JOGOS DE LINGUAGEM E NEODOCUMENTALISMO
algumas relações
Sergio de Castro Martins[1]
Universidade Federal do Rio de Janeiro
sergio.scm@gmail.com
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Resumo
O presente artigo visa estabelecer relações entre a teoria do Neodocumentalismo da Ciência da Informação e alguns aspectos expostos nos sistemas filosóficos da Filosofia de Ludwig Wittgenstein, sobretudo da sua segunda fase, tal como exposto em sua obra Investigações Filosóficas. Neste sentido, pretende-se estabelecer relações convergentes entre o conceito de jogos de linguagem e os aspectos relativos ao documento como instrumento de veiculação de informação, ordenação e prática social. Após uma introdução do tema, serão apresentados os conceitos e configurações do Neodocumentalismo no âmbito da Ciência da Informação. Em seguida, será feita uma apresentação do sistema de Wittgenstein, sobretudo o sistema de sua segunda fase e, logo após, serão abordados aspectos convergentes e considerações entre Neodocumentalismo e jogos de linguagem.
Palavras-chave: Ludwig Wittgenstein; filosofia da informação; jogos de linguagem; ciência da informação; neodocumentalismo.
LANGUAGE GAMES AND NEODOCUMENTALISM
some relationships
Abstract
This article aims to establish relationships between a theory of Neodocumentalism in Information Science and issues exposed in the philosophical systems of Ludwig Wittgenstein's Philosophy, especially in its second phase, as exposed in his work Philosophical Investigations. In this sense, it is intended to establish converging relationships between the concept of language-games and aspects related to the document as an instrument for conveying information, language and social practice. After an introduction to the topic, concepts of Neodocumentalism in the field of Information Science will be presented. Then, a presentation of Wittgenstein's system will be made, especially the system of its second phase and, soon after, aspects and considerations will be approached between Neodocumentalism and language-games.
Keywords: L. Wittgenstein; information philosophy; language-games; information science; neodocumentalism.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo relacionar alguns paralelos entre a Ciência da Informação e a Filosofia da Linguagem e, por extensão, entre seus objetos: a informação e a linguagem. A informação pressupõe uma linguagem de base que lhe dê sentido, e a linguagem, para além de aspectos sintáticos e gramaticais, possibilita o processo de informação como um fenômeno semântico. Segundo esse entendimento, pretende-se aqui tecer algumas análises e reflexões acerca das propriedades da informação e, em paralelo, da linguagem, tal como exposta na segunda fase do sistema filosófico de Wittgenstein.
Em linhas gerais, na segunda fase do seu sistema filosófico, Wittgenstein sustenta que o desenvolvimento da linguagem se dá de maneira orgânica na sociedade, isto é, naturalmente, através das práticas e usos que os indivíduos fazem da linguagem. Sendo assim, os usos e aplicações da linguagem – suas palavras e frases – apontam para coisas, objetos e ideias, numa relação explícita de formulação de discursos. Isso contrasta com seu primeiro sistema, exposto no Tratado Lógico-Filosófico (TLF), que concebia a linguagem com um caráter mais positivista do que subjetivista, onde os axiomas e regras estabeleciam o sentido de um discurso a priori, sentido esse que deveria ser apreendido pelo indivíduo. Já na segunda fase, tendo como base sua obra Investigações Filosóficas (IF), o positivismo axiomático é descartado, dando lugar a um subjetivismo que confere sentido a posteriori, desde que as regras de uso sejam entendidas por uma determinada coletividade.
Na Ciência da Informação (CI) – área relacionada aos aspectos teóricos e práticos da informação – algo semelhante acontece. Historicamente, o conceito de informação na CI adquire tanto um caráter positivista quanto cognitivista (subjetivista e social construtivista), isto é, a informação pode ser tanto algo físico quanto metafísico. No sentido positivista, a informação requer uma materialidade – o documento ou registro – e possui funções de informatividade e comprovação. Segundo esta ótica, os aspectos informativos e comprobatórios se pretendem universais, devendo ser entendidos inequivocamente por todos os indivíduos. Em contraste, no sentido cognitivista e social-construtivista, a informação, ainda que manifestada materialmente em documentos, possui propriedades informativas e comprobatórias relativas às práticas e aos contextos da coletividade, que farão usos distintos do sentido narrativo e comprobatório dos registros de informação. Ademais, nas práticas documentárias da CI, em particular, esta dicotomia se reflete nas metodologias de processamento de documentos e registros de informação.
