O ENTENDIMENTO DE JUSTIÇA SOCIAL COMO EMERGÊNCIA DA DESORDEM INFORMACIONAL E COMO A ATUALIZAÇÃO ININTERRUPTA DESTE ENTENDIMENTO IMPREGNA OS SIGNOS

 

Suely Figueiredo[1]

Universidade Federal do Tocantins

suelyfigueiredo@uft.edu.br

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Resumo

Tendo em vista que a cognição humana é sistemicamente orientada para configurações que favoreçam uma ordem social de maior adaptabilidade e resistência à degenerescência - orientações essas filosoficamente resumidas na busca pelo certo, harmonioso e justo - podemos inferir que a emergência da justiça social se dá continuamente a partir da desordem informacional, ou seja, da ressignificação simbólica que caracteriza a construção e desconstrução dos signos linguísticos. Dada a compreensão de que os conceitos simbólicos estão em constante elaboração, e sendo a justiça social um conceito inexorável à experiência humana, percebemos que todos os ajustes de significado de justiça social só podem emergir das atualizações impostas por cada uso de cada indivíduo a cada instante que nunca coincidem. Para argumentar a favor dessa hipótese, parte-se de uma constatação que perpassa quase toda a filosofia a respeito de sermos seres que reagem exclusivamente à lógica, à estética e à ética e do reflexo que tal constatação projeta em filósofos da linguagem como Peirce e Davidson, no filósofo da informação Luciano Floridi e em cientistas cognitivos como Deacon e Nicolelis. Sendo assim, a compreensão do que vem a ser justiça social brota de uma semiose da desordem. Não negamos que toda desordem está complexamente interligada a uma ordem – no caso, significado – mas consideramos relevante o fato de tal ordem ser modelada, ininterrupta e caoticamente, por inforgs e níveis de abstração os mais variados possíveis.

Palavras-chave: desordem informacional; inforg; justiça social; semiose.

Abstract

Bearing in mind that human cognition is systemically oriented towards configurations that favor a social order of greater adaptability and resistance to degeneracy - orientations that are philosophically summarized in the search for what is right, harmonious and fair - we can infer that the emergence of social justice occurs continuously through starting from the informational disorder, that is, from the symbolic resignification that characterizes the construction and deconstruction of linguistic signs. Given the understanding that symbolic concepts are in constant elaboration, and social justice being a concept inexorable to human experience, we realize that all adjustments in the meaning of social justice can only emerge from the updates imposed by each use of each individual at each moment. that never coincide. To argue in favor of this hypothesis, we start from an observation that permeates almost all philosophy regarding the fact that we are beings that react exclusively to logic, aesthetics and ethics and the reflection that this observation projects on philosophers of language such as Peirce and Davidson, information philosopher Luciano Floridi and cognitive scientists such as Deacon and Nicolelis. Therefore, the understanding of what constitutes social justice arises from a semiosis of disorder. We do not deny that all disorder is complexly interconnected with an order – in this case, meaning – but we consider relevant the fact that such order is modeled, uninterruptedly and chaotically, by inforgs and levels of abstraction as varied as possible.

Keywords: information disorder; inforg. social justice; semiosis.

 

 

1 INTRODUÇÃO

Argumentamos, aqui, a favor da tese de que o que entendemos por justiça social vincula-se a um significado em contínua elaboração, elaboração esta que a priori não vem de conceitos filosoficamente estabelecidos ou definições de dicionário, mas de uma dinâmica complexa, emergente da desordem informacional, chamada semiose.

Se assim for, podemos inferir que, sendo a semiose processual e intrinsecamente teleodinâmica, já que algo em elaboração sempre visa um outro estado, então ela tem uma direcionalidade espontânea que podemos associar a um telos, a um fim, sem acrescentar nenhuma intencionalidade.

Tal direcionalidade, a finalidade semiótica, é a construção do significado. A cada uso por cada indivíduo a cada instante, os significados dos signos linguísticos são atualizados, justificando a máxima de que a linguagem é uma instituição viva. Signos são quaisquer elementos do contexto que representam algo para alguém sob algum ponto de vista. Atualizações de signos são incorporações de novas informações ambientais.

