A PRODUÇÃO DA DESINFORMAÇÃO NA ESFERA PÚBLICA

mal radical e mal banal como referência de manifestações no debate público

Rodrigo Silva Caxias de Sousa[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

00018995r@gmail.com

Carla Monego Lins Pasti[2]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 carlapastl@gmail.com

Meri Nadia Marques Gerlin[3]

Universidade Federal do Espírito Santo

meri.gerlin@ufes.br

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Resumo

Discute a pertinência do quanto o uso dos conceitos de mal banal e mal radical se esboçam como potenciais referências analíticas para a compreender os processos de desinformação que circulam na esfera pública, em especial nas plataformas de rede social, como forma de fomentar uma problematização que defende que essas manifestações encontram-se fundamentadas tanto na pauperização interpretativa dos sujeitos e coletividades, quanto no ódio reproduzido de forma instrumental, perpetuado em razão de interesses políticos, econômicos e religiosos. Dessa forma, o presente estudo apresenta aspectos relativos às noções de mal radical (Kant) e sua rearticulação na obra de Arendt (mal banal e mal radical), os relacionando, aos conceitos de desinformação, de esfera pública e de mundo da vida como forma de teorizar o quanto a desinformação inviabiliza a ampliação de atos inter locucionários e o entendimento intersubjetivo no âmbito da política. 

Palavras-chave: desinformação; mal banal; mal radical; esfera pública.

TITLE THE PRODUCTION OF DISINFORMATION IN THE PUBLIC SPHERE:

radical evil and banal evil as a reference for manifestations in public debate

Abstract

It discusses the relevance of how the use of the concepts of banal evil and radical evil are outlined as potential analytical references to understand the processes of disinformation that circulate in the public sphere, especially on social media platforms, as a way of fostering a problematization that defends that these manifestations are based both on the interpretative pauperization of subjects and communities, and on hatred reproduced in an instrumental way, perpetuated due to political, economic and religious interests. Thus, the present study presents aspects related to the notions of radical evil (Kant) and its rearticulation in Arendt's work (banal evil and radical evil), relateding them with the concepts of disinformation, the public sphere and the world of life as a form of theorizing how misinformation makes it impossible to expand interlocutionary acts and intersubjective understanding within the scope of politics.

Keywords: desinformation; evil banal; evil radical; public sphere.

1  INTRODUÇÃO

Problematizações sobre os princípios da moralidade acompanham as ideias de teóricos de diferentes tradições ao longo do tempo. Dentre um universo de problematizações relativas a aspectos morais e éticos as diferentes formas de manifestação do mal se materializam na produção de filósofos alemães, ao considerarmos como ponto de partida o idealismo alemão, nos remetendo aos escritos de Immanuel Kant, em especial no que tange a noção de mal radical.

Nesse sentido, a radicalidade de sua noção não está relacionada a uma projeção do que venha a ser extremo, mas uma manifestação compreendida como aspecto inato, princípio da própria compreensão de livre arbítrio e portanto, da essência da liberdade humana. Ao considerarmos essa projeção intelectiva, fundamentada na premissa das ideias do autor, nos permitimos depreender que o mal radical estaria menos articulado à intensidade de manifestações relativas a uma razão prática e mais a aspectos arraigados à formação cultural dos indivíduos e a potencialidade dos atributos advindos de sua autonomia.

Posteriormente ampliando e deslocando parte dessas concepções atreladas à continuidade da mencionada tradição alemã da Filosofia Moral, Hannah Arendt, revisita as discussões Kantianas se debruçando sobre o totalitarismo e seus desdobramentos. É em virtude dessas rearticulações, ao observar o contexto totalitário do surgimento e consolidação do nazismo, que a autora reinterpreta essas noções e as amplia, ao observar a brutalidade, as discrepâncias e as sutilezas dos males resultantes do nazismo.      

Feitas essas considerações, defendemos que transposições nocionais e articulações conceituais advindas das ideias de ambos os autores podem se concretizar como uma perspectiva necessária à Ciência da Informação, em razão da possibilidade de nos debruçarmos sobre as diferentes nuances relativas à desinformação.