Isso posto, seria possível relacionar os princípios expostos em Investigações Filosóficas com uma teoria do documento ou do registro da informação? Em que medida as ideias da segunda fase do sistema de Wittgenstein auxiliam numa compreensão dos usos e informatividade que um documento confere não somente a um indivíduo, mas a uma coletividade? Como a intencionalidade do produtor/emissor da informação se relaciona com a receptividade do leitor/receptor? Tais questões embasam, assim, as reflexões deste artigo.
2 INFORMAÇÃO E NEODOCUMENTALISMO
O conceito de informação é um dos mais controversos na atualidade, sobretudo na área de Ciência da Informação, onde ainda hoje são realizados debates acerca de sua natureza com o objetivo de entender seus fenômenos e manifestações. A definição de informação tem apresentado aspectos distintos, tanto de ordem metafísica, quanto ontológica e fenomenológica.
O estudo filosófico da informação tem recebido aportes teóricos das áreas de Filosofia e Ciências Cognitivas. Particularmente no que se concerne à área da Filosofia, muitos entendimentos epistemológicos da informação são reforçados com teorias diversas, como Racionalismo, Naturalismo, Empirismo, Fenomenologia, Ontologia e Hermenêutica, Filosofia da Linguagem, dentre outras. Cada uma destas vertentes tem contribuído para o campo de estudos entendido como Filosofia da Informação, além da própria CI. De acordo Kolin, a Filosofia da Informação é “a investigação da natureza conceitual da informação como uma das manifestações da realidade do mundo à nossa volta” (Kolin, 2011, P. 455; tradução nossa). Para Floridi,
Filosofia da informação é o campo filosófico referente: a) investigações críticas acerca da natureza conceitual e os princípios básicos da informação, incluindo sua dinâmica, utilização e ciências, e; b) a elaboração e aplicação de teorias de informação e metodologias computacionais a problemas filosóficos. (Floridi, 2002, p. 137, tradução nossa)
A visão positivista da informação, isto é, da informação como coisa, é entendido de acordo com seu aspecto material ou físico (Capurro, 2003; Buckland, 1991). Sob esta visão, a informação pode ser entendida como algo objetivo, externo ao ser, presente ou incorporado em veículos como canais ou suportes da informação, como por exemplo os documentos. Neste sentido, percebe-se seu aspecto realista/naturalista, isto é, real e objetivo, conforme atesta Capurro:
Em essência esse paradigma físico da informação postula que há algo, um objeto físico, que um emissor transmite a um receptor. Curiosamente a teoria de Shannon não denomina esse objeto como informação ("information"), mas como mensagem ("message"), ou, mais precisamente, como signos ("signals") que deveriam ser em princípio reconhecidos univocamente pelo receptor sob certas condições ideais como são a utilização dos mesmos signos por parte do emissor e do receptor, e a ausência de fontes que perturbem a transmissão. (Capurro, 2003, p. 1)
Em contraste, o entendimento fenomenológico da informação como processo cognitivo ou mesmo como processo cultural/social pressupõe que, ainda que uma grande quantidade de sinais e mensagens se encontre disponível para interpretação, caso uma mente não consiga interpretá-los devidamente, o evento informação não ocorre, isto é, o ciclo informacional ou processo de aquisição de conhecimento – aquele que altera o estado de conhecimento do indivíduo – não se completa; ainda que a informação esteja disponível no canal ou no suporte, sua apreensão e interpretação pelo sujeito cognoscente não é efetivada caso o conteúdo dos sinais ou mensagem não encontre referências linguísticas, sociais, psicológicas e culturais deste. Na visão social-construtivista da informação (Capurro 2003), fatores psicológicos e culturais/sociais condicionam a receptividade da mensagem pelo indivíduo, onde cada um recria a narrativa à sua maneira. de acordo com seu contexto cultural. Aqui verifica-se a predominância da subjetividade da informação, e o sentido é dado pelo sujeito cognoscente ou receptor da mensagem, durante o processo de interação com a mensagem.
