Memória, discurso e universo acadêmico
precarização, gênero e consequências epistemológicas
Clarissa Pepe Ferreira[1]
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
clarissapepe@yahoo.com.br
Eliezer Pires da Silva[2]
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Resumo
Este artigo faz uma análise de situação, tendo como objetivo inaugurar reflexões acerca das seguintes questões: em que condições vitais o conhecimento está sendo produzido no espaço-tempo das universidades neoliberais; se existe desigualdade de gênero nessas condições; de que forma ela é sentida e experienciada por corpos que acumulam exclusões múltiplas; que consequências socio epistemológicas isso acarreta; e como resistir e agir no sentido da reversão desse quadro. O método empregado é o de revisão de fontes bibliográficas e de informação. Como resultado, o artigo efetua um primeiro movimento de articulação, sistematização, de enunciados. São eles: precarização, aceleração, sofrimento, cegueira de gênero, (des)igualdade substantiva, violência epistêmica, epistemologia feminista, memória social e análise do discurso de vertente francesa. A conclusão apresenta, de maneira pormenorizada e sustentada, os lineamentos para a realização de estudos empíricos futuros.
Palavras-chave: precarização e sofrimento no trabalho acadêmico; desigualdade e cegueira de gênero; violência epistêmica; epistemologia feminista; memória social e análise do discurso.
MEMORY, DISCOURSE AND ACADEMIC UNIVERSE
Precariousness, gender and epistemological consequences
Abstract
This article analyzes the situation, aiming to inaugurate reflections on the following questions: under what vital conditions is knowledge produced in the space-time of neoliberal universities; whether there is gender inequality in these conditions; how it is felt and experienced by bodies that accumulate multiple exclusions; what socio-epistemological consequences this entails; and how to resist and act to reverse this situation. The method used is to review bibliographic and information sources. As a result, the article makes the first movement of articulation and systematization of statements. They are precariousness, acceleration, suffering, gender blindness, substantive (in)equality, epistemic violence, feminist epistemology, social memory and French discourse analysis. In a detailed and sustained manner, the conclusion presents the guidelines for carrying out future empirical studies.
Keywords: precariousness and suffering in academic work; gender inequality and blindness; epistemic violence; feminist epistemology; social memory and discourse analysis.
MEMORIA, DISCURSO Y UNIVERSO ACADÉMICO
precariedad, género y consecuencias epistemológicas
Resumen
El artículo hace um análisis de situación, con el objetivo de inaugurar reflexiones sobre las siguientes cuestiones: ¿bajo qué condiciones vitales se produce conocimiento en el espacio-tiempo de las universidades neoliberales; ¿ existe desigualdad de género en estas condiciones?; ¿cómo lo sienten y lo viven cuerpos que acumulan múltiples exclusiones?; ¿qué consecuencias socioepistemológicas eso conlleva?; y ¿cómo resistir y actuar para revertir esta situación?. El método utilizado es la revisión de fuentes bibliográficas y de información. Como resultado, el artículo hace un primer movimiento de articulación y sistematización de enunciados. Son ellos: precariedad, aceleración, sufrimiento, ceguera de género, (des)igualdad sustantiva, violencia epistémica, epistemología feminista, memoria social y escuela francesa de análisis del discurso. La conclusión presenta, de manera detallada y razonada, las pautas para la realización de futuros estudios empíricos.
Palabras clave: precariedad y sufrimiento en el trabajo académico; desigualdad y ceguera de género; violencia epistémica; epistemología feminista; memoria social y análisis del discurso.
1 INTRODUÇÃO
É sabido por quem produz ciência e exerce a docência universitária que, na era da informação e da aceleração, as jornadas de mais de 12h diárias, os trabalhos nos fins de semana, feriados e férias tornaram-se uma realidade frequente e normalizada. Sem contar os casos de desemprego, contratos temporários e mal pagos, demandas excessivas de tarefas não remuneradas etc. O universo cada vez mais precário no qual estão inseridos/as/xs os/as/xs acadêmicos/as/xs – em especial quem se encontra em início de carreira – representa um tema de estudo que ainda requer atenção dentro das crescentes críticas aos efeitos do neoliberalismo no Ensino Superior (Falconer, 2017).
Apenas 16% dos/as/xs do corpo docente universitário no Brasil está composto por pessoas negras, de acordo com dados do Censo da Educação Superior realizado em 2017 e apresentados em 2018 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Em outras palavras, de um total aproximado de 400 mil pessoas que davam aula em universidades brasileiras, públicas e privadas, só 62.239 delas se autodeclararam pretas ou pardas. Deste reduzido grupo, apenas 682 mulheres negras dispunham título de doutorado e ocupavam um cargo de professora em tempo integral com dedicação exclusiva em uma universidade pública no país. O levantamento do INEP mostrou também que, apesar do aumento de 47,7% no período 2010-2017[3], as pessoas negras continuam sendo uma minoria entre o total de professores universitários, e sua representatividade cai conforme aumenta o grau de escolaridade. Cabe destacar que pessoas indígenas apresentaram representatividade muitíssimo inferior no levantamento em questão e que as pessoas LGBTQIAPN+ sequer foram contempladas.
Há elementos para pensar que o padecimento decorrente da situação indicada no início desta introdução não é equitativo entre homens e mulheres, e é possivelmente pior para pessoas racializadas e LGBTQIAPN+. A interseccionalidade conduz à compreensão de como as diversas dimensões da identidade influenciam as experiências de sofrimento dos grupos socialmente inferiorizados (Call, Challa e Telingator, 2021). O estresse vivenciado por tais grupos, em decorrência de fatores sociais que geram um ambiente que lhes é hostil e/ou ainda mais negativo do que o suportado por pessoas pertencentes a grupos que gozam de algum tipo de prestígio ou privilégio, resultam em taxas de angústia e problemas de saúde mental desproporcionalmente mais elevadas (Johnson; Szilagyi, 2023). Sob a perspectiva da interseccionalidade, é relevante destacar que indivíduos pertencentes a grupos oprimidos e subalternizados que acumulam exclusões sobrepostas por razões de gênero, racialização, diferenças culturais e religiosas, baixa renda etc., enfrentam níveis muito superiores de discriminação nas instituições educacionais (Chan et al., 2022), e isso tem um impacto negativo significativamente maior em seu bem-estar socioemocional em comparação com outros.
Schneider, Ghizoni, Barcellos e Pacheco (2024) investigaram a divisão sexual do trabalho administrativo acadêmico em uma universidade pública brasileira. As autoras constataram que homens ocupam predominantemente posições estratégicas, enquanto mulheres tendem a assumir funções consideradas menos estratégicas, associadas ao conceito de "trabalho doméstico acadêmico". O termo "trabalho doméstico acadêmico" refere-se às tarefas realizadas por acadêmicos em instituições de ensino superior, independente do gênero, que não recebem o devido reconhecimento no contexto da carreira ou na definição de excelência acadêmica. Geralmente, essas atividades são assumidas por mulheres, em adição às responsabilidades de ensino e pesquisa, o que pode prejudicar o avanço de suas carreiras. Os resultados corroboram estudos anteriores, sugerindo que o Brasil pode enfrentar desafios semelhantes aos observados em outros países em relação à divisão sexual do trabalho acadêmico.
Acker e Armenti (2004) realizaram um estudo sobre as condições em que as mulheres acadêmicas exercem seus trabalhos. As autoras fazem um chamamento à reflexão sobre o que aconteceu à preocupação com a situação das mulheres acadêmicas: embora na década de 1990 tenham sido publicados importantes manuscritos voltados total ou parcialmente à questão, o ritmo de publicação perdeu intensidade no princípio do século XXI. Elas argumentam que não houve melhora na realidade das acadêmicas; ao contrário, suas condições de trabalho vêm piorando, embora isso seja cada vez menos anunciado. Conflitos casa/trabalho, ansiedade em relação à avaliação, fadiga e stress. Dormir menos tem sido a saída buscada pelas acadêmicas para poder levar adiante suas pesquisas.
Este artigo tem como propósito efetuar um primeiro movimento de articulação, sistematização, de enunciados relacionados ao sofrimento desigual existente no universo acadêmico e suas consequências em termos epistemológicos, sob o prisma do gênero e da interseccionalidade, a partir dos estudos de Memória Social (MS) e Análise do Discurso (AD) de vertente francesa. Gondar et al. (2005) esclarecem que a transdisciplinaridade do campo MS resulta de uma fecundação entre disciplinas, na medida em que as perguntas produzidas no interior de cada uma delas ultrapassam suas próprias fronteiras, fazendo emergir um campo novo de problemas que até então não se achava contemplado e nem poderia ser resolvido no interior de nenhuma delas. Sobre a polissemia da definição de MS, os autores asseveram que os conceitos emergem de indagações contingentes, formuladas sobre modos de sociabilidade nascentes e os efeitos que ocasionam sobre as subjetividades. A AD de vertente francesa, influenciada por autores como Michel Foucault e Michel Pêcheux, enfatiza o papel da linguagem na construção do poder, identidade e significado. Isso envolve uma abordagem crítica e reflexiva da linguagem, que busca desnaturalizar e desestabilizar discursos dominantes, revelando suas relações de poder e suas dimensões ideológicas.
