Explorando as Fronteiras da Inteligência Artificial à Luz da Inteligência Senciente de Zubiri
Andre Felipe Gruber Bueno[1]
Universidade Federal do Paraná
andre.f.gruber@gmail.com
Marcelo Alessandro Fernandes[2]
Universidade Federal do Paraná
marceloalessandro@gmail.com
Waldemar Domingos[3]
Universidade Federal do Paraná
wadomingos@gmail.com
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Resumo
Este artigo visa explorar e elucidar as distinções fundamentais entre a inteligência artificial (IA) e a inteligência senciente, conforme proposto pela filosofia de Xavier Zubiri. O estudo busca compreender até que ponto a IA pode replicar aspectos da inteligência humana e como a compreensão da inteligência senciente pode informar e influenciar o desenvolvimento futuro da IA. A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, utilizando uma pesquisa bibliográfica para construir um referencial teórico robusto sobre a IA e inteligência senciente. Além disso, foi realizada uma análise de conteúdo para comparar a inteligência artificial com a inteligência senciente, com foco na filosofia de Xavier Zubiri, a qual permitiu identificar duas categorias principais relacionadas à IA sob a ótica da inteligência senciente: características ausentes e presentes da IA conforme entendimento da inteligência senciente. Dentro das características ausentes, foram levantadas 14 unidades de registros; para as características presentes, 7 unidades de registro, totalizando 21 códigos. O estudo conclui que, embora a inteligência artificial possa imitar certos aspectos da inteligência humana, ela não pode replicar a totalidade da experiência senciente.
Palavras-chave: inteligência artificial; inteligência senciente; análise de conteúdo.
EXPLORING THE FRONTIERS OF ARTIFICIAL INTELLIGENCE IN LIGHT OF ZUBIRI'S SENTIENT INTELLIGENCE
Abstract
This article aims to explore and elucidate the fundamental distinctions between artificial intelligence (AI) and sentient intelligence, as proposed by the philosophy of Xavier Zubiri. The study seeks to understand the extent to which AI can replicate aspects of human intelligence and how the understanding of sentient intelligence can inform and influence the future development of AI. The research adopted a qualitative approach, utilizing a literature review to build a robust theoretical framework on AI and sentient intelligence. Additionally, a content analysis was conducted to compare AI with sentient intelligence, focusing on the philosophy of Xavier Zubiri. This analysis allowed for the identification of two main categories related to AI from the perspective of sentient intelligence: absent and present characteristics of AI according to the understanding of sentient intelligence. Within the absent characteristics, 14 units of records were identified; for the present characteristics, 7 units of records, totaling 21 codes. The study concludes that while artificial intelligence can imitate certain aspects of human intelligence, it cannot replicate the totality of the sentient experience.
Keywords: artificial intelligence; sentient intelligence; content analysis.
EXPLORANDO LAS FRONTERAS DE LA INTELIGENCIA ARTIFICIAL A LA LUZ DE LA INTELIGENCIA SENTIENTE DE ZUBIRI
Resumen
Este artículo tiene como objetivo explorar y dilucidar las distinciones fundamentales entre la inteligencia artificial (IA) y la inteligencia sentiente, tal como se propone en la filosofía de Xavier Zubiri. El estudio busca comprender hasta qué punto la IA puede replicar aspectos de la inteligencia humana y cómo la comprensión de la inteligencia sentiente puede informar e influenciar el desarrollo futuro de la IA. La investigación adoptó un enfoque cualitativo, utilizando una investigación bibliográfica para construir un marco teórico sólido sobre la IA y la inteligencia sentiente. Además, se realizó un análisis de contenido para comparar la inteligencia artificial con la inteligencia sentiente, con un enfoque en la filosofía de Xavier Zubiri, que permitió identificar dos categorías principales relacionadas con la IA desde la perspectiva de la inteligencia sentiente: características ausentes y presentes de la IA según la comprensión de la inteligencia sentiente. Dentro de las características ausentes, se encontraron 14 unidades de registros; para las características presentes, 7 unidades de registro, con un total de 21 códigos. El estudio concluye que, aunque la inteligencia artificial puede imitar ciertos aspectos de la inteligencia humana, no puede replicar la totalidad de la experiencia sentiente.