Nunberg (2010) sustenta que “[...] a informação apresenta-se como um tipo particular de coisa; a impressão que temos dela é a de uma espécie de nobre substância” (Nunberg, 2010, P. 4;14). Por sua vez, Frohmann (2012) sustenta que falar da natureza da informação é algo pouco útil: ao invés de perguntar o que é a informação, dever-se-ia perguntar o que é informativo? Neste sentido, tanto para Frohmann (2012) quanto para Buckland (1996), essa pergunta sustenta a noção de Neodocumentalismo, uma visão mais abrangente e multidimensional do conceito de informação oriunda da Filosofia e Ciência da Informação. Para o Neodocumentalismo, a informação só faz sentido quando reúne tanto aspectos físicos quanto metafísicos, manifestada na forma que se pode entender como documentos. Frohmann (2012) assim, destaca quatro propriedades da informação que definem seu papel informativo:
I. Materialidade: a informação, necessariamente necessita de um suporte material para possuir informatividade. Sejam documentos, monumentos, ou qualquer outra coisa, tais suportes ou objetos podem possuir informatividade em potencial, pois podem ou não ser compreendidos pelos indivíduos. A informação, sem materialidade, não possui impacto social e não condiciona comportamentos e ações sociais ou institucionais. É exatamente a materialidade do documento que interfere nas práticas sociais: uma lei é algo material, um relatório, ou mesmo dados digitais em uma planilha. E, ademais, essa materialidade confere não somente informatividade, mas também comprovação de fatos, atos, eventos e mandamentos.
II. Institucionalidade: a informação, já entendida como registro em suportes ou documentos, possui necessariamente institucionalidade. Esta institucionalidade refere-se aos usos, práticas e costumes dos mais variados documentos e objetos de informação para suportar institucionalmente discursos e narrativas. Neste sentido, documentos oficiais, jurídicos, científicos, contábeis, ou qualquer outro, obedecem a uma lógica da comunidade discursiva a que se refere, carregando poderes não somente de informatividade, mas de comprovação. Assim, os documentos impõem sua força de valor, sendo algo impositivo e mandatário.
III. Disciplina Social: há uma prática social disciplinada ou validade de transformação de algo em documento. Cada comunidade discursiva deve praticar um rito de construção documental para validar o documento. Neste sentido, trâmites, regras e modelos são seguidos para que, assim, o documento possa ser institucionalizado e ter o poder de regular as práticas sociais de uma ou mais comunidades discursivas. Desse modo, confere-se ao documento o caráter impositivo e mandatário, configurando sua institucionalidade e, também, a disciplina social.
IV. Historicidade: a informação contida em todo documento é condicionada historicamente. Documentos que mantém uma informatividade e caráter comprobatório em determinado lugar e em determinado momento no tempo pode não possuir informatividade em outro lugar ou momento, passando a ser considerado simplesmente como objeto; da mesma forma, o contrário também ocorre: objetos que antes não tinham informatividade ou caráter comprobatório em algum lugar ou momento podem ser instituídos como documentos, recebendo institucionalidade e passando a ser institucionalmente condicionador.
Na visão Neodocumentalista, o conceito de informação, assim, é visceralmente relacionado ao conceito de documento. Por sua vez, o conceito de documento adquire um valor distinto daquele definido por outras visões filosóficas, uma vez que reúne estes quatro aspectos acima citados. Assim, tudo pode ser ou vir a ser documento: coisas, objetos, seres vivos ou mortos e mesmo dados digitais, conquanto possuam informatividade ou caráter comprobatório. O quadro 1 explicita este entendimento da seguinte maneira:
Quadro 1 - Aspectos fenomenológicos do documento segundo o Neodocumentalismo.
DOCUMENTO |
|
Funções |
· Informatividade · Comprovação |
Manifestações |
· Materialidade · Institucionalidade · Disciplina Social · Historicidade |
Exemplos |
· Coisas e objetos · Pessoas e animais · Documentos físicos e digitais |
Fonte: Adaptação de Frohmann (2012) e Briet (2016).
Nas áreas que se propõem a organizar, representar e recuperar informação, como a Ciência da Informação, as práticas documentárias como representação temática referem-se ao desenvolvimento de linguagens documentárias – ou práticas documentárias que visam representar o conteúdo dos documentos para as comunidades discursivas que se interessam pelos documentos. Essa prática documentária, considerada uma disciplina social, consiste precisamente em transformar objetos em documentos ou, também, criar documentos secundários que fazem referências ao documento principal ou primário. Tanto Frohmann (2012) quando Buckland (1996) afirmam que a prática documentária é, em última instância, uma prática social com documentos, cujo enfoque é dar normatividade ao mesmo, condicionando ações e comportamentos.
