REFLEXÕES ACERCA DAS NARRATIVAS DISSEMINADAS PELA EXTREMA DIREITA CONTEMPORÂNEA A PARTIR DE HANNAH ARENDT
Carmen Lúcia Costa Brotas[1]
Universidade Federal da Bahia
cbrotas26@gmail.com
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Resumo
A desordem informacional que permeia acontecimentos recentes como as eleições brasileiras e americanas, a crise pandêmica e a refutação as questões climáticas apontadas por diversos cientistas evidencia complexo fenômeno que se apresenta com características transnacionais, uma vez que é vivenciado em sociedades de todos os continentes. Destarte, este cenário tem conduzido atores sociais e internacionais a refletirem acerca deste ambiente informacional, buscando compreender as suas causas e características e apontar medidas que possam mitigar os efeitos nocivos que eles são capazes de causar. A emergência da extrema direita em diversos países contribuiu para que este quadro se estabelecesse e fosse mantido. Assim, os entendimentos de Hannah Arendt acerca da relação entre verdade, mentira e política, bem assim as contribuições acerca da propaganda perpetrada pelos regimes totalitários por ela estudados - nazismo e bolchevismo - se revela pertinente referencial para a abordagem dos fenômenos causadores da desordem informacional na atualidade. Este artigo tem como propósito estabelecer o diálogo entre as compreensões de Arendt com o cenário contemporâneo, no qual se constata intensa disseminação de conteúdos inverídicos e desinformativos como é o caso das fake news e dos negacionismos. A pretensão deste trabalho é, portanto, identificar em que medida as conclusões arendtianas acerca da propaganda totalitária se aproximam/afastam do modelo comunicacional da extrema direita contemporânea. A pesquisa é qualitativa e documental e tem como escopo realizar análise de contexto a partir dos entendimentos arendtianos. Ao final se pode perceber pontos de aproximação entre os dois movimentos – totalitarismo e extrema direita contemporânea.
Palavras-chaves: desinformação; Hannah Arendt; totalitarismo; extrema direita
REFLECTIONS ON THE NARRATIVES SPREAD BY THE CONTEMPORARY EXTREME RIGHT FROM HANNAH ARENDT
Abstract
The informational disorder that permeated recent events such as the Brazilian and American elections, the pandemic crisis and the refutation of climate issues highlighted by several scientists highlights a complex phenomenon that presents itself with transnational characteristics, as it is experienced in societies on all continents. Therefore, this scenario has led social and international actors to reflect on this informational environment, seeking to understand its causes and characteristics and point out measures that can mitigate the harmful effects they are capable of causing. The emergence of the extreme right in several countries contributed to this situation being established and maintained. Thus, Hannah Arendt's understanding of the relationship between truth, lies and politics, as well as the contributions regarding propaganda perpetrated by the totalitarian regimes she studied - Nazism and Bolshevism - prove to be a pertinent reference for approaching the phenomena that cause informational disorder in society. present. This article aims to establish a dialogue between Arendt's understandings and the contemporary scenario, in which there is an intense dissemination of untrue and disinformative content, such as fake news and denialism. The intention of this work is, therefore, to identify to what extent Arendt's conclusions about totalitarian propaganda are close to/far from the communicational model of the contemporary extreme right. The research is qualitative and documentary and aims to carry out context analysis based on Arendtian understandings. In the end, we can see points of rapprochement between the two movements – totalitarianism and the contemporary extreme right.
Keywords: disinformation; Hannah Arendt; totalitarianism; far right
REFLEXIONES SOBRE LAS NARRATIVAS DIFUNDIDAS POR LA EXTREMA DERECHA CONTEMPORÁNEA DESDE HANNAH ARENDT
Resumen
El desorden informativo que permeó acontecimientos recientes como las elecciones brasileñas y estadounidenses, la crisis pandémica y la refutación de las cuestiones climáticas destacadas por varios científicos pone de relieve un fenómeno complejo que se presenta con características transnacionales, tal como se vive en sociedades de todos los continentes. Por lo tanto, este escenario ha llevado a actores sociales e internacionales a reflexionar sobre este entorno informativo, buscando comprender sus causas y características y señalar medidas que puedan mitigar los efectos nocivos que son capaces de provocar. El surgimiento de la extrema derecha en varios países contribuyó a que esta situación se estableciera y se mantuviera. Así, la comprensión de Hannah Arendt sobre la relación entre verdad, mentira y política, así como los aportes en materia de propaganda perpetrada por los regímenes totalitarios que estudió -el nazismo y el bolchevismo- resultan ser una referencia pertinente para abordar los fenómenos que provocan el desorden informacional en la sociedad. . presente. Este artículo pretende establecer un diálogo entre las interpretaciones de Arendt y el escenario contemporáneo, en el que hay una intensa difusión de contenidos falsos y desinformativos, como las fake news y el negacionismo. La intención de este trabajo es, por tanto, identificar en qué medida las conclusiones de Arendt sobre la propaganda totalitaria se acercan/lejan del modelo comunicacional de la extrema derecha contemporánea. La investigación es cualitativa y documental y tiene como objetivo realizar un análisis de contexto basado en comprensiones arendtianas. Al final, podemos ver puntos de acercamiento entre los dos movimientos: el totalitarismo y la extrema derecha contemporánea.
Palabras claves: desinformación; Hannah Arendt; totalitarismo; más a la derecha
1 INTRODUÇÃO
A tecnologia digital trouxe novas formas de comunicação, gerando significativas mudanças nas mais diversas searas da vida cotidiana: lazer, trabalho, estudo. Hoje, o uso das redes sociais digitais constitui o meio mais usado para o desenvolvimento das atividades sociais e profissionais. Os benefícios trazidos pelo aparato tecnológico digital são evidentes. No entanto, esta tecnologia passou a ser utilizada também para a disseminação de conteúdos inverídicos contendo discurso de ódio, deep fake, negacionismos científico e histórico. A intensidade da difusão deste tipo de material desinformativo alcançou dimensão significativa, atingindo áreas como saúde, educação e eleições.
Malgrado o trafegar nos cenários digitais traga ao sujeito a sensação de liberdade, em verdade, está ele aprisionado pela conexão. À medida que o indivíduo “navega” na Internet ele deixa um rastro de dados que são utilizados para gerar informações psicográficas que permitirão o controle sutil, porém poderoso e eficiente. A lógica empregada, que aparentemente visa apenas tornar a vida cotidiana mais inteligente e prática, fazendo o sujeito autônomo, almeja, ao final, a obtenção de dados a fim de utilizá-los com o propósito de estabelecer a denominada “regulação algorítmica”.