Essa premissa teórica, que se propõe a compreender a desinformação como mal, fruto de um contexto totalitário sui generis, é aqui defendida em razão de que a desinformação reveste-se de uma série de peculiaridades no que tange à circulação de conteúdos instrumentais com capacidade destrutiva em relação à articulações políticas nas sociedades. Defendemos essa perspectiva em virtude de que a circulação desenfreada de desinformações que passou a se constituir a partir de um universo de manifestações sociais que articulam, incidem e objetificam atores, instituições, grupos e epistemologias tem por referência a pauperização das ações e processos comunicativos na esfera pública.

Ademais a desinformação foi base para que tanto ações subjetivadas, quanto a composição de uma estrutura de ecossistemas causadores de danos passassem a ser edificados também a partir do uso de plataformas digitais. Por conseguinte, os efeitos da desinformação em parte se assemelham a lógica do totalitarismo, desvelando uma atmosfera de polarização política que de forma nefasta e inédita empobrece os processos de interlocução nas democracias.

É a partir dos aspectos supramencionados, que neste artigo discutiremos o quanto as noções de mal banal e mal radical (Arendt, 1999, 2004) podem se constituir em referências interpretativas importantes para desvelar os fenômenos relativos à desinformação.  Com a intenção de provocar reflexões acerca dessas relações, inicialmente, apresentaremos, de forma sumarizada, a influência kantiana na obra de Hannah Arendt.

Em vista do exposto, apresentamos como objetivo posterior problematizar o quanto os conceitos de mal banal e mal radical se esboçam como potenciais referências analíticas para a compreender o processo de desinformação, por meio de um estudo exploratório-explicativo de abordagem qualitativa. Sua consecução está pautada na aproximação dos conceitos supramencionados às noções de desinformação, com o  intuito de fomentar uma discussão que defende que essas manifestações encontram-se fundamentadas na execução desenfreada de produção de conteúdos pautados no ódio reproduzido de forma instrumental e perpetuado em razão de interesses políticos, econômicos e religiosos; tendo como consequência a pauperização interpretativa dos sujeitos e coletividades e o surgimento de nichos de autoritarismo. 

Dessa forma, o presente estudo apresenta influências da noção de mal radical de Kant e suas rearticulações materializadas nas noções de mal banal e mal radical de Hannah Arendt (2004) aos de desinformação (desinformation e misinformation), como forma de teorizar o quanto a desinformação inviabiliza a ampliação de atos inter locucionários e o entendimento intersubjetivo no âmbito da política.

Ademais merece destaque que a potencialidade e dialogicidade que alicerçam os atos de fala (Habermas, 1990) própria da ação comunicativa, tendem a perder sua força na medida que os processos de interlocução efetivados sob perspectivas radicalmente opostas, não abertas ao diálogo, denotam manifestações de polarização ideológica. Complexificada essa conjuntura, em virtude da circulação de desinformações nas sociedades administradas (Adorno; Horkheimer, 1985), neste estudo buscamos discutir o quanto as noções de mal banal e do mal radical propostos por Hannah Arendt (1999) se constituem como norte para a compreensão de práticas de produção, uso e compartilhamento de desinformações na atualidade.

 

 

 

2 O REDIMENSIONADO MAL: DE KANT A ARENDT ATÉ A DESINFORMAÇÃO 

 

         Dentre as obras de Immanuel Kant que mais influenciaram o pensamento de Hannah Arendt para o desenvolvimento acerca da sua perspectiva sobre a natureza humana e a moralidade, na "Crítica da Razão Prática" (Kant, 2018) são encontrados elementos que desvelam que os seres humanos são seres morais porque são capazes de agir de acordo com a razão. O filósofo defende que a razão nos permite discernir entre o certo e o errado e nos motiva a agir de acordo com nossos princípios e em relação a aspectos éticos compartilhados.