O início de uma prática social – ou a disciplina social – com documentos começa quando uma comunidade discursiva institui os ritos de qualquer coisa, objeto ou texto que possa vir a funcionar como documento, isto é, que possua poder informativo, normativo e comprobatório. A comunidade jurídica, como exemplo, estabelece a ordem, as etapas, documentos e objetos (provas) que irão compor a validade do rito jurídico, com efeitos normativos, disciplinadores e comprobatórios – logo legais. A comunidade científica, por sua vez, adotou modelos de comunicação como os papers e artigos científicos com vistas a dar informatividade e veracidade – comprovação – ao evento narrado, sendo este rito formalmente aceito nesta comunidade. Também no âmbito governamental, executivo e legislativo, os trâmites dos atos normativos, como decretos, leis etc, passam pela fase de projeto, proposta, votação e sancionamento. Alguns exemplos são expostos no quadro 2:
Quadro 2 - Práticas sociais com documentos de algumas comunidades.
COMUNIDADE |
PRÁTICAS DOCUMENTÁRIAS |
ATORES |
Comunidade Científica |
Artigos, papers, pré-prints, capítulos, livros, comunicações etc. |
Cientista, universidades, institutos de pesquisa, estudantes etc. |
Comunidade |
Petição inicial, agravo de instrumento, liminar, embargos de declaração etc. |
Tribunais, advogados, técnicos judiciários, juízes, promotores, desembargadores etc. |
Comunidade Governamental |
Projeto de Lei, mensagem de veto, sancionamento, Lei, Decreto etc. |
Câmaras legislativas, deputados, vereadores, governadores, presidentes etc. |
Fonte: O autor.
Outro fator inerente à documentação, de acordo com o Neodocumentalismo, é a intencionalidade. A intencionalidade ocorre em duas vias (Nunberg, 2010; Frohmann, 2012):
I. Intencionalidade do emissor: todo documento nasce com uma intencionalidade inerente, visto que são criados por motivações diversas e possuem o propósito de serem entendidos pretensamente da mesma forma que o emissor o concebeu;
II. Intencionalidade do receptor: todo documento pode ser entendido tal como o emissor o concebeu ou de formas distintas desta. Neste sentido, a apropriação da informatividade pelo receptor ou leitor dos documentos irá variar de acordo com sua comunidade discursiva, entorno cultural, linguístico, dentre vários outros fatores. Sentidos narrativos dos documentos, assim, podem ser interpretados pela forma como o receptor está condicionado.
Uma das atividades das práticas documentárias de Ciência da Informação refere-se à construção de documentos secundários que adotam modelos ou regras axiomáticas de termos e conceitos que representam os conteúdos dos documentos. Esta prática visa a criação de linguagens documentárias artificiais mediante a unificação léxica (sintática) e proposicional (termos e sentenças válidas) de termos que irão compor ferramentas como a Taxonomia Representacional ou, simplesmente, Taxonomia (Campos, 2001). Neste sentido, a Taxonomia refere-se a um glossário com relações hierárquicas entre termos válidos de representação documental, construído de forma arbitrária por especialistas – taxonomistas – que consideram determinados termos para representação em detrimento de outros. A Taxonomia é aplicada em contextos de catálogos de bibliotecas ou mesmo em rotulagem de páginas, portais e ambientes digitais na internet, visando unificar o vocabulário para acesso a informações: neste sentido, termos procurados pelo buscador da informação serão mediados por estas ferramentas que, por sua vez, retornarão documentos ou informações com base numa equivalência de termos.
Nos últimos anos, as Taxonomias têm se mostrado ineficientes na estruturação ou modelagem de vocabulários artificiais de representação de conteúdos de informação, sobretudo aquelas baseadas em ambiente web. Isso se deve ao fato de que os usuários ou buscadores de informação não reconhecem muitos dos termos validados e arbitrariamente concebido por taxonomistas. Neste sentido, as comunidades ou grupos de usuários criam seus próprios termos e jargões a serem aplicados em narrativas de seu respectivo grupo. Assim, tem-se uma nova forma social de representar termos para documentos: a Folksonomia, uma forma de linguagem natural praticada pelos indivíduos e que reproduzem termos, jargões e vocabulários próprios de sua comunidade discursiva. Desde então, a Folksonomia tem sido considerada nas práticas documentárias da Ciência da informação para atualizar termos de Taxonomia, na medida que esta última perdia precisão representativa. Também a Folksonomia é uma arbitrariedade de um grupo ou comunidade que se apropriam de discursos, narrativas e documentos de modo a representar e condicionar seus hábitos e práticas.