No caso dos signos cujos referentes são objetos materiais, as atualizações refletem as mais recentes manipulações e associações sobre a materialidade. No caso dos signos simbólicos, como detalharemos mais adiante, as atualizações também são racionalmente orientadas, só que por atratores abstratos que, embora dispensem a materialidade, têm direcionalidades explícitas. Esses atratores, considerados esferas axiológicas pelas quais nos movimentamos, ou seja, o lugar dos valores simbólicos, têm sido caracterizados pelas ciências humanas como as dimensões lógica, estética e ética a que todos pertencemos.

A justiça social é, reconhecidamente, o conceito mais caro de nossa dimensão ética. Toda cognição humana obrigatoriamente inclui uma compreensão sobre justiça e sobre sociedade pois a semiose que praticamos, que no rigor do conceito é uma teleossemiose, realiza, por natureza, as funções de elaborar significados 1- cada vez mais certos, 2 - cada vez mais belos e 3 - cada vez mais justos. Todos precisamos estar certos, ter beleza (no sentido de ritmo e harmonia) e ser justos, mas não é possível uma conclusão universal sobre o que é certo, belo e justo, exatamente porque são bilhões de entendimentos em contínua elaboração.

A justiça, junto à certeza e à beleza, como nos aponta a história da filosofia ocidental, são estruturantes da teleossemiose, ou seja, orientam a direcionalidade da cognição simbólica a partir de motivos evolucionários e adaptativos que, em última instância, promovem o sucesso dos sistemas orgânicos em questão. Na espécie humana, por uma mutação informacional específica que o bioantropólogo e cientista cognitivo Terrence Deacon chamou de insight simbólico (1997), praticamos uma cognição simbólica obrigatoriamente coletiva, distribuída, estendida entre as mentes e o ambiente que dela participam, sendo a justiça social a extensão da autoestima à essa mente distribuída.

Não é difícil inferir que, mesmo que o conceito de justiça seja reelaborado a cada uso pela turbulência da desordem informacional, dado que cada projetista conceitual que o usa o faz de um ponto de vista individual e num dado instante, sua reelaboração seja menos influenciada pelo debate acadêmico sobre justiça social do que pelos incontáveis sentidos de justiça e de sociedade que transitam pelo senso comum.

Apesar disso, temos motivos para crer que, por serem as modelagens complexas e atraídas por um entendimento de justiça vinculado a equilíbrio, segurança, e sintonia, tal reelaboração tenderá a adequar o entendimento de justiça social aos anseios das pessoas em diferentes configurações sociais, o que caracteriza uma desordem informacional.

Que fique claro que o significado advindo dessa adequação se configurará por emergência, e não por algum tipo de operação algorítmica.

Para aprofundar tais ideias, iniciemos pela explicação do que vem a ser a semiose.

 

2 SOBRE SEMIOSE

A semiose é o processo pelo qual um signo atinge um significado no instante e no contexto em que é utilizado. Peirce, filósofo, linguista e matemático do final do século 19 e considerado o pai da filosofia analítica da linguagem, definiu a semiótica como a ‘doutrina da natureza essencial e fundamental de todas as variedades de possíveis semioses’ (1980). Para ele, além de ter aspectos fenomenológicos e de teorizar sobre tipos de ligações com significados, a semiótica une signo e referente, seja ele concreto ou abstrato, num turbilhão de relações e intenções que configuram o que chamou de interpretante.

 

Um signo é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria ne mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais bem desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se no lugar desse objeto, não sob todos os aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que tenho, por vezes, denominado fundamento do signo. (PEIRCE, 1972, p.94).

 

Peirce investiu pouco no aspecto dinâmico e direcionado de um signo, mas sua teoria aponta para uma relação entre verdade e consenso de mentes preparadas.

 

“Permita-se a qualquer humano ter informação suficiente e exercer seu pensamento o bastante sobre qualquer questão, e o resultado será que ele chegará a uma certa conclusão determinada, a qual é a mesma que seria alcançada por qualquer outra mente. [...] A opinião humana tende, universalmente, num longo percurso...à verdade...Existe, então, para cada questão, uma resposta verdadeira, uma conclusão final, ao redor da qual a opinião de cada homem está constantemente gravitando” (PIERCE apud KIRKHAM, 2003, p.120).