Este contexto está permeado pela denominada cultura da pós-verdade, a qual é concebida como geradora da relativização da verdade, pelo desdém em relação à veracidade das narrativas. A verdade, portanto, passa a ser irrelevante e até desnecessária para que os sujeitos “consumam” aquele conteúdo. A velocidade da circulação da informação, neste cenário, favorece a disseminação de conteúdos falsos que causam danos não só para aquele que os acessa, mas para toda a sociedade, consoante se pôde perceber em acontecimentos como a crise pandêmica com a hesitação vacinal, as eleições com a negação da confiabilidade e segurança do sistema eleitoral brasileiro, bem como na refutação, apartada de evidências, de que o regime ditatorial brasileiro e a escravidão ocorreram.
Noutro lado, dentre as obras de Hannah Arendt há abordagem acerca da verdade, da mentira e da política e como os regimes totalitários por ela estudados – nazismo e bolchevismo configuraram a comunicação na propaganda totalitária. A autora, no livro “Origens do Totalitarismo”, afirma buscar compreender o totalitarismo, as nuances que caracterizam este movimento a fim de “encarar a realidade sem preconceitos e com atenção e resistir a ela”. Portanto, a produção de Arendt contempla profunda reflexão acerca dos aspectos do aludido regime e a forma como ele lidava com a verdade e estruturava o seu modelo comunicacional.
Assim sendo, considerando a maneira como a informação vem sendo manejada na contemporaneidade, o que gera fenômenos desinformativos que podem ser percebidos como transnacionais, uma vez que atingem diversas sociedades em todos os continentes e que conduzem à incorporação de percepções alheias as evidências e a realidade, é pertinente se indagar em que medida as contribuições trazidas por Arendt acerca da relação entre verdade, política e a propaganda totalitária se coadunam com o panorama atual.
Nesta linha, o objetivo deste trabalho firma-se em estabelecer diálogo entre as nuances que marcam a desordem informacional manejada pela extrema direita contemporânea com as singulares e específicas contribuições de Hannah Arendt. A pesquisa é, portanto, qualitativa e bibliográfica, buscando, em outros termos, analisar o contexto informacional estabelecido pela emergente vertente ideológica, a partir das considerações da predita filósofa acerca da verdade, da mentira e da propaganda totalitária, O itinerário a ser percorrido, tendo em vista o intuito perseguido, contemplará abordagem dos conceitos, compreensões e percepções traçados pela filósofa, bem assim aqueles afetos às espécies do atual cenário, para, ao final, se delinear os aspectos de aproximação e distanciamento entre os modelos comunicacionais adotados pelos regimes totalitário estudados por Arendt (nazismo e bolchevismo) com a extrema direita na atualidade.
2 DESORDEM INFORMACIONAL: CONCEITOS CENTRAIS
A Organização das Nações Unidas, em outubro/2023, publicou documento intitulado “Integridade da Informação nas Plataformas Digitais”, no qual indica que a informação falsa, a desinformação e o discurso de ódio proporcionam efeitos nocivos para a implementação de todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que foram instituídos, em 2015, como metas globais para políticas públicas a serem firmadas na Agenda ONU – 2030. Nesta linha, a aludida entidade assevera que a integridade da informação se refere à precisão, consistência e confiabilidade do conteúdo informacional.
Insta salientar que a lógica social de acesso e uso da informação, no cenário tecnológico atual, se coaduna com os parâmetros do consumo próprio da sociedade capitalista, se distanciando dos aspectos intelectuais e pragmáticos para construção de conhecimentos emancipatórios, que tornam o sujeito autônomo e capaz de reflexão. As características da sociedade líquida pensada por Bauman (2001, p. 71) também estão presentes na forma como os sujeitos se relacionam com a informação, o que torna o contexto adequado para que a desordem informacional se dissemine da forma como se percebe na atualidade. Os conteúdos são substituídos de forma célere, sem que haja o tempo apropriado para a adequada reflexão.
Vale destacar, ainda, que a tecnologia constitui elemento social desprovido de autonomia e neutralidade, uma vez que ela transforma a natureza da relação entre o sujeito e o mundo e, por conseguinte, a própria autocompreensão do agente moral humano (Capurro, 2021, p. 38-39). Por ser formatada pela sociedade e, ao mesmo tempo, a formatar, seu manejo é impactado pela economia e política. Em consequência, a sua abordagem, além do aspecto técnico, deve considerar aqueles atinentes aos vieses éticos, políticos e econômicos (Morozov, 2018, pp. 84).
Em assim sendo, importa destacar que apesar de o “trafegar” nos cenários digitais proporcione no sujeito sentimento de liberdade e de potência, como se ele tudo pudesse sem qualquer controle, em verdade, está ele aprisionado pela conexão. A aparente contradição é indicada por Han (2020, p. 40) como própria do regime da psicopolítica, uma vez que a atuação “livre” no uso da tecnologia gera a vigilância pelos dados, a qual fornece ao sistema de dominação informações psicográficas acerca dos indivíduos que são utilizadas para o controle sutil, porém poderoso e eficiente. A lógica empregada, que aparentemente visa tornar a vida cotidiana mais inteligente e prática, almeja a obtenção de dados a fim de utilizá-los com o propósito de monitorar os indivíduos nas mais diversas searas sociais (Hawley, 2022, p. 84).
Este novo tipo de governança tem o nome de “regulação algorítmica”, a qual proporciona a estabilidade do sistema por meio dos dados colhidos a partir da atuação dos sujeitos. É o capitalismo da vigilância (Zuboff, 2021, p. 21), no qual os dados gerados possibilitam a predição de sentimentos, comportamentos, necessidades e gostos, tornando o cenário propício para os fenômenos informacionais contemporâneos: fake news, discurso de ódio, negacionismos. O capitalismo digital ou da vigilância reconhece e busca apenas compartilhamentos e cliques, interessa aquilo que pode ser acessado a fim de gerar reações nas pessoas, ou seja, engajamento. (Hawley, 2022, p. 73). A verdade, portanto, é irrelevante. É estabelecida a cultura da pós-verdade, que pavimenta o caminho a ser percorrido pela desordem informacional. Se a veracidade do conteúdo é relativizada, a checagem das fontes das quais emanam as mensagens, a credibilidade do emissor perde a importância.
