feminista da violência buscando enfatizar de que maneira a teoria discursiva de Jurgen Habermas em sua obra Facticidade e validade enfrenta a questão das demandas sociais por igualdade entre homens e mulheres ao tratar da dialética entre igualdade de direito e igualdade fato no mercado de trabalho. Vergès sustenta que é necessário um tipo de reconstrução da história do feminismo em que o protagonismo das mulheres racializadas seja levado em consideração e que se preste atenção à maneira como o feminismo decolonial e o que ela chama de feminismo civilizatório conceituam a emancipação da mulher. Embora seja importante reconhecer que a inclusão das mulheres racializadas na arena pública ou na esfera pública possa ser ainda insuficiente como uma estratégia para garantir a igualdade das mulheres, a invisibilização das mulheres racializadas pode até mesmo distorcer o ponto do debate da emancipação feminina e Vergès analisa alguns casos para ilustrar seu ponto de vista, como o que se costuma chamar de a polêmica do biquíni na França. Além disso, o próprio conceito de violência numa perspectiva diferenciada do termo, que inclui não apenas a agressão física, mas também a distribuição desigual de tarefas (atividades relacionadas com a manutenção do capital e atividades executivas de empresas) entre mulheres racializadas e mulheres brancas, a distribuição entre as pessoas que podem ser mortas de maneira arbitrária e as que não podem, todos estes aspectos podem ser considerados como um avanço importante na discussão das questões relacionadas com a igualdade na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: feminismo; discursivo; decolonial; violência; civilizatório.
THE CONCEPT OF VIOLENCE FROM A DECOLONIAL PERSPECTIVE AND THE DISCURSIVE MODEL OF DEMOCRACY
Abstract
This study aims to reconstruct some general features of Françoise Vergès's conception of decolonial feminism in the work Decolonial Feminism and in the work A Feminist Theory of Violence, seeking to emphasize how Jurgen Habermas' discursive theory in his work Facts and Norms faces the issue of social demands for equality between men and women when dealing with the dialectic between equality in law and equality in fact in the job market. Vergès argues that a type of reconstruction of the history of feminism is necessary in which the protagonism of racialized women is taken into account and that pays attention to the way in which decolonial feminism and what she calls civilizing feminism conceptualize women's emancipation. While it is important to recognize that the inclusion of racialized women in the public arena or public sphere may still be insufficient as a strategy to ensure women's equality, the invisibilization of racialized women may even distort the point of the female emancipation debate and Vergès analyzes some cases to illustrate his point of view, such as what is commonly called the bikini controversy in France. Furthermore, the very concept of violence from a different perspective of the term, which includes not only physical aggression, but also the unequal distribution of tasks (activities related to the maintenance of capital and executive activities of companies) between racialized women and white women, the distribution between people who can be killed arbitrarily and those who cannot, all these aspects can represent an important advance in the discussion of issues related to equality in contemporary society.
Keywords: feminism; discursive; decolonial; violence; civilizatory.
1 INTRODUÇÃO
O conceito de violência geralmente está relacionado com a realização de atos contrários à ordem natural e à ordem jurídica da sociedade e em contraposição a outros conceitos fundamentais do pensamento político como o conceito de poder, com isso, buscando diferenciar empregos legítimos de empregos não legítimos do exercício de força física e psíquica. Entre os atos compreendidos como atos violentos encontram-se atos cometidos contra grupos sociais específicos e tais atos são definidos como atos de discriminação de gênero, de raça, de etnia, de classe econômica. O aparato estatal tem tido, em grande parte da história da humanidade, um papel central ou se poderia dizer até mesmo um monopólio na definição do que consiste um ato de exercício da força física e psíquica legítimo e o que consiste num ato não legítimo ou até mesmo criminoso. O poder estatal tem tido inclusive, através de instituições policiais e jurídicas o monopólio da definição do que consiste de um ato de manifestação política legítima de um ato não legítimo e nesse caso de um crime. Não raramente a estrutura jurídica estatal determina seja explicitamente através de leis ou decretos, seja através de atos do governo ou do judiciário a competência de determinar que manifestações políticas são aceitas no espaço público e que manifestações não são aceitas.