2 PRECARIZAÇÃO E SOFRIMENTO
É certo que, tanto no Brasil quanto no exterior, houve avanços em termos de políticas públicas voltadas à igualdade de gênero nas universidades nos últimos tempos. Um exemplo disso é a aprovação da Lei brasileira nº 13.536/2017 dispõe sobre a prorrogação dos prazos de vigência das bolsas de estudo concedidas por agências de fomento à pesquisa nos casos de maternidade e de adoção. Na Capes, a licença maternidade na hipótese de parto ocorrido na vigência de bolsa de mestrado ou doutorado é regulada pela Portaria 248/2011. Antes mesmo da aprovação da citada lei federal, a agência já tinha reconhecido a importância de conferir tratamento especial às pesquisadoras mães como forma de proteção à maternidade e combate à desigualdade de gênero. O CNPq mantém desde 2005 o programa Mulher e Ciências, que promove a participação de meninas e mulheres na ciência, pesquisas sobre relações de gênero, mulheres e feminismo. Além disso, desde o dia 15 de abril de 2021, o CNPq implantou uma modificação no Currículo Lattes a fim de permitir o registro dos períodos de licença-maternidade.
As estratégias citadas supõem avanços necessários no marco de uma igualdade de gênero jurídico-formal. Buscam colaborar na minimização dos efeitos decorrentes de fenômenos como os “pisos pegajosos” e os “tetos de vidro”, que determinam limites para os anseios das mulheres por igualdade e equidade no mercado de trabalho. Porém, têm muito pouca ou nenhuma incidência sobre a igualdade de gênero substantiva. As informações a seguir, extraídas do portal de notícias do CNPq (publicado em 11/02/2021)[4], demonstram que há ainda um longo caminho por trilhar.
Apesar de os números de mulheres com bolsas de iniciação científica e também as com mestrado e com doutorado serem superiores ao dos homens, as mulheres representam apenas 33% do total de bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq. [...]. Segundo dados da UNESCO, estima-se que apenas 30% dos cientistas do mundo sejam mulheres.
Além da representatividade, o relatório [da Elsevier] cita também a disparidade no número de publicações especializadas. Um estudo de 5,5 milhões de papers científicos assinados por 27,3 milhões de autores revelou que os homens produziram 70% desses textos e ocuparam a primeira autoria de 66% deles. Além disso, apenas 13% dos autores mais citados em publicações especializadas em 2014 eram mulheres. Esse número variou de acordo com a disciplina, de 3,7% nas Engenharias para 31% nas Ciências Sociais.
A professora de Bioquímica, Ângela Wyse, e a física Márcia Cristina Bernardes Barbosa, ambas professoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fazem parte dos 46% de mulheres docentes nas instituições de ensino superior do Brasil e dos 40,3% de pessoas do sexo feminino que declararam ter doutorado na Plataforma Lattes. Ambas são pesquisadoras premiadas. [...]. A professora Márcia Barbosa salienta que a sobrecarga das mulheres foi agravada na pandemia, afetando também sua produtividade. A cientista reflete sobre a necessidade de haver ações para amenizar a situação. “Na volta da pandemia será fundamental termos medidas compensatórias que atuem para que as mulheres não sejam ainda mais penalizadas em suas carreiras”, diz ela. [...]. Segundo a professora Márcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os desafios da carreira científica para as mulheres deveriam ser os mesmos que os homens enfrentam em sua vida profissional na academia, mas não são. “Na ciência, a diferença entre homens e mulheres opera em muitos níveis”, ressalta a professora. As dificuldades que começaram logo no início de sua vida acadêmica como aluna, com dúvidas sobre suas capacidades intelectual e profissional, se estenderam ao longo dos anos e continuaram mesmo após ela ter se tornado uma cientista premiada[5]. Com destaque em sua área de conhecimento, a professora Márcia Barbosa diz que recebe explicações sobre os temas em que é especialista[6] e ainda é ignorada quando opina, para depois ver colegas homens aplaudidos quando emitem ideias semelhantes.
A obra "Dark Academia: How Universities Die", produzida pelo economista Peter Fleming (2021), examina criticamente a situação atual das universidades e propõe uma análise profunda sobre os desafios que elas enfrentam. O autor descreve como as universidades estão passando por um declínio gradual, caracterizado por uma série de problemas internos e externos que ameaçam sua existência. Fleming argumenta que esse declínio é resultado de uma série de fatores, incluindo a comercialização da educação, o aumento da burocracia, a falta de financiamento adequado e a crescente pressão para produzir resultados quantificáveis em detrimento da qualidade educacional. Explora também o impacto da globalização e das novas tecnologias na transformação do ambiente acadêmico. Ao longo do livro, o autor oferece insights provocativos e propostas de mudança, visando revitalizar as universidades e preservar sua missão de promover o conhecimento e a educação.
Sobre a crescente pressão para produzir resultados quantificáveis em detrimento da qualidade educacional, Fleming (2021) explora em detalhes como as universidades estão sendo cada vez mais pressionadas a produzir resultados mensuráveis, muitas vezes às custas da qualidade educacional. Essa pressão pode ser atribuída a uma série de fatores, incluindo a competição entre instituições de ensino para atrair financiamento e estudantes, bem como a ênfase crescente em rankings e indicadores de desempenho. Como resultado, há uma tendência de que as universidades se concentrem em métricas tangíveis, como taxas de matrícula, taxas de conclusão e pontuações em testes padronizados, em detrimento de aspectos mais qualitativos da educação, como a capacidade de pensamento crítico, a criatividade e o engajamento dos/as/xs alunos/as/xs. Isso pode levar a uma perda do propósito das universidades como locais de aprendizado e descoberta, e a uma educação mais superficial e padronizada.
Quanto ao impacto da globalização e das novas tecnologias na transformação do ambiente acadêmico, o autor aborda a forma como as universidades operam e entregam a educação. A globalização trouxe consigo uma maior competição entre as instituições de ensino, bem como uma maior diversidade de discentes e perspectivas. Isso pode criar oportunidades para colaboração internacional e enriquecimento cultural, mas também desafios, como a necessidade de lidar com questões de diversidade e inclusão. Além disso, as novas tecnologias, como a internet e as plataformas de ensino online, têm revolucionado o acesso à educação, permitindo que os/as/xs alunos/as/xs estudem remotamente e a qualquer momento. Entretanto, isso também levanta questões sobre a qualidade do ensino online em comparação com o ensino presencial, bem como preocupações sobre a privacidade e a segurança dos dados.
Fleming (2021), em sua obra, não aborda especificamente o tema do burnout e suicídio em profesores/as/xs e alunos/as/xs nas universidades. Porém, essas questões são frequentemente discutidas em contextos relacionados à crise no ensino superior e ao ambiente acadêmico em geral. Assim, e como não podia ser diferente, também na obra do autor são trazidos à colação e discutidos alguns casos reais ocorridos em universidades do Norte Global.
O burnout entre professores/as/xs universitários/as/xs é uma preocupação crescente, com pesquisas indicando altos níveis de estresse, sobrecarga de trabalho e esgotamento emocional devido a uma série de fatores, incluindo pressões para publicar, ensinar e administrar simultaneamente. Isso pode ter sérias consequências para a saúde mental e bem-estar dos/as/xs professores/as/xs, afetando sua produtividade, satisfação no trabalho e qualidade de vida. (Bakker e Demerouti, 2007; Kyriacou, 2001; Maslach, Schaufeli e Leiter, 2001; Toker e Biron, 2012).
Da mesma forma, o suicídio entre estudantes universitários/as/xs também é uma questão alarmante, com estudos mostrando taxas de suicídio mais altas em estudantes universitários/as/xs do que na população em geral. Fatores como estresse acadêmico, pressão para ter sucesso, isolamento social e problemas de saúde mental podem contribuir para essa realidade preocupante. (Drum, Brownson, Burton-Denmark e Smith, 2009; Eisenberg, Hunt e Speer, 2013; Mortier, et al., 2018a; Mortier, et al., 2018b).