 

Importante ressaltar que, quando Peirce faz a verdade de uma sentença corresponder à convergência de opiniões de especialistas, ele está apontando para um cientificismo e não para o senso comum.

A ideia de nosso interesse, aqui, é a da significação tratar-se de um processo complexo, não restrito a linearidade, mas que, apesar disso, exibe tendências intrínsecas. De um ponto de vista naturalista e evolucionista, essas tendências buscam a sintonia entre as características dos ambientes/objetos exteriores e a possibilidade de percepção, memorização, associação e comunicação dessas características por uma mente humana.

Para se compreender a semiose em toda a sua complexidade temos que nos debruçar tanto no funcionamento da cognição humana como nas finalidades do sistema compartilhado por mentes e natureza.

 

2.1 COGNIÇÃO HUMANA

Toda cognição é sistemicamente orientada para, a partir da percepção, ser capaz de realizar ações as mais afinadas possíveis às intenções de quem a realiza. Possui a função de simular uma antecipação, utilizando-se da memória e da capacidade de imaginar possibilidades iminentes e futuras, que orienta e dá intencionalidade à ação.

De forma geral, animais com cérebro têm, em algum grau, esse comportamento. A especificidade da cognição humana é ser capaz de processar signos que não dependem de uma percepção sensorial, signos abstratos, que só existem entre as mentes humanas. A esses signos Deacon chama de simbólicos, dando outro recorte ao que Peirce chamou de signo símbolo. Para Peirce “um símbolo é um objeto perceptível[2] cujo caráter representativo consiste precisamente em ele ser uma regra que determinará seu interpretante. Todas as palavras, sentenças, livros e outros signos convencionais são símbolos” (PEIRCE, 1972, p.126).

  Ou seja, Peirce caracteriza os signos simbólicos como aqueles que se ligam a seus significados por convenção, e há até momentos em que aproxima convenção de uso, afinal ele é um pragmaticista, mas não o suficiente para abolir a noção, já que convenções são sempre estaques e linguagem nunca são.

 

Os símbolos não podem ser adquiridos um de cada vez, da mesma forma que outras associações aprendidas podem, exceto depois que um sistema simbólico de referência for estabelecido. Um sistema logicamente completo de relacionamentos entre tokens[3] de um conjunto de simbólico deve ser aprendido antes que a associação simbólica entre qualquer token simbólico e um objeto possa ser determinada. A etapa de aprendizagem ocorre antes do reconhecimento da função simbólica, e esta função só emerge de um sistema, não é investida de nenhum par signo-objeto individual. (DEACON, 1997, p. 92-93)

 

Para Deacon, um signo simbólico é aquele que se descola da materialidade do ambiente e usa as estratégias da linguagem para poder ser processado, memorizado e comunicado mesmo que com uma fidelidade não igual à dos objetos concretos, posto que estes permitem a conferência coletiva no mundo material, mas com fidelidade suficiente para criar um campo semântico em grande parte compartilhado e muito valorizado evolutivamente.

A divisão racional de tarefas, a modificação do ambiente a seu favor e a extensão de cuidados e proteção ao grupo, ações provenientes da simbolização, favoreceram de tal forma a sobrevivência da espécie que foram introjetados em tendências comportamentais e sociais. Há controversia sobre a herança de instintos ter ou não base genética, mas é amplamente aceito que a linguagem simbólica veicula essa herança, já que não há ser humano de posse de plenas faculdades mentais que não tenha herdado uma língua e que não queira estar correto, em harmonia e em sintonia, mesmo que de forma distorcida.

Embora seja impossível definir um signo simbólico a não ser por outros signos simbólicos, os modos de difusão do significado compartilhado são suficientes para caracterizar uma comunicação bem-sucedida. Parafraseando Cecília Meireles em seu verso mais famoso do Romanceiro da Inconfidência, o símbolo é “o sonho que o humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”[4].

A semiótica dos signos simbólicos nos é especial não só por ser exclusiva de nossa espécie, mas por inaugurar em nós um funcionamento mental estendido. Ou seja, um símbolo para existir e se configurar necessita participar da teia linguística humana, do compartilhamento informacional, do momento histórico do conhecimento, da cognição ambiental. Segundo o filósofo L.H. Dutra, uma pessoa nasce, aprende uma língua e aí entra na cognição, ou seja, a mente é um fenômeno ambiental.