Nesta perspectiva, impõe trazer à discussão as concepções firmadas acerca de desinformação, informação falsa e discurso de ódio. Desta forma, Wardle e Derakhshan (2017, p. 5) distinguem misinformação (mis-information) que se caracteriza como informações falsas partilhadas sem a intenção de prejudicar alguém da má informação (mal-information) expressão que se direciona às informações disseminadas para causar danos a alguém e, por derradeiro e da desinformação (dis-information) que ocorre quando a informação falsa é disseminada com o intuito de causar danos.
A desinformação, portanto, compreende as denominadas fake news e os negacionismos científico (fake science) e histórico. As fakes news são conteúdos falsos que ostentam a aparência de notícias jornalísticas legitimas, razão pela qual há possibilidade de contarem com suposto pronunciamento de autoridades de diversas áreas. Elas podem ser indicadas como enunciados inverídicos que visam enganar por se assemelharem a produto jornalístico sério. (Araújo, 2021, p. 4). Os negacionismos, por sua vez, centram-se na disseminação de mensagens que visam gerar nos indivíduos dúvidas, conduzindo-os a refutar, sem amparo em evidências, mas em alegações inverídicas, as diretrizes da ciência – negacionismo cientifico (fake science) ou a ocorrência de eventos históricos - negacionismo histórico.
O discurso de ódio, por outro lado, é admitido pela Organização das Nações Unidas (ONU) (ONU, 2023, p. 5) como qualquer tipo de comunicação (oral, escrita ou comportamental) que ataca ou usa linguagem pejorativa ou discriminatória em virtude de determinada característica de grupos e/ou pessoas. Ele está firmado, portanto, no repúdio ao diferente que, por estar na condição de inimigo, deve ser banido, sendo inferiorizado e estigmatizado. Assim, para configuração do discurso de ódio se faz necessário que a mensagem se centre no destaque a características e concepções de grupos e/ou de pessoas a partir de uma conotação negativa, a qual é utilizada para gerar estados emocionais propícios a considerá-los como inimigos a serem eliminados. Ele pode ou não contemplar conteúdo falso, uma vez que a sua peculiaridade está em invocar a emoção a fim de promover a instigação contra aquele que ostenta característica específica.
3 CARACTERISTICAS DA VERDADE FATUAL
Arendt aborda a relação entre verdade, mentira e política nos ensaios “Verdade e Política”, incluído na obra Entre o passado e o futuro e “A Mentira na Política – Considerações sobre os Documentos do Pentágono”, contida no livro Crises da República. A compreensão arendtiana acerca da verdade e da política requer explanação acerca das duas formas de verdade pensadas pela autora: a racional e a fatual. A primeira relaciona-se ao homem enquanto ser pensante, estando ligada a Filosofia, a Matemática e as Ciências Naturais; enquanto aquela atinente aos fatos refere-se aos acontecimentos ocorridos no mundo em que os homens interagem entre si – são eventos e circunstâncias em que muitos estão envolvidos.
A autora concebe que a verdade fatual, por ser mais frágil que a racional, tem menor possibilidade de sobreviver ao assédio da política. Para Arendt, a verdade racional uma vez perdida poderá ser recuperada, o mesmo não ocorrendo com o esquecimento ou a dissimulação dos fatos. A compreensão da fragilidade e da vulnerabilidade da verdade fatual requer a abordagem de algumas particularidades firmadas por Arendt acerca da mentira, da contingência dos fatos e da necessidade de testemunhas em relação a matéria fatual. Isto posto, é imperativo marcar que, para Arendt, o contrário da verdade fatual não é nem o erro, próprio da Matemática e das Ciências Naturais, nem a ilusão que se relaciona a Filosofia, mas a mentira/a falsidade deliberada.
Em decorrência da contingência que os caracteriza, os fatos não apresentam nenhuma verdade inerente, nenhuma necessidade de ser como são. Eles poderiam ter ocorrido de forma completamente distinta. Para Arendt (1997, p. 318): “Ela não é senão o reverso da perturbadora contingência de toda realidade fatual. Como todas as coisas que ocorrem efetivamente no âmbito dos assuntos humanos poderiam ter sido igualmente de outro modo [...]”. O mentiroso vale-se desta peculiaridade para moldar os fatos da forma como lhe convém.
Por outro aspecto, os fatos prescindem de “testemunho para serem lembrados e de testemunhas de confiança para se estabelecerem, para que possam encontrar um abrigo seguro no domínio dos assuntos humanos” (Arendt, 1973, p. 16). A verdade fatual, para Arendt, remete sempre a outras pessoas, dizendo respeito a eventos e circunstâncias em que vários sujeitos estão envolvidos, sendo estabelecida pelo testemunho e carecendo de comprovação. Ela existe apenas na medida em que é falada, ainda que seja na intimidade (Arendt, 1997, p. 295).
A autora inicia os dois ensaios – “Verdade e Política” e “A Mentira na Política – Considerações sobre os Documentos do Pentágono” - realçando a tensa relação entre a verdade e a política, tendo em vista não ser a sinceridade e a veracidade virtudes tidas como políticas. “A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e as mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos” (Arendt, 1973, p. 15). Já as mentiras sempre foram admitidas como ferramentas necessárias para os políticos, os demagogos e os estadistas. (Arendt, 1997, p. 283)
A mentira – que é o contrário da verdade fatual - priva os indivíduos das informações acerca dos fatos, mantendo-os alheios a realidade, e, em consequência, comprometendo a capacidade de julgar e agir na esfera pública, de deliberar acerca do bem comum. Neste sentido, Arendt assevera que “Conceitualmente, podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar; metaforicamente, ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós” (Arendt, 1997, p. 325). Há, nesta perspectiva, como se conceber diferentes causas e consequências para determinado fato/acontecimento, mas a sua existência não pode ser modificada, sendo esta, precisamente, a razão dela ser omitida/dissimulada e não alterada, na realidade fática, consoante o desejo dos indivíduos, dos grupos e dos governos.