Considerando a visão Neodocumentalista no âmbito da Filosofia e Ciência da Informação, é possível relacionar a aspectos do pensamento maduro de Wittgenstein, a saber, aqueles expostos em sua obra Investigações Filosóficas (IF). Ainda que possa haver elementos de conexão com o pensamento de sua primeira fase, exposto no Tratado Lógico-Filosófico (TLF), percebe-se grande correlação entre o IF e a teoria Neodocumentalista e práticas documentárias da Filosofia e Ciência da Informação, conforme será visto a seguir.
3 WITTGENSTEIN E SEUS SISTEMAS FILOSÓFICOS
Os sistemas filosóficos de Wittgenstein causaram grande impacto no pensamento moderno e contemporâneo, desenvolvidos mediante sua trajetória e experiência rica em variados países e instituições da Europa. Seus sistemas filosóficos se dividem em duas grandes fases, em muitos aspectos antagônicas entre si, que versam tanto sobre a tradição crítica quanto a tradição lógica (Arruda Junior, 2017; Schmitz, 2004). Em ambos os sistemas a Filosofia é tributária da linguagem, em grande medida sendo condicionada por ela. Contudo, na passagem da sua fase primeira para a fase segunda, esta relação entre Filosofia e linguagem é modificada, refletindo um período de maturidade.
Na primeira fase, Wittgenstein sustenta que os problemas da Filosofia advêm da linguagem, de suas imperfeições gramaticais e semânticas. É a linguagem que atrapalha o desenvolvimento filosófico. Assim, seria necessária uma análise crítica da linguagem em que a própria estrutura da linguagem, tais como sentenças e proposições, deveriam ser decompostas em estruturas lógicas. A linguagem deveria conter axiomas e uma ordenação lógica para que pudesse sustentar a complexidade dos problemas propostos pela Filosofia. Segundo este entendimento, uma sentença ou proposição aparentemente lógica, isto é, linguisticamente coerente, pode não corresponder a um ordenamento lógico do mundo real, aspecto de interesse da Filosofia. Essa questão é especialmente relevante na linguagem natural cotidiana, pois muitas orações parecem ser lógicas sem, no entanto, serem verdadeiras ou relacionadas à realidade. O problema da linguagem natural na primeira fase wittgensteiniana é ressaltado por Arruda Junior ao afirmar que “a linguagem natural camufla a forma lógica real das proposições. Supõe-se, assim, que a forma gramatical de uma proposição não reflete de maneira adequada sua forma lógica, e isso é o que gera várias confusões linguísticas” (Arruda Junior, 2017, p. 19). Assim também destaca Schmitz, ao lembrar que “a maior parte dos nossos embaraços filosóficos provém de um mau uso das expressões da linguagem à nossa disposição” (Schmitz, 2004, p. 45). Isso é afirmado pelo próprio Wittgenstein, ao sustentar que “as proposições e questões dos filósofos fundamentam-se, na sua maior parte, no fato de não compreendermos a lógica da nossa linguagem” (Wittgenstein, 2001, TLF, 4.003, P. 53).
As ideias expostas no TLF buscam, em última instância, refletir sobre uma análise lógica da linguagem assumindo que as regras rígidas e racionais da Lógica deveriam se refletir na estruturação das proposições. As proposições elementares, isto é, as menores orações de uma proposição, devem possuir dependência mútua para que as conclusões sejam verdadeiras. Só assim se teria a perfeição da lógica da linguagem e, consequentemente, a linguagem poderia bem servir à Filosofia. As possibilidades linguísticas decorrentes disso poderiam ser combinadas infinitamente, desde que seja obedecido o ordenamento lógico-causal das proposições. Para Wittgenstein, se a estrutura da linguagem for baseada na perfeição da lógica, a própria estrutura do mundo pode ser desvelada (Arruda Junior, 2017); assim, a linguagem atingiria seu objetivo de ser um instrumento essencial e leal à Filosofia. No que concerne ao aspecto transcendental desta primeira fase, há coisas que podem ser ditas e coisas que não podem ser ditas, mas mostradas, visto que se houver algo que não possa ser expresso pela linguagem, o silêncio deve ser observado.
Na primeira fase a linguagem é entendida nos seguintes termos:
· Função: demonstração ou relação com o objeto da declaração; constitui o aspecto explícito da linguagem.
· Estrutura: estrutura lógico-argumentativa da linguagem; constitui o aspecto oculto da linguagem.