Palabras clave: inteligencia artificial, inteligencia sentiente, análisis de contenido.
1 INTRODUÇÃO
A evolução da inteligência artificial (IA) tem marcado um capítulo significativo na trajetória tecnológica, culminando em realizações notáveis que se aproximam cada vez mais da inteligência humana e seus processos de pensamento (Lin; Chang, 2023). Contudo, diante desses avanços, emerge a necessidade crítica de confrontar as fronteiras conceituais entre a IA contemporânea e a filosofia da inteligência senciente proposta por Xavier Zubiri.
A IA, ao longo de sua história, buscou replicar elementos da inteligência humana, alcançando notáveis marcos, como a vitória em 1997 de um programa de computador sobre o campeão mundial de xadrez (Lagunas; Moral, 2009). No entanto, a distinção crucial feita por Zubiri entre inteligência sensível e senciente destaca limitações inerentes à IA. Enquanto a IA opera predominantemente dentro do paradigma da inteligência sensível, a inteligência senciente humana transcende essas capacidades, permitindo funções que as máquinas baseadas na inteligência sensível não podem reproduzir (Fowler, 2019).
A concepção de Zubiri sobre a inteligência senciente, considerando-a como uma atualidade do real, oferece uma visão única que vai além da capacidade de processamento de informações. O autor argumenta que a inteligência senciente é uma atualização do real, uma interação que nos conduz a um transcendental aberto pela própria inteligência (Zubiri, 2011a). Essa perspectiva vai ao cerne da criatividade humana, destacando a habilidade de desrealizar o real e apreendê-lo em imagens perceptivas (González, 2019).
Enquanto a IA avança, permanece a incógnita sobre sua capacidade de verdadeiramente replicar a inteligência senciente. Mesmo diante de avanços notáveis, argumentos teóricos baseados no Teorema da Incompletude de Gödel sugerem que a IA, embora avançada, permanece limitada a amplificar as capacidades humanas, mas não a substituí-las (Fowler, 2019).
Diante desse cenário, esta pesquisa visa aprofundar a compreensão das interações entre a IA contemporânea e a filosofia da inteligência senciente. O problema central que orienta este estudo é até que ponto a IA pode capturar a essência da inteligência senciente, conforme concebida por Zubiri. Este questionamento destaca desafios conceituais, éticos e práticos intrínsecos à tentativa de simular a complexidade da experiência e consciência humanas.
Os objetivos desta pesquisa são multifacetados. Primeiramente, pretende-se explorar como os conceitos fundamentais de Zubiri sobre a inteligência senciente podem informar e lançar luz sobre os desafios enfrentados pela IA. Além disso, busca-se compreender como a IA pode incorporar a capacidade de imaginar e criar, características distintivas da inteligência senciente, para oferecer uma simulação mais autêntica da inteligência humana, bem como de problemas relacionados com a afeição, cuidado humano, realização pessoal, relacionamento, inventividade e criatividade.
A justificativa para esta pesquisa reside na necessidade crítica de compreender as implicações filosóficas e éticas do rápido avanço da IA, especialmente à luz das teorias de Zubiri sobre inteligência senciente. Ao alinhar a pesquisa em IA com conceitos filosóficos, pretende-se contribuir para um diálogo interdisciplinar enriquecedor, ampliando as discussões sobre os limites éticos e filosóficos da inteligência artificial.
Zubiri, ao propor a inteligência senciente como um vínculo dialógico e transdisciplinar, oferece uma oportunidade única de enriquecer o debate sobre a IA. Reconhecendo que a inteligência humana é intramundana e não pode ser equiparada à "inteligência artificial", esta pesquisa visa proporcionar uma compreensão mais holística e profunda das implicações da IA na dimensão da inteligência natural humana.
2 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A IA é um campo de estudo que tem evoluído significativamente desde a sua concepção. Historicamente, a IA começou como uma aventura científica no século XX, com o objetivo de criar máquinas que pudessem simular aspectos da inteligência humana. Desde os primeiros experimentos com máquinas capazes de realizar cálculos matemáticos até os sistemas complexos de hoje, que podem aprender e se adaptar, a IA tem percorrido um longo caminho (Lin; Chang, 2023).