Arendt reconhece que “os segredos de Estado sempre existiram; todo governo precisa classificar determinadas informações, subtraí-las da percepção pública, e os que revelam segredos autênticos foram sempre tratados como traidores” (Arendt, 1997, p. 293). No entanto, ela ressalta que a sua preocupação está nos fatos que, apesar de conhecidos pelo público, são transformados em tabu e tratados, “como se fossem aquilo que não são – isto é, segredos” (Arendt, 1997, p. 293). Assim, ela considera perturbador, e de fato é, que, em países livres, de modo consciente ou inconsciente, as informações acerca da existência de determinados fatos, passem a constituir meras opiniões. Isto ocorreu/ocorre, por exemplo, em relação ao holocausto, à ocorrência da escravidão e da tortura nos períodos das ditaduras brasileira, argentina e chilena.
Ademais, a liberdade de expressão e opinião é aludida, de forma ordinária, como razão legitimadora para a disseminação de conteúdos inverídicos, consoante ocorreu nos períodos eleitorais recentes em diversos países e durante a crise pandêmica.
Fatos informam opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões, podem deferir amplamente e ainda serem legitimas no que respeita à sua verdade fatual. A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados. Em outras palavras, a verdade fatual informa o pensamento político, exatamente como a verdade racional informa a especulação filosófica (Arendt, 1997, p. 297).
Outrossim, a autora adverte que fatos e opiniões, embora possam estar separados, não são antagônicos; os fatos existem independentemente das opiniões e das interpretações e as demarcações que os distingue não impedem que cada geração possa compreender e (re)significar os fatos. A relação estabelecida entre fatos, opiniões e interpretações não deve ser suscitada como razão para que a matéria fatual seja maculada. A vista disto, é cabível se indagar se Arendt reservou a alguma(s) instância(s) a incumbência de salvaguardar a verdade fatual. E, se o fez, qual(is) seria(m) ela(s)? Acerca desta questão, cabe registrar que Arendt reserva a condição de “refúgios da verdade” para três outras instituições: o Poder Judiciário, as universidades e a imprensa livre (Arendt, 1997, p. 321).
No que se refere às universidades, sem afastar a importância dos demais cursos, mas realçando a ausência do caráter político daqueles de cunho profissionalizante e das ciências naturais, Arendt indica que as Ciências Históricas e as Humanidades têm a obrigação de descobrir, conservar sob guarda e interpretar a verdade dos fatos e os documentos humanos, ou seja, possuem elevada relevância política (Arendt, 1997, p. 322). Noutro aspecto, para que possa ser, de forma efetiva, refúgio da verdade, constituindo o “quarto poder”, necessário se faz que a imprensa seja protegida do poder governamental e da pressão social, com maior zelo do que o Poder Judiciário. É por meio desta instituição que são fornecidas as informações relativas aos fatos. Acerca da importância da imprensa como refúgio da verdade fatual, insta frisar a existência, na atualidade, das agências de checagem (Fact-checking), as quais realizando atividades distintas daquelas ultimadas pela imprensa tradicional, verificam a procedência e a confiabilidade do material (des)informativo veiculado.
Tecidas as devidas abordagens acerca das nuances que caracterizam a percepção arendtiana acerca da verdade fatual, impõe-se passar à apreciação da propaganda totalitária.
4 PROPAGANDA TOTALITÁRIA E A ORGANIZAÇÃO DAS MASSAS
Antes de se adentrar na abordagem acerca da utilização dos recursos propagandísticos e da mentira organizada pelos regimes totalitários, se faz necessário destacar, num primeiro momento, os traços que caracterizam o próprio totalitarismo. Esta reflexão reclama ênfase às ideias traçadas por Hannah Arendt, na obra Origens do Totalitarismo. No prefácio deste livro, a autora informa que o intento por ela perseguido era compreender o próprio regime totalitário e as razões que levaram ao seu surgimento. Arendt ressalta que “compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar dele o inaudito [...] “encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela” (Arendt, 1989, p.12). Portanto, ela admite que para se estabelecer resistência se faz necessário conhecer o fenômeno que se apresenta na realidade.
A predita filósofa situa o totalitarismo como evento inédito/original, sem precedentes na História. Para ela, é inadequado qualificar o apontado regime como tirania, ditadura, república ou oligarquia. Ele está, em verdade, distante tanto do governo de direito - constitucional ou republicano, quanto daquele sem direito - arbitrário ou tirânico. A originalidade do totalitarismo pode ser identificada no fato de que, ao mesmo tempo em que desafia todas as leis positivas, mesmo aquelas que ele mesmo estabeleceu (como no caso da Constituição Soviética de 1936) ou que não se deu ao trabalho de abolir (Constituição de Weimar, que o governo nazista nunca revogou), também “não opera sem a orientação de uma lei”, ou seja, não é arbitrário, uma vez que obedece, rigorosa e inequivocamente, à lei da natureza ou da História – lei do movimento, que é sobre-humana/sobrenatural, originando todas as leis, as quais lhes são inferiores (Arendt, 1989, p. 513).
A resistência à lei do movimento apenas retardaria, na visão totalitária, o inevitável – a evolução da espécie humana na direção da raça pura e superior (a ariana) para o nazismo, que tinha a natureza como o ponto central da lei do movimento, ou a eliminação das classes, na visão do bolchevismo, que tinha, por outro lado, a história como foco da referida lei. A obediência à lei do movimento é peremptória, devendo ocorrer sem considerar os desejos individuais nem a relação ente o “certo” e o “errado”. Desta forma, as leis positivas não importavam, mas sim aquela que estava acima de todas as leis – a lei do movimento. Portanto, o desenvolvimento desta lei independia de uma escolha dos nazistas/bolchevistas, sendo ela o respaldo para as medidas adotados pelo regime, o que incluí a eliminação dos “não dignos de viver”.
No regime totalitário, o lugar das leis positivas é ocupado pelo terror total, que visa tornar realidade a referida lei do movimento. Nesta dinâmica, a identificação do “inimigo objetivo” independe da conduta/do comportamento, tornando-se vazios conceitos como “culpa” e “inocência”. Há, neste contexto, a execução do movimento, segundo a lei que lhe é inerente. Destarte, a lei do movimento é cumprida pelos indivíduos por meio do terror e a identificação daqueles que serão vítimas do regime ocorre, independentemente, de condutas ou pensamentos individuais, devendo estar apenas em sintonia com a lei superior. O mesmo ocorre em relação as repercussões a serem infringidas àqueles tidos como inimigos, o que contempla, inclusive, a morte (Arendt, 1989, p. 520).
