LET ME TELL YA WHAT I'VE GOT
a irreprodutibilidade como dinâmica informacional a partir do jazz e suas implicações para o campo da ciência da informação
Gabriel do Nascimento Barbosa[1]
PPGCI - UFES
gabrielnbarbosa@outlook.com.br
Meri Nádia Marques Gerlin[2]
PPGCI - UFES
Taiguara Villela Aldabalde[3]
PPGCI – UFES
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Resumo
O presente resumo expandido refere-se ao trabalho de pesquisa que buscou utilizar as caraterísticas do jazz, enquanto manifestação cultural musical, como referência para elaboração de questões no campo da Ciência da Informação. Para tanto, coloca-se o jazz como expressão que, dentro do mundo globalizado, consagrou dinâmicas de produção que, mesmo que absorvidas pela hegemonia, são antagonistas às formas do pensamento ocidental. Para os fins do presente trabalho, interessa-nos a característica, no jazz, da irreprodutibilidade como valor intrínseco de sua existência. Esse esforço de construção textual tem o objetivo de analisar a irreprodutibilidade como dinâmica partindo do contexto do jazz e suas implicações para o campo da Ciência da Informação. Nesse sentido, com base na teoria de pensadores como Walter Benjamin e outros como Eric J. Hobsbaw e Kevin McGarry, apresentamos uma pesquisa na forma de ensaio teórico, de caráter bibliográfico. A metodologia é composta pela leitura e interpretação de conceitos, com reflexões encadeadas e expostas no formato de texto ordenado, referenciando as leituras e autores de modo construir um caminho lógico e válido, buscando construir as características da irreprodutibilidade a partir do jazz, entendendo como a irreprodutibilidade implica outros modos perpetuação no tempo e propor questões a serem movimentadas no campo da Ciência da Informação a partir dos resultados das questões anteriores. O resultado das reflexões desenvolvidas é de que a compreensão de dinâmicas não hegemônicas de manutenção de memória, como a irreprodutibilidade, são fundamentais para o entendimento do valor de culturas que estão à margem das tecnologias e das culturas consagradas e já adequadas ao discurso científico. Entendemos que a criação do campo de estudo da Ciência da Informação é fruto direto do desenvolvimento tecnológico e das necessidades de gestão operacional dos dados decorrentes da tecnologia de comunicação. Esse caminho, pela perspectiva das possibilidades de reprodução, vai ao encontro da análise da sociedade capitalista proposta por Walter Benjamin ao tratar da reprodutibilidade técnica. Mesmo não tratando, no caso dos estudos informacionais, da obra de arte, a afirmação do filósofo alemão conversa perfeitamente com a noção de um desenvolvimento técnico permanente em torno das possibilidades de reprodução. A própria razão de ser da Ciência da Informação é baseada na lógica, colocada também por Benjamin em relação à obra de arte, da democratização do objeto por meio do seu acesso imediato: a recuperação da informação e o contato com seu usuário. Esse propósito, inclusive, se inicia, tecnologicamente, na invenção da imprensa e suas possibilidades de difusão pela reprodução.
Palavras-chave: irreprodutibilidade; jazz; mediação cultural; ciência da informação.
irreproducibility as an informational dynamic from jazz and its implications for the field of information science
Abstract
This text refers to the research work that sought to use the characteristics of jazz, as a musical cultural manifestation, as a reference for elaborating questions in the field of Information Science. Jazz is seen as an expression that, within the globalized world, has established production dynamics that, even if absorbed by hegemony, are antagonistic to the forms of Western thought. For the purposes of this work, we are interested in the characteristic, in jazz, of irreproducibility as an intrinsic value of its existence. This textual construction effort aims to analyze irreproducibility as a dynamic based on the context of jazz and its implications for the field of Information Science. In this sense, based on the theory of philosophers and scientists such as Walter Benjamin and others such as Eric J. Hobsbaw and Kevin McGarry, we present research in the form of a theoretical essay, of a bibliographic research characteristics. The methodology is composed of the reading and interpretation of concepts, with reflections linked together and exposed in the format of an ordered text, referencing the readings and authors in order to construct a logical and valid path, seeking to construct the characteristics of irreproducibility from jazz, understanding how Irreproducibility implies other modes of perpetuation over time and proposing questions to be addressed in the field of Information Science based on the results of previous questions. The result of the reflections developed is that the understanding of non-hegemonic dynamics of memory maintenance, such as irreproducibility, are fundamental to understanding the value of cultures that are on the margins of established technologies and cultures and already adapted to scientific discourse. We understand that the creation of the field of study of Information Science is a direct result of technological development and the needs for operational management of data arising from communication technology. This path, from the perspective of reproduction possibilities, meets the analysis of capitalist society proposed by Walter Benjamin when dealing with technical reproducibility. Even though, in the case of informational studies, it does not deal with the work of art, the German philosopher's statement speaks perfectly to the notion of a permanent technical development around the possibilities of reproduction. The very reason for being of Information Science is based on the logic, also put forward by Benjamin in relation to the work of art, of the democratization of the object through its immediate access: the retrieval of information and contact with its user. This purpose even begins, technologically, with the invention of the press and its possibilities of dissemination through reproduction.
