COMUNICAÇÃO DESFIGURADA PELA VIOLÊNCIA E RECONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA
o caso do Lar de Amparo a Criança para Adoção (LACA- Maceió)
Anderson de Alencar Menezes[1]
Universidade Federal de Alagoas
Alda de Barros Araújo[2]
Universidade Federal de Alagoas
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Resumo
O objetivo desse trabalho é apresentar a análise de caso experenciado pelos coautores em Unidade de Acolhimento em Maceió que recebe crianças de 0 a 6 anos em razão de desamparo e abandono. Foi utilizada a metodologia do estudo de campo, qualitativo, do tipo pesquisa-ação, a partir de visitações ao LACA. Pensar essa perspectiva a partir das relações entre Habermas, Freud e Winnicott, em uma relação entre Filosofia e Psicanálise a partir de processos comunicativos desfigurados pela violência e a urgência de postular processos reconstrutivos democráticos em que as ações linguísticas salvaguardem a integridade das crianças que viveram experiências deploráveis e foram rasuradas por comunicações desconfiguradas por diversos tipos de violências: físicas, psíquicas e emocionais. Concluiu-se que as crianças de tenra idade já apresentam comunicação desfigurada pela violência e que as relações consitutivas entre Estado de Direito Democrático e Justiça Social são forças constitutivas e imprescindíveis para a proteção dos seres humanos em níveis profundos de vulnerabilidades sociais.
Palavras-chave: filosofia; Habermas; psicanálise; Freud; crianças; democracia.
COMMUNICATION DISFIGURED BY VIOLENCE AND RECONSTRUCTION OF DEMOCRACY
the case of Lar de Amparo a Criança para Adoção (LACA- Maceió)
Abstract
The objective of this work is to presente a case analysis experienced by the co-authore in a Reception Unit in Maceió that receives children from 0 to 6 years old due ti hepleness and abandonment. The methodology of a fiel study, qualitative, of the action research type, was used, based on visits to LACA. Thinking about this perspective from the relationships between Habermas, Freud and Winnicott, in a relationship between Philosofy and Psychoanalysis based on communicative processes desfigured by violence and the urgency of postulating democratic reconstructive processes in which linguistic actions safeguard the integrity of children who have lived experiences deplorable and were erased by communications distorted by diferente types of violence: physical, psychological and emotional. It was concluded that young children already have communication disfigured by violence and that the constitutive relationships between the Democratic Rule of Law and Social Justice are constitutive and essential forces for the protection of human beings at deep levels of social vulnerability.
Keywords: phisolophy ; Habermas ; psychoanalysis ; Freud ; children; democracy.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo parte da observação dos coautores no Curso de Psicologia, na disciplina obrigatória de Estágio II, após visitas, observações e intervenções no Lar de Amparo a Criança para Adoção (LACA- Maceió), que recebe e acolhe crianças de 0 a 6 anos de idade.
Fundamentando-se no pensamento interdisciplinar de Jürgen Habermas, foram traçadas linhas de observação para a investigação de comunicações desfiguradas, denominadas patologias da linguagem a partir da noção de neurose trazida pela psicanálise de Sigmund Freud.
Tomando-se como verdadeira a premissa da insuficiência da hermenêutica como método de interpretação da comunicação desfigurada, situação que impede a racionalidade comunicativa habermasiana, adere-se a seu pensamento a partir das obras Conhecimento e Interesse, de 1973, Dialética e Hermenêutica e A Lógica das Ciências Sociais, ambas publicadas em alemão na década de 1980, no sentido de buscar uma meta-hermenêutica fundada na psicanálise de Freud, inicialmente.
Assim sendo, com base inicial em Freud, parte-se para a observação da comunicação das crianças a partir de Donald Winnicott, psicanalista infantil inglês.
Constatar que o sujeito neurotizado ou com grave doença emocional é incapaz de se constituir e atuar no mundo da vida de forma ativa e responsável na construção e na manutenção da democracia material é a consequência dessas observações. As patologias do inconsciente talvez sejam a causa de toda a destruição no planeta, de toda a guerra e de toda a aniquilação do ser humano por seu semelhante.
O olhar interdisciplinar entre filosofia, psicologia, psicanálise, educação e tantas outras matérias afetas ao ser em sociedade parece ser imprescindível para, talvez, buscar uma práxis a fim de construir um mundo em que estejam presentes os valores da equidade, da justiça e, quem sabe, da almejada paz, atributos da verdadeira democracia material.