O indivíduo, a fim de evitar embaraços ao movimento, não realiza qualquer intento por iniciativa própria. O totalitarismo instituiu a “superfluidade” dos seres humanos, os quais são descartáveis; são pessoas que podem não existir no mundo. O sujeito é anulado a fim de se eliminar os pensamentos diferentes e, com isto, a singularidade é destruída. O “cinturão de ferro” suprimi o espaço entre os homens, fazendo desaparecer, em consequência, o lugar de discussão, de troca de pensamento. Dissolve-se a pluralidade em “Um-Só-Homem de dimensões gigantescas” (Arendt, 1989, p. 519).
Na lógica totalitária, inexiste espaço para o novo, razão pela qual o nascimento é visto como ameaça na medida em que traz com ele a potência do começo, de se inaugurar algo diferente - cada nascimento constitui promessa de mudança. Assim, o tratamento dispensado às crianças é essencial: “o objetivo da educação totalitária nunca foi insuflar convicções, mas destruir a capacidade de adquiri-las. [...] A própria natureza decidirá não apenas quem seria eliminado, mas também quem seria treinado como carrasco” (Arendt, 1989, p. 520).
Arendt destaca outro elemento do totalitarismo: a ideologia. No regime totalitário, a ideologia ocupa o lugar do princípio da ação. Ela, sem a produção do novo, se constitui como premissa imune ao questionamento, uma vez que a “verdade” que exprime é mais forte que qualquer experiência. Ela apresenta o condão de tudo explicar. A ideologia, portanto, contempla: a) a explicação total, razão pela qual não há necessidade de pensar a partir das experiências; b) a emancipação da realidade – instala-se o “mundo fictício”, sendo, neste caso, relevante a abordagem da propaganda totalitária; e c) a inquestionabilidade. Sendo assim, é possível se asseverar que a liberdade, enquanto acontecimento inesperado e espontâneo, não se coaduna com a lógica do totalitarismo. Por ser a essência da política, a liberdade quando eliminada gera, como consequência, o aniquilamento da própria ação política. Para Arendt, no totalitarismo, há a dominação total dos seres humanos pelo terror, a eliminação de qualquer espontaneidade, ou seja, da liberdade humana.
Noutro aspecto, para a autora, a busca pela “felicidade” e “segurança” sem a liberdade, respalda o outro elemento do regime totalitário - a propaganda. Isto porque, apesar de o terror e a ideologia serem essenciais para o totalitarismo - ele agindo no que atine à conduta e ela no que se refere ao pensamento - o movimento totalitário prescinde também dos recursos propagandísticos para a organização das massas. O tema da propaganda totalitária foi abordado por Hannah Arendt no capítulo “O movimento totalitário” da terceira parte da obra Origens do totalitarismo.
A propaganda do totalitarismo visava aqueles que estavam fora do movimento - as camadas não-totalitárias da própria população do país, ou outros países não-totalitários. Dentre os destinatários dos recursos propagandísticos totalitários também estavam os simpatizantes, aqueles que não estavam preparados para aceitar os verdadeiros alvos do movimento (Arendt, 1989, p. 392). Arendt defende que a propaganda nazista teve inspiração nas organizações dos gangsteres e na publicidade comercial americanas. Porém, para ela, o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os crimes individuais é o uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos, seguidos de assassinatos em massa perpetrados igualmente contra “culpados” e “inocentes” (Arendt, 1989, p. 394).
De mais a mais, além do uso da mentira organizada, a ciência é manejada como substituta do poder: “o cientificismo da propaganda totalitária é caracterizado por sua insistência quase exclusiva na profecia ‘científica” (Arendt, 1989, p. 394). A partir do uso da ciência, o movimento prediz a ocorrência de eventos e, uma vez no poder, trata de torná-los realidade. Neste sentido, Arendt (1989, p. 398) adverte que “Os nazistas não hesitaram em lançar mão, no fim da guerra, de toda a força da sua organização ainda intacta para destruir a Alemanha do mais completo possível a fim de que fosse verdadeira a sua predição de que o povo alemão seria arruinado em caso de derrota.”
Antes de alcançarem o poder, os líderes das massas, na visão arendtiana, utilizam a propaganda com desprezo a verdade dos fatos, uma vez que para eles “os fatos dependem exclusivamente do homem que os inventa” (Arendt, 1989, p. 399). Os expedientes propagandísticos firmam-se na linguagem do cientificismo profético a fim de contemplar as necessidades das massas que perderam o lugar no mundo e que, por isto, estão desoladas. Este sentimento das massas – a solidão e o desalento – é percebido por Arendt como o abandono em relação aos outros e a si mesmo. É estar sem o diálogo consigo mesmo e desprovido do mundo. Isto, no pensamento da autora, torna a massa predisposta à submissão ao totalitarismo, a sacrificar a liberdade.
Alguns critérios são admitidos por Arendt como necessários para que essa massa desolada seja organizada pela propaganda totalitária. O primeiro é o mistério, cuja origem não tem relevância, podendo ser um segredo razoável e politicamente compreensível, necessidades conspiratórias de grupos revolucionários, estrutura de sociedades secretas ou superstições muito antigas que tinham gerado lendas acerca de determinados grupos como os judeus. “A propaganda nazista foi suficientemente engenhosa para transformar o anti-semitismo em princípio de autodefinição, libertando-o assim da inconstância de uma mera opinião.” (Arendt, 1989, p. 406)
A propaganda totalitária prospera, na visão arendtiana, devido a recusa das massas em compreender a fortuidade própria da realidade, razão pela qual preferem dela fugir. Os recursos propagandísticos, desta forma, permitem isolar as massas do mundo real, criando a possibilidade para o segundo elemento - a coerência que elas almejam, ainda que esta esteja amparada na mentira.
Em outras palavras, embora seja verdade que as massas são obcecadas pelo desejo de fugirem da realidade porque, privadas de um lugar no mundo, já não podem suportar os aspectos acidentais e incompreensíveis dessa situação, também é verdade que a sua ânsia pela ficção tem algo a ver com aquelas faculdades do espírito humano cuja coerência estrutural transcende a mera ocorrência. (Arendt, 1989, p. 401)
O propósito da propaganda totalitária, de acordo com o pensamento arendtiano, estava apartado da persuasão, visando, de fato, a organização a fim de que se configurasse uma sociedade em que os membros se comportassem (e não agissem, uma vez que a ação, no pensamento arendtiano vincula-se a atuação política) de acordo com o mundo fictício. Assim, sintetiza Arendt (1989, p. 414), “organização e propaganda são duas faces de uma mesma moeda”. A questão que se apresenta após o delineamento das características do totalitarismo e dos recursos propagandísticos por ele usados versa acerca da identificação da disseminação dos conteúdos inverídicos nas redes sociais digitais com os fundamentos da propaganda do totalitária.