Keywords: irreproducibility; jazz; art education; information science.
1 INTRODUÇÃO
A presente reflexão refere-se ao estudo que buscou utilizar as caraterísticas do jazz, enquanto manifestação cultural, como referência para elaboração de questões no campo da Ciência da Informação. Para tanto, coloca-se o jazz como expressão que, dentro do mundo globalizado, consagrou dinâmicas de produção que, mesmo que absorvidas pela hegemonia, são antagonistas às formas do pensamento ocidental. Para os fins do presente trabalho, interessa-nos a característica, no jazz, da irreprodutibilidade como valor intrínseco de sua existência ao público e ao artista-mediador.
Nesse sentido, nos parece um caminho profícuo, que justifica o próprio empreendimento do estudo, a ausência da categoria de “irreprodutibilidade” nos estudos da Ciência da Informação, mesmo que a questão da reprodutibilidade não seja estranha ao campo, nem ao pensamento científico como um todo. Antes, porém, de se desenvolver sobre a irreprodutibilidade como potencial categoria nos estudos informacionais, cremos que ficará melhor a exposição desse valor no ambiente jazzístico.
Para o propósito do trabalho, não nos interessa uma inteligibilidade do jazz como estilo pela teoria musical, mas a compreensão da manifestação artística musical enquanto expressão consagrada da cultura. Essa significação nos permite a constatação de uma distância entre as dinâmicas culturais de existência dentro da diversidade e a apreciação dessas dinâmicas, em uma perspectiva de valor socialmente reconhecido. É complexo tratar o jazz como uma manifestação única, ordenada e estável. Não o é. A trajetória de desenvolvimento que a música clássica viveu em séculos, guardadas as devidas proporções, o jazz viveu em décadas (HOBSBAWM, 2021).
Há vários movimentos jazzísticos, várias formas de se fazer jazz e todos eles são jazz. De forma tão ampla que é quase que impossível que alguém, com segurança, possa responder: jazz é isso! Mas, sem dúvidas, ao escutar o ritmo, pode-se dizer sem titubear: isso é jazz! De uma forma ou de outra, em momentos sendo uma característica mais significativa que em outros, o jazz é um gênero musical autoral (HOBSBAWN, 2021). Nele o músico faz total diferença, porque ao público presencial, apreciar a música é também apreciar o músico, sendo ambos a razão do público fruir do jazz como expressão cultural. Ainda que fosse possível analisar todos os registros de performance de jazz, em termos de tradição documental (BELLOTTO, 2004), nota-se que os produtores da música, parecem não ter a pretensão de chegar a uma versão final ou registro original a ser depois copiado para distribuição. É um ritmo que nasceu e se fez falado, antes de ser escrito. Independe da partitura para sua reprodução porque o valor da música está no improviso, na identidade que o artista é capaz de dar e sustentar durante a apresentação, de forma diferente de tudo que já fez, ou já foi feito. Dessa forma, diferentemente da dinâmica da orquestra, onde a partitura é a razão ordenada da música, no jazz, o tema que é tocado como base para o improviso dos músicos, não é o espetáculo reprodutível e patenteável, mas sim a habilidade de cada membro em seu solo improvisado em harmonia com os demais membros do duo, trio, quarteto, quinteto ou banda.