       O autor fundamenta de forma pontual que “[...] cada um sabe que, se se permite secretamente enganar na prática de uma ação malévola, nem por isso permite que todo o mundo faça outro tanto; se alguém é insensível, talvez sem dar-se conta disso diante do próximo, nem todos são insensíveis [...] (Kant, 2018, p. 83). O mal radical, tal compreende Kant (2018), é produto de uma estreita relação com a própria percepção de liberdade, considerada por ele como uma predisposição inata do indivíduo, possibilidade de manifestação da sua autonomia e sendo percebida como um descuido moral, uma relação de resistência a uma lei moral.  Tratam-se de tensionamentos e movimentos diastólicos da moral, caracterizados por uma oscilação entre razão e vontade, assim como de uma possível dicotomia entre o respeito pela lei moral e o amor-próprio. Corrobora essa perspectiva Correia (2005, p. 88) ao mencionar que

 

O mal radical é uma espécie de ataque à própria disposição para o bem, para se deixar tocar pela lei. O mal seria esta propensão universal para não receber o respeito pela lei como móbil. A especificidade da religião consiste em aliar o respeito pela lei a uma disposição para a realização de ações boas. Para se compreender o conceito de mal, é necessário entender a relação entre o livre-arbítrio e o recebimento das máximas decorrentes do respeito pela lei moral como móbil. Grosso modo, o mal equivale a tomar como regra do agir a relação de prazer e desprazer para com os objetos. O mal moral é sempre definido, portanto, por uma relação de resistência à lei moral, como causa oposta à ação segundo a lei moral, que se opõe à obediência. O mal moral age contra o bem moral. Assim, para seguir na moralidade não basta desenvolver o princípio do bem em nós (respeito pela lei), mas também combater uma causa antagônica do mal em nós.

 

         Essa perspectiva demonstra um duplo movimento moral em relação a não efetividade do mal. Arendt (1999) argumenta que os seres humanos são seres políticos que vivem em um mundo comum. Ela acredita que os seres humanos precisam ser capazes de pensar criticamente sobre o mundo ao seu redor e agir de acordo com seus princípios para criar uma sociedade justa e equitativa, indo ao encontro dessa noção de duplo movimento.

      Isso porque Arendt estudou a filosofia de Kant na Universidade de Heidelberg e foi fortemente influenciada por seus conceitos de autonomia, liberdade e responsabilidade (Lechte, 1996). A filósofa era defensora da ideia de que a autonomia se constitui em referência fundamental para a condição humana, ao argumentar que os seres humanos são capazes de pensar por si mesmos e agir de acordo com suas próprias convicções diferenciando-os dos animais, que são movidos por instintos. No que se refere a liberdade, Arendt a concebia como um valor fundamental e expunha que os seres humanos são livres para escolher suas ações e determinar seu próprio destino. Essa liberdade, no entanto, vem atrelada à responsabilidade de agir de acordo com a moral sendo a responsabilidade essencial para a vida em comunidade. A autora argumentava que os seres humanos são responsáveis ​​pelos seus atos, mesmo que sejam cometidos por motivos aparentemente irracionais.

        Esses conceitos de Kant são claramente refletidos no trabalho de Arendt. Em seu livro "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal" (Arendt, 1999). Na mencionada obra a filósofa argumenta que Eichmann, o oficial nazista responsável pela deportação de milhões de judeus para campos de concentração, não era um monstro, mas um homem comum que simplesmente obedecia às ordens. Sua análise destacava que Eichmann era responsável por suas ações, mesmo que ele não tivesse a intenção de causar mal. Arendt foi profundamente influenciada por esse argumento de Kant. Ela acreditava que a razão é essencial para a condição humana. Ela argumentava que os seres humanos são capazes de pensar por si mesmos e agir de acordo com suas próprias convicções. Isso é diferente dos animais, que são movidos por instintos.

         Arendt também foi influenciada pelo conceito kantiano de autonomia. Kant acreditava que os seres humanos são livres para escolher suas ações e determinar seu próprio destino. Essa liberdade, no entanto, vem com a responsabilidade de agir de acordo com a moral, o que implica em considerar que a autonomia e a responsabilidade são essenciais para a vida em comunidade. Ela argumentava que os seres humanos são responsáveis ​​pelos seus atos, mesmo que sejam cometidos por motivos aparentemente irracionais. Arendt ao cunhar o termo "banalidade do mal" para descrever como indivíduos aparentemente comuns, como Adolf Eichmann, puderam se envolver em atos monstruosos de genocídio sem exibir uma intenção maliciosa óbvia. Arendt argumentou que o mal não é necessariamente o resultado de uma intenção maligna, mas pode ser o produto de uma conformidade acrítica com normas sociais distorcidas. Ela observou que Eichmann era um homem comum, sem nenhuma característica especial que o tornasse um monstro. Ele era um burocrata obediente que seguia as ordens de seus superiores, sem questionar as ordens dadas. De acordo com a autora, a ausência de criticidade e a reprodução da obediência aos sistemas totalitários e normas distorcidas podem permitir a execução do mal (Arendt, 1999).