2 METODOLOGIA
No primeiro semestre de 2023, os autores do texto, junto a quatro outros colegas do Curso de Psicologia, na Instituição Estácio de Alagoas, na disciplina Estágio II, sob a orientação do Prof. Jardiael Herculano da Silva, realizaram um estudo de campo, qualitativo, do tipo pesquisa-ação, a partir de visitações ao LACA – Lar de Amparo à Criança em Adoção, localizado em Maceió, Alagoas, mediante sugestão do Prof. Dr. Anderson Menezes.
A metodologia consistiu em conhecer o espaço e seu funcionamento, entrar em contato direto com as crianças por meio de brincadeiras e, por fim, redundou em uma ação de orientação às cuidadoras no sentido de reconhecer e fazer com que as crianças reconhecessem seus sentimentos nos momentos de conflitos, gerando, assim, um maior esclarecimento mental e conforto emocional aos pequenos.
A partir da sugestão de participação no XIX Colóquio de Habermas promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina, surgiu a ideia de explanar sobre a referida experiência vivencial em conexão com o pensamento de Habermas e seus desdobramentos teóricos, surgindo a apresentação da seguinte proposta.
3 O APORTE TEÓRICO - DE HABERMAS A WINNICOTT, PASSANDO POR FREUD:
Jürgen Habermas faz parte da segunda fase da conhecida Escola de Frankfurt, a chamada escola crítica da filosofia, fundada a partir do Instituo de Pesquisa Social, criado em 1923 e oficialmente inaugurado em 1924, sendo considerado o herdeiro desse importante movimento filosófico (Silva, 2023).
A primeira fase da Escola está fundada no paradigma ou horizonte filosófico da consciência do sujeito, da soberania da intencionalidade humana e da linguagem da razão (Aguiar, 1999).
A transição do paradigma da consciência para o paradigma da linguagem significa considerar que a linguagem, para além de ser mediação da comunicação humana, é elemento estruturador da relação do ser humano com a realidade. Ou seja, o primeiro fato humano não é a relação sujeito-objeto, não é a capacidade de estabelecer uma relação ativa com o mundo, com a realidade; é a linguagem, a intercomunicação entre as pessoas, a relação sujeito-sujeito.
A principal contribuição de Habermas para a filosofia da escola crítica é sua Teoria do Agir Comunicativo, cuja obra de referência data de 1981. Percebe-se que ao mesmo tempo em que estava a produzir seu pensamento sobre o agir comunicativo, Habermas também dialogava com o pensamento da sociologia e da psicanálise representado pelo teórico alemão contemporâneo Alfred Lorenzer (1922-2002), sociólogo alemão e psicanalista interdisciplinar.
Em Conhecimento e Interesse, de 1973, Habermas confere à psicanálise o postulado de ciência, trazendo-a ao bojo de sua obra, ao dizer: “a psicanálise começa afirmando-se como uma forma de especial de interpretação; ela libera pontos de vista teóricos e regras técnicas para interpretação de conjuntos simbólicos” (1973, p. 234).
A obra Dialética e Hermenêutica, traduzida para o português a partir de escritos de 1971, 1979 e 1981 e trazida ao Brasil em 1987; e A Lógica das Ciências Sociais, lançada ao público alemão em 1982 e traduzida no Brasil em 2009, trazem o questionamento a respeito do pensamento de Gadamer de que “não é possível transcender o diálogo que somos” e põem em xeque a pretensão de universalidade da hermenêutica.
Neste sentido, percebe-se desde a década de 70 uma complementariedade entre filosofia e psicanálise no pensamento habermasiano. Na medida em que sua ação comunicativa tem como fundamento a responsabilidade dos sujeitos, um processo de cooperação e interpretação entre os participantes de um debate e pressupõe uma situação ideal de fala, devem ser observadas quatro pretensões de validade, chamadas classes de atos de fala: compreensibilidade; verdade; correção e sinceridade (Polli, 2018). No entanto, no mundo da vida, segundo Habermas, são observadas condições capazes de desfigurar a comunicação, justamente as denominadas patologias da linguagem.
Essas patologias da fala são reveladas pelas neuroses. Assim, Habermas, postula que: “uma comunicação pode ser considerada desfigurada quando algumas condições linguísticas para um entendimento direto entre pelo menos dois participantes da interação não são preenchidas” (Habermas, 1987, p. 87)
Em A Lógica das Ciências Sociais, o autor afirma que a interpretação hermenêutica consiste em um processo contínuo e indissociável na construção do entendimento baseada em dois pressupostos, i) a intersubjetividade de entendimento estabelecida na linguagem ordinária é ilimitada e fragmentária; e ii) existe uma herança da retórica à hermenêutica (2009).