É nesse arranjo que a irreprodutibilidade entra como um valor estético atribuído pelo público e pelo artista. Não é incomum que gravações de jazzistas venham acompanhadas das palavras: his greatest performance. É o que ocorre com a gravação de Bye Bye Blackbird pela gravadora Pablo Records em 1981, distribuída no Brasil pela Polygram. O disco, composto por duas faixas, uma em cada lado do vinil, registra a captura de áudio com encarte propagandeando que tratava-se da melhor performance de John Coltrane (1981) sobre o tema de Bye Bye Blackbird e Traneing In. Para além da possibilidade de ser uma construção de marketing, observa-se que, em um estilo musical onde o improviso prevalece, onde o artista dá a forma da apresentação, mesmo que não seja a melhor apresentação de Coltrane, não haverá outra igual. A mesma música, executada exatamente no minuto seguinte, não poderia ser a mesma. O que conta, no jazz, são as variáveis.
Quando da gravação do Kind Of Blue, álbum de Miles Davis (1959) considerado uma obra-prima gravada em apenas dois dias, havia a presença de uma composição. Davis junto com o seu quarteto, Coltrane entre os músicos, inclusive, tinha partituras prévias para seguir, entretanto, acompanhando os relatos dos dois dias, é marcante como, mesmo a composição, não serviu como base inflexível e o álbum, como um todo, é composto pelos acasos que percorreram a gravação (KAHN, 2007). Acasos desde erros de entrada, em relação ao que estava escrito, até pedidos do próprio Miles, durante a gravação definitiva, de alterações repentinas do arranjo. Diante disso, pode-se chegar à conclusão de que o produto não foi resultado do acaso, mas que o próprio acaso é parte integrante da qualidade do jazz e de seus intérpretes.
Em uma performance jazzística tudo, absolutamente tudo, pode interferir. A regra do tema, base musical que sustenta os improvisos dos músicos, não é fixa. A resposta do público, a interação entre os artistas, tudo pode fazer com que a performance do jazzista seja da forma como será. Independente disso, ou justamente por isso, será única. Atentamos para a observação que não se trata de que cada artista será criativo a ponto de sempre se reinventar: o improviso exige do instrumentista um relacionamento íntimo com o instrumento e o domínio de bases em que a sua performance será devido às variações dessas bases e suas combinações no tempo (HOBSBAWM, 2021).
Os exemplos trazidos, com Miles David, John Coltrane, Connanbal, falam de um momento já consagrado do jazz. Que, inclusive, deixavam os músicos com capacidade de negociar com os estúdios e gravadoras em função do prestígio de sua arte. Mas, no presente trabalho, é necessário compreender o jazz como arte de fronteira identitária. Que seu nascimento é a música popular negra norte-americana. Fruto direto de pessoas sem formação musical e que tocavam instrumentos como amadores. Daí a ideia de que o jazz foi, primeiramente, falado: ele não nasceu nos conservatórios sob as regras da música já consagrada. Não havia, no início, quem o traduzisse e, colocado na forma do que pode ser considerado uma representação clássica da música, cabe perguntar se seria possível e, em que medida, a estaticidade da escrita seria suficiente para o fenômeno que o jazz incorpora. A tensão provocada pelo Jazz ao movimento do registro é justamente o ponto de encontro com a Ciência da Informação no sentido de que, em nossa área, trabalhamos a serviço da circulação da informação através da possibilidade da gravação.
Ao tratarmos, como Cientistas da Informação, do fenômeno informacional e da comunicação, atuamos em um campo que entende o seu objeto de estudo dentro de uma perspectiva cultural (ZINS, 2007), um ponto de vista que ao encontro do paradigma social da informação (ARAÚJO, 2014). Entretanto, em estudos formadores da área e dos paradigmas da Ciência da Informação, a noção de uma ciência que surge como produto do desenvolvimento tecnológico, constrói bases de pensamento voltadas para uma noção de aplicabilidade limitada ao fazer material, possibilitado por determinada forma de existência, como se fossem naturais e universais. É o caso das considerações de Le Coadic (2004) ao colocar os estudos da informação dentro de uma perspectiva gerencial de uma cadeia produtiva que enfatiza a informação como uma forma objetiva imanente consolidada em um suporte. Geralmente a objetivação da informação ressaltada pelo seu suporte, remete as suas possibilidades de representação em registro, manuseio e resgate. Esse resgate posto, dentro da cadeia gerencial, como um acesso ao recurso portador da informação. Essa perspectiva, onde o suporte representa o acesso à informação e garante a sua integralidade como valor é possível de ser lida como uma qualidade de reprodutibilidade. A grande onda tecnológica que cria o campo de estudo da Ciência da Informação é, em grande medida, uma revolução dos mecanismos de cópia e difusão de materiais produzidos. A disseminação dos conteúdos de conhecimento via sua reprodução ilimitada ou pela superação da aparente irreprodutibilidade. Esse movimento é descrito por McGarry (1999) a partir da criação da escrita alfabética fonética. Nele essa habilidade é a responsável pelo surgimento do raciocínio de forma objetiva. A ideia externa e independente do sujeito.