A perspectiva decolonial com pensadoras como Françoise Vergès em Uma teoria feminista da violência e em Uma teoria feminista da violência tem desafiado a maneira tradicional de definir violência e seus correlatos no enfrentamento das discriminações em relação ao gênero, em relação ao feminismo, particularmente uma das suas preocupações consiste na instrumentalização do enfrentamento das violências contra as mulheres na justificação do incremento da violência do estado de maneira preconceituosa em relação a grupos já discriminados. Vergès compreende que uma crítica da violência contra as mulheres não pode deixar de considerar também uma crítica às violências realizadas pelo próprio aparato estatal e que governos, como os governos conversadores vencedores nos últimos pleitos eleitorais (aqui ela estava pensando em Donald Trump nos Estados Unidos, mas o mesmo poderia ser dito com a vitória de Jair Messias Bolsonaro no Brasil) em alguns países no mundo tem instrumentalizado até mesmo causas como a necessidade de proteção das mulheres contra a violência masculina para implementar políticas de estado discriminatórias do ponto de vista econômico, racial, étnico, de gênero entre outros. Vergès defende um enfrentamento da violência estatal e da violência masculina contra as mulheres com menos ênfase na perspectiva carcerária (judicialização e politização da questão) e com mais ênfase numa perspectiva das práticas comunitárias. O objetivo da apresentação é buscar delinear as principais preocupações da perspectiva decolonial diante da violência de Vergès e começar a refletir de que maneira uma perspectiva discursiva e deliberativa como a habermasiana poderia incorporar em seu modelo de esfera pública como critério normativo as contribuições decoloniais para um possível melhor enfrentamento da questão da violência contra as mulheres que evitasse a dimensão enviesada estatal.
No que segue, primeiramente, será realizada uma caracterização geral do feminismo decolonial tal como ele é apresentado por Françoice Vergés em Um feminismo decolonial (2020), apontando quais são os traços gerais desta abordagem às desigualdades sociais, mas também ressaltar que o conceito de racismo e seus correlatos, como racializado ou racializada são empregados por Vergés para incluir não apenas as pessoas negras, mas vários grupos de pessoas que sofrem algum tipo de preconceito e tratamento diferenciado que traz desvantagens por não se encaixar no padrão de ocidental e branco; em segundo lugar, se busca enfatizar que uma das estratégias da feminismo decolonial de melhorar a posição das mulheres racializadas na sociedade percorre o caminho de uma reconstrução da história ou da narrativa feminista oficial inserindo as lutas das mulheres racializadas como ocupando papéis importantes e inclusive oferecendo soluções alternativas para enfrentar as discriminações que as mulheres são submetidas na sociedade contemporânea; em terceiro lugar, através da análise de alguns casos concretos mostrar como a exclusão das mulheres racializadas das narrativas do movimento feminista pode levar a alguma confusão a respeito do que significa emancipação feminina; em quarto lugar, se procura brevemente mostrar de que maneira a teoria do discurso habermasiana poderia se relacionar com as demandas feministas decoloniais; e finalmente, à luz da obra de Françoise Vergés Uma teoria feminista da violência (2021) se procura delinear o conceito de violência ampliado que resulta da uma abordagem das demandas feministas decoloniais.
2 UMA CONCEPÇÃO DE FEMINISMO DECOLONIAL
Antes de mais nada, é importante observar que uma concepção decolonial de feminismo é uma análise multidimensional (raça, sexualidade, classe) que responde aos limites da noção de interseccionalidade, a qual já abordei num estudo anterior (FELDHAUS, 2023, p. 154), ressaltando que foi um termo cunhado por Kimberlé Crenshaw (1991), que se refere também a uma abordagem às desigualdades sociais, inicialmente também restrita às demandas feministas das mulheres racializadas, que procura chamar a atenção não apenas para as diferenças específicas de certos grupos no desfrute de certos direitos, como o direito à igualdade, mas aos efeitos diretos ou indiretos das intersecções resultantes da pertença a mais de um grupo discriminado. Uma mulher pode ser discriminada por ser mulher, mas também pode sofrer efeitos discriminatórios por ser negra, por ser pobre, por ser mãe solteira, por ser imigrante, e assim por diante. Quando uma mulher pertence ao mesmo tempo a mais de um dos grupos discriminados ela pode sofrer discriminações que muitas vezes são difíceis de ser capturadas ou não são capturadas de maneira alguma numa abordagem que foca apenas nas discriminações relacionadas à pertença a um grupo de maneira isolada. A abordagem decolonial busca ir além desta abordagem interseccional, porque permite melhor compreender o poder racista e heteronormativo. Nas palavras de Vergès (2020, p. 47): “uma análise que se propõe a levar em conta a totalidade das relações sociais”. Mas que aspectos incluiria a totalidade das relações sociais? Ela incluiria as relações com o Estado, com o capital e com o patriarcado. Dessa maneira abrangeria questões como justiça reprodutiva, justiça ambiental, crítica à indústria farmacêutica, crítica à criminalização da solidariedade, direitos dos migrantes e refugiados, luta pelo fim do feminicídio, etc. Além disso, se pode dizer que é uma abordagem multidimensional que evita realizar a hierarquização de lutas, porque o critério de urgência geralmente é eivado de preconceitos. Desse modo, não se trata de “corrigir as injustiças dividindo os cargos igualitariamente entre homens e mulheres sem questionar a organização social, econômica e cultural” (VERGÈS, 2020, p. 51).