Faz-se necessário delimitar a noção de sofrimento a ser considerada neste estudo. Sobre o tema, o sociólogo Benno Herzog (2020), especialista em teoria crítica do conhecimento e análise do discurso, posiciona-se da seguinte forma:
Muitos autores apontam para alguma forma de sofrimento como a fonte ou âncora da crítica social (por exemplo, Honneth, 1997; Horkheirmer, 1988; Renault, 2010). O sofrimento como experiência vivida aponta para sua superação: [...] “El dolor habla: pasa”[7], como traduzido para o espanhol na Dialética Negativa (Adorno, 1992). Especialmente quando esse sofrimento está intimamente ligado ao nosso modo de vida, ele aponta para uma crítica social, uma crítica que transcende a organização social atual, produtora desse sofrimento. Em outras palavras: o sofrimento foi identificado por autores como Adorno e Horkheimer, bem como Axel Honneth, como uma chave para a atualização de uma crítica imanente, aquele modelo de crítica que busca desenvolver "novos princípios para o mundo com base nos próprios princípios do mundo" (Marx, 2014). ‘Imanente’ porque se baseia no sofrimento real como uma experiência moral e pré-cientificamente existente; e ‘crítica’ porque visa transcender as relações sociais identificadas como patológicas (p. 129, tradução nossa).
Argumenta Herzog (2020) que, à diferença da dor ou do padecimento estritamente físico, o sofrimento social contém sempre um elemento moral, enquanto experiência de perda ou isolamento social. Portanto, a tarefa sociológica consiste em investigar o significado social do sofrimento social e das lutas por reconhecimento deste sofrimento. E analisar o sofrimento é analisar as narrativas de sofrimento, que, em última instância, são também uma narrativa sobre a sociedade. Porque o sofrimento social é uma indignação moral sobre as relações sociais que, em tese, poderiam evitar ou mesmo abolir tal sofrimento. É uma indignação social, atrelada a uma narrativa convicta de que o entramado social tem capacidade para proporcionar melhores condições de vida para todos/as/xs. Entretanto, há vários mecanismos que impedem o surgimento da comunicação e o entendimento das narrativas de sofrimento e suas correspondentes demandas reparatórias. Trata-se, pois, dos mecanismos de invisibilização do sofrimento. A invisibilização da voz do sofrimento dos demais impossibilita ou dificulta um sofrimento empático, de modo que são necessárias técnicas ativas de silenciamento do sofrimento a fim de evitar que se sofra com o padecimento alheio. Finalmente, “o círculo vicioso entre invisibilidade, por um lado, e sofrimento, por outro, dificulta a percepção pública, e com isso a negociação discursiva no espaço público do sofrimento de grupos marginalizados” (Herzog, 2020, p. 135, tradução nossa).
Em um levantamento feito na base de dados da Web of Science (WOS), com os termos ‘suffering’ (abstract) e ‘academia’ (abstract), foram encontrados 523 artigos, majoritariamente concentrados em Engenharia, Ciência da Computação e Telecomunicações (55,6%). Menos de 5% do total aparece em Educação, e uma cifra ainda menor aparece nas Ciências Sociais Multidisciplinares (3%). Do total indicado, o artigo de maior relevância, segundo critérios da WOS, é de autoria feminina, de Montes-López e Groves (2019), e versa sobre:
A história da universidade tem sido a história de uma instituição patriarcal tradicionalmente dominada por homens. O objetivo deste artigo é mostrar que as mulheres sofreram e continuam sofrendo um tratamento desigual na academia. A metodologia utilizada é qualitativa, utilizando quarenta e três entrevistas em profundidade com acadêmicos de uma universidade pública espanhola. Dos seus discursos emergem experiências e práticas que violam o direito à igualdade na academia. Dentre elas, damos especial atenção àquelas que podem ser definidas como micromachismo nas relações de trabalho dentro da universidade e relacionadas à discriminação contra a mulher no desenvolvimento da carreira profissional. Esses resultados mostram que a igualdade de gênero continua sendo uma aspiração caduca nas universidades (p.1, tradução nossa).
Aplicando as chaves de busca ‘researching work’ e ‘precarious’ e ‘higher education’ na WOS, obteve-se como resultado um total de 72 artigos, publicados entre 1999 e 2013. Ressalta-se a existência de apenas uma publicação em 1999, nenhuma publicação entre 2000-2011, um total de 19 publicações entre 2012-2017, e uma concentração de 52 publicações nos últimos anos (entre 2018-2023). Com as chaves ‘teaching work’ e ‘precarious’ e ‘higher education’, o resultado foi inferior: 40 publicações (período: 2008/2012-2023), cujo resultado se avoluma entre os anos 2018 e 2023 (65%). E com as chaves ‘academia’ e ‘gender’ e ‘precarious’, achou-se a ínfima cifra de 14 publicações, com a seguinte sequência temporal: 1 publicação em 2014; nenhuma em 2015-2017; e todas as demais agrupadas no período 2018-2023.
Utilizando as chaves de busca ‘researching work’ e ‘precarious’ e ‘higher education’ e ‘discourse analysis’, encontrou-se apenas um artigo, sendo ele de autoria feminina e publicação recente (Antonopoulou e Dare, 2022). As autoras comentam a realidade confusa da experiência vivida e as condições de trabalho cada vez mais precárias dos e das acadêmicas, cujo desempenho está exposto à métrica intensificada em instituições cada vez mais orientadas a dados. Questionam como é possível combater a redução da pesquisa qualitativa a meros painéis e pontuações produzidos por Big Data e informações computacionais apresentadas como inequivocamente neutras, estáveis, monolíticas ou universais. As autoras enfatizam que isso replica uma projeção colonial de conhecimento, uma monológica, que centra toda a verdade no Norte Global e serve a uma voraz ideologia neoliberal antiacadêmica que precisa ser trazida à tona e submetida a um discurso honesto, longe do exagero hiperrealista e do desejo gerencial.
Finalmente, com chaves ‘teaching work’ e ‘precarious’ e ‘higher education’ e ‘discourse analysis’, foram identificados somente dois artigos: o indicado antes e outro que discute a “gigificação” no Ensino Superior (Kouritzin et al., 2022). O termo nomeia a contratação de trabalhadores e trabalhadoras independentes para cargos curtos e baseados em projetos, processo já bastante frequente nas universidades privadas espanholas, por exemplo, e que vem avançando, ademais, para as universidades públicas. O artigo documenta a frustração e a exploração sofrida por instrutores de inglês como segunda língua para fins acadêmicos em universidades canadenses, enquanto profissionais submetidos a uma competição de acirramento crescente, com salários cada vez mais reduzidos e jornadas de trabalho ‘infinitas’, constantemente vigiados e duramente avaliados. É sabido que essa tem sido também a realidade de docentes e acadêmicos/as/xs contratados por universidades privadas no Brasil. Isso afeta negativamente a qualidade de vida dos/as/xs profissionais de ensino superior, além de precarizar e mesmo inviabilizar a produção de ciência, abrindo espaço para a instauração de obscurantismos no campo do saber e o enraizamento e proliferação da desinformação. Aponta, inclusive, para um cenário preocupante em caso de que se ceda aos apelos de privatização das universidades públicas.
3 CEGUEIRA DE GÊNERO
A pandemia causada pelo novo coronavírus fez eclodir e potencializar, ao menos em países como o Brasil, uma série de violências estruturais, de tipo ético-políticas, exercidas contra grupos sociais vulnerabilizados. Pessoas abandonadas à própria sorte, vivendo em ambientes insalubres e inumanos. Pessoas dependentes de um sistema de saúde pública debilitado e colapsado. Pessoas ficando desempregadas ou tendo que arriscar a própria vida para não perder o único meio de sustento. Pessoas perdendo a possibilidade de estudar por não dispor de computador e acesso à internet. Pessoas passando fome, perdendo suas casas por não conseguir pagar o aluguel. Pessoas subalternizadas, racializadas. A lista é larga; larga e cruel.
No tocante a questões de gênero, viu-se ocorrer, tanto no Norte quanto no Sul Global, um crescimento avassalador da violência contra as mulheres no período de confinamento (ONU Mulheres, 2020). Em um momento em que milhões de pessoas, para salvar suas vidas, foram forçadas a se refugiar em casa diante do contágio global da COVID-19, muitas mulheres ficaram mais expostas do que nunca à violência machista.
Felizmente, casos como os que foram listados anteriormente têm sido objeto de estudo de uma infinidade de pesquisas. Entretanto, o mesmo não ocorre com as questões que norteiam este estudo: em que condições vitais o conhecimento é produzido; se existe desigualdade de gênero nessas condições; e que consequências socio epistemológicas isso acarreta.
3.1 (DES)IGUALDADE SUBSTANTIVA
Um artigo de divulgação científica publicado em 2020 na revista Nature – “Are women publishing less during the pandemic? Here's what the data say”, de autoria de Giuliana Viglione – indicou que, durante a pandemia, as mulheres acadêmicas estavam produzindo menos pré-impressões de textos científicos e iniciando menos projetos de pesquisa do que seus colegas homens. Em todas as disciplinas, as taxas de publicação das mulheres diminuíram significativamente em relação às dos homens. À medida que a crise sanitária se desenrolava, transformando muitos lares em todo o mundo, da noite para o dia, em uma interseção de trabalho, escola e tarefas domésticas, as mulheres acadêmicas assumiram maiores responsabilidades de cuidados e estavam ficando atrás de seus colegas homens no que diz respeito à produção científica.