 

Pessoas são realidades psíquico-sociais possíveis graças a determinadas condições sociais, mais especificamente, determinado tipo de instituições, entre as quais a mais central é a linguagem verbal. Pois é por meio da aquisição de uma língua natural que os indivíduos humanos ganham lugar na sociedade e podem realizar no nível individual sua própria versão dos conceitos e valores que são os condicionantes de sua ação em geral e de sua percepção da realidade. (DUTRA, 2018, p. 296)

 

Ainda sobre questões cognitivas, podemos observar que o processamento dos signos simbólicos parte dos critérios de modelagem informacional a que estão submetidos os signos concretos e projeta parâmetros semelhantes para os objetos abstratos, parâmetros capazes de sustentar o compartilhamento do conteúdo semântico de forma eficiente ou, pelo menos, realizar a convergência semântica minimamente necessária para que as intenções comunicacionais se realizem de forma satisfatória.

O filósofo Donald Davidson, no artigo Communication and Convention, explica por que, apesar das regras e convenções serem parte estruturante de uma linguagem simbólica, a interpretação de um signo vai muito além disso.

 

Não duvido que toda a comunicação linguística humana mostre um grau dessa regularidade. [...] tenho dúvidas, porém, tanto sobre a clareza da afirmação quanto sobre sua importância para explicar e descrever a comunicação. A clareza é questionada porque é muito difícil dizer exatamente como as teorias do falante e do ouvinte para interpretar as palavras do falante devem coincidir. Eles devem, é claro, coincidir depois que o enunciado tiver sido feito ou a comunicação será prejudicada. Mas, a menos que coincidam antecipadamente, os conceitos de regularidade e convenção não têm valor definido. No entanto, o acordo sobre o que um falante quer dizer com o que diz pode certamente ser alcançado, mesmo que o falante e o ouvinte tenham diferentes teorias avançadas sobre como interpretar o falante. (DAVIDSON, 2001, 278)

 

E destaca, pela vertente pragmática de sua filosofia, a parte não algorítmica da comunicação linguística presente nos componentes analógicos inerentes a qualquer comunicação

 

A razão disso é que o falante pode muito bem fornecer pistas adequadas sobre o que ele diz, e como e onde o diz, para permitir que o ouvinte chegue a uma interpretação correta. É claro que o falante deve ter alguma ideia de como o ouvinte está apto a fazer uso das pistas relevantes e o ouvinte deve saber bastante sobre o que esperar. Mas é difícil reduzir esse conhecimento geral a regras e muito menos a convenções ou práticas. (DAVIDSON, 2001, 278)

 

Essa perseguição de pistas que envolve falantes e ouvintes são os ingredientes a mais da semiose para além da mera vinculação de signo e significado convencionado. Toda essa ação cognitiva para se chegar a um conteúdo comunicado que contemple as intencionalidades envolvidas nos remete à modelagem informacional que praticamos de forma compulsiva, de forma orgânica, sistêmica e, portanto, teleodinâmica.

Quando nos referimos à modelagem informacional estamos reivindicando a concepção de mente do filósofo da informação Luciano Floridi. Para Floridi

 

Os agentes humanos podem saber que não são nem zumbis nem agentes artificiais, mas inforgs conscientes. [...] Humanos compartilham com outros agentes informacionais uma realidade feita de informação. Defendo [...] uma abordagem informacional do realismo estrutural, segundo a qual o conhecimento do mundo é o conhecimento das suas estruturas. O compromisso ontológico mais razoável acaba por estar em favor de uma interpretação da realidade como a totalidade de estruturas interagindo dinamicamente uma com o outras. (FLORIDI, 2011, p.316)

 

A citação deixa claro que, para Floridi, somos projetistas informacionais - inforgs – que compulsivamente organizamos o entorno, estruturamos nossas percepções em linguagens compartilháveis, em signos cuja interpretação esteja ao alcance de outras mentes, e fazemos isso através de um processo de modelagem semântica das informações capturadas. As diferenças obrigatórias dos resultados vêm do fato de cada um de nós realizar a modelização a partir de um nível de abstração único.

