O PROBLEMA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA ÀS FOTOGRAFIAS E O PENSAMENTO DE VILÉN FLUSSER

 

Claudia Bucceroni Guerra[1]

UNIRIO

claudia.guerra@unirio.br

Jairo Andre Marques Junior[2]

UNIRIO

jairojr@edu.unirio.br

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Resumo

Esta apresentação tem como objetivo iniciar a reflexão, no contexto teórico da Ciência da Informação, dos questionamentos que possam surgir e as possibilidades teóricas para responder tais questionamentos em relação à Inteligência Artificial aplicada à fotografia. A metodologia utilizada nesse estudo foi o levantamento bibliográfico sobre fotografia e IA nas áreas que dialogam de forma interdisciplinar com a Ciência da Informação, bem como o retorno às teorias de Vilén Flusser como aporte para possíveis interpretações favoráveis ao debate conceitual aqui proposto.

Palavras-chave: fotografia; inteligência artificial (IA); Vilén Flusser.

 

THE PROBLEM OF ARTIFICIAL INTELLIGENCE APPLIED TO PHOTOGRAPHS AND THE THOUGHT OF VILÉN FLUSSER

Abstract

This presentation aims to initiate reflection, in the theoretical context of Information Science, on the questions that may arise and the theoretical possibilities to answer such questions in relation to Artificial Intelligence applied to photography. The methodology used in this study was a bibliographical survey on photography and AI in areas that interact in an interdisciplinary way with Information Science, as well as a return to Vilén Flusser's theories as a contribution to possible interpretations favorable to the conceptual debate proposed here.

Keywords: photography; artificial intelligence; Vilén Flusser.

1  INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, o estudo da fotografia sempre esteve envolto em questionamentos acerca de sua natureza, qual seria seu estatuto ontológico, seus aspectos discursivos e simbólicos e que mensagem seria uma fotografia.

Barthes (2000, p. 327) pontuou que a mensagem fotográfica está ligada ao seu conteúdo como referente direto do objeto fotografado e, por conta desse aspecto, as fotografias são “mensagens sem código”, uma vez que são “reproduções analógicas da realidade”. Esta crença na qual a técnica fotográfica reproduz uma imagem direta do real criou (e ainda cria) problemas conceituais.

Adotada como a forma de representação visual preferencial da modernidade e da pós-modernidade, a fotografia acumulou outros questionamentos conceituais a medida em que suas técnicas vão se desenvolvendo. Walter Benjamin (1994) chega a afirmar que a fotografia em seu momento de industrialização estaria já em decadência diante das formas primitivas dos tempos da sua invenção. Mais recentemente, apontamos dois momentos de crise conceitual: quando a fotografia digital domina os mercados, superando a fotografia analógica, e o advento das ferramentas de geração de imagens que utilizam Inteligência Artificial.

A primeira crise conceitual, o desenvolvimento da fotografia digital nos fins do século XX foi estudado por nós na tese “Flutuações conceituais, percepções visuais e suas repercussões na representação informacional e documental da fotografia para formulação do conceito de Informação fotográfica digital”[3] apresentada no PPGCI IBICT/UFRJ sob a orientação da professora Lena Vania Ribeiro Pinheiro, na qual abordamos os aspectos conceituais e técnicos que fazem uma imagem criada pelo binômio fotógrafo/câmera digital uma fotografia tanto como um daguerreótipo[4] de meados do século XIX.

A presente apresentação tem como propósito iniciar a reflexão, dentro da Ciência da Informação, das dúvidas que possam surgir e as possibilidades teóricas para responder tais questionamentos em relação à Inteligência Artificial aplicada à fotografia.

Neste exato momento, nos deparamos com um novo desafio em termos de definição do que se entende ser fotografia (seu estatuto ontológico): a aplicação de algoritmos de aprendizado de máquina em processos de produção de imagens por meio de aplicativos que utilizam Inteligência Artificial (IA). Tal procedimento geram imagens que podem se confundir com uma fotografia. Por isso, precisamos voltar, novamente, para a ontologia fotográfica.