Os conceitos de "mal radical" e "banalidade do mal," apesar de não estarem definidos em seus textos, representam uma extensão contemporânea de suas ideias. O "mal radical" é a malevolência intrínseca por trás de ações intencionais e extremas, frequentemente motivadas por ideologias. A "banalidade do mal" representa a crueldade que pode surgir da conformidade cega com normas sociais distorcidas, muitas vezes sem más intenções conscientes.

Arendt também foi influenciada pelo conceito kantiano de crítica. Kant acreditava que a razão é capaz de julgar a realidade e distinguir entre o certo e o errado. Arendt acreditava que a crítica é essencial para a democracia onde os cidadãos devem ser capazes de pensar criticamente sobre o governo e a sociedade para garantir que eles sejam justos e equitativos, portanto, Immanuel Kant inspirou Arendt a desenvolver sua perspectiva sobre a natureza humana e a moralidade. Para Arendt a conformidade com a sociedade pode levar a comportamentos que contradizem a racionalidade das pessoas, uma vez que a razão é essencial para o julgamento moral.  Em “Origens do Totalitarismo” (Arendt, 2004), Arendt emprega o termo “mal radical”, entendido como mal absoluto, referindo-se à catástrofe dos campos de extermínio. Em “Eichmann em Jerusalém” (Arendt, 1999) utiliza a expressão “banalidade do mal” para denunciar a conduta de indivíduos como Adolf K. Eichmann, que em sua superficialidade teriam testemunhado um descompasso inédito entre a estatura do malfeitor e das transgressões cometidas.

Hannah Arendt, ao tratar do problema do mal, o faz a partir de Kant e ao mesmo tempo alarga a compreensão do conceito, entendendo-o para além do egoísmo (amor de si). Essas concepções acenam para o entendimento de que ações maléficas se instituíram na conjuntura do totalitarismo enquanto manifestações de ódio e extremismo, tendo o nazimo e o antisemitismo com fundamentos que projetaram e executaram o desprezo à vida humana, inviabilizando as discussões na esfera pública. São essas noções e peculiaridades que nos permitem transpor para um contexto de polarização tais categorias como possibilidades interpretativas de manifestações de desinformação.

    Diante dessa interseção entre o pensamento de Kant e Arendt há a análise da moralidade e da natureza do mal na sociedade contemporânea. À medida que enfrentamos os desafios da desinformação, é essencial manter um pensamento crítico, responsabilidade ética e um compromisso com a busca da verdade, reconhecendo que o mal pode surgir tanto da intenção maliciosa quanto da conformidade sem questionamento. Enquanto navegamos na era digital, devemos permanecer vigilantes em nossa busca pela verdade e na promoção de um diálogo público baseado na honestidade e na responsabilidade moral.

 

3  DESINFORMAÇÃO COMO MAL NA ESFERA PÚBLICA

As plataformas digitais vêm se constituíram como espaço de hibridação e ampliação do mundo da vida, articulando redes sociais nas quais atores e suas práticas informacionais estão balizadas na produção e compartilhamento ostensivo de desinformações.

Ao mesmo tempo que essa hibridação tem potencializado o esvaecimento de perspectivas de interlocuções acerca do de pautas coletivas, por outro lado a superexposição das individualidades se coaduna à composição e a produção, uso e compartilhamento de conteúdos distorcidos, intencionalmente ou não, por parte expressiva da população e até mesmo dos governos (Sousa, Valerim, 2022).

Informações subjetivas pautadas em interesses são objetivadas e imiscuídas como expressão do coletivo, de forma intencional ou não, atribuindo destaque primeiramente ao indivíduo em virtude de uma suposta visibilidade que ele mesmo se atribui, mas que também pode estar pautada por racionalidades instrumentais desveladoras de interesses escusos. Essa dinâmica em muito ultrapassa o que Hannah Arendt denomina como ascensão da sociedade, em sua obra “A condição Humana” (Arendt, 2007), na qual a autora desvela e denuncia o quanto as esferas privada e política sofreram clivagens ao serem incorporadas pelo social.  