É notável que McGarry torne presente a questão das formas de comunicação e, portanto, ferramentas informacionais, que não ocorram sob o domínio do registro, como é o caso da tradição oral. Entretanto, há uma percepção de que esta seria, em algum grau, problemática para os interesses da Ciência da Informação. A sua efemeridade, a ausência do registro escrito, são vistas como um obstáculo ao aprofundamento científico. Dessa forma, pode-se inferir que a questão da documentação em suporte é o mecanismo de superação e evolução que possibilita um conhecimento objetivo sobre o fluxo da informação e, consequentemente, as manifestações irregistráveis, ou as partes irregistráveis das manifestações informacionais, não representariam uma possibilidade de estudo, mas o obstáculo a ser transposto na evolução humana na dimensão informacional e cultural.
Não se trata de um problema, evidentemente, a consideração da validade dos desenvolvimentos intelectuais baseados nos pilares do registro, entretanto, é uma questão que essa dimensão seja vista como um desenvolvimento linear e positivo da cultura humana, como se esta, a cultura, não fosse plural e não pudesse abarcar elementos não lineares que a constituem. A questão que o presente trabalho coloca é justamente trazer as expressões que ficaram à margem dessas tecnologias, desde o alfabeto até o computador, como responsáveis por dinâmicas próprias de elaboração de seus processos de manutenção, desenvolvimento intelectual e informacional. Como, tratando de um fenômeno cultural de comunicação, entender essas formas de existir, aqui representadas pelo jazz, que se estabelecem na fronteira? Como elaborar essas dinâmicas que operam fora do escopo ocidental da linha de montagem e produção toyotista, como a irreprodutibilidade, entendendo a diferença enquanto um valor relacional atribuído pelos públicos apreciadores e artistas mediadores ao objeto mediado ou manifestação cultural? Não há, nos estudos do campo, nenhum que se debruce sobre a categoria a irreprodutibiliade em tal contexto. Os trabalhos sobre documentação que se aproximam do problema, estão ligados ao campo da documentação artística da performance, mas sem o esforço de traçar, a partir do efêmero, uma forma de lidar com a transitoriedade de uma forma que não seja entendendo-a como um obstáculo a ser superado. Isso é relevante, pois se há manifestações culturais como a performance de jazz, que compõe vida cultural, logo pode-se defender o oposto daquilo que a literatura em Ciência da Informação tem defendido, isto é, ao invés de buscar-se uma captura e registro das manifestações culturais como a performance de jazz, apresenta-se esta como parte da vida irreproduzível por natureza e, por isso mesmo, valiosa.
E, se a justificativa da ausência de estudos parecer fraca, ou fora dos domínios da área, pode-se evocar o jazz novamente: trata-se de uma manifestação cultural de valor incontestável. Quantas manifestações de saberes serão igualmente reconhecidas e incontestáveis a partir do momento que encararmos o desafio de nos debruçarmos sobre elas? Vale destacar que o samba, o congo, o jongo, o candomblé, a pajelança e outras manifestações culturais capixabas também podem ser incluídas nesta análise, assim onde lê-se jazz pode ser lido samba, congo ou jongo, pois estas manifestações também possuem a mesma característica da performance do jazz.