Recentemente foi anunciado pela grande imprensa a notícia de que o artista e fotógrafo alemão Boris Eldagsen negou o prêmio de melhor fotografia de uma importante instituição por se tratar de uma imagem criada por IA. Ele argumentou que inscreveu a “não foto” no concurso para testar se as instituições estão preparadas para este tipo de imagem[5].

Manipulações sempre existiram, mesmo no processo fotoquímico da fotografia analógica. No entanto, com o advento das imagens fotográficas digitais (processo fotoeletrônico) suspeitas e possibilidades de fraudes se intensificaram. Nos últimos anos essas dúvidas se tornaram mais evidentes com a grande disseminação de fake-news e desinformação, impulsionada pela utilização de novas ferramentas de geração de imagens por Inteligência Artificial.

Avançamos para o momento em que os algoritmos que utilizam a tecnologia IA serão capazes de criar uma imagem tão “realista” que poderá se confundir com uma fotografia e o documentalista precisará aprender a diferenciar uma imagem totalmente forjada por um programa, de uma imagem genuinamente fotográfica.

A metodologia aplicada a esse estudo introdutório foi o levantamento bibliográfico sobre fotografia e IA nas áreas que dialogam de forma interdisciplinar com a Ciência da Informação, bem como o retorno aos escritos do filósofo Vilén Flusser para possíveis interpretações ao debate conceitual aqui proposto.

2 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA À FOTOGRAFIA

O conceito de Inteligência Artificial não é recente. O processo de desenvolvimento do computador a partir do fim da Segunda Grande Guerra, desde o começo, previa um sistema de execução de tarefas cognitivas: jogar xadrez, resolver problemas matemáticos, compreender a linguagem escrita e falada, reconhecer o conteúdo de imagens etc.

O que temos hoje, primeira metade do século XXI, é a popularização dos mecanismos informacionais, em diversas instâncias de nossa rotina e vivência, que utilizam a IA como ferramenta. Isso está acontecendo fortemente graças ao desenvolvimento de processadores mais rápidos e a popularização de smartfones, jogos digitais, redes sociais etc.

Na fotografia não é diferente. A utilização de ferramentas IA não é recente, mas a facilidade de acesso e a popularização de aplicativos de geração de imagens artificiais[6] cada vez mais parecidas com uma foto é uma realidade que ligou um alerta. Num futuro bem próximo como vamos diferenciar uma fotografia de uma imagem gerada por IA?

Em nossa pesquisa sobre fotografia digital (GUERRA, 2013), utilizamos exemplos de programas geradores de imagens fotográficas na astronomia.

Dados radiofônicos enviados pela sonda Magellan em 1989 até 1994 da superfície do planeta Vênus foram interpretados e renderizados por um complexo programa de RAY-TRACING utilizando tecnologia de IA e um variado número de imagens, tais como pinturas renascentistas e do Islã medieval. O programa posiciona um aparelho foto-virtual num espaço virtual e extrai em seguida a luz proveniente da imagem criada por uma fonte luminosa imaginária, criando assim diversas imagens das montanhas de Vênus. (LIPKIN, 2006)

Mais de 20 anos depois, foi possível criar a fotografia de um buraco negro nos confins do universo por meio de programa gerativo de imagem por IA. Em 2019 foi anunciada a imagem cujo processo de criação foi possível por meio do programa denominado CHIRP (Continuous High-resolution Image Reconstruction using Patch priors[7]) para processar centenas de milhares de dados coletados por uma rede de observatórios planetária.