É importante salientar ainda que Vergès (2020, p. 50-1) contrasta o feminismo decolonial com outras versões do feminismo, mas deixa muito claro que não entende que seja uma nova onda, ela entende como uma continuação das lutas de emancipação das mulheres do sul global. Feminismo decolonial é um conjunto de teorias e práticas que visa ser antirracista, anticapitalista e anticolonial. Além do mais, ao se referir às mulheres racializadas, a pensadora não está restringindo o termo apenas às mulheres negras, ou seja, Vergès não entende o termo racismo como restrito às pessoas negras, mas a pessoas em geral (o que para ela também inclui os homens) que sofrem algumas desvantagens em função de sua cor de pele, local de origem, faixa etária. Claro que ela também está pensando em mulheres negras, mas claramente não apenas nelas, o que inclui também mulheres muçulmanas, imigrantes, refugiadas, indígenas, enfim, o que ela entende como mulheres não brancas e não ocidentais, que às vezes ela chama de mulheres do sul global. Mulheres que na maioria dos casos precisam assumir gratuitamente ou a salários baixos e sob condições precárias a tarefa de garantir a reprodução social.
3 A NECESSIDADE DE UMA RECONSTRUÇÃO DA NARRATIVA HISTÓRICA DO FEMINISMO
A proposta tem como um dos elementos centrais recontar a história do feminismo, incluindo as contribuições das mulheres racializadas e quilombolas. Ela (2020, p. 106) reconhece que nenhuma de tais mulheres se denominava feminista, mas é preciso trazer à luz as contribuições de mulheres indígenas, negras, colonizadas, etc (VERGÈS, 2020, p. 107) e com isso lutar contra a invisibilidade da mulher racializada nos movimentos feministas. Vergès (2020, p. 109) sustenta que a desconsideração ou a invisibilidade das contribuições das mulheres racializadas pelo que ela chama de feminismo civilizatório pode levar até mesmo a alguma confusão sobre o que consiste na emancipação feminina. A luta pela emancipação na abordagem decolonial precisa considerar a interseccionalidade dos direitos econômicos, culturais, políticos, reprodutivos e ambientais. Vergès trata da revolta do biquini na França e nas suas colônias como um exemplo de confusão. O feminismo civilizatório no que se denomina da polêmica do biquíni compreende que a mulher se despir, usar biquíni nas praias e não burkini, por exemplo, é uma demonstração de liberdade das mulheres. O uso de burkini significaria na visão do que se denomina de feminismo civilizatório um desrespeito à laicidade da república e o uso do burkini ou da burca em espaço público pelas mulheres muçulmanas seria uma ameaça ao caráter republicano da sociedade europeia. Vergès (2020, p. 115) sustenta que o ridículo da polêmica do biquíni é que mascara alguns tipos de violência sob o manto de proteção da laicidade e do caráter republicano. No fundo se trata de uma tentativa de impor um modo de vida às mulheres racializadas e não de uma preocupação com a dignidade e o respeito para com as mulheres. Ela até ressalta que as pessoas que ficaram indignadas com a polêmica do biquíni não tiveram reação semelhante quando mulheres marroquinas se manifestaram em prol do respeito e da dignidade das mulheres.