Segundo este entendimento, a linguagem pode ser vista como um universo possível de conexões em potencial, dividida em elementos proposicionais básicos ou elementares. São essas proposições elementares que fazem referência às coisas do mundo; Tais proposições elementares nada dizem por si mesmas, mas só fazem sentido, isto é, só poderão possuir semântica se estiverem logicamente coerentes, ordenadas e concatenadas; caso contrário, será falsa. Assim, as proposições elementares e logicamente ordenadas podem dizer algo sobre o mundo e suas coisas. Em contrário, a própria estrutura de regras de funcionamento lógico da linguagem são aspectos ocultos e não podem ser explicitados pelo dizer, somente podem ser mostrados ou inferidos (Schmitz, 2004).
Wittgenstein, nesta sua primeira fase, alinha-se ao pensamento lógico positivista vigente àquele tempo, no início dos anos 1920, onde a racionalidade, o naturalismo, o empirismo lógico, o realismo e o materialismo eram pensamentos predominantes. Entretanto, ao longo dos anos 1920, algo ocorre em relação a este alinhamento. B. Russell e G. Frege instituem uma revolução – e renovação – na Lógica, rompendo com os velhos paradigmas lógicos vigentes, e isso causa grande impacto em Wittgenstein. Ao ser questionado por pensadores do Círculo de Viena – associação lógico-positivista de filósofos – Wittgenstein reconhece alguns equívocos de entendimento tal como proposto no TLF. Segundo Schmitz (2004), esses equívocos seriam:
· Independência das proposições elementares: a verdade ou falsidade de uma proposição não interfere na verdade ou falsidade de outra. Neste sentido, ele percebe que há relações entre proposições elementares e que elas estão conectadas.
· Há inúmeras possibilidades ocultas em uma proposição: ao afirmar-se algo não é x, uma infinidade de possibilidades se abre para interpretações sobre o que algo pode ser, que não x.
O desenrolar destas conclusões faz com que Wittgenstein perceba que “o sentido de uma proposição não depende somente de suas condições de verdade, mas também do contexto no qual ela é anunciada e do uso que se faz dela nesse contexto” (Schmitz, 2004, p. 140). Ou seja, o valor de uma proposição não depende do valor das verdades das proposições elementares. Ele entende, deste modo, que uma estrutura lógica universal a ser imposta à linguagem é inviável: a linguagem ordinária tem mecanismos escorregadios próprios que não podem ser previstos a priori. Estes mecanismos são regras gramaticais que são condicionadas às preferências e práticas sociais sendo, portanto, arbitrárias. Disto decorre que a semântica ou significado de um discurso pode obedecer a regras não previstas mediante escolha dos indivíduos, ou seja, tal como se mudam as regras de um jogo. Com isso, surge a noção de jogos de linguagem, noção esta que abre os entendimentos da segunda fase do pensamento de Wittgenstein.
A segunda fase de seu pensamento é revelada de forma mais reconhecida numa obra póstuma, Investigações Filosóficas, e confronta radicalmente os conceitos expostos em seu grande tratado anterior, o TLF. Nesta segunda fase, a ideia de jogos reflete uma profunda mudança no pensamento de Wittgenstein acerca da linguagem. Segundo Wittgenstein,
Podemos também imaginar que todo o processo de uso de palavras seja um desses jogos por meio dos quais as crianças aprendem a língua materna. Quero chamar esses jogos de “jogos de linguagem”, e falar às vezes de uma língua primitiva como um jogo de linguagem. E poder-se-ia chamar os processos de denominação das palavras ditadas, também de jogos de linguagem. Pense em alguns usos de palavras que se faz nas brincadeiras de roda. Chamarei também a totalidade: da linguagem e das atividades com ela entrelaçadas, de “jogo de linguagem” (Wittgenstein, IF, 2022, p. 18-19).