A manipulação e a simulação das fotografias digitais astronômicas indicam que é possível utilizar tais imagens como ferramenta de observação confiável e segura, posto que, é criado nos dispositivos, câmeras acopladas em satélites e sondas, supercomputadores e softwares experimentais compostos de sistemas de Inteligência Artificial, protocolos e práticas que atestam, com o mínimo possível de margem de erro, o realismo da imagem representada. (GUERRA, 2013)

Dentre as várias ferramentas IA utilizadas atualmente para geração e reconhecimento de imagens, as mais populares são as de reconhecimento facial desenvolvidas com tecnologia denominada GAN (Generative Adversarial Network). As GANs consistem em duas redes neurais – que são algoritmos modelados com base nos neurônios do cérebro – que se enfrentam para produzir imagens de aparência realista, desde rostos humanos a pinturas impressionistas. Uma das redes neurais geram imagens (de, digamos, o rosto de uma mulher), enquanto a outra tenta determinar se essa imagem é falsa ou real. (DORIAN WONG, A. 2022)

A multinacional de tecnologia NVIDIA lançou em 2019 o software de código aberto StyleGAN, que revolucionou a geração de imagens faciais de alta qualidade. No entanto, segundo Dorian Wong, essa democratização dos algoritmos de Inteligência Artificial/Aprendizado de Máquina (AI/ML) permitiu que agentes mal-intencionados estabelecessem personas cibernéticas ultrarrealistas ou contas de marionetes em plataformas de mídia social. “A proliferação de algoritmos AI/ML levou a um aumento de Deep Fakes e contas de mídia social não autênticas”. (DORIAN WONG, A. 2022, P.2)

 

3 OS PRIMEIROS IMPASSES

Em março de 2023 uma imagem bastante realista do Papa Francisco I vestindo um casaco de neve da grife Balenciaga acionou um alarme na mídia e nas redes de fotógrafos profissionais e amadores.

Figura 1

Why Pope Francis Is the Star of AI-Generated Photos - The New York Times

Fonte: Google Image

 

Com o realismo fotográfico posto à prova, é preciso criar mecanismos para diferenciar uma imagem gerada por algoritmos IA de uma imagem fotográfica.

Retornando à reflexão sobre o estatuto ontológico da imagem fotográfica digital, o primeiro ponto diferenciador de uma imagem fotográfica digital e uma imagem digital, totalmente criada por algoritmos, é a câmera. Sem o mecanismo de captura dos estímulos fotônicos (luz) refletidos dos objetos da realidade não existe uma fotografia. (GUERRA, 2013)

O problema da imagem gerada por IA é que muitas vezes elas partem de uma fotografia legítima como modelo ou como base para a manipulação. É o caso da foto do Papa Francisco. Tal procedimento criam dois impasses: a dificuldade de perceber se a imagem é uma farsa e o problema da apropriação indevida do trabalho do fotógrafo.

No primeiro impasse, é preciso buscar referências e procedimentos analíticos que possam contribuir para a identificação do tipo de imagem está sendo vista. Como a prática profissional do documentalista será impactada ainda não sabemos, mas, no que concerne o realismo fotográfico, a conexão do referente à imagem por meio do mecanismo parece ser o primeiro passo. Não podemos falar de uma fotografia sem a câmera.

Segundo Frohmann (2004), práticas documentárias compõe uma disciplina com propriedades sociais; requerem tratamento, ensino, correção e outras medidas disciplinares. Nessa perspectiva precisamos estar atentos, aprender a lidar com os novos desafios da Inteligência Artificial. Por outro lado, ainda citando Frohmann (2004), as práticas documentárias têm historicidade; surgem, se desenvolvem, declinam e desaparecem por circunstâncias históricas e estamos num momento de profundas mudanças no que consideramos verdade, objetividade e realidade.

Com o advento dos programas de geração de imagens por meio da Inteligência Artificial, é preciso especificar com clareza que tipo de mensagem a fotografia fornece ao olhar, o propósito daquela imagem. Desconfiar de propósitos obscuros seria o primeiro passo.

No segundo impasse, ainda não temos regras que garantam o direito autoral dos fotógrafos. O caso da imagem do Papa Francisco exemplifica a questão. A cabeça do Papa foi extraída de uma foto legítima, bem como o casaco que possivelmente foi retirado de um desfile de inverno ou de um anúncio da grife.