Nas duas obras referidas, as de 1987 e 2009, Habermas refuta a ideia de universalidade da hermenêutica, pressuposto básico da comunicação, porquanto fundada na autorreflexão do sujeito e que, por isso mesmo, tem limitações em suas percepções. Questiona se a psicanálise, à qual denomina ciência crítica, poderia funcionar como uma meta-hermenêutica (2009).
A proposta habermasiana avança para trazer as características da comunicação neurótica e da comunicação denominada normal e, ao citar seu contemporâneo Alfred Lorenzer, afirma a maior amplitude da compreensão cênica em razão da possibilidade de esclarecimento da gênese da construção da cena original. Observa que falsos consensos podem ser criados a partir da perturbação da comunicação, gerando um sistema de incompreensões (Habermas, 2009).
José Luiz Aidar Prado (2014), em sua obra Habermas com Lacan: Introdução crítica à teoria da ação comunicativa, confirma que o retorno de Habermas a Freud é anterior à publicação da Teoria da Ação Comunicativa, de 1981, sendo apresentada ainda em Conhecimento e Interesse, obra de 1973.
Percebe-se, dessa forma, que em razão de o diálogo mais aprofundado com a psicanálise ser contemporâneo à publicação da tese da ação comunicativa, merece a atual atenção para as interferências do discurso, mesmo aquele considerado preenchido dos requisitos listados como legítimos na ação comunicativa.
Adotar a perspectiva da patologização ou não vai depender da base psicanalítica de referência, Freud ou Lacan. No entanto, neste momento a discussão será fundada no discurso da concepção de neurose de Freud trazida por Habermas, sem prejuízo de futura análise fundamentada no teórico francês, como já proposto por Prado (2014).
O importante no contexto da presente observação é demonstrar que a comunicação pode ser desfigurada desde a tenra infância pela violência sofrida pelas crianças, sendo o abandono a violência primordial. Esclarece-se, portanto, que será utilizada a concepção freudiana da psicanálise – patologizante–, seguida do pensamento do psicanalista infantil inglês Donald Winnicott.
Retomando a obra A Lógica das Ciências Sociais, Habermas mais uma vez demonstra o caráter interdisciplinar de seu pensamento ao afirmar que no âmbito de comunicações vitais há formas de comunicação sistematicamente incompreensíveis: sonhos, como modelo normal desse fenômeno; atos falhos e até manifestações patológicas das neuroses, das doenças mentais e das perturbações psicossomáticas.
Como consequência, Habermas sugere um neologismo entre os termos metapsicologia e meta-hermenêutica. Enquanto a metapsicologia se encarregaria de revelar as hipóteses sobre o surgimento de estruturas de personalidade, a psicanálise funcionaria como meta-hermenêutica. Em outras palavras, a psicanálise seria a hermenêutica da hermenêutica.
Nesse sentido, propõe uma teoria da competência comunicativa, caracterizada como a interpretação hermenêutica profunda de uma comunicação sistematicamente desfigurada (Habermas, 2009).
A partir da proposta de meta-hermenêutica habermasiana, avança-se para o pensamento psicanalítico de Donald Winnicott, buscando-se observar a comunicação na interação com crianças vítimas de abandono e de diversas formas de violência abrigadas no Lar de Amparo à Criança para Adoção em Maceió- LACA, acrescentando-se o aporte do teórico inglês para a discussão do caso.
4 A EXPERIÊNCIA NO LACA E SEU DESDOBRAMENTO TEÓRICO A PARTIR DA PSICANÁLISE DE WINNICOTT:
As crianças de 0 a 6 anos, separadas de suas famílias em razão de terem sido vítimas de violências ou abandono, encontram-se em evidente estado de privação, passando por situações de grande fragilidade emocional.
Na época das visitas ao Lar, havia cerca de quinze crianças, sendo dois bebês abandonados ainda na maternidade por suas genitoras.
A sobrevivência em um ambiente coletivo e sob a tutela do Estado caracteriza um estado de exceção. Como bem observou Winnicott, “quando uma criança é separada dos pais, os mais intensos sentimentos são despertados” (2019, p.39).
Para minimizar esse prejuízo, constatamos que a instituição LACA zela de maneira bastante adequada, carinhosa e responsável pelo bem-estar das crianças, especialmente as recém-nascidas, que não recebem visitações públicas e estão resguardadas em quartos com janelas de vidro.