Como objetivo para debater as questões assinaladas está “analisar a irreprodutibilidade enquanto dinâmica partindo do contexto do jazz e suas implicações para o campo da Ciência da Informação”. Isso será feito sem a pretensão de estabelecer um caminho absoluto, único e universal. Aliás, se considerarmos este trabalho uma manifestação da cultura científica específica e havendo preocupação com pensar na contra-hegemonia de uma cultura científica importada, logo este caminho significa desvalorizar o local em detrimento do global, estando em o oposto com a linha argumentativa adotada. Assim, considera-se que o presente objetivo se realizará na medida em que seu conteúdo puder sustentar novas questões e dúvidas ainda sem debate na Ciência da Informação.
2 AS NOTAS DO TEMA: METODOLOGIA
A presente pesquisa apresenta-se como uma pesquisa teórica, exploratória de caráter bibliográfico. O desenvolvimento da pesquisa ocorre a partir de leituras sistemáticas de trabalhos canônicos e ilustrativos do pensamento sobre o jazz e sobre o campo da epistemologia da Ciência da Informação. A exposição dos resultados ocorre pela exposição objetiva e inteligível das temáticas abordadas nas obras lidas e o desenvolvimento textual de suas correlações, permitindo ao leitor acompanhar o raciocínio e validá-lo, recorrendo às mesmas fontes.
3 EXPOSIÇÃO: O DESENVOLVIMENTO DOS SOLOS
A criação do campo de estudo da Ciência da Informação é fruto direto do desenvolvimento tecnológico e das necessidades de gestão operacional dos dados decorrentes da tecnologia de comunicação. Esse caminho, pela perspectiva das possibilidades de reprodução, vai ao encontro da análise da sociedade capitalista proposta por Benjamin (1994) ao tratar da reprodutibilidade técnica. Mesmo não tratando, no caso dos estudos informacionais, da obra de arte, a afirmação do filósofo alemão conversa perfeitamente com a noção de um desenvolvimento técnico permanente em torno das possibilidades de reprodução. A própria razão de ser da Ciência da Informação é baseada na lógica, colocada também por Benjamin em relação à obra de arte, da democratização do objeto por meio do seu acesso imediato: a recuperação da informação e o contato com seu usuário. Esse propósito, inclusive, se inicia, tecnologicamente, na invenção da imprensa e suas possibilidades de difusão pela reprodução.
Em Benjamin (1994) a questão da tecnologia está intimamente ligada aos modos de nossa sensibilidade. A reprodução como pilar da criação artística, o que ocorre como desenvolvimento avançado da gravura e alcança seu ápice com a fotografia, é a mudança para um novo paradigma de apreciação. O caminho que Benjamin nos deixa, para a Ciência da Informação, posto que o seu tema de trabalho é a arte e não a informação, está justamente na sua observação sobre a tecnologia como uma condição sobre modos de sentir. Quando estabelecemos essa ligação, olhamos a perspectiva evolucionista da cultura sob uma outra ótica que não a do futuro necessariamente melhor que o passado, mas entendendo que as possibilidades materiais de criação, recriação e reprodução, nos colocam em diferentes caminhos de apropriação dos objetos da cultura.
O primeiro ponto a ser colocado, então, nos nossos resultados é questão sobre a naturalização das possibilidades de reprodução enquanto valor. Tem-se como caminho natural do progresso a possibilidade de disseminação de objetos através da cópia, alcançando o seu pico na sociedade de massas (MARTIN-BARBERO, 2021). Há, consequentemente, o preciso embate profícuo para os estudos informacionais: considerar as dimensões não naturais desse feito, mas os procedimentos culturais. Isso quer dizer que, por mais que a Ciência da Informação seja fruto do século XX, há manifestações de fenômenos que desaguaram no seu interesse desde muito antes. Estes são pontes de análises teóricas sobre o as relações de poder que envolvem o fluxo informacional como um mecanismo de produção de informação (LE COADIC, 2004). Dito isto, a informação passa a ser definida como o objeto que ocupa um espaço determinado culturalmente por técnicas e ferramentas de um processo exclusivo que desconsidera manifestações humanas de conhecimento que, por algum motivo, não possam se enquadrar dentro dos pressupostos de ocupação dessas técnicas e ferramentas. O olhar acrítico sobre isso desconsidera, justamente, a possibilidade de ver a técnica, como proposto por Benjamin (1994), como uma possibilidade de sensibilidade, mas não como um imperativo. A observação que propomos no presente trabalho não é a negação da tecnologia, mas a percepção da ausência dessa como uma manifestação de nova sensibilidade, ou seja, de um novo mecanismo de manutenção da informação.