A desigualdade e a violência têm várias nuances e múltiplas camadas. Além disso, ambas são frequentemente afetadas por sobreposições e ocultações. Visualizá-las e compreendê-las é uma tarefa política da ciência. Quando a desigualdade de gênero atinge a produção científica, é possível pensar que o conhecimento oferecido à sociedade partirá de um a priori enviesado, tendencioso. A consequência é que sobre este sesgo – ou cegueira de gênero – será erguida e revisada a estrutura normativa que governará as interações e relações humanas.
A igualdade de gênero substantiva requer a superação da cegueira de gênero, a remoção de “barreiras simbólicas, representações internalizadas que legitimam as várias formas de desigualdade entre os diferentes, criando o solo fértil para a proliferação dos estereótipos, dos estigmas e (daí a um passo) da violência” (Guimarães, 2016). A igualdade substantiva foi um conceito fundamental nos trabalhos do filósofo István Mészáros, e “parte da problematização de alguns princípios que formaram o alicerce ideológico, político e econômico da modernidade, como são a liberdade e a igualdade” (Oliveira, 2018, p. 91).
A noção de igualdade substantiva é tomada pelo seu potencial articulador da vida social, na construção de um mundo em que prevaleça os laços propriamente socialistas, a partir da cooperação irrestrita de “sujeitos livremente associados”. A igualdade substantiva aparece como aspecto imprescindível ao qual um outro modo de vida deverá ser construído (Oliveira, 2018, p. 91).
Por conseguinte, entende-se que a construção da igualdade substantiva de gênero passa, inexoravelmente, por pensar as condições da produção do conhecimento, na atualidade da lógica acelerada de vida e no contexto de precarização das universidades neoliberais, sob a égide de uma epistemologia feminista, uma teoria feminista do conhecimento, ou ainda um projeto feminista de ciência.
3.2 VIOLÊNCIA EPISTÊMICA
Quando o conhecimento nasce partindo de uma cegueira de gênero, o que se tem diante de si é um processo de violência epistêmica.
A violência epistêmica é entendida como uma série de discursos sistemáticos, regulares e repetidos que não toleram epistemologias alternativas e buscam negar a alteridade e a subjetividade de outros de forma a perpetuar a opressão de seu conhecimento e justificar sua dominação. Ou seja, a violência exercida por meio de regimes de conhecimento e a repressão epistemológica de outros por meio da depreciação e invalidação de seu próprio conhecimento com base em determinados regimes discursivos universais. (Tirado, 2009, p. 173).
Talvez não seja mais do que pedir que o subtexto da narrativa do imperialismo de restauração dos caracteres primitivos seja reconhecido como "conhecimento subjugado", um corpo total de conhecimento que foi desqualificado como inadequado à sua tarefa ou insuficientemente elaborado: conhecimento ingênuo, localizado na base da hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição ou cientificidade (Spivak, 2003, p. 317, tradução nossa).
A fim de ilustrar a problemática da violência epistêmica e seu alcance, merece destaque uma fala da ativista social Indianarae Siqueira – autodenominada “transvestigênere-pute” – que aparece no segundo documentário a ela dedicado, “Aconchego da tua Mãe”, produzido por Adam Golub e lançado em 2020. Ela comenta, em um evento dentro de uma universidade, que queimaria todos os livros, artigos, enfim, o acervo das universidades, e as próprias universidades, porque como instituições historicamente elitistas e patriarcais, o conhecimento que elas produzem e disseminam não a representa; pior do que isso, para a ciência ela é uma aberração, um não-sujeito.
3.3 EPISTEMOLOGIA FEMINISTA
Margareth Rago (1998), em um trabalho sobre epistemologia feminista, gênero e história (e que, segundo as métricas do Google Acadêmico, foi citado 767 vezes), que no final do século XX, ao menos no Brasil, não havia nem certezas nem clarezas quanto à elaboração de uma teoria feminista do conhecimento. Comenta que o tema era pouco debatido nas rodas feministas, e que o debate já chegava pronto, traduzido pelas publicações de autoras do Hemisfério Norte. Além disso, ela informa que para muitas feministas essa temática era de escassa relevância para o “feminismo dos trópicos”, uma vez que a urgência dos problemas e a necessidade de rápidas intervenções sociais restavam tempo da agenda de pautas de ação para maiores reflexões filosóficas. Algo com o qual ela não concordava, posto que defendia com veemência a necessidade da construção de uma ou várias epistemologia/s feminista/s como forma de emancipação, na esteia da igualdade substantiva sustentada por István Mészáros.
Contrariando posições […], se considerarmos que a epistemologia define um campo e uma forma de produção do conhecimento, o campo conceitual a partir do qual operamos ao produzir o conhecimento científico, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito-objeto do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade com que operamos, deveríamos prestar atenção ao movimento de constituição de uma (ou seriam várias?) epistemologia feminista, ou de um projeto feminista de ciência. O feminismo não apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, como também propõe um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera. Além disso, se consideramos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já classificaram como das margens, da construção miúda, da gestão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem, ou na produção de um contradiscurso, […]. Não é demais reafirmar que os principais pontos da crítica feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particularista, ideológico, racista e sexista: o saber ocidental opera no interior da lógica da identidade, valendo-se de categorias reflexivas, incapazes de pensar a diferença. Em outras palavras, atacam as feministas, os conceitos com que trabalham as Ciências Humanas são identitários e, portanto, excludentes. Pensa-se a partir de um conceito universal de homem, que remete ao branco-heterossexual-civilizado-do-Primeiro-Mundo, deixando-se de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência. Da mesma forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hierarquizadas em relação às femininas, o mundo privado sendo considerado de menor importância frente à esfera pública, no imaginário ocidental. Portanto, as noções de objetividade e de neutralidade que garantiam a veracidade do conhecimento caem por terra, no mesmo movimento em que se denuncia o quanto os padrões de normatividade científica são impregnados por valores masculinos, raramente filóginos. Mais do que nunca, a crítica feminista evidencia as relações de poder constitutivas da produção dos saberes, como aponta, de outro lado, Michel Foucault. Este questionara radicalmente as representações que orientavam a produção do conhecimento científico, tida como o ato de revelação da essência inerente à coisa, a partir do desvendamento do que se considerava a aparência enganosa e ideológica do fenômeno (Rago, 1998, p. 22-23, grifos dos autores).
Assim mesmo, Rago (1998) sinalizava a participação do feminismo na ampla crítica cultural, teórica, epistemológica em curso, ao lado da Psicanálise, da Hermenêutica, da Teoria Crítica Marxista, do Desconstrutivismo e do Pós-modernismo. Nessa linha, encontra-se a necessidade de ancorar este estudo no fértil terreno da memória e do discurso. A Memória Social refere-se à maneira como os grupos sociais constroem, compartilham e interpretam suas memórias coletivas. Ela influencia profundamente a forma como entendemos o passado e o presente, moldando identidades individuais e coletivas. Na Análise do Discurso, a Memória Social pode ser explorada através da investigação dos discursos que moldam e são moldados pela memória coletiva. Isso inclui discursos sobre história, identidade, cultura e pertencimento que são transmitidos e reproduzidos através da linguagem.
Cabe trazer à colação o trabalho de Briana Toole (2022), que assumiu o desafio de repensar a questão da objetividade científica a fim de discutir as condições de possibilidade de uma epistemologia feminista. Nesse sentido, traçou a concepção restrita da objetividade até às suas origens políticas e propôs uma compreensão mais ampla do conceito, reimaginando um novo uso dele, que não ignora totalmente as características consideradas subjetivas. A autora inicia seu texto com a seguinte reflexão:
Antigamente, a pedra filosofal da objetividade era a eliminação de características subjetivas, como nossos valores, preconceitos, suposições e assim por diante. Parte do que motiva essa concepção restrita de objetividade é o pensamento de que a realidade objetiva é como ela é, independentemente de nossa relação com ela, e que nossa capacidade de descrever ou retratar com precisão essa realidade é distorcida por essa relação. Mas e se esse entendimento estiver errado e a remoção dessas características nos afastar da verdade e do conhecimento, em vez de nos aproximar deles? (Toole, 2022, p. 1, tradução nossa).
Toole (2022) advoga por uma nova noção de objetividade, já que a “visão de lugar nenhum” (isenta ou afastada das crenças, valores, representações culturais, enfim, que evita, se sobrepõe ou se transparenta às influências sociais que atravessam o processo de construção dos sujeitos), não leva a ciência necessariamente a um melhor conhecimento e, mais do que isso, impede a ciência de produzir novos conhecimentos. Ela sugere que a noção de objetividade em si, ou objetividade pura, não é isenta de valores. Então, o compromisso com esse ideal de objetividade neutra (que ela nomeia de ‘aperspectiva’), não apenas elimina os “males da ideologia”, mas disfarça esses males e os mascara, ou os representa erroneamente como objetivos. Consequentemente, uma nova concepção de objetividade é necessária para que o subjetivo não seja disfarçado de objetivo, e, desse modo, seja permitido atender à influência das características subjetivas na produção de conhecimento.