5 TOTALITARISMO E EXTREMA DIREITA CONTEMPORÂNEA: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
A observação da forma como as lideranças políticas, os movimentos e os partidos que compõem o campo ideológico da extrema direita traçam as suas narrativas evidencia o manejo de conteúdos desinformativos, os quais contemplam a mentira, a dissimulação, o discurso de ódio e os negacionismos científicos e históricos (Segurado, 2021, p. 52). Diante deste panorama, se faz oportuno trazer o trecho abaixo transcrito, o qual se evidencia adequado para esta discussão:
Se é verdade que podemos encontrar os elementos do totalitarismo se repassarmos a história e analisarmos as implicações políticas daquilo que geralmente chamamos de crise do nosso século, chegamos à conclusão de que essa crise não é nenhuma ameaça de fora, nenhuma consequência de alguma política exterior agressiva da Alemanha ou da Rússia, e que não desaparecerá com a morte de Stalin, como não despareceu com a queda da Alemanha nazista. Pode ser até que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado (Arendt, 1989, p. 512).
Com base no prognóstico delineado no trecho acima, Aguiar (2007, p. 7) assevera que “a mudança introduzida na comunicação política pelos regimes totalitários, é uma dessas heranças que vieram para complicar a vida dos regimes democráticos.” Ainda que o modelo comunicacional estabelecido pela extrema direita demonstra, nos tempos presentes, a peculiaridade do uso das redes sociais digitais, fator que inexistia no totalitarismo refletido por Arendt, é possível se traçar paralelo entre os recursos narrativos dos preditos movimentos - totalitarismo e extrema direita contemporânea - a fim de se destacar os pontos que os aproximam/distanciam de acordo com as ideias arendtianas.
O trajeto para alcançar o aludido propósito parte da recuperação dos critérios da propaganda totalitária indicados por Arendt - mistério e coerência, os quais foram abordados na seção anterior. No que concerne ao mistério, se verifica, nos discursos proferidos pelos atores da extrema direita contemporânea semelhança no que se refere a ideia de suposta conspiração em nível mundial. Se os judeus eram para os nazistas os principais “inimigos objetivos”, a vertente conservadora emergente elegeu os comunistas e aqueles filiados ou simpatizantes de partidos políticos de esquerda como merecedores de atenção devido ao intento de expansão da sua ideologia.
A declaração de Donald Trump, ao discursar para milhares de apoiadores em 10/06/2023, de que “Ou os comunistas vencem e destroem os EUA ou nós destruímos os comunistas"; o pronunciamento de Jair Bolsonaro, numa missa realizada no dia 16/07/2022, na cidade de Natal, no sentido de que “[...] Toda manhã me levanto e faço algo que me dá forças para vencer: rezo um Pai Nosso e peço a Deus que o nosso povo, vocês, brasileiros, não experimentem as dores do comunismo [...]"; ou a assertiva de Javier Melei, Presidente da Argentina, proferida em entrevista concedida ao jornalista estadunidense Tucker Carlson, asseverando que "Não só não farei negócios com a China, como não farei negócios com nenhum comunista. Sou um defensor da liberdade, da paz e da democracia. Os comunistas não se enquadram nisso, nem os chineses, nem Putin, nem Lula" são exemplos elucidativos do lugar que os comunistas ocupam nas narrativas da extrema direita.
Com efeito, os discursos veiculados, de forma reiterada, pelos líderes da extrema direita e seus apoiadores, contemplam previsão de que, caso os “comunistas” logrem êxito em alcançar o poder, seria estabelecida a “ditadura de esquerda”, com expropriação dos bens dos cidadãos e institucionalização da censura, o que incluí os meios de comunicação digital. Desta forma, o país que sucumbir ao governo de “esquerda/comunista” padecerá com o mesmo mal que aflige os venezuelanos e os cubanos. A extrema direita, em diversos países, de forma semelhante à propaganda totalitária, alega ter descortinado à pretensão velada dos comunistas de dominação, razão pela qual deve ser ouvida e seguida.
Acerca desta perspectiva, impõe consignar, ainda, que nas últimas eleições brasileira e americana para o cargo de Presidente da República, os candidatos da extrema direita propalaram a existência de conspiração a fim de que as eleições fossem fraudadas e aclamados como vencedores adeptos do comunismo. Com os resultados dos pleitos, a conclusão trazida por Arendt pode ser lembrada, ainda que com a peculiaridade de não ter ocorrido após a tomada do poder: a busca pela confirmação das predições.
Destarte, em virtude da necessidade de certificar as previsões proféticas, a alternativa era mostrar para a sociedade “as provas da fraude eleitoral”. Com isto, vários engenhos desinformativos foram disseminados, principalmente, nas redes sociais digitais a fim de evidenciar a “suposta fraude”. As alegações contemplavam desde a atuação tendenciosa de mesários, nos dias das eleições, até a adulteração de equipamentos. Oportuno e relevante sublinhar que as teses consideradas infundadas pela Justiça Eleitoral Brasileira, uma vez que desprovidas de comprovação, foram, de forma reiterada, desmentidas também por diversas agências de checagem, sendo relevante destacar, neste aspecto, que a imprensa é apontada por Arendt como um dos refúgios da verdade. Assim, ainda que as referidas agências apresentem peculiaridades distintas da imprensa tradicional, elas podem ser alocadas nesta categoria firmada pela filosofa.
Ademais, a campanha acerca da suposta fraude eleitoral, que se estabeleceu em narrativas falsas difundidas pelas redes sociais digitais, gerou as invasões do Capitólio, nos Estados Unidos, em 06/01/2022 e das sedes dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, no Brasil, no dia 08/01/2023. Ambos os eventos tiveram como tônica a rejeição aos resultados das eleições devido às irregularidades que alegavam ter ocorrido no processo eleitoral e a condução ao poder dos “verdadeiros eleitos” e o afastamento dos comunistas.