Sabendo-se que cada ser humano tem uma genética única e uma vivência, experiência, conhecimento e visão de mundo particulares, não é difícil perceber que cada um de nós está em um nível de abstração singular. No entanto, a experiência objetiva com o mundo e com outros agentes afina os processos de modelização fazendo-os convergirem, de forma sistêmica, para conteúdos semânticos compreensíveis. Aufere-se daí que a modelização precisa perseguir padrões, precisa ser reconhecida por outros inforgs em outros níveis de abstração, caso contrário o entendimento estaria comprometido.

A racionalidade é, por muitos, considerada a baliza desse entendimento. A cognição humana, uma vez inserida na mente ambiental, trabalha para pôr em linguagem – ordenar racionalmente - o máximo de informações possível. Porém, parte da experiência humana não cabe em estruturas racionais. Não podemos transmitir, via linguagem, como é nossa dor ou como sentimos alegria. Para tal apelamos para o uso estético das linguagens, como faz a literatura, e para demonstrações de sentimento e outras ações expressivas.

Ao nascermos, embora percebamos o ambiente por estesia, ainda não estamos habilitados a organizar racionalmente tais percepções. Faltam conexões neurais e rotas de fluxos informacionais que serão delineados com a socialização e o aprendizado de uma língua. Ao ingressarmos na mente ambiental, fluxos de pensamento linguísticos, racionais, vão reconfigurando a cognição – processo que se estende até a juventude, talvez até a morte –, e isso é fundamental para que os humanos possam dispor, da forma a mais plena possível, das funções cognitivas que mutações, adaptação e sorte os equiparam.

Sobre os padrões dos signos simbólicos, é de se esperar que, embora não se esgotem em modelos racionais, símbolos não renunciam à racionalidade. Padrões simbólicos sempre buscam, a partir de cada nível de abstração, o que mais faz sentido para a manutenção de algum ordenamento. Às tendências comportamentais, aos chamados instintos, a certas propensões que exprimimos e que Peirce chamou de abdução - uma terceira forma de se relacionar com as informações, sem ser por dedução ou indução, que comunica intencionalidade -, subjazem propensões da humanidade enquanto sistema. Dada a abrangência epistemológica necessária para a concepção e análise de tais propensões, nossa melhor estratégia é uma incursão filosófica.

 

2.2 O LÓGICO, O ESTÉTICO E O ÉTICO

No campo simbólico, o conhecimento mais seguro a nosso alcance já se expressava nas dimensões humanas propostas por Platão – o bom, o belo e o justo - que, revisitadas, remodeladas, abordadas de forma metafísica, fenomenológica, racionalista, antropológica e sociológica, perpassam pelo entendimento e podem ser identificadas hoje como os três únicos tipos de informação que somos equipados para processar: a lógica, a estética e a ética. 

Cabe aqui um esclarecimento sobre o que, cognitivamente, significa processar informações. A cognição recebe informações dos sentidos, da imersão do corpo no ambiente, da memória e de influências do próprio sistema, e reorganiza essas informações a partir do que considera ordem. A principal função orgânica da cognição é orquestrar ações antecipatórias que evitem a degenerescência orgânica e o caos ambiental.

Porém, dado os oito bilhões de humanos e seus níveis de abstrações que convivem contemporaneamente, só podemos estimar, pela matemática dos sistemas complexos, o que cada um considera ordem. A estimativa mais atenta, pode-se dizer assim, é a filosófica, que tem como método esclarecer o máximo possível os conceitos que usa ao oferecer suas reflexões, reflexões estas interessadas no mais amplo, abrangente e confiável conhecimento humano.

Tomando como base conceitos filosóficos, e já que significados simbólicos nunca param de ser remodelados, podemos categorizar que os ordenamentos cognitivos que realizamos, sistemicamente falando, tornam todo e qualquer fluxo informacional:

a)  Mais lógico, capaz de vincular premissas e conclusões em relações de certeza;

b)  Mais estético, capaz de expressar, de forma mais satisfatória, harmonia, equilíbrio, simetria, ritmo, ou seja, estender as características e anseios do nosso organismo ao ambiente; e

c)  Mais ético, pois, se a mente individual experimenta instintos de cuidados com a preservação de seu organismo, com a construção de um entorno que favoreça a vida e com a manutenção de uma situação de segurança e conforto, a mente ambiental tem esses mesmos anseios só que socialmente estendidos, distribuídos em noções de justiça social entre as consciências e instituições que a compõem. 