Especificamente em relação à desinformação, ainda que prematuramente possam ser pensadas como manifestações narcisistas típicas de uma cultura digital de auto-exposição, são necessários destacar que as mesmas se colocam em diálogo com outras informações estrategicamente edificadas, num processo de complexificação discursiva circulante que se materializa fundamentalmente em nichos fechados que reforçam aspectos de uma polarização política com proporções até então não vistas.

Nesse contexto, as análises de Hannah Arendt (1999) ganham relevância profunda. Seu conceito de "banalidade do mal" revela como atitudes e ações cruéis podem emergir de indivíduos comuns, muitas vezes sem intenções maliciosas, mas devido à sua conformidade com normas sociais distorcidas. Isso pode ser aplicado às práticas sociais de produção, uso e compartilhamento de desinformações no mundo da vida e nas plataformas digitais, onde indivíduos compartilham informações errôneas sem questionar, contribuindo para a normalização do fenômeno. Por outro lado, a "radicalidade do mal" de Arendt nos alerta para a malevolência intrínseca que pode se manifestar através de ações extremas e intencionais. Ao considerar as práticas intencionais de disseminação de desinformação, podemos encontrar ecos dessa radicalidade, onde indivíduos deliberadamente distorcem a verdade para atender a agendas políticas, econômicas ou ideológicas.

 

3  PRÁTICAS INFORMACIONAIS DE DESINFORMAÇÃO NA ESFERA PÚBLICA

Com o crescente movimento de acesso às novas tecnologias desde o final do século XX, a estrutura de conexão da Web (World Wide Web), ambiente de rede da Internet, intensifica o ato de informar tanto quanto de desinformar na contemporaneidade. Nesse novo e, ao mesmo tempo, incerto cenário, as estruturas de colaboração são alimentadas por indivíduos e grupos sociais ao conformar um constante e mutante processo de comunicação das notícias confiáveis e, de igual modo, daquelas que não são confiáveis, claras, verídicas e capazes de auxiliar nas decisões da área da cultura, economia, educação, política, saúde, entre outras não citadas.

Ocorre que no século XXI, com a expansão do uso das tecnologias de informação e comunicação (novas tecnologias), e em especial das plataformas de redes sociais, cresceu o fenômeno da desinformação, ganhando proporções descontroladas e articulando um cenário de crise paradigmática para a área da informação; de tal forma que conjuntamente a ele é possível observar a centralização da informação, a estagnação da comunicação e o isolamento social - gerando expectativas e necessidades de validação em termos de produção, uso e propagação de uma informação confiável ao alcance de todos.

A desinformação compreende desde a propagação de notícias falsas (fake news) até os conteúdos deturpados que são compartilhados fora de contexto original com a finalidade de desinformar. Sousa, Valerim, Heller e Lima (2021, p. 179) expõem em relação a desinformação que “manifestações inusitadas de desinformação acenam para possibilidades de interpretações em relação a distintos fenômenos sociais”, requerendo que a temática seja colocada em análise do ponto de vista da esfera pública já que esse fenômeno se caracteriza por “ações engendradas por diferentes atores sociais”.

Assim sendo, convém dialogarmos sobre as diferentes formas de desinformação (ausência de informação, notícias falsas, boatos e conteúdos deturpados) buscando o suporte da Teoria Crítica da Informação e Comunicação, ao levar em consideração relações assimétricas de poder e controle que são estabelecidas na esfera pública, em que os assuntos públicos poderiam estar sendo discutidos pelos atores sociais. Para isso, autores como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Jürgen Habermas e, principalmente, Hannah Arendt poderão ser trazidos para que possamos refletir sobre as nuances que a "banalidade do mal" nos revela em uma trama complexificada e tecida em virtude da circulação da desinformação (Adorno; Horkheimer, 1985; Arendt, 1999; 2004; 2011; Habermas, 2012).

A pertinência relativa à apresentação e articulação entre os distintos conceitos de desinformação são aqui efetivadas em razão de nos aproximarmos das noções de mal banal e mal radical. Esse exercício interpretativo, ainda que busque tais noções em outra conjuntura totalitária, se constitui para desvelar a lógica subjacente da desinformação, qual seja: os fenômenos de desinformação se constituem como problemas morais comprometedores da possibilidade de efetivação do debate na esfera pública. 