De acordo com Arruda Junior,
A ideia central que subjaz a essa comparação particular entre a linguagem e o jogo é, com efeito, a de fazer-nos ver, pelos jogos, os vários aspectos de nossa linguagem que muitas vezes nos são alheios. Os jogos são atividades públicas que pressupõem o uso de regras, reações comuns, habilidades, disposições, certas capacidades geradas pelo domínio de técnicas etc. Equiparada com eles, a linguagem é, dessa perspectiva, concebida como uma práxis, isto é, como uma atividade humana também guiada por regras, cuja efetivação pressupõe, igualmente, reações comuns, capacidades adquiridas por meio de treino, o domínio da técnica de sua aplicação etc. (Arruda Junior, 2017, P. 45)
No conceito de jogos, assim, é entendido que a linguagem acompanha as ações dos indivíduos, não podendo, portanto, ser dissociada delas. De acordo com Schmitz, “[...] seguir uma regra é um fazer e não remete mais ao pensável. Isso diz respeito ao que Wittgenstein chama às vezes de ‘história natural’ dos homens [...]” (Schmitz, 2004, p. 167). De acordo com as citações, é possível perceber que para Wittgenstein o uso da linguagem é arbitrário e seu sentido pode ser deslocado conforme a práxis ou prática social de um indivíduo. Mediante este entendimento, a linguagem tem um caráter notadamente pragmático.
Outra constatação de Wittgenstein em sua segunda fase é a que o sentido das palavras é adquirido com a prática e a vivência de cada indivíduo: os usos das palavras, suas aplicações a eventos e coisas são determinados pelos eventos cotidianos que requerem esse tipo de aprendizado. Logo, não se aprende preliminarmente as regras e lógica de uma linguagem a priori, mas sim aprende-se a usar as palavras em seu contexto de uso. A linguagem, então, não está separada da vida real das pessoas. Isso revela também a faceta heterogênea da linguagem, na qual indivíduos ou mesmo grupos criam jogos de linguagem para sustentar suas narrativas.
A conclusão de Wittgenstein, na sua segunda fase, é que não se pode pretender um controle universal da linguagem. A linguagem se relaciona mais com a vida do homem do que a lógica; o ser humano muitas vezes é ilógico e, por isso, a linguagem é um constructo autônomo e não pode ser subordinada à lógica e, por extensão, à Filosofia. Se na primeira fase, no TLF, Wittgenstein pretendeu destacar a importância de axiomas e regras lógicas para domar a linguagem em uma estrutura para bem servir à complexidade dos sistemas filosóficos, na segunda ele percebe que a linguagem é autônoma e indomável, escorregadia, mutável e caleidoscópica. Adequa-se e adapta-se com grande eficácia aos usos e costumes das práticas sociais, sendo utilizada como um instrumento de construção de sentidos cujas regras são tão obscuras e distintas quanto as possibilidades discursivas. Com essa percepção, Wittgenstein desiste de uma lógica universal da linguagem, aceita a autonomia e entende que Lógica filosófica e linguagem são, de certa forma, incompatíveis.
4 NEODOCUMENTALISMO E OS JOGOS DE LINGUAGEM
Com o que foi exposto, vários paralelos podem ser feitos entre os postulados do Neodocumentalismo e as teorias da primeira e segunda fase do pensamento de Wittgenstein. Um primeiro aspecto é a correlação entre os conceitos tanto abstratos quanto práticos de documento e linguagem enquanto objetos, respectivamente, do Neodocumentalismo e dos sistemas wittgensteinianos. Além da equivalência em vários aspectos a serem relacionados a seguir, um conceito pressupõe o outro. A informação está contida na linguagem e vice-versa. Desta forma, a seguinte relação pode ser feita, conforme quadro 3:
Quadro 3 - Relações entre Informação/Documento e Linguagem.
DOCUMENTO |
LINGUAGEM |
Condiciona as práticas sociais |
Condiciona as práticas sociais |
Relaciona-se com os usos, práticas e costumes sociais |
Relaciona-se com os usos, práticas e costumes sociais |
Usos mudam com o lugar e o tempo |
Usos mudam com o lugar e o tempo |
Fonte: O autor.
Assim como a linguagem, os usos e práticas com documentos podem ser alterados de acordo com o uso e as práticas sociais de determinado grupo no espaço e no tempo. Isso quer dizer que, tal como a linguagem e seus argumentos, o uso de documentos para práticas de condicionamento social pode ser alterado e obedecer a regras distintas de acordo com a prática de comunidades e o tempo de sua instituição.
No âmbito da Ciência da Informação – entorno em que nasce o Neodocumentalismo – as linguagens documentárias pretendem estabelecer um controle rígido de vocabulários – Taxonomia – com termos validados e não validados. Conforme exposto, tal tentativa em contextos socais mais abertos, como na web, mostra-se pouco eficaz, visto que os termos da linguagem natural – Folksonomia – refletem as narrativas, práticas e jargões de suas respectivas comunidades. A tentativa de construção de uma linguagem ideal ou lógica pela taxonomia é posta em dúvida pelas práticas sociais de uso de termos relacionados à Folksonomia. Estes aspectos refletem a prática social do documento e, também, da linguagem.