Outro tema de Vergès (2020, p. 119) e que é comum com pensadoras como Nancy Fraser diz respeito à relação entre capitalismo, neoliberalismo e a compreensão de emancipação feminina que está relacionada com a intersecção entre eles. O feminismo decolonial dá ênfase ao coletivo, ao passo que quando não se considera os efeitos desta intersecção normalmente existe uma lógica individualista. A emancipação das mulheres é compreendida como a integração das mulheres na economia neoliberal e baseado no modelo de sucesso profissional masculino. Neste modelo, a mulher racializada é incentivada a atividades de reprodução social que as feministas do passado já denunciavam como alienantes (2020, p. 96). Enfim, na visão de Vèrges (2020, p. 110) o feminismo civilizatório tem uma disposição “de não aceitar que as mulheres do sul possam analisar os mecanismos e a ideologia das políticas masculinas e heteropatriarcais”. Razão pela qual ela insiste na necessidade de recuperar a história do feminismo racializado e identificar outras estratégias de solução ao problema da emancipação feminina que não passe necessariamente pelo Estado, particularmente não seja pelo caminho do aumento da violência legitimada pelo Estado com as pessoas racializadas.
Vergès (2020, p. 121) ressalta que o feminismo negro muito cedo se engajou na questão do trabalho doméstico não remunerado e na necessidade de se considerar este tipo de atividade como trabalho produtivo. O capitalismo precisa do trabalho doméstico para reprodução social e obter lucro da atividade. Vergès (2020, p. 125) afirma que a análise do trabalho doméstico realizada pelas feministas negras muda profundamente quando comparada com a análise das feministas brancas. É preciso incluir a economia do desgaste e da fadiga dos corpos racializados e que a economia da produção de lixo produz seres humanos como lixo, como sucata. Um modelo de emancipação que foca no sucesso profissional das mulheres no mercado de trabalho não consegue capturar a distribuição desigual das tarefas entre as mulheres racializadas e não racializadas como um problema a ser enfrentado, porque tal modelo se alia ao capitalismo e carece de recursos para criticar suas contradições.
4 O PARADIGMA DISCURSIVO E O FEMINISMO DECOLONIAL
Uma das proposições centrais do feminismo decolonial de Vèrges (2020, p. 55) se relaciona à afirmação que “não cabe àquelas e aqueles que nunca foram vítimas de racismo impor o formato da discussão”, em outras palavras, atacar a discriminação racial no sentido de racismo ampliado do feminismo decolonial de Vergès acarreta entre outras coisas dar voz às mulheres que são o alvo da discriminação em questão. Somente as mulheres que são submetidas às experiências de desrespeito e privação de dignidade humana normalmente implicadas em atos de discriminação podem melhor explicar ou esclarecer nos debates públicos e nas discussões sobre como enfrentar este tipo de discriminação, particularmente apontando sob quais aspectos certas atitudes são preconceituosas e interferem no exercício de direitos fundamentais. Não cabe a uma elite, mesmo que de mulheres, impor às mulheres racializadas a melhor interpretação dos interesses das mulheres afetadas pela discriminação. Claro que existem discriminações e preconceitos estruturais difíceis de serem enfrentados, mesmo com melhor diagnóstico, mas com Habermas e certamente para além de Habermas, o feminismo decolonial chama a atenção para necessidade de empoderar as mulheres racializadas como protagonistas no combate à discriminação racial que tais mulheres sofrem. Com Habermas, mas certamente para além de Habermas, as mulheres racializadas não podem ser consideradas como incapazes de contribuir do debate que diz respeito ao enfrentamento das discriminações, desvantagens e desigualdades relacionadas com sua situação específica. As mulheres racializadas não podem ser situadas numa condição de passividade diante de políticas públicas compensatórias formuladas apenas por uma elite em sua maioria masculina e em sua maioria branca que se compreende como esclarecida e como única detentora do discurso autorizado no debate na esfera pública, nos termos de Vergès, isto consiste num tipo de continuação da mentalidade colonialista, mesmo após o término oficial das colônias. Se fosse adotada este tipo de postura e abordagem às demandas feministas das mulheres racializadas, a solução seria ofertada no espectro de uma concepção solipsista de tomada de decisão, em que um grupo de pessoas de maneira privada delibera e impõe a outro grupo de pessoas, nesse caso as mulheres racializadas, a melhor estratégia de enfrentamento das diferenças específicas ao sexo, à raça, ao gênero, à classe social, à nacionalidade, etc.. Razão pela qual é importante brevemente buscar compreender como Habermas busca operacionalizar sua estratégia de solução aos problemas relacionados com a dialética entre igualdade de direito e igualdade de fato das mulheres no mercado de trabalho.