O desafio de alcançar a objetividade, segundo Toole (2022), não mais se baseia na capacidade de abstração de valores e preconceitos, mas, sim, em observar as maneiras pelas quais essas características de fato estão a influenciar (e, às vezes, distorcer) a investigação, a pesquisa. Para a autora, a estratégia mais adequada para alcançar este objetivo é aquela que permite tornar o familiar estranho, de modo que se enxergue que o que se considera como suposição básica padrão, universal, e que, portanto, dificilmente merecem atenção, no sentido de problematização, não são compartilhadas por todos os indivíduos ou comunidades. Essa é a proposta trazida pela epistemologia feminista, para a qual a objetividade deve ser caracterizada por um processo de investigação comunitária que envolva vários pontos de vista diferentes. Esse processo permite aos investigadores extrair as características idiossincráticas dos membros da comunidade que podem estar moldando a investigação e que, de outra forma, poderiam passar despercebidas pelos membros da comunidade. Portanto, segundo essa visão, a objetividade é uma característica das comunidades sociais e historicamente situadas, não de indivíduos que subtraem da produção do conhecimento seus corpos e consciências para suspender-se artificialmente do tempo-espaço social e experiencial a fim de alcançar uma verdade universal. Essa é a afirmação que as epistemólogas feministas procuram motivar e defender (Toole, 2022).
Esse processo permite que os investigadores extraiam as características idiossincráticas dos membros da comunidade que podem estar moldando a investigação e que, de outra forma, poderiam passar despercebidas pelos membros da comunidade. Portanto, segundo essa visão, a objetividade é uma característica das comunidades, não dos indivíduos. Essa é a afirmação que as epistemólogas feministas procuram motivar e defender. Qualquer pesquisador individual dentro de uma comunidade homogênea provavelmente não perceberá a água em que nada, ou seja, os valores e as pressuposições assumidos que orientaram sua pesquisa. Portanto, para alcançar uma objetividade forte, é necessário que o pesquisador seja colocado em uma comunidade heterogênea, que inclua membros que talvez não compartilhem as suposições assumidas que podem ter moldado a pesquisa. As epistemólogas feministas sustentam que a objetividade é alcançada em uma comunidade de pesquisadores por meio de um processo de crítica intersubjetiva (Toole, 2022, p. 12-13, tradução e grifo nossos).
Cabe indicar que, pesquisando por ‘feminist epistemology’ na base de dados WOS, foram encontradas apenas 122 publicações. Cerca de 40% estão concentradas no campo da Filosofia, 26% no campo dos Estudos da Mulher ou Estudos de Gênero, e 10% na História da Filosofia da Ciência. No âmbito das Ciências Sociais Interdisciplinares, encontrou-se um percentual de aproximadamente 8,2%. Na categoria “Humanidades Multidisciplinares”, a porcentagem gira em torno de 4%, enquanto nas “Ciências Multidisciplinares” o valor identificado é ainda menor: cerca de 2,5%. No âmbito dos Estudos Culturais e dos Estudos da Linguagem, o percentual sequer alcança 1%.
4 MEMÓRIA E DISCURSO
A hipótese deste artigo é a existência de um sofrimento invisibilizado na produção do conhecimento, no contexto contemporâneo de aceleração e precarização das universidades neoliberais, que é experienciado de maneira desigual entre corpos masculinos, femininos, racializados e LGBTQIAPN+, que precisa ser visibilizado, analisado e informado pelos estudos da Memória Social e Discursiva, e cujos impactos na construção do saber exigem uma revisão apoiada por e para uma epistemologia feminista, que se projete para além das fronteiras dos estudos filosóficos e de gênero.
As reflexões sobre epistemologia feminista, como proposta de uma nova forma de conceber a produção do conhecimento, apresentam aderência aos estudos de Memória Social, à Análise do Discurso de vertente francesa, à Teoria da Informação e a Ciência da Informação. Quanto à Memória Social:
Quando as contingências sociais se transformam, outros problemas são descobertos. É preciso, então, fabricar novos conceitos para respondê-los. Nem por isso os conceitos existentes perdem o seu vigor; eles permanecem pertinentes em relação aos problemas anteriores, e que se mantêm como tal. Mas eles não são suficientes para responder aos novos. [...] Mesmo que já disponhamos de considerável bibliografia sobre memória social, os conceitos que ela apresenta emergiram, na maior parte das vezes, de perguntas diferentes daquelas que hoje formulamos (Gondar et al., 2005, p. 8-9).
Sobre a Análise do Discurso de vertente francesa, Terra et al. (2018) destacam três importantes referenciais teórico-metodológicos emergentes na década de sessenta (período em que os estudos de Análise Documentária ganharam vigor na França), a saber: a linha de Michel Pêcheux (trazida para o Brasil por Eni Orlandi); a linha sociolinguística, representada por Baptiste Marcellesi, Louis Guespin, Jean Bernard Gardin e Jean Dubois, dentre outros; e a linha de Michel Foucault. Cada uma delas tem a sua especificidade, com pontos de convergência e distanciamento, até mesmo algum antagonismo. Ainda assim, elas podem ser complementares.
Afirmam Rolim et al. (2018) que a análise do discurso pecheutiana é uma disciplina de entremeio (ciência não-positivista), tributária da Psicanálise, da Linguística e do Marxismo, ainda que não de maneira servil. Não corresponde totalmente ao que teoriza a Psicanálise, porque, considerando a historicidade, opera a ideologia como materialmente vinculada ao inconsciente sem ser absorvido por ele. Trabalha a noção de discurso, que não é objeto da Linguística, e a interpela quanto à desconsideração da historicidade. Não se deixa tragar inteiramente pela Teoria Marxista, uma vez que questiona o Materialismo Histórico no que se refere ao simbólico.
Pêcheux, em sua teoria, faz várias referências a Lacan e a Althusser, sobretudo, no que tange ao inconsciente e à ideologia na constituição do sujeito (ORLANDI, 2003, 2007). Salienta-se que, nessa perspectiva, a língua é fato social, e não é uma estrutura fechada em si mesma. É lugar de tensões. Ela está sujeita a equívocos, isto é, falhas, lapsos, deslizamentos, mal-entendidos e ambiguidades. O discurso é entendido, na visão de Pêcheux, como efeito de sentido entre locutores (ORLANDI, 2007). [...]. Todo processo discursivo, segundo Pêcheux (1995, p. 92), se inscreve numa relação ideológica da disputa entre classes. Por conseguinte, “a relação com a linguagem não é jamais inocente, não é uma relação com as evidências e poderá se situar face à articulação do simbólico com o político” (ORLANDI, 2007 p.95). A luta de classes é um dos fios que conduzirá a Análise do Discurso vinculada a Pêcheux. O filósofo francês nunca separou teoria de política. A teoria, para ele, deve intervir na luta política, pensar o funcionamento e o papel das ideologias e da resistência (GREGOLIN, 2004). A segunda vertente, designada de sociolinguística de Análise do Discurso, por seu turno, tem a Linguística como seu solo epistemológico, no entanto uma Linguística ampliada, renovada, a qual não deixa de fora de suas análises os aspectos sociais, os quais não foram problematizados pela Linguística estruturalista. [...]. É importante sublinhar que as análises sociolinguísticas do discurso são marcadas por exames contrastivos e comparativos que valorizam o discurso político (MARCELLESI, 1971). A Sociolinguística é caracterizada por um diálogo interdisciplinar entre Linguística e outras ciências sociais, especialmente, o marxismo (NARZETTI, 2010). A vertente sociolinguística francesa contribui com o reaparecimento de discussões sobre as relações entre a língua e o social. [...]. Desse modo, um olhar sobre um texto do ponto de sua estruturação em língua faz dele um enunciado; um estudo linguístico das condições de produção deste texto fará dele um discurso. Por seu turno, a terceira vertente, a foucaultiana, não está situada na Linguística. Embora trate do discurso, não realiza uma análise do sentido. A análise arqueológica busca o fato do aparecimento histórico de um discurso. [...]. Na perspectiva foucaultiana, fazer aparecer o espaço em que se desenrolam os acontecimentos discursivos não é tentar restituí-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é encerrá-lo em si mesmo; é tornar-se livre, a fim de descrever, nele e fora dele, jogos de relações (FOUCAULT, 2008, p.32). [...]. Portanto, o discurso, sustenta Foucault (2008, p.61) [...] [é] um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. [...]. (Terra et al., 2018, p. 6-8, grifos nosso).