Nem seria necessário afirmar que as crianças já chegam o Lar bastante fragilizadas pelo convívio em uma família disfuncional, vítimas de abandono e violência, inclusive abusos sexuais. São crianças nas quais não foi desenvolvido o apego seguro, na concepção de John Bowlby. O teórico inglês evidencia (Bowlby, 2002, p.259):
Nenhuma forma de comportamento é acompanhada por sentimento mais forte do que o comportamento de apego. As figuras para as quais ele é dirigido são amadas, e a chegada delas é saudada com alegria. Enquanto uma criança está na presença incontestada de uma figura principal de apego, ou a tem ao seu alcance, sente-se segura e tranquila. Uma ameaça de perda gera ansiedade, e uma perda real, tristeza profunda; ambas as situações podem, além disso, despertar cólera.
O abandono e a violência, principalmente em seres humanos em início de vida, levam inevitavelmente ao medo da morte, eis que a criança é totalmente dependente de seus pais, especialmente de sua mãe, para preservar a sua existência. Esse é o maior trauma que um ser humano pode sofrer. A fragmentação da psiquê gerada pelo trauma a faz funcionar em seu estado de sobrevivência e estresse, pois, segundo o psicólogo alemão Franz Ruppert:
(...) Cuando nos sentimos amenazados, nuestra psiquê se pone em modo estrés. Entonces, la percepción, el sentir, las ideas y el pensamiento se concentran em el peligro correspondiente. Miedo, rabia y enfado son las emociones predominantes em el modo estrés. De ahí surgen pensamientos y actos agressivos. (RUPPERT, p. 604)[3]
Os cuidados dessas crianças devem considerar que são pessoas em severo estado de sofrimento, o que ficou evidente diante de comportamentos verificados em campo. Algumas apresentavam uma tristeza tão forte que sequer conseguiam interagir pelo olhar, outras já mostravam artifícios e agressividade para conseguir o que desejavam.
Na rotina dessas crianças tão fragilizadas, o LACA oferece um parquinho em tamanho suficiente para as necessidades do brincar, momento de expressão da criatividade e da personalidade da criança e do adulto (Winnicott, 2019).
A existência do parquinho e a rotina diária de brincadeiras proporciona uma forma de psicoterapia. “É bom lembrar que o brincar é, por si só, uma terapia. Permitir que as crianças brinquem é, em si mesmo, uma forma de psicoterapia com aplicação imediata e universal.” (Winnicott, 2019, p. 37)
Durante as brincadeiras, foram observados artifícios das crianças com o grupo, algumas delas chamando a coautora de “mãe”. Foi interessante notar o olhar um tanto malicioso de uma criança, de aproximadamente 3 ou 4 anos naquele momento.
Outra criança de aproximadamente 5 ou 6 anos abordou os coautores afirmando que era o dia de seu aniversário e pediu presentes, dentre eles uma boneca e um aparelho celular. A informação não era verdadeira.
Durante a prática de intervenção com as cuidadoras, houve informações de que os pais visitam as crianças em dias de segunda-feira. Os mesmos pais que abusaram, violentaram e muitas vezes abandonaram os filhos, chegam ao abrigo para exigir os cuidados que eles mesmos não foram capazes de oferecer. Winnicott também constatou essa tendência e afirmou: “Nada pode despertar maior ciúmes da mãe do que saber que seu filho está sendo excepcionalmente bem cuidado” (2019, p. 36).
Nos últimos momentos da roda de conversa, as cuidadoras relataram que os pais muitas vezes reclamam do tratamento prestado aos filhos, dizendo que estão magros etc. Foi confidenciado pelas cuidadoras que necessitam manter um grande controle emocional quando recebem essas reclamações, inclusive porque conhecem a realidade das crianças e o tipo de abuso sofrido por cada criança.
Mais uma vez Winnicott chama atenção para o sofrimento da mãe, realçando a necessidade de se fazer um esforço para descobrir o que sente uma mãe destituída de seus filhos.
O estudo de caso demonstrou que as crianças, mesmo as menores, puderam apresentar as patologias da linguagem ao chamar a visitante de mãe e ao informar que estavam de aniversário para ganhar presentes.
O grupo de pesquisa não teve contato com os pais, mas foi possível deduzir, pelo relato das cuidadoras, a existência de uma comunicação desfigurada por parte dos genitores, psicanaliticamente prevista na teoria de Winnicott. Afinal, tratam-se de pessoas incapazes de gerir uma família, ao menos temporariamente, tanto que o Estado resolveu adotar medidas de exceção e retirar as crianças de seu convívio.
A pequena experiência de campo demonstrou o quanto uma situação de violência, com a privação de direitos básicos, como o acesso aos cuidados da família, a submissão a maus-tratos por agressões ou negligência, pode acarretar o começo de uma comunicação destituída de verdade, o primeiro requisito de uma ação comunicativa legítima no sentido habermasiano.