Habermas trata de demandas feministas em Facticidade e validade, capítulo IX, Paradigmas do direito. Ao tratar de três paradigmas jurídicos (liberal, bem-estar social e deliberativo discursivo) Habermas crítica o primeiro pela cegueira diante das demandas feministas, o segundo por um tipo de paternalismo e clientelismo, e defende o terceiro como solução às demandas feministas. Uma das condições da solução das demandas feministas estaria na participação dos concernidos percepção, articulação e imposição dos próprios interesses (HABERMAS, 2020, p. 519). Para ilustrar como Habermas pensa sobre esse assunto, acredito que esta passagem de Facticidade e validade, sintetiza parte das preocupações do feminismo decolonial:
“classificações sobregeneralizantes acerca (...) de desvantagem e dos grupos desfavorecidos. (...) aquilo que parece promover a igualdade de mulheres em geral favorece somente uma determinada categoria de mulheres (já privilegiadas) em detrimento das demais, porque as desigualdades específicas de gênero se correlacionam de forma complexa e não evidente com prejuízos de outro tipo (ligados à origem social, idade, etnia, orientação sexual etc.)” (HABERMAS, 2020, p. 534)
Em outras palavras, uma política realmente deliberativa exige a participação no debate de ideias a respeito de como interpretar e como responder às patologias sociais de todos aqueles ou todas aquelas que são afetadas pelas normas controversas. O debate não pode ser restrito a uma elite de representantes políticos eleitos, nem mesmo se essa elite se constitui de mulheres que nunca foram afetadas pelas discriminações que a nova regulamentação procura solucionar.
Outro aspecto presente nas críticas do feminismo decolonial e que Habermas reconhece no Prefácio da edição de 1990 de Mudança estrutural da esfera pública, diz respeito ao preconceito estrutural. Habermas (2014, p. 46) diz que “[d]iferentemente da exclusão dos homens subprivilegiados, a exclusão das mulheres tinha [eu diria, tem] uma força estruturante.” De tal forma que a mudança estrutural da esfera pública que Habermas reconstrói no livro “aconteceu sem afetar o caráter patriarcal da sociedade como um todo” (HABERMAS, 2014, p. 45). O problema da estratégia discursiva, pelo menos como até o momento foi pensada, é que ela não oferece críticas explícitas ao capitalismo e ao patriarcado que operam na esfera pública burguesa. Desde a publicação da tese de livre habilitação de Habermas sobre o surgimento e o desenvolvimento da esfera pública burguesa, muito tempo já se passou, e algumas alterações foram empreendidas no decorrer do itinerário intelectual de Habermas visando responder certas críticas. Particularmente seria interessante pensar de que maneira poderia ser incorporado no modelo discursivo de circulação de poder entre esfera pública informal e esfera pública formal as contribuições de uma perspectiva que conceitua a violência de maneira mais ampla como é caso do feminismo decolonial. De um modelo que denuncia a violência não apenas como o ato de causar dano direto e deliberado a outra pessoa, em que é muito claro quem pode ser responsabilizado individualmente. A perspectiva decolonial opera com um conceito mais complexo e que inclui atos indiretos e efeitos nem sempre conscientemente pretendidos de distribuir de maneira assimétrica trabalhos de reprodução do capital mais desgastantes, proteção diante da violência não apenas entre os cidadãos, mas proteção da violência perpetuada pelo próprio estado para com os seres humanos racializados e mais vulneráveis.