Quanto à Teoria da Informação, merecem destaque as considerações de Gustavo Saldanha (2020) e Maria Nélida González de Gómez (1993):
Exatamente por esta razão a linha de argumentação de longa duração que aqui chamamos de tradição pragmática chama atenção para uma permanente revisão das propostas teóricas e seus contextos ao longo da história da área voltada para a organização do conhecimento. Esta tradição nos chama atenção para o fato de que o próprio conhecimento não é um produto fechado e intocável, mas fruto de uma construção compartilhada de significados, cercada por imaginários que contribuem para sua presentificação no seio das sociedades. (Saldanha, 2020, p. 178). [...] a área de estudos informacionais não comporta um consenso geral – não pode e nem deve sustentar-se a partir de um macro-consenso, a macro-teoria da informação – e a dispersão das correntes demonstra a despreocupação com este ecumenismo. [...] Enquanto ciência que faz uma leitura científica das disciplinas do conhecimento – recolhe, reconhece, classifica, organiza, preserva os documentos produzidos pelos seres humanos – a epistemologia informacional se movimenta sob um golfo cercado por inumeráveis faróis. (Saldanha, 2020, p. 174).
Hoje, percebem-se sintomas de uma incipiente mudança nos critérios de relevância: da ênfase nos sistemas e nas leituras estruturais à ênfase nos atores sociais e suas ações de comunicação/informação, colocando-se em um novo escopo a questão da significação. Novas orientações nos estudos da linguagem, entre as quais aquelas que retornam as teses de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem, as reformulações da pragmática ou da sociolingüística, a teoria dos atos de enunciação e a teoria da ação comunicativa de Habermas, entre outras, incorporam novos horizontes para a problematização da representação. Por outro lado, se as novas tecnologias e a globalização dos mercados da informação apostam numa megaesfera de informação digitalizada, são também crescentes as preocupações com a autonomia cultural e com o papel das memórias tradicionais e locais. (González de Gómez, 1993, p. 222).
A respeito da Ciência da Informação, segundo Araújo (2003), o movimento que ela adotou é marcado por uma nova conceitualização do que é ciência e da natureza do saber científico, no sentido de contribuir com novos conhecimentos, de maneira inter e mesmo transdisciplinar, no contexto do pensamento complexo possibilitado pela revinculação dos saberes, tarefa que exige soluções inovativas e plurais.
Essa nova concepção de ciência estaria, assim, na origem mesma da construção do campo da ciência da informação, já que “information science is not to be looked at as a classical discipline, but as a prototype of the new kind of science” (Wersig, 1993, p. 235)[8]. […] é, por pretender se aproximar da “ciência pós-moderna”, superando os limites do modelo até então dominante, buscando superar seus impasses metodológicos simplificadores e abarcar um pensamento pautado pela complexidade, que a ciência da informação evolui para novas etapas de diálogo e inserção nas ciências sociais. […] A “ciência pós-moderna” (Santos, 1996) é entendida como o movimento de superação da crise do paradigma científico dominante desde o século XVII, pela superação do modelo de racionalidade cartesiana, de separação do sujeito e do objeto, a busca da ordem, a separabilidade dos elementos constituintes da realidade, movimento esse motivado pelas crises geradas com a evolução e a aplicação do conhecimento científico, tais como as guerras, os regimes totalitários, a poluição e os desastres ecológicos, a exclusão do acesso ao conhecimento, reforço das desigualdades socioeconômicas, a sofisticação dos instrumentos de dominação (Adorno, Horkheimer, 1990) (Araújo, 2003, p. 26).
O ponto de vista da atual Ciência e Teoria da Informação parecem estar afinados com sustentações apresentadas neste artigo. Maria Nélida González de Gómez (2009) destaca que a reflexão epistemológica proporciona uma oportunidade de autoconhecimento por meio de um exercício de pensamento. Esse processo, quando expresso em discursos e processos argumentativos, possibilita a crítica e o diálogo entre diferentes perspectivas, ampliando as bases de conhecimento das comunidades de reflexão. Isso ocorre ao tornar visíveis áreas de investigação anteriormente obscuras, o que favorece a construção de novos saberes. Além disso, ao identificar os temas centrais de relevância e as questões em aberto, a reflexão epistemológica contribui para o desenvolvimento da autonomia de um campo de conhecimento e enriquece as relações entre disciplinas, bem como com outras áreas e formas de saber, promovendo o reconhecimento das áreas de convergência, divergência, sobreposição, exclusão ou compartilhamento.
A memória, entendida como produto da interseção de histórias pessoais e sociais, concebe o indivíduo como agente interpretativo autônomo, porém relacionado ao universo cultural no qual está inserido. A construção do passado, embora assentado em quadros de significação e contextos culturais específicos, não deixa de estar forjado pelas experiências emocionais e expectativas individuais de cada indivíduos. Enquanto quadro de significação que permite conciliar suas dimensões coletivas e individuais, a memória refere-se a um processo mediante o qual as experiências individuais se organizam em atividades socialmente significativas (Peralta, 2007).
Assim, a proposta de centrar as questões deste artigo no seio dos estudos de Memória e Linguagem encontra fundamento no fato de que esta linha consegue focalizar de perto as complexas articulações entre linguagem e identidade, encontrando um elo na noção de representação. Vê-se em Ferreira e Orrico (2002) que “as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. [...] Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memoria (constituição) e o da atualidade (formulação)”.
5 CONCLUSÃO
A partir das Ciências Humanas e Sociais, a universidade costuma examinar a sociedade tentando entendê-la e propor ferramentas, estratégias e políticas capazes de melhorar a existência e a convivência dos seres humanos. No entanto, raramente a universidade se converte em seu próprio objeto de análise científica. Urge que a academia se debruce sobre si mesma, a fim de repensar as condições da produção intelectual e seus produtos a partir de uma perspectiva de gênero interseccional.
Desigualdade, precarização e sofrimento são parte de um conjunto maior de desafios enfrentados pelo universo acadêmico que merecem cuidadosa atenção e consideração por parte das universidades, dos/as/xs pesquisadores/as/xs e dos/as/xs formuladores/as/xs de políticas. Tais questões não podem mais ser menosprezadas e postergadas. Nem mesmo ante o temor aos ataques ao conhecimento científico e ao saber crítico-reflexivo proferidos pelo obscurantismo fascista. A pretensão deste artigo diz respeito a provocar movimentos de compreensão desse conjunto maior de desafios, a partir dos enunciados postos aqui em discussão.
Assim mesmo, é de grande ajuda a obra "Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico", organizada por Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, publicada em 2021. Ela oferece uma análise perspicaz sobre como o neoliberalismo molda e influencia o sofrimento psicológico (individual e coletivo), destacando a necessidade de uma abordagem política e social para lidar com todo um conjunto de práticas de gerenciamento do mal-estar capaz de extrair um a-mais de produtividade das pessoas.
Os autores contextualizam o neoliberalismo como um paradigma econômico e político que se estende para além de tais esferas, afetando profundamente a subjetividade das pessoas e as estruturas sociais. Eles argumentam que o neoliberalismo não apenas explora o trabalho e os recursos naturais, mas gerencia o sofrimento psíquico via mecanismos de individualização, precarização do trabalho e exacerbação da competição. Promove uma cultura na qual cada indivíduo é responsável por seu próprio sucesso ou fracasso, o que leva à intensificação do estresse, da angústia e do isolamento social. A flexibilização e precarização do trabalho no modelo neoliberal contribuem para a insegurança econômica e emocional das pessoas. A pressão por produtividade e a ameaça constante de desemprego geram um estado de constante tensão, ansiedade e aflição. Os autores discutem como o sofrimento psíquico é muitas vezes medicalizado e tratado apenas como um problema individual, desconsiderando os aspectos sociais e políticos mais amplos que o influenciam. Por fim, eles sugerem a necessidade de resistência coletiva e alternativas políticas para combater os efeitos desumanizantes do neoliberalismo na saúde mental. Isso inclui formas de solidariedade, organização sindical e luta por políticas públicas mais inclusivas e igualitárias.
Inspirada nas reflexões supramencionadas, a obra de Heribaldo Maia, "Neoliberalismo e Sofrimento Psíquico: O Mal-estar nas Universidades", publicada no ano seguinte (2022), examina a interseção entre neoliberalismo e sofrimento psíquico no contexto específico das universidades. Descreve como as políticas neoliberais têm avançado e impactado de modo profundo a estrutura e o funcionamento das instituições de ensino superior na atualidade. Discute como a lógica do mercado vem induzindo a comercialização do conhecimento e a transformação da educação em mercadoria, criando uma pressão crescente por resultados imediatos e quantificáveis, e uma cultura de competição entre as instituições, entre os docentes/xs e os/as/xs pesquisadores/as/xs, e mesmo entre os/as/xs próprios/as/xs estudantes/xs.