Outro tema que foi utilizado, nas eleições brasileiras, e que, além de se coadunar com linhas do pensamento arendtiano, lembra a obra “1984” de George Orwell, publicada em 1949, diz respeito a criação do “Ministério da Verdade”. Segundo a narrativa difundida, nos pleitos de 2018 e 2022, pelo candidato da extrema direita, no caso de a esquerda, a qual alegava ser constituída por “comunistas”, vencesse a corrida eleitoral para a Presidência da República, o referido órgão seria instituído a fim de controlar os conteúdos veiculados/acessados nos meios de comunicação, o que incluía as redes sociais digitais.
Após a derrota do referido candidato, sob a exegese do novo governo e na iminência da votação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 2630/2020 (PL das Fake News), que foi apresentado a Casa Legislativa em 2020, ou seja, durante o mandato do anterior Presidente, os apoiadores e simpatizantes da extrema direita suscitaram que a aprovação da predita proposta legislativa configura a censura nos moldes do “Ministério da Verdade”. Era, para eles, a confirmação da profecia. Há, portanto, na busca pela concretização das previsões declaradas, semelhanças entre os recursos utilizados pelos dois movimentos, nos termos pensados por Arendt, sendo possível se assinalar a particularidade de que, nos eventos recentes, a procura pela confirmação da profecia ocorre ainda que o poder institucional não seja alcançado.
A coerência, outro critério da propaganda totalitária trazido por Arendt, também pode ser encontrada nos movimentos contemporâneos da extrema direita.
A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das características das massas modernas. Não acreditam, em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente entre si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte. (Arendt, 1989, p. 401).,
A atuação da extrema direita conservadora firma-se na denominada “cultura da pós-verdade”, a qual se caracteriza pela relativização da verdade. O que importa, neste cenário, é fazer com que as pessoas se afastem da busca pela realidade para realçar, acreditar e até defender a percepção que lhe é conveniente, sem necessidade de averiguação da veracidade daquele conteúdo. Em que pese as distinções inerentes às épocas históricas às quais se referem, é válido admitir que em ambos - totalitarismo e extrema direita contemporânea - há o desprezo pela verdade fatual, pela realidade posta. Na dinâmica propagandística dos regimes totalitários, assim como, na cultura da pós-verdade que marca os discursos da extrema direita, constata-se a demanda por algo que está fora daquilo que se percebe no mundo.
De mais a mais, nos dois formatos comunicacionais a mentira, o mistério e a coerência constituem componentes essenciais. Exemplo elucidativo é apontado por Charaudeau (2022, p. 145) quando aborda a manifestação de apoiadores de Donald Trump ao contestar o confinamento e o isolamento social em decorrente da crise pandêmica: “O comunismo mata mais que o COVID-19”, “O coronavírus é uma invenção do deep state americano”, “É o 5G que está na base da pandemia do coronavírus”. O olhar da realidade a partir de certo autoengano aparece, na obra de Hannah Arendt “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”
Bastava a Eichmann relembrar o seu passado para se sentir seguro de não estar mentindo e de não estar se enganando, pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos auto enganos, mentiras e estupidez que agora se viam impregnados de Eichmann (Arendt, 1999, p. 65).
Este autoengano mencionado por Arendt pode ser observado, em certa medida, na forma como as pessoas, na contemporaneidade, ainda que diante de evidências acerca da falsidade das narrativas, as quais, podem ser elucidadas, com facilidade, a partir do uso do aparato tecnológico, mantêm a aderência aos conteúdos inverídicos. É a era da pós-verdade que tem com a propaganda totalitária pontos de aproximação.
É importante trazer a discussão também a retomada, nas narrativas da extrema direita, de outro recurso manejado pelos regimes totalitários: o nacionalismo e a xenofobia. Em que pese Arendt advertir que os nazistas tinham genuíno desprezo, jamais abolido, pela estreiteza do nacionalismo, ele era utilizado na propaganda totalitária, visando atingir os simpatizantes do movimento e não os membros convictos do partido que já estavam comprometidos com os propósitos almejados.
Este recurso também pode ser notado nas declarações proferidas pelos líderes da extrema direita contemporânea, como, por exemplo, no discurso de Donald Trump, em 24/09/2019, na Organização das Nações Unidas (ONU): "Se você quer liberdade, mantenha sua soberania e, se quiser paz, ame sua nação. O futuro não pertence aos globalistas. O futuro pertence aos patriotas. O futuro pertence a nações soberanas e independentes”, ou naquele proferido, em 23/07/2023, em Tusnádfürdo (Baile Tusnad), pelo Primeiro-Ministro da Hungria Viktor Orbán – “Não queremos ser mestiços ao misturarmo-nos com não-europeus”; [....] Os países onde coabitam povos europeus e não europeus não são mais nações....”. Assim, consoante ocorreu no totalitarismo, o repúdio ao estrangeiro é contemplado também nas narrativas contemporâneas.
Em face do quanto declinado nos parágrafos pretéritos, se vislumbra linhas de semelhança entre os recursos informacionais adotados na propaganda totalitária e aqueles manejados pela extrema direta contemporânea. Ademais, o lema nazista “Deus, Pátria, Família” é, de forma ordinária, adotado na contemporaneidade pelos adeptos da aludida vertente ideológica, não devendo esta constatação ser observada como mera coincidência ou utilização despretensiosa.
A identificação destes pontos de aproximação traz consigo, porém, outro questionamento: o desiderato pretendido, segundo Arendt, em relação a propaganda totalitária pode ser reconhecido no que tange à extrema direita contemporânea? Para apreciação dessa indagação, vale lembrar que a autora alerta que o verdadeiro objetivo da propaganda não era a persuasão, formar convicção, mas sim a organização” (Arendt, 1989, p. 411). Este entendimento arendtiano faz lembrar a criação/manutenção das denominadas “bolhas” ou “tribos virtuais”, como são denominados os agrupamentos de pessoas que, aderindo a uma ideia, passam a “consumir” conteúdos que apenas reforçam as suas crenças e percepções, independentemente da verdade fatual, caracterizando aqueles que tem compreensões distintas como inimigos a serem eliminados.