É importante observar que a solução de Habermas (2020, p. 520) passa pelo direito e “o legislador deve pôr à disposição procedimentos e formas de organização que capacitem os participantes a resolverem suas questões e seus conflitos (...) via mecanismos de autogestão e instâncias de arbitragem”. O que apenas em parte se poderia dizer que atende às demandas do feminismo decolonial. Digo em parte, porque o feminismo decolonial parece implicar algum tipo de ceticismo ou ao menos descrença diante de soluções através do aparato do Estado e o modelo habermasiano depende de um modelo de circulação de poder entre a periferia e o centro da esfera pública, em que o aparato administrativo do estado ocupa um papel importante. Entre sociedade civil e estado, mas o modelo discursivo precisa estar aberto a reconhecer que o estado de direito pode nem sempre ser a solução, que o estado de direito pode ser parte do problema e oprimir parte da população de maneira arbitrária ao empreender políticas de controle e vigilância que discriminam pessoas com base em sua cor de pele, em sua nação de origem, em sua opção sexual, em classe econômica, etc..
5 O CONCEITO DE VIOLÊNCIA NUMA PERSPECTIVA DECOLONIAL
Vergès (2021, p. 10) diz que “a luta contra as violências não pode se abster de uma crítica às violências promovidas e legitimadas pelo Estado” na promoção do capitalismo neoliberal, que com sua economia “gera sua cota de violências, discretas, mas reais” (VERGÈS, 2021, p. 11) através do exaurimento dos corpos [trabalho doméstico gratuito ou precário, feminimizado e racializado], do exaurimento da terra e mares [consumo desenfreado dos recursos naturais, a crise ecológica] com base na visão individualista baseada no lucro e com isso ocasionando uma “redução drástica da expectativa de vida dos mais frágeis [principalmente, mulheres racializadas]”. Violência não se reduz desta maneira à agressão física, mas inclui também práticas como minar as conquistas sociais, uberizar e precarizar as condições de vida e trabalho de certas camadas sociais. Se relaciona com a divisão diferenciada na taxa de mortalidade altamente diferentes entre grupos sociais (classes, raças e gêneros). Além disso, Vergès sustenta que não se pode enfrentar “apenas uma parte dessas violências”, porque “todas essas violências se reforçam mutuamente”, “não [se] pode isolar violências”. O que Vergès (2021, p. 14) está propondo é pensar uma estratégia de enfrentamento à violência que pense a proteção das mulheres fora da ideia de repressão, de vigilância, de prisão, do paternalismo desenvolvimentista do estado e do capitalismo.
Em sua obra Vergès (2021, p. 40-50) está preocupada principalmente com uma distinção muitas vezes implícita, muitas vezes até mesmo explícita entre vidas de mulheres que merecem ser protegidas e vidas de mulheres que são sacrificadas. Para ilustrar seu ponto, ela recorre a três experiências pessoais. A primeira experiência aconteceu durante uma visita em uma grande universidade da Costa Leste dos Estados Unidos da América durante o governo do presidente Donald Trump. Ela afirma que experienciou um contraste gritante entre, por um lado, “o excesso de discursos de mecanismos de proteção no campus para fazer daquele espaço um lugar seguro e protegido (...) para as estudantes e para as mulheres que trabalhavam ali” (VERGÈS, 2021, p. 40). Por outro lado, as mulheres racializadas que “usavam véu, negros/as, queer, latinos/as, não se sentiam em segurança” por que estavam sujeitas rotineiramente a ataques islamofóbicos, se sentiam isoladas, as iniciativas de criar grupos de autodefesa de mulheres queer eram fortemente desencorajadas, doutorandas que eram obrigadas a mudar o tema de suas teses, mudar de orientadores ou até mesmo de universidade, etc. (VERGÈS, 2021, p. 41). Vergès afirma que é inegável que um campus mais seguro em relação ao assédio é um progresso, mas que outros tipos de violência num sentido ampliado do termo ainda afetam significativamente as mulheres racializadas no mesmo espaço por causa da