O jazz serve como base dessa questão por não conseguir, no todo, ser abraçado pela possibilidade da reprodução. A sua manutenção enquanto ritmo não se faz pela cópia, posto que a cópia não é uma cópia porque, intrinsecamente ao fazer jazzístico está a impossibilidade da reprodução. É como o Funes, de Borges (2007), que por não esquecer nada, não pode conceber que o cão que vê de frente, é o mesmo cão que vê de lado logo em seguida. Não pode haver, no jazz, uma cópia de uma música, mas somente a cópia de uma única apresentação que nunca será a presença inconfundível do músico, posto que o músico não é uma performance, mas sua imprevisibilidade. O que está dito nesse parágrafo é que, mesmo com a possibilidade do registro, algo está perdido. E o que fazer quando o que está perdido é a essência do objeto registrado? A apresentação gravada de Coltrane sob Bye Bye Black Bird, a partir do momento que pode ser escutada, da mesma forma, pelo infinito do tempo, deixa de ser jazz, porque é exatamente igual a anterior. Claro que a afirmação anterior é demasiadamente catastrófica, mas ilustra perfeitamente o grau de perda.
Entender a distância que há entre a manifestação de um determinado saber fazer, dentro de sua lógica própria, e seu enquadramento para o possível tratamento dentro das técnicas e operações do campo informacional contemporâneo, é dimensionar as perdas desses saberes ao serem representados dentro de uma lógica estranha e, consequentemente, poder agir para superar o abismo cultural que separa a prática informacional das minorias marginalizadas tais como populações negras, povos e comunidades tradicionais (quilombolas, por exemplo). É fundamental, nesse contexto, que na mediação exista sensibilidade à diversidade dos sujeitos e grupos em um mundo de identidades deslocáveis e conflitantes, onde a homogeneização globalizante é instrumento de poder contra as construções da dimensão local.
Essa distância de compreensão é relatada de forma contundente no ensaio O Jazz e a crítica branca, de Amiri Baraka (2023). A incompreensão dos comentários críticos sobre a música negra, notadamente o Jazz, é entendida como a impossibilidade da assimilação dos comentaristas brancos sobre um fazer que se propõe a ser a voz de uma comunidade negra. Baraka esmiuça como essa lógica do comentário é ligada às relações de poder, excluindo os negros da identificação com o jazz e, também, servindo como certa medida de legitimação de uma arte. Está colocado o paradoxo que aqui tratamos, na forma de alegoria entre o jazz e os sistemas de informação: as pessoas que possuem a autoridade social de agregar valor às manifestações, nada dela entendem e a diminuem ao invés de perceber nela mecanismos outros de realização de outros valores.
O resultado da mudança de postura, passando do olhar de falta ao olhar do valor ao que é próprio das expressões que estão à margem, é relatado na letra da música que dá título ao nosso trabalho: Ain't Got No/i Got Life de Nina Simone (1968). Nela, Simone divide a canção em duas partes: a primeira elenca as negativas em relação às posses do eu lírico. Não possui escola, tênis, dinheiro, deus. O segundo momento, separado justamente pelo verso que dá nome ao trabalho aqui exposto, é de afirmação das próprias características que, inclusive, a destacam como mulher negra. Possui sua boca, seu cabelo, seu corpo e, enfim, possui vida. É necessário que passemos a nos colocar para o diferente a partir do que ele possui, e não como se faltasse elementos. Estar presente na dinâmica informacional pressupõe uma série de acessos que a maioria do mundo não possui. Olhar pela falta é não entender que essas comunidades possuem, dentro de si, sistemas próprios e dinâmicas de comunicação originais que funcionam e, inclusive, podem nos ensinar alternativas de superação para os nossos problemas. É a isso que aqui resolvemos chamar, a partir do jazz, da irreprodutibilidade como dinâmica, ou seja, os arranjos que atuam na comunicação e perpetuação na margem da necessidade da reprodução.