A apropriação de fotografias pelos programas IA sem o devido reconhecimento de autoria é um lado do impasse. O outro lado diz respeito ao próprio mecanismo de geração de imagens. Citamos como exemplo o aplicativo Midjourney. O usuário precisa criar uma frase com comandos que descrevem a imagem desejada, são os PROMPTs. Tais frases vão determinar seus desejos e gostos para futuras imagens. Quanto mais eficientes frases descritivas você criar, mais e melhor o aplicativo vai cumprir suas demandas. No entanto, seus PROMPTs podem servir de base para a geração de imagens de outros usuários uma vez que o aplicativo “aprende” a criar as imagens. Por isso, fotógrafos e outros profissionais da imagem presumem que num futuro próximo o algoritmo será mais efetivo.

 

 

 

4 A REDUNDÂNCIA

Um dos aspectos mais comum nos programas geradores de imagens está relacionado com a redundância. Para criar imagens realistas e eficientes, tais programas utilizam uma grande quantidade de imagens temáticas. Os softwares das câmeras digitais, por exemplo, têm funções do tipo captação de sorriso, fotos em praias, noturnas etc. Para que as imagens saiam perfeitas, um grande número de fotografias de sorrisos, praias e noturnas são utilizadas como modelo.

Este tipo de programação utiliza fartas coleções de imagens de determinados assuntos ou cenas usadas para melhorar as imagens capturadas digitalmente por meio de algoritmos criados com base nesse repertório. Com a impossibilidade de coletar todas as imagens possíveis do mundo, Levoy conjectura poder coletar todas as cenas semanticamente diferenciadas: “Quer remover um caminhão de lixo da sua foto instantânea de uma piazza italiana? Comece com uma base de dados contendo muitas piazzas italianas.” (LEVOY, 2008, p.86)

Esta tecnologia é atualmente usada nas câmeras digitais amadoras que captam o sorriso por meio de um algoritmo que concentra diversos tipos de sorrisos, num processo que Levoy denomina de “estratégia de sensoriamento”, que amplia as capacidades da fotografia digital (2008, p.86).

Um dia será possível perceber até que ponto este repertório de sorrisos embutidos nessas pequenas câmeras irá interferir ou padronizar os rostos até um ponto em que todos os sorrisos capturados serão estranhamente semelhantes? (GUERRA, 2013)

No caso das imagens gerativas IA a redundância cria uma amplidão de possibilidades de criação de imagens quase infinita, no entanto, estamos mais próximos da padronização exacerbadas de rostos, tratados por filtros nas redes sociais e aplicativos IA.

Retornamos ao texto de Shannon e Weaver (1964) quando afirmam que quanto maior a redundância menos informação. No caso aqui estudado, a redundância é condição sine qua non para o sucesso da geração de imagens e, ao mesmo tempo, falha ao homogeneizar rostos e paisagens. Caminhamos para um mundo repleto de platitudes visuais?

 

5 VILÉM FLUSSER E AS POSSIBILIDADES REFLEXIVAS

Para dar início à reflexão aqui proposta, recorremos ao filósofo tcheco Vilém Flusser que desenvolveu o conceito de imagens técnicas para pensar os caminhos que estavam se desenhando em fins dos anos 1980 com o advento das imagens digitais. Segundo o autor:

Aparelhos podem ser programados para imaginarem. Para poderem fazê-lo, é preciso que calculemos as nossas vivências e as codifiquemos. Os resultados serão modelos de vivência concreta de poder por ora inimaginável. Para podermos imaginar tal poder, nada nos resta a não ser programar imagens. Nova estética está emergindo, e com ela, sem dúvida, nova ética, nova epistemologia, e – quem sabe? – nova religiosidade (novo modelo da vivência do Inteiramente Diferente). Invejo os nossos netos (FLUSSER, 2006, p.326).