No Brasil, após a proclamação do resultado das Eleições/2022, foram disseminadas, notadamente por meio digital, nas “bolhas” dos seguidores do candidato da extrema direita derrotado no aludido pleito, narrativas acerca da suposta fraude no processo eleitoral. A rejeição ao desfecho travado pelas urnas gerou episódios que revelam aspectos que se assemelham a organização das massas pensada por Arendt: o comportamento de pessoas trajando vestimentas da cor da bandeira brasileira, em invocação ao patriotismo que alegavam preservar, alojadas na porta de quarteis do Exército, a fim de perpetrar condutas (atos e discursos), tais como cantar o hino nacional, que, por vezes, conduziam a percepção de um só corpo.
É válido assinalar, ainda, as reflexões de Arendt acerca do pensar enquanto atividade do espírito abordada no livro A vida do Espírito. A autora, na referida obra, ressalta que, no julgamento de Eichmann em Jerusalém, ela pôde notar que a figura do réu era bastante comum, banal, não evidenciando, consoante se poderia esperar, algo demoníaco ou monstruoso. De acordo com a sua percepção, o agente em julgamento não tinha sinais de firmes convicções ideológicas ou de motivações específicas estabelecidas na maldade, a “única característica notória que se podia perceber em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão.” (Arendt, 1999, p. 6). Em outros termos, a autora suscita a ausência de pensamento daquele agente, consoante explicitado no trecho abaixo transcrito:
A ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e de bons hábitos, nem da estupidez no sentido de inabilidade para compreender – nem mesmo no sentido de “insanidade mental”, pois ela era igualmente notória nos casos que nada tinham a ver com as assim chamadas decisões éticas ou os assuntos de consciência. (Arendt, 1999, p. 6)
Reputa-se pertinente trazer as considerações de Almeida (2010, p. 856) acerca da distinção entre conhecer e pensar em Hannah Arendt.
Assim, mesmo que tenham feito uso de um saber e de um saber fazer, não pensaram, já que não pararam para se perguntar sobre o sentido de seus atos e não se indagaram o que tudo aquilo significava para eles, nem para as vítimas, nem para o mundo, lugar de convivência (Arendt, 2004). Nesse sentido, a autora constata que pode haver pessoas muito inteligentes que, contudo, não pensam. Conhecimentos e habilidades, ciência e tecnologia, podem, portanto, ser despojadas da reflexão que procura compreender o sentido de atos e acontecimentos.
A distinção que Arendt faz entre o conhecer e o pensar interessa a apreciação das constatações acima declinadas acerca da distância que se observa entre os conteúdos inverídicos e os conhecimentos próprios das áreas profissionais em que estão inseridos aqueles que aderem as aludidas narrativas. Na compreensão arendtiana, o pensamento surge das experiências, exigindo, porém, o afastamento a fim de que o ser pensante estabeleça diálogo consigo mesmo. Assim, ao se retirar das atividades em andamento, com calma e distância suficientes, o sujeito poderá buscar a compreensão daquilo que não está mais diante dos nossos olhos. “Esse afastamento provisório do mundo possibilita que entremos numa relação conosco mesmos e procuremos responder às nossas indagações” (Almeida, 2010, p. 857). Portanto, a atividade do pensar difere daquela atinente ao uso corrente das atividades mentais como o raciocínio lógico, uma vez que ela não tem um fim extrínseco. Ela é impulsionada pela necessidade de compreensão do mundo e de refletir acerca do lugar que se tem nele (Almeida, 2010, p. 858).
O problema que se relaciona com a situação inquietante posta a debate é a de que o pensar vem perdendo espaço para o conhecer, que se mostra capaz de “preparar” os indivíduos para atender a suas demandas. O conhecimento traz segurança, certeza, uma vez que é passível de ser evidenciado, comprovado, enquanto o pensamento, não tendo resultados sólidos, só tem validade na medida em que é repensado (Almeida, 2010, p. 859). Sendo assim, ainda que seja adequado destacar que a estadia numa instituição de ensino superior pode gerar conhecimentos técnico-científicos relevantes para basilar uma boa carreia no mercado, não se terá, necessariamente, o pensamento, nos termos arendtianos. E isto irá se refletir na forma como estas pessoas percebem as atitudes, crenças e os acontecimentos no mundo.
Embora Arendt rechace a ideia de ensinar a pensar e que a educação tenha, na visão dela, um fim específico que se relaciona a introdução do recém-chegado no mundo, apresentando-lhe os elementos que o constituem, Almeida (2010, p. 864) realça aspecto importante: “compartilhar o sentido que atribuímos às experiencias e aos pensamentos, e que queremos legar aos mais novos”. O mundo comum é apresentado ao recém-chegado com os elementos que o compõem, os quais devem ser mostrados de acordo com a verdade fatual a fim de que o sujeito educado tenha contato com a herança que lhe está sendo entregue para que, a partir dela possa, com liberdade para agir e apreço pelo que recebeu, faça com ela o melhor proveito tanto para si quanto para o mundo. Aos adultos, responsáveis pela educação, resta transmitir aos novos a herança da melhor forma possível, mas sem perder de vista que ela deve estar desprovida de testamento.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As redes sociais digitais ganharam destaque, uma vez que, devido às características que ostentam – alto alcance, ausência de submissão a critérios relativos à veracidade e confiabilidade, velocidade de difusão dos conteúdos – se tornaram os meios, predominantemente, utilizados para a veiculação de conteúdos falsos e desinformativos. Além disto, a emergência da extrema direita contemporânea e da cultura da pós-verdade gerou a implementação de modelo comunicacional com manejo de narrativas causadoras de desordem informacional – fake news, discurso de ódio e negacionismos científico e histórico.
A par das nuances deste contexto informacional e das reflexões firmadas por Hannah Arendt acerca dos regimes totalitários e da propaganda por eles perpetrada, é possível se verificar pontos de aproximação consoante se demonstrou ao longo do texto. No entanto, diante das apontadas afinidades, entre os formatos comunicacionais dos dois movimentos – totalitarismo e extrema direita contemporânea - é imprescindível reconhecer que a percepção arendtiana de que as conformações totalitárias permaneceriam presentes mesmo após as experiências do nazismo e do bolchevismo estarem reservadas ao passado, não podem ser minimizadas ou desprezadas, uma vez que ainda que distante do holocausto ocorrido à época do nazismo, as semelhanças identificadas conduzem à necessidade de que, os fenômenos informacionais contemporâneos, sejam compreendidos consoante sinalizado por Arendt no que se refere a encará-los sem preconceitos e com atenção a fim de a eles resistir.
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