Nos propusemos a fomentar uma discussão que vai ao encontro de que as práticas informacionais alicerçadas em desinformação, seja ela fundamentada na intencionalidade de produção de um mal, ou no ódio reproduzido de forma inadvertida edificam práticas sociais balizadas em uma razão instrumental.  Dessa forma o presente estudo articula as expressões utilizadas por Hannah Arendt (mal banal e mal radical) à desinformação (misinformation e disinformation), práticas informacionais e de esfera pública.

Dessa forma a potencialidade e dialogicidade que alicerçam os atos de fala (Habermas, 1990) própria da ação comunicativa, tendem a perder sua força na medida em que os entendimentos balizadores das interlocuções, sob diferentes perspectivas, são minimizados em razão do uso de informações distorcidas, fruto de um erro honesto (mal banal) a intencionalidade maléfica objetivando um resultado (mal radical).

Quando as pessoas são capazes de pensar criticamente, elas são mais propensas a questionar informações falsas e tomar decisões corretamente. A influência do trabalho de Arendt na sociedade atual é significativa pois alerta-nos para os perigos da desinformação e encoraja-nos a desenvolver estratégias para combatê-la. Uma das formas de desinformação é a disseminação deliberada de informações falsas ou imprecisas com o objetivo de enganar ou manipular o público.

Na era digital, a desinformação se tornou um problema crescente, devido à facilidade com que as informações podem ser compartilhadas e difundidas. Sendo assim, é necessário entender os mecanismos que levam à disseminação de desinformação e desenvolver estratégias para combatê-la. Acerca do conceito desinformação, Wardle & Derakshan (2017) compreendem desinformação a partir da noção de desordem informacional, a distinção entre misinformation, disinformation e mal-information. Ripoll e Matos (2020), destacam que na língua inglesa existe uma distinção entre os conceitos de desinformação. Os autores consideram apenas a disinformation, como o conceito que abarca a informação imprecisa com a intenção de enganar, enquanto os termos misinformation e o mislead, conforme os autores explicam abaixo (Ripoll; Matos, 2020).

 

É importante perceber que a palavra ‘desinformação’, em português, muitas vezes é usada enquanto a tradução tanto de ‘disinformation’, como de ‘misinformation’, duas palavras que são conceitualmente distintas na língua inglesa. Conforme menciona Fallis (2010), ambas remetem ao contexto da informação imprecisa/incorreta (innacurate) e enganosa/ilusória (misleading). No entanto, misinformation corresponde a um engano originado na fonte emissora de forma não proposital (honest mistake), enquanto que na palavra disinformation existe uma intenção consciente da fonte em enganar (intended to deceive). O autor comenta que, sendo assim, é mais difícil identificar uma disinformation, já que ela é justamente produzida com a intenção de não ser identificada como tal. (Ripoll; Matos, 2020, p. 97)

 

Diferentemente é necessário compreender vieses distintivos em relação às perspectivas que consideram a produção da informação segundo intencionalidades escusas subjacentes. Feitas as respectivas distinções é necessário destacar que existe uma relação entre desinformar e manifestar maleficamente uma ação fundamentada em processos comunicativos que tenham seu conteúdo deturpado. Isso porque a desinformação pode ser usada para manipular as pessoas e induzi-las a acreditar em coisas que não são verdadeiras, bem como convencê-las a cometer atos que são prejudiciais a si mesmas e aos outros, esterilizando e trazendo descrenças as questões coletivas circulantes na esfera pública. Isso pode ser feito por meio de discursos de ódio, ausência de acesso ou inexistência de informações, propaganda enganosa e outras formas de disseminação de informações falsas.

         Quando nas discussões efetivadas no âmbito da esfera pública as pessoas acreditam em informações falsas, elas podem tomar decisões erradas e agir prejudicando a si mesmas e aos outros. Arendt argumentava que as pessoas são suscetíveis à conformidade social, ou seja, conformam-se com a sociedade, sendo propensas a acreditar em informações que estão de acordo com suas crenças e valores. A desinformação pode ser usada para aproveitar essa tendência, criando narrativas que apelam às emoções e preconceitos das pessoas, manipulando emoções, não propiciando o acesso às informações relevantes, atacando a confiança nas instituições e também a criação de uma realidade alternativa.