Quanto à precarização das condições laborais como decorrência da ação das políticas neoliberais nas universidades, o autor destaca a terceirização, a proliferação de contratos temporários e a intensificação do trabalho. Analisa os efeitos do contexto neoliberal no bem-estar psicológico de membros/as/xs da comunidade universitária, manifestado na forma de altos níveis de estresse, ansiedade, depressão e esgotamento. Argumenta que o neoliberalismo tem impactado negativamente a produção do conhecimento nas universidades, priorizando áreas consideradas rentáveis em detrimento das humanidades e das ciências sociais, e restringindo a liberdade acadêmica. É uma das poucas obras (quiçá a única neste momento), que aborda os desafios enfrentados pelos/as/xs atores/as/xs das instituições de ensino superior no Brasil frente ao avanço do neoliberalismo nestes espaços, e culmina tecendo reflexões sobre possibilidades de resistência e alternativas políticas capazes de conter o crescimento dessa ideologia nas universidades e centros de pesquisa brasileiros.
Isto posto, e considerando as reflexões apresentadas ao longo deste artigo, resta evidente o imperioso que resulta ser a consecução de pesquisas empíricas que tenham como objeto de estudo o universo acadêmico contemporâneo, em especial aquelas que se empenhem em realizar trabalhos de campo vertidos sobre fontes diretas (vivas, pulsantes), com o propósito de aprofundar nos enunciados trazidos à colação neste manuscrito. Há porões dentro de porões que não estão sendo registrados, catalogados, como se não tivessem inscrição no real. Eles precisam ser destacados, abertos, ventilados e analisados de maneira sensível, seguindo uma ética do cuidado. Cuidado com pessoas, histórias, seus saberes e conhecimentos. Isso passa pela problematização de uma igualdade objetiva de amplo espectro, mas precisa se consolidar em uma igualdade substantiva para alcançar consistência. Essa é uma das razões para repensar o conhecimento a partir de uma epistemologia feminista.
Considera-se que tais pesquisas devem se estruturar teórica e metodologicamente sob os ditames da interseccionalidade, ser fundamentalmente qualitativas (ainda que não somente), transculturais, e multimodais quanto ao emprego de métodos e técnicas de investigação. Porque os levantamentos reunidos neste artigo indicam que sua hipótese – isto é, a existência de um sofrimento invisibilizado no processo de produção do conhecimento, no contexto contemporâneo de aceleração e precarização das universidades neoliberais, que é experienciado de maneira interseccionalmente desigual entre corpos masculinos, femininos, racializados e LGBTQIA+, e cujos impactos na construção do saber exigem uma revisão apoiada por e para uma epistemologia feminista crítica e marginal, com vistas a evidenciar e superar a cegueira de gênero e suas consequências perniciosas – possui peso e relevância significativos, tanto do ponto de vista científico-epistemológico, quanto do ponto de vista histórico, psicossocial, mnemônico, sociocultural e político.
Foucault concebe as instituições como dispositivos de poder. As universidades – assim como os institutos de pesquisa, que, no Brasil, não subsistem sem elas – são espaços de produção de saber e produção de discursos de verdade. São, portanto, dispositivos de saber-poder construtores de verdades que nomeiam ordenam o real, incidindo sobre ele. Ainda que não sejam os únicos dispositivos de saber-poder que operam no real, as universidades e institutos de pesquisa agem na construção de imaginários e representações com desdobramentos históricos, socioculturais e políticos, sobre o bem-viver, sobre o que pode ser lembrado e o que deve ser esquecido.
Mas universidades e institutos de pesquisa também são (ou deveriam ser) o lugar que propicia e promove o exercício do pensar crítico-reflexivo. De natureza diversa àquela que configura e sustenta os imaginários e as representações, o pensar crítico-reflexivo tem a capacidade de indagá-los. E ao fazer isso, coloca em questão o próprio entramado do poder, suas articulações e linhas de força. Por isso é tão potente, e, por vezes, tão temido.
O fazer intelectual requer tempo. Tempo de elaboração, processamento, decantação e aprimoramento. Tempo de vivência, experiência e silêncio. Tempo de cuidadosa reflexão. Tempo de germinação, maturação e amadurecimento. Tempo de observação, percepção, colheita e replantio. Tempo de contemplação. Tempo de apreensão e aprendizagem, com emprego dos cinco sentidos humanos de maneira humanizada. Tempo de esvaziamento e reciclagem. Tempo de adubação, fertilização e retroalimentação. Tempo de composição e compostagem. Tempo de irrigação e aeragem. Tempo de descanso. Tempo de declínio e ressurgimento. Tempo de agrupação. Tempo de associação de potências coletivas, plurais, cooperativas. Tempo de trocas interpessoais e intergrupais genuinamente generosas e empáticas. E todos estes tempos necessitam de um investimento energético que não é compatível com a fórmula ‘aceleração + precarização + competição narcísica’ própria da ideologia neoliberal que vem cooptando e regendo todas as formas de ser e estar no mundo contemporâneo.
É importante que, além de acadêmicos/as/xs pertencentes ou não a coletivos racializados e LGBTQI+, sejam consideradas na composição da amostra docentes/xs universitários/as/xs e investigadores/as/xs situação de desemprego ou que tenham desistido de dedicar suas trajetórias profissionais à academia. A metodologia quantitativa pode ser uma aliada significativa, uma vez que por meio dela se faz possível a obtenção de uma visão panorâmica do problema. Variáveis tais como síndrome do impostor, burnout, depressão, ansiedade, bem-estar laboral, bem-estar socio subjetivo, fatalismo, stress pós-traumático, autoeficácia, autoestima, entre outras, dispõem de instrumentos de medição cuja precisão e fiabilidade foram já verificados e confirmados em distintos contextos e temporalidades.
Típicas da pesquisa qualitativa, as entrevistas abertas e semiestruturadas carregam consigo a capacidade de acessar as zonas impenetráveis da investigação quantitativa. Possibilitam às pessoas envolvidas direta ou indiretamente na problemática investigada, interessadas colaborar voluntariamente na pesquisa, expressar com certa liberdade seus sentimentos e pontos de vista sobre as questões que interessam ao estudo. Não se trata de dar voz à indivíduos que possuem voz própria e sabem fazer uso dela, mas escutá-las de forma sensível, a fim de que essas vozes se inscrevam e deem corpo às cenas e cenários da pesquisa (seus verdadeiros objetos de estudo), retumbem e ecoem na mente e na alma dos/as/xs pesquisadores/as/xs, abrindo, assim, o espectro de indagações a partir do qual o trabalho de campo poderá ganhar contornos mais consistentes. Em si mesmo, o registro dos dados que daí decorram, considerando os enunciados e proposições apresentados neste artigo, converter-se-á em material de memória. Este, por sua vez, posto à exame da AD de vertente francesa, projetará uma cartografia das linhas de força que estão operando sobre a problemática em questão.
Em termos mais específicos, à título de indicação de estudos futuros, as entrevistas abertas e semiestruturadas devem ser realizadas para qualificar os sujeitos que irão compor a amostra, e explorar em profundidade as nuances da existência e do quantum de aceleração, precarização e sofrimento vivenciados no universo acadêmico, de modo a verificar as desigualdades de padecimento suportado segundo os marcadores sociais da diferença destacados neste artigo, e, finalmente, compreender como os desdobramentos disso vêm incidindo sobre a produção do conhecimento que configura, delimita e/ou interpreta o real. Para iniciar a elaboração de um possível roteiro de perguntas, podem ser aproveitadas algumas sentenças das escalas de medição das variáveis antes mencionadas, o que permitirá aprofundar em tais questões e, assim, começar a efetuar um movimento de ‘puxar o fio do novelo’.
Entretanto, é preciso ter em conta que, em pesquisas centradas em trazer à luz e esmiuçar problemas silenciados e anonimizados, é insuficiente desenvolver estudos edificados apenas sobre entrevistas semiestruturadas, e mesmo aquelas de tipo aberto. É necessário ampliar o espaço de processamento dos registros mnemônicos produzidos pelos sujeitos que compõem a amostra, em especial quando a temática abordada está profundamente marcada por um problema de aceleração, que amplia pontos-cego, apagamentos, esquecimentos e expulsões. A aceleração desorienta, precariza a existência, borra o espaço vívido da recordação, obstrui a espontaneidade dos acontecimentos, desarticula as resistências.
Então é preciso recorrer à História Oral, a fim de que o método das histórias de vida entre em cena com toda a sua riqueza. Este é um método que requer encontro, conexão, pausa, silêncio meditativo, reflexão, reconexão, rememoração, novos encontros, outras pausas, abertura, troca, colaboração, generosidade, delicadeza, entrega, presença, estar de corpo inteiro, sentir o relato, vários e profundos relatos, apreço pela escuta empática, gosto pela narração. Se bem empregado, é um método em que o protagonismo pertence aos/as/xs participantes/xs da pesquisa, os/as/xs narradores/as/xs, ao passo que o objeto, enquanto instrumento, é encarnado pelos/as/xs investigadores/as/xs. Uma espécie de inversão na ordem das coisas do mundo da ciência. O método de histórias de vida é, definitivamente, ousadia científica e desafio em e para tempos de aceleração e precarização do universo acadêmico.