5 A DEMOCRACIA COMO CONQUISTA DIÁRIA DE CIDADÃOS LIVRES
Desde a Grécia antiga que a democracia é considerada a participação de cidadãos na polis. À parte a restrição do conceito de cidadão a homens livres e proprietários, a concepção avançou no curso da história e contempla duas formas de democracia, a formal e a material.
A democracia formal é a da lei, é o postulado válido constante nos documentos internacionais de Direitos Humanos, e no Brasil se reflete na cabeça do artigo 5º da Constituição de 1988, quando dispõe: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, para em seguida elencar todos os princípios e regras que devem valer no âmbito da sociedade brasileira.
A democracia material, no entanto, é um valor, um objetivo, uma conquista, uma luta constante em razão das forças opositoras que se impõem no cenário da vida social e está estampada no artigo 3º da Carta Política, quando dispõe serem objetivos da República brasileira a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
É necessário observar que as pessoas à margem da sociedade não conseguem participar da vida pública, seja por incapacidade de inserção na vida política, seja pela falta de uma educação formal e emancipadora.
É um círculo vicioso mantido para subalternizar e manter o exército de reserva. Enquanto não for distribuída a democracia material e realizada a consequente justiça social, as pessoas não serão capazes de exercer uma razão comunicativa, sendo levadas tão somente por uma ação instrumental capaz de satisfazer suas necessidades mais urgentes. Enquanto a razão comunicativa não for exercida, as pessoas estarão ausentes da vida pública, constituindo e participando como massa de manobra do capital, reproduzindo os discursos dominantes e dominadores como se fossem seus próprios.
A teoria do agir comunicativo, nesse contexto de dominação, não atinge a maioria das pessoas, que são mantidas como inaptas ao exercício da racionalidade comunicativa, seja por conta de suas necessidades básicas, seja em razão das deficiências emocionais.
A busca de uma opção para compreender a pessoa e libertá-la de suas dores psíquicas, tornando-a apta a participar da vida pública, pode ser buscada a partir do tratamento emocional, seja por meio da psicanálise ou de outras tantas abordagens terapêuticas, sendo importante apenas que o ser humano descubra e exerça a sua verdadeira identidade, se possível livre de doenças emocionais.
Foi nessa esteira que a análise do caso constatou que a incapacidade comunicacional pode afetar os seres em desenvolvimento logo na tenra idade, sendo imprescindível cuidar das famílias, especialmente das crianças para torná-las aptas a conviver socialmente, fazendo suas escolhas livres do pensamento massificado.
6 BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse breve estudo de caso foi capaz de proporcionar uma leitura a partir do pensamento de Jürgen Habermas, propondo-se a aplicação prática da filosofia aliada às ciências da psicologia e da psicanálise, de modo a esclarecer e, porque não, tratar os seres em estado de privação e sofrimento, de modo a auxiliá-los na construção de uma comunicação verdadeira e legítima e que possibilite uma ação comunicativa emancipadora.
A adoção de medidas de cuidado nas instituições, com as crianças, cuidadores e genitores pode ser insuficiente ao postulado da democracia que se pretende construir, porém sem essa atitude a missão será muito mais difícil.
Se a psicanálise e a psicologia ainda são artigos de luxo, devem ser democratizadas e postas à disposição de todas as pessoas enquanto direito fundamental à saúde e ao bem-estar social, com a finalidade de possibilitar a formação de pessoas livres para tomarem as decisões em busca de uma vida plena e feliz.
Com as mentes livres das doenças emocionais, talvez a humanidade não precise mais ver o ser humano matar, destruir o patrimônio ecológico e imaterial, incitar guerras ou roubar a infância das crianças, entre tantas outras mazelas incompreensíveis que assolam o planeta.
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[1] Professor e pesquisador do mestrado e doutorado em educação do PPGE/CEDU/UFAL. Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas. Integra como Pesquisador o Grupo de Investigação em Teoria Crítica da Universidade de Valência-Espanha, sob a direção do Professor Dr. Benno Herzog. Membro do IBDFAM (Instituto Brasileiro do Direito de Família). Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco, Bacharel em Teologia pelo Centro Unisal - Campus Pio XI (São Paulo), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Porto/Portugal. Pós-Doutorado em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco..
[2] Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Juíza do Trabalho. Graduanda em Psicologia.
[3] “Quando nos sentimos ameaçados, nossa psique entra em modo de estresse. Então, a percepção, o sentimento, as ideias e o pensamento se concentram no perigo correspondente. Medo, raiva e raiva são as emoções predominantes no modo de estresse. Daí surgem pensamentos e atos agressivos”. (RUPPERT, p. 604; tradução livre).