                                    

4  ALGUMAS CONSIDERAÇÕES EM ABERTO

            As proposições apresentadas neste artigo tiveram por intenção discutir o quanto as ideias que articulam a noção de mal radical (Kant, 2018) foram reelaboradas como forma de compreensão das conjunturas totalitárias, incidindo sobre as coletividades e os sujeitos.

            Ainda que com proporções incomparáveis ao contexto analisado por Arendt (1999), é necessário refletir acerca da banalidade do mal circulante a partir do uso exacerbado de desinformações. É possível depreender que nos encontrarmos diante de uma privação de direito à informação e que os circuitos de desinformação suprimem a possibilidade de que, nas sociedades, possamos estar diante da ausência de processos comunicativos e compreensões fundamentadas em articulações entre os cidadãos. A informação em si traz não apenas um norte moral na medida em que se caracteriza como substrato de entendimento na sociedade e articulação de compreensão e resolução de problemas coletivos, estabelecendo a devida coerência aos atos comunicativos efetivados. 

            Embora Arendt (1999) tenha denunciado uma dissolução da moralidade em razão do totalitarismo, defendemos que as discussões aqui efetivadas apontam para uma atmosfera em que os mores (costumes, hábitos) se redimensionaram no sentido da preponderância de uma racionalidade instrumental e incide em relação às práticas sociais, de tal forma que há uma cultura de produção, uso e compartilhamento de informações; na mesma medida em que ampliou os limites das discussões públicas, ao se tornar costume o uso e a circulação de desinformações. De modo similar ao que se encontra em Eichmann, a ausência de totalidade de manifestações de antisemitismo que caracteriza o mal banal, nos leva a refletir que os hábitos e costumes potencializam esses circuitos e redes de desinformação, engendrando e edificando o surgimento de nichos sociais ideologicamente polarizados.

            Ao aproximarmos os conceitos trabalhados neste artigo tivemos a intenção de lembrar acerca da necessidade da adoção de um pensamento crítico e de uma responsabilidade ética que reflita acerca da influência combinada de Kant e Arendt nos convidando a uma análise mais profunda da moralidade e da natureza do mal na sociedade contemporânea em virtude de práticas informacionais que se deturparam em uma sociedade que tenha como cerne de suas relações a informação.

            Ao relacionarmos essas noções advindas da Filosofia Moral aos fenômenos da desinformação, somos lembrados da necessidade de um pensamento crítico e de uma responsabilidade ética mais profunda, pois a influência combinada de Kant e Arendt nos convida a uma análise mais profunda da moralidade e da natureza do mal na sociedade contemporânea. Diante dessa interseção entre o pensamento de Kant e Arendt há a análise da moralidade e da natureza do mal na sociedade contemporânea.

            À medida que enfrentamos os desafios da desinformação, é essencial manter um pensamento crítico, responsabilidade ética e um compromisso com a busca da verdade, reconhecendo que o mal pode surgir tanto da intenção maliciosa quanto da conformidade sem questionamento. Enquanto navegamos na era digital, devemos permanecer vigilantes em nossa busca pela verdade e na promoção de um diálogo público baseado na honestidade e na responsabilidade moral relativa à produção, uso e compartilhamento de informações.

REFERÊNCIAS

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ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 6. ed. Tradução de

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RIPOLL, L., MATOS, J. C. O contexto informacional contemporâneo: o crescimento da desinformação e suas manifestações no ambiente digital. Inf. Prof., Londrina, v. 9, n. 1, p. 87 – 107, jan./jun. 2020. Disponível em: DOI: 10.5433/2317-4390.2020v9n1p87. Acesso em: 20 de set. 2023.

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WARDLE, C.; DERAKSHAN, H. Information disorder: toward an interdisciplinary framework for research and policy making. RM. Retrieved from, 2017.

 



[1] Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Associado III do Departamento de Ciências da Informação da UFRGS. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação e Coordenador da Linha 2 (Informação e Sociedade) do PPGCIN da UFRGS.

[2] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Vida da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 (UFRGS). Bacharel em Direito. Aluna do Bacharelado em Biblioteconomia da UFRGS.

[3] Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Educação e graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora Associada do Departamento de Biblioteconomia e professora permanente do PPGCI da UFES.