O humano é um ser de memória. Perder-se no tempo-espaço da recordação pelas tramas da narração de si permite ao ser humano situar-se, organizando a experiência com alguma coerência e (re)encontrando sentido na existência. Permite inscrever a história individual na história coletiva, enxergar os atravessamentos da história coletiva na história individual e os entrecruzamentos de ambas, identificando a vida como acontecimento singular e abrindo espaço de possibilidade ao devir. Na obra “Memória e Sociedade”, Ecléa Bosi ensina que narrar a vida não é só reviver os caminhos percorridos, mas reapropriar-se da própria existência. Posteriormente, na obra “O Tempo Vivo da Memória”, Ecléa adverte que a história narrada não é ‘coisa’ para ser guardada, arquivada: sua existência tem o poder de transformar os contextos nos quais ela floresce.
O sofrimento derivado da precarização do universo acadêmico contemporâneo é ignorado, negligenciado, emudecido, dentro das próprias instituições de ensino superior. Fleming, em obra mencionada neste artigo, relata o caso de um aluno que se suicidou dentro da residência universitária onde vivia, e outro sobre o suicídio de uma acadêmica especialista em burnout e stress laboral, comentando como ambos os casos foram tratados sob a perspectiva de uma saúde mental individual que nega, ou relega a segundo plano, o ambiente sociocultural e os jogos de poder que marcam estas trajetórias vitais e a decisão por finalizá-las. Outrossim, as métricas e avaliações a que estão sometidos docentes e pesquisadores/as/xs no universo acadêmico neoliberal os/as/xs reduz a meros números, desconsiderando que por trás de currículos existem pessoas, com biografias que não se restringem a produtos, nem cabem em medições e comparações.
A etnografia sensorial é também uma ferramenta substancial na composição de trabalhos de campo dispostos examinar empiricamente os enunciados apontados neste artigo, posto que ela tem o poder de chegar ali aonde as palavras faltam, alcançando aquilo que estas não conseguem manifestar e tampouco lograriam nomear. Pertencente à categoria das embodied ethnography, a etnografia sensorial tem o condão de captar, descortinar e capturar sentimentos e sensações que podem, por meio dela, ser expressos e significados pelos/as/xs participantes/xs de uma pesquisa, e que, de outro modo, não poderiam ser externalizados (ao menos não dentro dos limites de um estudo científico tradicional).
Em termos práticos, consistiria em solicitar aos/xs participantes/xs que representem com recursos não verbais – ou seja, imagens, desenhos, símbolos, sons, odores etc. – as emoções e afetos que, por exemplo, o universo acadêmico lhes desencadeia. Neste sentido, a obra de Sarah Pink, “Doing Sensory Ethnography”, publicada em 2015, pode servir de guia no processo de edificação, desenvolvimento e interpretação dos dados produzidos com este método. E seria inovador, em termos de investigação acadêmica no âmbito dos estudos de AD de vertente francesa, fazer incidir a análise do discurso sobre esse tipo de dados, que não são textuais e se produzem sem as barreiras e barragens da linguagem verbal, o que pode dar cabida, inclusive, a que o inconsciente se expresse de forma livre.
Assim mesmo, para expandir e problematizar as questões apresentadas neste artigo e balizar pesquisas nessa direção, considera-se de especial serventia as obras das seguintes autoras: Donna Haraway, para meditar sobre o conhecimento situado; Judith Butler e Paul B. Preciado, para problematizar a análise do sujeito sob uma perspectiva de gênero amplificada; Angela Davis, para meditar sobre teoria feminista a partir das proposições do feminismo marxista negro; Patricia Hill Collins e Grada Kilomba, para projetar a construção de uma epistemologia feminista a partir das margens da história social hegemônica; María Lugones, para pensar peregrinagens decoloniais e teorizar sobre coalisões contra múltiplas opressões concentradas em determinados corpos; Remedios Zafra, para entender a nova cultura ansiosa do trabalho imaterial e imaginar tentativas de saída (efetivação de resistência); Isabelle Stengers, para avaliar um manifesto pela desaceleração da ciência e vislumbrar formas alternativas de fazer ciência na contemporaneidade, formas estas que se contraponham à lógica produtivista vigente.
Há como dissociar o epistemológico do mundo da vida dos/as/xs sujeitos e agentes sociais em movimento? A violência epistêmica, conforme verificado neste artigo, responde não a essa pergunta. Na constituição do pensamento social associado ao ideário da modernidade ocidental há assimetrias de poder e estruturas hegemônicas de entendimento que não só direcionam o saber científico para a descrição e interpretação da realidade, mas impõem a hierarquização, a seleção e o apagamento seletivo, além de promoverem um diálogo formal e moderado, o disciplinamento e a supressão de “ruídos”, e a imposição da autoridade sobre o “objeto” estudado.
Abraçar a proposta benjaminiana de passar um pente fino na História e reconstrui-la à contrapelo é outra das razões para defender a construção de uma epistemologia (trans)feminista para além das circunscrições dos estudos culturais e de gênero. Partindo da elaboração de estudos guiados por uma ética do cuidado, e, por tanto, colaborativos, generosos, empáticos e dialógicos com os/as/xs sujeitos/as/xs historicamente subalternizados/as/xs, que facilitem a ressonância de suas experimentações e intervenções na realidade histórico-social, entende-se que tal epistemologia pode rejeitar e enfrentar efetivamente a colonização da vida e dos afetos, o colonialismo do saber e a lógica instrumentalizante e tecnicista das ciências.
O arcabouço teórico-metodológico da AD de vertente francesa reúne as características e elementos necessários para desempenhar esta tarefa, via análise narrativa e inscrição de relatos da existência outrora interditados. Em conjunção com os estudos de MS, será possível consolidar políticas de reparação e caminhar para além delas, na direção de políticas comunais e solidárias de resistência e re-existência, enquanto potência de vida livre e ativa em composição com a multiplicidade das diferenças.
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[1] Pós-doutorado em Psicologia Social pela Universidade de Málaga (2021). Doutora em Psicologia Social pela Universidade de Málaga, em dupla titulação com a Universidade de São Paulo, USP (2017; Especialista em Criminologia pela UNED, Espanha (2012). Mestre em Criminalidade e Intervenção Social em Infância e Juventude pela Universidade de Málaga, Espanha (2011). Pós-graduada em Segurança Pública pela FLACSO Brasil (2010). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ (2009).
[2] Arquivista (2006) e especialização em História do Brasil (2011) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Ciência da Informação (2009) pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no convênio estabelecido com a UFF. Doutor em Memória Social (2013) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É arquivista do Arquivo Nacional e professor efetivo do Departamento de Arquivologia da UNIRIO, atuando na graduação em Arquivologia, no Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos e no Programa de Pós-Graduação em Memória Social.
[3] O Ministério da Educação, em resposta a uma demanda judicial, emitiu uma portaria (maio de 2016) que estabelecia um prazo para que as universidades e institutos federais desenvolvessem "propostas de inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (mestrado, mestrado profissional e doutorado), na forma de políticas de ações afirmativas".
[4] Recuperado de: https://www.gov.br/cnpq/pt-br/assuntos/noticias/destaque-em-cti/dia-internacional-de-mulheres-e-meninas-na-ciencia. Acesso em: 15 ago. 2023.
[5] Trata-se da ‘síndrome do impostor’, que é a crença equivocada de que a pessoa não é totalmente merecedora de suas realizações profissionais, o que resulta no medo de que os outros, mais cedo ou mais tarde, descubram que a pessoa é, na verdade, uma fraude. Consiste em um fenômeno social e não de uma entidade clínica, de acordo com as pesquisadoras que cunharam o termo (Clance e Imes, 1978). Não se confunde com questões individuais de insegurança, pois acontece com pessoas altamente qualificadas para o trabalho que fazem, e afeta homens e mulheres de forma desigual, como resultado da lógica predominante do patriarcado.
[6] Trata-se de ‘mansplaining’. O termo advém de um neologismo anglo-saxão, que consiste na combinação parassintética das palavras “man” (homem) e “explaining” (explicar). Segundo Kosak et al. (2018), “refere-se a uma fala didática direcionada à mulher, como se ela não tivesse a capacidade de compreender ou executar determinada tarefa, justamente pelo fato de ser mulher”; é considerado um caso de violência de gênero, silenciosa (porque complacente e paternalista) e psicológica (posto que afeta a autoestima da mulher).
[7] "A dor fala: ela passa" (tradução nossa).
[8] “Ciência da informação não deve ser parecida com uma disciplina clássica, mas com um protótipo de um novo tipo de ciência” (Araújo, 2003, p. 26, tradução do autor).