No caso da linguagem, as regras e a gramática podem ser entendidas como sua institucionalidade; de modo análogo, os ritos de construção documental constituem a institucionalidade do documento em relação a indivíduos, comunidades e instituições que reconhecem como válidos determinados documentos como mecanismo de condicionamento do comportamento social e suas ações.
Outro paralelo pode ser observado na relação entre os paradigmas da informação (Capurro, 2003) e aspectos relativos à intencionalidade, tanto da linguagem quanto dos documentos. Na linguagem, uma proposição pode ser transformada ou entendida, mediante jogo, em outro sentido discursivo. Assim também ocorre com o documento, cujo sentido pode ser modificado no espaço e no tempo. Ademais, a intenção de um emissor de um documento pode não ser apreendida pelo receptor, que por sua vez pode reinterpretar e ressignificar sua narrativa; o mesmo acontece com a linguagem, onde regras e proposições proferidas por um emissor podem não ser válidas ou apropriadas por um receptor.
Contudo, também há algumas diferenças a serem notadas. A primeira é que o ciclo temporal de transformação do uso dos documentos tende a ser mais extenso que do uso da linguagem em si. A transformação de regras e sentidos na linguagem pode ser feita de maneira imediata, enquanto uma transformação deste tipo com os documentos requer um período de tempo maior. Outra observação diz respeito à materialidade. Documentos são artefatos materiais necessariamente, isto é, registros com informatividade e poder comprobatório. Por outro lado, a linguagem é algo abstrato e fluido, podendo funcionar sem necessariamente possuir um suporte físico.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estabelecimento de relações entre a teoria do Neodocumentalismo e as fases do pensamento wittgensteiniano torna-se oportuna para um maior aprofundamento teórico-filosófico das questões subjacentes à informação e ao documento. Tanto a Ciência da Informação, como área de experimentos aplicados à informação quanto a Filosofia da Informação – vertente relativamente recente da Filosofia – ainda necessitam de aportes teóricos e filosóficos para o entendimento do conceito de informação enquanto fenômeno social. Dito de outra forma, ambas as áreas ainda são escassas de teorias e fundamentos próprios. Neste sentido, relações, paralelos e comparações com os sistemas filosóficos estabelecidos e consolidados mostram-se tão úteis quanto necessários para um melhor entendimentos dos problemas da informação e do documento.
Os sistemas de Wittgenstein, em suas duas fases, mostram-se amplamente pertinentes para muitas das questões e problemas relacionados às áreas da informação. O entendimento extraído de tais sistemas permitem conexões, comparações e inferências que podem enriquecer tanto a literatura da Filosofia da Informação quanto melhorar as práticas experimentais e pragmáticas da Ciência da Informação.
Tal como na primeira fase de Wittgenstein, que buscou estruturas de estabilidade lógica para o funcionamento da linguagem – uma linguagem universal – a Ciência da Informação tem buscado, com níveis diferentes de eficácia, o estabelecimento de ferramentas e artefatos que possam representar o conteúdo dos documentos de forma mais racional e universalizada, mediante instrumentos como taxonomias e tesauros. Entretanto, conforme compreendido por Wittgenstein em sua segunda fase, a linguagem é escorregadia e tem uma lógica própria de funcionamento, mais intimamente ligada às pessoas e suas vidas que a Filosofia e a Lógica. De maneira semelhante, e com base nos entendimentos finais de Wittgenstein, uma compreensão das apropriações da linguagem pelos indivíduos em forma de jogos – na CI entendida como Folksonomia – pode contribuir sobremaneira para o desenvolvimento de ferramentas mais eficientes que possa aproximar de maneira otimizada os indivíduos e os documentos – funções últimas da Ciência e Filosofia da Informação.
REFERÊNCIAS
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BRIET, Suzanne. O que é a Documentação? Brasília: Briquet de Lemos, 2016.
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[1] Professor do Departamento de Biblioteconomia. Doutor em Ciência da Informação (UFF-RJ) com estágio doutoral na Universidad Carlos III de Madrid, Espanha, Mestre em Ciência da Informação (UFF-RJ), Especialista em Administração e Sistemas de Informação (UFF-RJ) e Bacharel em Biblioteconomia e Documentação (UFF-RJ).