 

As imagens técnicas/digitais seriam modelos de vivência calculados por programadores. Flusser destaca a participação do programa/programação/programador no processo de geração da imagem e afirma que não fará sentido questionar se as imagens são fictícias ou não, e sim o quanto são prováveis e, o mais importante, informativas (FLUSSER, 2008). No caso das imagens digitais geradas por ferramenta IA, esse procedimento analítico é de grande valia para a pesquisa na área da Ciência da Informação.

Segundo Flusser, podemos considerar as câmeras fotográficas, bem como os aplicativos de geração de imagens, detentores de programações que criam imagens não informativas, uma vez que são sistemas automatizados (FLUSSER, 2008). Devemos observar o quanto os aplicativos IA terão a possibilidade de romper com essa afirmativa num futuro próximo.

No pensamento do filósofo, quem teria o poder de romper com a redundância das imagens padronizadas e pouco informativas é o produtor das imagens, o fotógrafo, que tem a capacidade de subverter o sistema de programação para criar imagens autênticas e diferentes do visível mundo da automação. Mas essa subversão não significa negar as novas tecnologias como muitos fotógrafos têm se manifestado, mas criar contra a programação dentro da programação: “O seu desafio é o de fazer imagens que sejam pouco prováveis do ponto de vista do programa dos aparelhos. O seu desafio é o de agir contra o programa dos aparelhos no ‘interior’ do próprio programa.” (FLUSSER, 2008)

5 FLUSSER E A REALIDADE IMATERIAL

Diante das diversas mudanças ao qual Flusser interroga as possibilidades da geração de imagens como reflexo de uma cultura que produz valores culturais que relacionam tecnicamente o fazer produtivo de um artista / fotógrafo às intencionalidades programadas por meio das inteligências artificiais, se torna necessário questionar qual o âmbito das imagens generativas, que são feitas por meio da aplicação da programação voltada à algoritmos e IAs, no meio social em que são difundidas e, inevitavelmente, utilizadas como forma de ilustrações. Pensar o lugar desse novo tipo de imagem significa, primordialmente, questionar a origem de um conjunto de informações redundantes que são programadas para simularem o processo de escolhas feitas durante a manipulação de um aparelho fotográfico.

Em sua obra “filosofia da caixa preta” (2009), o autor expressa que essa relação entre ver, fotografar e, novamente, ver (a fotografia ampliada) é constituída de um processo de ações e intencionalidades, o qual o autor define como inputs dirigidos à linguagem mecânica da câmera, o qual, em meios filosóficos, irá definir como software. No entanto, Flusser não define tal linguagem mecânica como, meramente, meio de realizar o ato fotográfico. O Software almejado pelo autor tem como finalidade o domínio do processo fotográfico enquanto manipulação de toda uma realidade social, onde a imagem é potencialmente influenciadora de seus espectadores. Tal controle do modo de ver acaba por definir-se em uma outra perspectiva do autor sobre a ideia de uma pós-história, onde, na relação entre a cultura visual e o fazer histórico, nada de novo acontece; apenas a repetição de imagens que tornam o tempo um fluxo cíclico de acontecimentos repetidos. Isto é, diante da redundância das imagens, não há meio de surgir nova informação senão pelo controle e subversão da linguagem fotográfica. Em termos de imagens técnicas, ainda que por meio de intervenções diretas do operador em uma câmera, subverter a linguagem significa quebrar as relações de visibilidade entre acontecimentos no cerne de seu acontecimento e imagens amplamente reproduzidas, que são facilmente associadas a significados previamente estabelecidos.

Quanto ao modelo de subversão diante das tecnologias de geração de imagens, onde o controle do resultado final não está associado a escolhas que são relativas ao olhar e à ação mecânica de um obturador fotográfico, mas a um conjunto de instruções dadas à programas que irão interpretar tais intenções (também um input dirigido para um software na linguagem da informática), se torna necessário questionar qual o tipo de universo de imagens constitui esse novo modelo. A ensaista e filósofa Susan Sontag, em seu livro “Sobre fotografia”, se propõe a pensar no que o uso de imagens técnicas culminaria entre as relações entre imagem e opinião social. Para a autora, o resultado destas ações seria uma forma de controle social por meio das imagens sem valor informativo, uma espécie de conjunto de imagens que carregam consigo valores, opiniões, comportamentos e são usadas para gerir o modo de vida. Tal conjunto é definido como “mundo-imagem”, onde cada ação possui uma imagem correspondente.

A realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pelas imagens; e os filósofos, desde Platão, tentaram dirimir nossa dependência das imagens ao evocar o padrão de um modo de apreender o real sem usar imagens. Mas quando, em meados do século XIX, o padrão parecia estar afinal, ao nosso alcance, o recuo das antigas ilusões religiosas e políticas em face da investida do pensamento científico e humanístico não criou — como se previra — deserções em massa em favor do real. Ao contrário, a nova era da descrença que não podia mais ser concedida a realidades compreendidas na forma de imagens passou a ser concedida a realidades compreendidas como se fossem imagens, ilusões. [...] Tais imagens são de fato capazes de usurpar a realidade porque, antes de tudo, uma foto não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma interpretação do real; é também um vestígio, algo diretamente calcado do real, como uma pegada ou máscara mortuária”. (SONTAG, 2004, p.169-170).

Entre o modelo de pensamento técnico proposto por Flusser e o modo de ver filosófico proposto por Sontag, há a ideia em comum entre os autores que a utilização de imagens redundantes não leva ao conceito de informação, mas a um conceito de ilusões; do que se convém dizer que é dado pelo seu valor de evocação de uma realidade material. O que é ,no entanto, diferente em ambos, é o conceito de experiência. Para Sontag, fotografias evocam a experiência daquilo que foi fotografado como um modo de apreender o rastro registrado. Para Flusser, o conceito de experiência é uma ação que intervém no comportamento social, onde a realidade redundante resulta na experiência individualista das imagens técnicas. O que torna necessário observar na experiência a partir da fotografia são as suas origens diante do mundo-imagem. Segundo a perspectiva de Sontag, tais imagens mantém, necessariamente, uma relação expressa com o mundo material. O que, nas considerações sobre a semiótica de Charles Sanders Peirce, é definido como tipo de signo indiciário. A virtualidade dessas imagens é constituída por uma cadeia de outras imagens que mantém seus significados através da evocação de um fragmento do real relacionado ao mundo sensível. No entanto, essa relação entre o índice Peirciano e a sua virtualidade no mundo-imagem não possui o mesmo valor interpretativo quando relacionadas às imagens generativas. A interpretação dos valores de inputs feitas pelas inteligências artificiais desloca a necessidade de um rastro sensível como validação de fatos registrados, e isso tende a acontecer porque o mundo-imagem das imagens generativas é virtual, baseadas em imagens redundantes, sem a possibilidade de geração de imagens-únicas.  O que também acaba por desaparecer nessa nova relação entre as imagens criadas por meio de inteligências artificiais e sua relação com o real é a evocação da testemunha ocular. Se, antes, a aproximação do fragmento do real se tornava válido por meio do testemunho de seu fotógrafo inserido em um determinado contexto de produção fotográfica (o que não impede desvios narrativos), agora, são os geradores os usuários de informação que exercem funções de programadores por meio do domínio da linguagem informática para a geração de imagens. O novo aparelho de criação de imagens, diante do atestado de veracidade de informação visual na era da informática, substituiu a relação entre o ver, disparar e, novamente ver para uma completa substituição da câmera fotográfica pelo teclado e linhas de comandos em computadores. Há, inevitavelmente, o desaparecimento do rastro sensível diante dos dados interpretados pelas IAs. Em conjunto com o desaparecimento de seus operadores no mundo sensível, se tornam necessários também questionamentos sobre a ética na utilização de imagens generativas. Sontag expressa que “As câmeras são o antídoto e a doença, um meio de apropriar-se da realidade, tornando cada vez menos plausível refletir nossa experiência à luz da distinção entre imagens e coisas, entre cópias e originais” (SONTAG, 2004, p.196).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta apresentação apontamos os primeiros impasses, dúvidas, que o advento da popularização de ferramentas de geração de imagens por meio de Inteligência Artificial apresenta. Tais ferramentas tem pouco menos de cinco anos de lançamento, o qual indivíduos mal-intencionados veem utilizando para criar desinformação, as fake news. Mas foi nos fins de 2022 que aplicativos como Dall-E e Midjourney se tornaram populares e levantaram a dúvida se, num futuro próximo, ainda teremos imagens que condizem com a realidade (se é que um dia isso ocorreu).