4 CODA
Como indicado nos objetivos, não é objeto do trabalho a exploração minuciosa desses arranjos, mas colocar essa percepção como disparadora. Usando a bibliografia explorada, e ainda na analogia jazzística, pode-se entender a forma de perpetuação da tradição, por exemplo. A tradição comporta mudanças, apropriações, diversificações, como ocorre no jazz, e, paradoxalmente, a partir da ressignificação, e não da reprodução, pois continuidades de memória são estabelecidas e mantém-se, na sua existência de vida e no corpo de cada membro, que pode ser compreendido como um tipo não hegemônico de memorykeeping (WHITE, 2017), ou documentação. Entender esse valor, é entender que, de alguma forma, o registro extracorpóreo da tradição, ou seja, aquele que documenta e independe dos membros, não possui o mesmo valor da tradição viva. Por mais que a tradição tenha seus próprios embates e limitações, seria arrogante pensar que o nosso fluxo informacional ocidental também não possui seus próprios desafios.
Expandir os campos de investigação de uma determinada área é um esforço de olhar sistematicamente sobre o próprio fazer. No estudo apresentado, a trajetória, exposta na forma de texto encadeando referências e ideias, buscou-se sustentar a reflexão sobre o alcance da forma como a Ciência da Informação compreende o seu próprio objeto de estudo e, consequentemente, propor um novo lugar de onde partir. O ponto de partida proposto, já justificado abstratamente na introdução, adiciona as questões sobre o lugar de construção da informação como lugar de exclusão. A partir do entendimento do fazer científico informacional como um fazer cultural, ou seja, elaborada sobre critérios e símbolos que dão sentido ao próprio fazer, as outras manifestações podem ser vistas como alternativas.
Tornar o outro uma alternativa, mais um caminho de como conhecer, nos coloca com a possibilidade de compreender o saber do outro, ou a informação do outro, através do olhar que lhe é próprio. Como ler Ailton Krenak (2019) sem entender que a terra fala? Que o rio fala? Sem entender que isso não é uma analogia ou uma metáfora, mas um fato. Um fato que, talvez, nunca será registrado ou receberá outro suporte que não seja a própria terra ou o próprio rio. Como ler o Odu do babalaô se o Odu foi feito para ser dito pelo babalaô? Em um contexto específico, somente com o consulente, porque o sentido é estabelecido em um momento, único e irrepetível? Como considerar esse saber, que acontece, dentro da CI? Como ler David Kopenawa (KOPENAWA; ALBERT, 2015) sem entender que são espíritos falando através de um xamã? O livro, por mais que tente ser explícito e honesto, é incapaz de poder registrar o xamanismo. O suporte da fala dos espíritos é transitório. É irreproduzível, porque é o xamã. O xamã, talvez, se perpetue, por meio de outro xamã. E se é assim, há aí uma forma de comunicação informacional que sustenta e se baseia, também, na irreprodutibiliade, mas que não coloca na apropriação um entrave, mas uma sobrevivência. A existência da comunicação em um sistema que não é objetivo, mas é vivo.
REFERÊNCIAS
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BARAKA, Amiri [LeRoi Jones]. Black Music: free jazz e consciência negra 1959 – 1967. São Paulo: Sobinfluência, 2023.
BELLOTTO, Heloísa L. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: brasiliense, 1994.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Cia das letras, 2007.
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KAHN, Ashley. Kind of blue: The making of the Miles Davis masterpiece. Cambridge: Da Capo, 2007.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LE COADIC, Yves François. A Ciência da informação. Brasília: Briquet de Lemos, 2004.
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MCGARRY, Kevin. O contexto dinâmico da informação: uma análise introdutória. Brasília: Briquet de Lemos, 1999.
SIMONE, Nina. 'Nuff Said!. New York: RCA Victor, 1968. 1 LP.
WHITE, Kelvin L. Race and Culture. In: GILLILAND, Anne J.; MCKEMMISH, Sue; LAU, Andrew, J. (Ed.). Research in the archival multiverse. Clayton, Victoria: Monash University Publishing, 2017.
ZINS, Chain. Conceptions of information science. Journal of the American Society for Information Science and Technology, v.58, n.3, p.335-350, 2007. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/220434422_Conceptions_ of_information_science. Acesso em: 24 de out. 2023.
[1] Discente de mestrado no PPGCI da Universidade Federal do Espírito Santo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo. Graduado em História e produtor cultural do campo da literatura.
[2] Docente de Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal do Espírito Santo e professora Dr.ª do PPGCI da mesma universidade.
[3] Docente de Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo e professor Dr. do PPGCI da mesma universidade.