precariedade financeira de muitas estudantes negras e que usam o véu na mesma universidade. Este cenário produziu um tipo de segregação social do espaço que não oferecia o mesmo tipo de proteção a todas as mulheres igualmente, era “uma política de proteção cega à raça, à misoginia e ao capitalismo” (VERGÈS, 2021, p. 42). Ou seja, Vergès sustenta que a pertença das mulheres a certos grupos seja a mulheres brancas, seja a mulheres racializadas tinha o efeito de distinguir entre aquelas que deveriam ser protegidas, e aquelas que poderiam ser sacrificadas. Vergès nesse momento faz referências às novas tecnologias de vigilância e se considerarmos o resultado de pesquisas como a Safiya Umoja Noble em Algoritmos da opressão. Como o google fomenta e lucra com o racismo, em que a autora mostra como as novas tecnologias baseadas em algoritmos têm demonstrado ter dimensões racistas e preconceituosas. Nas palavras de Noble: “o poder dos algoritmos na era do neoliberalismo e as formas pelas essas decisões digitais reforçam relações sociais opressivas e implementam novas maneiras de perfilação racial” (NOBLE, 2021, p. 17). Claro que Noble trata mais especificamente dos resultados racistas em mecanismos de busca na internet, mas considerando que os algoritmos já estão sendo usadas nas novas tecnologias de vigilância baseada em inteligência artificial e ainda falta bastante transparência nos parâmetros empregados pelos programadores das tecnologias, então se poderia que é difícil imaginar, ao menos inicialmente, que as novas tecnologias deixem de replicar o mesmo tipo de preconceito racializado que já existe e é bastante combatido nas discussões públicas sobre as estratégias de controle e vigilância tradicionais. Assim como Noble sugere algumas alternativas aos mecanismos de busca comerciais na internet que tem replicado algum tipo de preconceito nas buscas, é preciso imaginar outras alternativas ao aumento da vigilância e do controle, na verdade, Vergès em sua visão decolonial da violência advoga que se evite encontrar a solução para a violência contra as mulheres aumentando o poder de vigilância e controle do Estado, porque ela considera que o estado e a sociedade capitalista de alguma maneira é cumplice da violência contra as mulheres, especialmente das mulheres racializadas.
A segunda experiência que Vergès emprega para ilustrar tipos de violência cotidiana está relacionada com a adoção do termo feminicídio em 2019 pela mídia, pelo governo e pelos representantes políticos na França. Primeiramente, ela aponta que o discurso dos representantes políticos era perpassado pelo que ela denomina de uma geografia racializada, uma que dava a entender que os homens das antigas colônias, os homens racializados, seriam naturalmente mais violentos do que os homens brancos da França. Em segundo lugar, com base em estudos que demonstraram efeitos positivos da adoção de uma lei de proteção às mulheres na Espanha, sem considerar o que ela chama de “deficiências das decisões judiciais na França” (VERGÈS, 2021, p. 45), ou seja, ela considera que é preciso ter cuidado quando se defende um fortalecimento dos poderes judiciários na França, quando se tem um histórico de arbitrariedade nas decisões do judiciário principalmente em relação às pessoas racializadas. Em terceiro, o conteúdo da política feminista do governo, que ao mesmo tempo que proíbe uma mulher de véu de falar em prol do feminismo e permite que um homem branco dê um sermão de cerca de 20 minutos a essa mulher. Se trata, para empregar o termo de Vergès, de um tipo de postura feminista civilizatória, a mulher somente tem direito de se expressar se corresponder a um determinado padrão ocidental, sem considerar que as políticas do respectivo governo tornam os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres, “a vida das mulheres das classes populares e racializadas mais difícil e mais precarizada” o que, consequentemente, torna essas mulheres alvos mais fáceis da violência, embora a retórica oficial afirme querer proteger todas as mulheres.