O documentalista e seu papel de criar mecanismos de descrição, recuperação e democratização das informações, precisa estar atualizado com as últimas formas de produção de conhecimento, de imagens. Consideramos como um importante passo a leitura do filósofo Vilém Flusser e seu conceito de imagem técnica.

Esta nova realidade de geração de imagens, facilitada por meio das inteligências artificiais, aprofunda a necessidade de debates para a criação de ferramentas para a identificação de imagens fictícias quando inseridas em contextos de propagação de Fake News e demais usos considerados ruins e antiéticos. O que de fato se torna uma preocupação é que, a mesma tecnologia que poderá ser de grande valor para a recuperação e restauração digital de arquivos considerados históricos pode ser a mesma que permite a manipulação de imagens como forma de descontextualizar seus acontecimentos.

Vilém Flusser não pode ver os desdobramentos de suas ideias sobre as imagens técnicas pois faleceu em 1991. Mas seu pensamento continua atual e necessário para pensar esse novo momento.

REFERÊNCIAS

 

BARTHES, Roland. A Mensagem Fotográfica. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000. P. 325-341

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

 

DORIAN WONG, Adam. BLADERUNNER: Rapid Countermeasure for Synthetic (AI-Generated) StyleGAN Faces. arXiv e-prints, arXiv-2210, 2022.

 

FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Sinergia Relume Dumará, 2009.

 

FLUSSER, Vilém. Concretizar. In: FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

 

FLUSSER, Vilém. Sintetizar Imagens. In: FABRIS, Annateresa, KERN, Maria Lucia Bastos. Imagem e Conhecimento. São Paulo: EDUSP, 2006. P.319-326. 

 

FROHMANN, Bernd. Documentation Redux: prolegomenon to (another) philosophy of information. Librarian Trends, v. 52, n. 3, p.387-407, 2004.

 

GUERRA, Claudia Bucceroni. Flutuações conceituais, percepções visuais e suas repercussões na representação informacional e documental da fotografia para formulação do conceito de Informação fotográfica digital (Tese de doutorado). IBICT – UFRJ, Rio de Janeiro., 2013.

 

LEVOY, Marc. Technical Perspective, Computational Photography on large collections of images. Communications of the ACM. vol.51.Nº10. p.86, 2008.

 

SHANNON, C. E.; WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Urbana: Tenth priting, 1964.

 

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 



[1] Professora do Departamento de Processos Técnicos Documentais da UNIRIO. Doutora em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBICT/UFRJ)

[2] Graduado do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Bolsista de Iniciação Científica – UNIRIO.

[3] GUERRA, C.B. Flutuações conceituais, percepções visuais e suas repercussões na representação informacional e documental da fotografia para formulação do conceito de Informação fotográfica digital (Tese de doutorado). IBICT – UFRJ, Rio de Janeiro., 2013.

[4] Daguerreótipo é o nome da primeira técnica fotográfica patenteada em 1839. Seu criador foi Louis Jacques Mandé Daguerre.

[5] veja: https://epocanegocios.globo.com/mundo/noticia/2023/04/artista-alemao-recusa-premio-de-fotografia-e-diz-que-imagem-foi-criada-por-inteligencia-artificial.ghtml

[6] Dentre os mais conhecidos destacamos: DALL-E, Midjourney e Adobe Firefly.

[7] Tradução da autora: reconstrução contínua de imagens de alta resolução usando prioridade de correção.