O argumento ‘ser justo’ tem um locus diferenciado no entendimento humano, ocupa o lugar de finalidade do raciocínio. Basta observar como todas as narrativas a favor de liberdade, igualdade, solidariedade e de todos os valores sociais têm como fundamento último serem mais justas.

Com isso queremos considerar que, embora a reelaboração do que seja justiça social emerja da teia de utilizações do termo, podemos vislumbrar que a teleossemiótica envolvida tem como um dos parâmetros a dimensão axiológica da justiça que, junto à lógica e à estética, formam o campo simbólico inevitável à cognição humana. São os espaços informacionais que valorizamos dentro dos quais flui toda a semiose que praticamos.

 

2.3 ARTICULANDO TELEOSSEMIOSE E DIMENSÕES HUMANAS

Cada vez que um símbolo referente à justiça social é utilizado por um falante, seu uso se dá num ambiente informacional inédito, o que obriga que as associações referenciais sejam atualizadas. Verifica-se aí uma reelaboração de significado a partir de uma desordem informacional, pois não há regras nem controle das informações disponíveis que se apresentam àquele que usa o termo no instante que o faz. O ato do falante optar pelo uso do símbolo já implica sua atualização: a decisão de utilizá-lo no ineditismo de uma situação traz consequências, concretas embora pulverizadas, para a remodelação de seu campo semântico.

Uma curta retrospectiva nas ciências humanas deixa claro o quanto é fundamental para nós as dimensões simbólicas que nos guiam. Além das já citadas preocupações de Platão com o bom, o belo e o justo, que abarcam o certo e o verdadeiro, as enunciadas virtudes e as várias morais foram tema de debate dos estoicos aos existencialistas.

Tanto o bem como as virtudes e a moral configuram-se ordenamentos que elaboramos para dar vazão a nossa sede de justiça, para cumprir disposições éticas da função cognitiva. O conceito de justiça, como queremos argumentar, é um dos padrões que guiam nossas conexões mentais e não pode ser evitado, embora todo tipo de associação, se pensarmos complexamente, pode lhe ser atribuída, como por exemplo, alguém concluir que justo é a eliminação de tudo e todos. Porém essa associação dificilmente se estenderia à maioria pois, pela mesma complexidade que antes reivindicamos, embora sempre existam fluxos de degenerescência, eles não podem caracterizar o sistema, caso contrário nem haveria um sistema.

Na saga viva, operante e histórica do Homo sapiens, grupos que adotaram comportamentos afinados à harmonia da convivência – à ética - foram, não de forma linear, mas sistemicamente, mais bem sucedidos.

O neurocientista Miguel Nicolelis nos explica um fenômeno que muito pode servir de suporte à argumentação que aqui desenvolvemos. Trata-se do acoplamento cérebro-cérebro, também chamado sistema super-brain, ou ainda, na nomenclatura do próprio Nicolelis, brainet: a sintonia, por espelhamento neuronal, entre cérebros através da linguagem.

Outros mamíferos, como chimpanzés e lobos, também são capazes de entrar em brainet na execução de uma tarefa em que cada um deve desempenhar um papel. Na iminência da ação necessária, inicia-se uma sincronização cerebral entre os envolvidos que, em poucos segundos e com apenas algumas tentativas fracassadas, estabelece cooperação suficiente para a ação ser executada. Nos seres humanos, e só conosco, esse processo pode ser estabelecido também pela linguagem:

 

Uma brainet baseada na linguagem se estabelece inicialmente porque a produção, a transmissão e a interpretação de sinais linguísticos analógicos são mediadas por oscilações cerebrais ocorrendo no mesmo intervalo de frequência tanto no cérebro do orador como no do ouvinte. Para todos os propósitos e os efeitos, portanto, essa superposição de frequência é o primeiro passo para o estabelecimento de uma conexão entre cérebros em um computador orgânico distribuído - a brainet. (NICOLELIS, 2020, p. 268. Grifo nosso)

 

O fato de estabelecermos brainets a partir da linguagem, confirma a tese filosófica de que a especificidade humana é a utilização de informações simbólicas. Isso nos faz processadores e construtores de um tipo de informação/conhecimento que não está disponível para nenhuma outra ordem do cosmo. É um incremento processual que nos coloca, não enquanto serem humanos mas enquanto sociedade, na vanguarda do poder de influenciar a complexidade ambiental de tal forma a diminuir a incerteza e ampliar a ordem.