A terceira experiência tem a ver com a mobilização das mães de Mantois que reagiram a uma intervenção policial que reuniu em 2018 151 jovens que realizavam algum tipo de manifestação política e foram forçados pela polícia a formar filas de joelho com as mãos atrás da cabeça, com cabeça baixa e a permanecer em silêncio por horas enquanto um policial declarava: “Vejam só que classe bem comportada.” Aqui novamente a crítica de Vergès se dirige ao suposto caráter pedagógico e civilizatório da intervenção policial em relação aos jovens racializados. Ela (VERGÈS, 2021, p. 49) sustenta que se tratava de uma “continuação de uma política colonial racial” que procurava civilizar através da humilhação os jovens das comunidades pobres e racializadas, ou seja, novamente uma escolha controversa de enfrentar a violência através do aumento da capacidade do estado de impor legitimamente violência contra as pessoas. Vergès (2021, p. 50) afirma que nem se poderia dizer que se trata apenas de uma postura paradoxal do Estado que diz buscar proteger as pessoas, ao mesmo tempo que acabar por precarizar e tornar vulnerável um certo grupo de pessoas, mas se trata do resultado de escolhas políticas que estabelecem as fronteiras entre as mulheres que têm direito à proteção e das mulheres que são excluídas da respectiva proteção. Em outras palavras, é preciso lutar contra a estigmatização e discriminação das mulheres que usam véu, contra a criminalização de adolescentes negros e arábes e contra a instauração de uma permissão de fato, mesmo que não de direito, de matar homens negros e árabes. Reconhecer a necessidade de proteger os vulneráveis sem transformá-los em vítimas (VERGÈS, 2021, p. 15).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi possível observar, na concepção feminista decolonial de Françoise Vergès o conceito de violência é compreendido de uma maneira expandida, que inclui não apenas o ato de causar dano explicito e proposital individual de uma pessoa da sociedade em relação à outra, mas também efeitos mais difusos de decisões políticas, de decisões econômicas, de manutenção de valores culturais que distribuem de maneira desigual o respeito e a dignidade humana. Certos grupos são colocados através de decisões políticas, econômicas e com base em valores culturais em situações de maior vulnerabilidade e precarização. Certos grupos de mulheres e demais pessoas racializadas são sistematicamente incentivados a ocupar certos tipos de posições sociais e empregos que eram considerados precários e desumanos (ou alienantes) pelos movimentos sociais como o feminismo, em sua origem, e hoje são considerados caminhos de emancipação das mulheres. Na prática isto significa vincular as mulheres racializadas à tarefa de reprodução do capital no “chão de fábrica”, realizando o trabalho não remunerado ou o trabalho remunerado de maneira precária, o trabalho que transforma as pessoas em lixo. O modelo discursivo de Habermas, que contém como um de seus componentes centrais a inclusão de todos os concernidos como participantes num debate a respeito de questões políticas controversas, apontaria na mesma direção que a perspectiva decolonial de Vergés ao afirmar que não é adequado que um grupo de mulheres, neste caso, as mulheres da elite, sejam as porta-vozes e representantes das mulheres racializadas, mas é de suma importância que as mulheres que são alvos dos preconceitos na sociedade sejam as intérpretes de seus próprios interesses. Obviamente, o modelo discursivo habermasiano ainda é muito pouco crítico do capitalismo e suas contradições, em particular deixa de considerar questões importantes como a atribuição de maneira arbitrária dos trabalhos de reprodução social às mulheres racializadas e os trabalhos executivos às mulheres do Norte Global (para empregar o termo de Vergès). Alguém pode dizer com razão que grande parte das críticas de Vergès ao feminismo civilizatório, ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao imperialismo, ao estatismo poderia ser absorvidas pelo processo de migração de conteúdos da esfera pública informal à esfera pública formal na teoria da democracia deliberativa de Habermas, o que em boa medida é verdade, contudo, o modelo habermasiano, mesmo que tenha reconhecido explicitamente em reformulações mais recentes a respeito da esfera pública (como o Prefácio da edição de 1990 de Mudança estrutural da esfera pública) a existência de contra públicos, de esfera públicas concorrentes, ainda é preciso um estudo detalhado de que maneira o modelo lidaria melhor com as manifestações dos contrapúblicos conseguindo operacional de maneira adequada o enfrentamento com posições que ao menos atualmente não conseguem maior repercussão na esfera pública dita oficial, mas que sob a luz de melhores argumentos poderia se tornar algo digno de migrar da esfera pública informal para o sistema administrativo do estado. Por fim, ainda é cedo para compreender de que maneira a publicação da obra mais recente de Habermas, Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa, poderia contribuir contra os preconceitos nas redes sociais e numa sociedade em que o emprego das novas mídias digitais se torna algo cada vez mais corriqueiro e tem se mostrado ter efeitos tão ambíguos na promoção de uma sociedade mais igualitária e voltada à emancipação das pessoas.
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HABERMAS, Jurgen. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: Editora da Unesp, 2023.
NOBLE, Umoja Safiya. Algoritmos da opressão. Como o google fomenta e lucra com o racismo. Tradução de Felipe Damorim. Santo André-SP: Rua do Sabão, 2021.
VÈRGES, Françoise. Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
VÈRGES, Françoise. Uma teoria feminista da violência. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2021.