Na ordem temos mais capacidade de predição, mais articulação para agir e maior chance de sobrevivência, adaptação e evolução. Nesse sentido, dentro de uma epistemologia da complexidade, somos os agentes da auto-organização com a maior possibilidade de atuação. Nossas ferramentas simbólicas rompem os limites do ‘aqui e agora’ e nos possibilita fazer projeções em outros tempos e lugares. Essas projeções implicam acoplamento cerebral e parâmetros de processamento compartilhados. Estamos mais uma vez defendendo aqui que, dentro dos propósitos que nos são factíveis inferir, a justiça social é um dos eixos estruturais desse padrão social.

 

3 FUNÇÃO SEMIÓTICA E EMERGÊNCIA SIMBÓLICA

Cabem algumas considerações sobre o porquê de, apesar da função semiótica ter sido analisada em termos de ocorrências múltiplas e dispersas, é necessário deixar claro que a atualização dos significados se dá por emergência e por consequência algorítmica.

O principal motivo é porque informações que não podem ser postas em linguagens também participam do processo. Não seria possível estabelecer uma rotina lógica, ou seja, escrever um programa de máquina que simulasse a semiose pois comunicações realizadas pela imersão do organismo no lugar e no momento em que usa um símbolo, ou seja, informações estéticas, não-linguísticas e apenas tangencialmente racionais, impregnam a teleodinâmica de significação.

Não é possível perceber a curto prazo a dinâmica renovadora da semiose, mas bastam algumas décadas para que a trajetória de atualizações de uma língua possa ser vislumbrada, mesmo que parcialmente. Vide o estranhamento que experimentamos ao ler algo escrito no passado. Porém, essa trajetória nunca poderá ser descrita como uma função algorítmica, e sim como uma função orgânica. A diferença está justamente no fato de a função matemática chegar a resultados previsíveis por dedução e cálculo, e as funções orgânicas atingirem seus intuitos por emergência.

Não há explicação para qualquer órgão do corpo, por exemplo, um coração ou um rim, realizarem o que realizam a não ser por emergência. Órgãos têm funções que favorecem uma ordem hierarquicamente superior. É o que fazem os componentes intracelulares que dão vida às células, as células que mantêm os tecidos, os tecidos que mantêm órgãos e os órgãos que trabalham para um ser vivo. Todas essas funções orgânicas promovem a emergência de um outro self. Podemos ter todos os elementos materiais envolvidos na digestão, por exemplo, e não termos uma digestão por falta de um funcionamento que não é gerado por causalidade, mas por emergência. É a diferença entre vida e morte.

 

 

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há um otimismo subliminar ao se demonstrar que a justiça social sempre importará para os seres humanos por ser um dos eixos norteadores da cognição simbólica que praticamos. Significa que as gerações futuras terão que se debruçar sobre o tema, e concluir, a partir da realidade socioambiental que estiverem vivenciando, o que pode promover e, quiçá, garantir a melhor configuração de cooperação entre nós.

Aprimorar a cooperação e administrar a competição parece, no contexto atual, o que mais se afina aos valores epistemológicos, estéticos e éticos da mente ambiental da qual fazemos parte. Mente ambiental não é uma expressão metafórica para nos referirmos às sociedades. Como vimos, o estabelecimento de uma linguagem simbólica faz de nós elementos de uma engrenagem maior, de uma instituição social que, apesar de emergir do conjunto de nossos comportamentos individuais, exerce um papel hierárquico sobre nós, nos obrigando a decidir, pare além do que consideramos certo e belo, o devemos ou não fazer.

Essa questão nos acompanha assim como a decisão de processar, reprimir ou repassar um pulso elétrico acompanha cada um de nossos neurônios. E, assim como eles seguem padrões que favorecem um sistema hierárquico superior - a mente consciente -, nós também somos fonte e alvos de um sistema hierarquicamente superior: as sociedades simbólicas em seus nichos. Essas considerações facilitam a compreensão do que denominamos, em todo o artigo, de sistema complexo ao qual pertencemos.

O fato de valorizarmos a dimensão simbólica como valorizamos, a ponto de cometermos mais homicídios por motivos simbólicos do que por motivos materiais, nos atesta que estamos aptos a pertencer ao sistema com maior capacidade de provocar alterações intencionais em todo o universo que conhecemos. Só sociedades humanas constroem pirâmides, fazem viagens espaciais, criam ciências e religiões. Indivíduos, para contribuírem com suas consciências e intenções, necessitam, primeiro, pertencer à mente ambiental.

Alterações intencionais são, no fundo, alterações que exibem valores transcendentes a nós enquanto indivíduos. A humanidade age como um sistema capaz de promover a ordem na grande desordem do cosmo. Como vimos, seríamos, na epistemologia da complexidade que compreende o universo como uma orquestração da desordem da qual emergem a ordem e a auto-organização, justamente os elementos que agenciam a auto-organização.

As aspirações por eficiência, por exemplo, claramente não são nossas, são dos sistemas a que pertencemos, seguem a tendência da natureza de realizar o máximo possível de processamento de informações com o menor dispêndio de emergia. São leis básicas da física e da química que simplesmente adotamos como intencionais.

Esse é o pano de fundo sobre o qual traçamos a tese semiótica da atualização dos conceitos simbólicos a partir das dimensões do lógico, do estético e do ético que refletem, de forma apreensível, a propensão pelo igualável, equiparável, congruente, equilibrado, simétrico, rítmico, harmonioso e uma extensão sem-fim de mimesis que favorecem a modelagem, semantização, memorização, associação e comunicação.

Saber que a justiça ajuda a estruturar o pensamento nos dá uma visão dos valores simbólicos para além de convenções e arbitrariedades. Há uma teleossemiose contaminada pela trajetória evolutiva da simbolização que aponta para a justiça social como um dos padrões de cognição complexamente modelado/semantizado e consideramos relevante o fato disso ser realizado, ininterrupta e caoticamente, por inforgs e níveis de abstração os mais variados possíveis.

Assim, apesar da grandiosa reflexão acadêmica sobre o conceito de justiça, justiça social, moral, bem e ética, o volume e quantidade de significados modelados pela prática e pelo uso, característico de uma desordem informacional, parece ser mais impactante para a semiose. Eis o entendimento de justiça social como emergência da desordem social  e como a atualização ininterrupta deste entendimento impregna os signos

 

REFERÊNCIAS

DAVIDSON, D. Inquire into truth and interpretation. New York: Oxford/NY University Press, 2001.

DEACON, Terrence. Incomplete nature how mind emerged from matter. NY/London: W.W. Norton & Company. 2012.

DEACON, Terrence. The symbolic species, the co-evolution of language and the brain. NY/London: W.W. Norton & Company, 1997.

DUTRA, L. H.: Autômatos geniais. Brasília: UNB, 2018.

FLORIDI, L. The Philosophy of Information. Oxford: Oxford Press, 2011.

KIRKHAM, R. Teorias da verdade. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2003.

NICOLELIS, Miguel. O verdadeiro criador de tudo. São Paulo: Planeta, 2020.

PEIRCE, Charles Sanders.  Semiótica e filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. São Paulo: Editora Cultrix, 1972.

PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos. 2. ed. São Paulo: Editora Abril, 1980. (Coleção Os Pensadores).



[1] Doutora em Filosofia pela UFSC, docente da Universidade Federal do Tocantins, pesquisadora em Filosofia da Informação e integrante do CIDAD/BU/UFSC - Comissão de Confiabilidade Informacional e Combate à Desinformação em Ambiente Digital. suelyfigueiredo@uft.edu.br.

[2] Objeto perceptível está no lugar do termo original representamem, categoria de uma das teorias peircianas que não vamos abordar aqui. Para evitar explicações teóricas que não acrescentariam muito à argumentação visada, optamos pela substituição de representamem por objeto perceptível.

[3] Termo técnico da filosofia da linguagem que se refere à ocorrência específica de um signo. 

[4] Publicado em 1953, o verso original de Cecília Meireles é “Liberdade/o sonho que o humano alimenta/que não há ninguém que explique/e ninguém que não entenda.”