O desenvolvimento da IA pode ser dividido em várias fases. Inicialmente, o foco estava em criar programas que pudessem resolver problemas lógicos ou jogar jogos como xadrez. Com o tempo, a pesquisa em IA se expandiu para incluir o processamento de linguagem natural, o reconhecimento de padrões e a aprendizagem de máquina. A aprendizagem de máquina, em particular, tornou-se um componente central da IA moderna, permitindo que os sistemas melhorem seu desempenho com a experiência de uso, sem serem explicitamente programados para cada tarefa (Lin; Chang, 2023).
No âmbito do aprendizado de máquina, subcampo da IA, desenvolvem-se algoritmos que capacitam máquinas a aprender com dados e aprimorar seu desempenho ao longo do tempo. Incluem-se métodos como aprendizado supervisionado, não supervisionado e por reforço. O aprendizado profundo, utilizando redes neurais profundas para modelar abstrações complexas em dados, destaca-se como uma técnica poderosa no contexto do aprendizado de máquina (Colantonio et al., 2021).
O processamento de linguagem natural (PLN), outra área da IA, foca na interação entre computadores e linguagem humana. Seu objetivo é permitir que máquinas compreendam, interpretem e gerem linguagem aparentemente natural, de modo útil para o usuário, incluindo tradução automática, análise de sentimentos e assistentes virtuais capazes de entender e responder a comandos de voz (Colantonio et al., 2021).
A IA também abrange a emulação da percepção humana pela capacidade de interpretar dados sensoriais para compreender o ambiente. Isso envolve visão computacional, possibilitando que máquinas "vejam" e processem imagens e vídeos; e reconhecimento de fala, permitindo que máquinas "ouçam" e compreendam a linguagem falada, fundamentais para aplicações como veículos autônomos e interfaces de usuário controladas por voz (Singh; Goel, 2022).
No campo da robótica, a IA se combina com engenharia mecânica e elétrica para criar máquinas capazes de realizar tarefas em ambientes físicos, dotando robôs com a capacidade de navegar, manipular objetos e interagir de maneira a dar respostas na interação com humanos e outros robôs (Del Gallo et al., 2023).
Os agentes autônomos trabalham por meio de sistemas capazes de operar de maneira independente em um ambiente para atingir seus objetivos, desde simples, como um termostato programável, até complexos, como um drone que toma decisões com base em dados sensoriais em tempo real (Del Gallo et al., 2023).
As aplicações da IA são vastas e impactam quase todos os setores da sociedade; desde assistentes virtuais pessoais até sistemas avançados de diagnóstico médico (Umar et al., 2022). Na indústria, a IA é usada para otimizar cadeias de suprimentos, prever manutenção de equipamentos e automatizar tarefas. No campo da saúde, a IA auxilia na interpretação de imagens médicas e na personalização de tratamentos para pacientes (Umar et al., 2022). Além disso, a IA também desempenha um papel crucial em áreas como segurança cibernética, finanças e transporte (Mariani et al., 2023).
À medida que a IA avança, emergem questões éticas importantes, incluindo impacto no emprego, viés algorítmico, privacidade e responsabilidade pelas ações de sistemas autônomos (Poncinelli Filho et al., 2022).
3 INTELIGÊNCIA SENCIENTE
A Inteligência Senciente é todo um campo de desenvolvimento da filosofia da inteligência criada pelo filósofo espanhol Xavier Zubiri que diz que as faculdades do sentir e o inteligir não são essencialmente diferentes e não trabalham de forma dissociada uma da outra (Zubiri, 2011a, p. 3).
A tradição filosófica do ocidente, partindo dos gregos, medievais e modernos (a partir de Descartes e Kant) postularam uma distinção essencial entre duas faculdades da inteligência: a faculdade do sentir e do inteligir (Zubiri, 2011a, p. 3-4). Como decorrência dessa dissenção essencial cada uma das faculdades, por sua vez, levaria com que a inteligência trabalhasse por meio de atos separados, criando uma contraposição entre o momento do sentir e o momento do inteligir. A inteligência trabalharia então corrigindo as aparências sentidas.
Assim, o sentir e o inteligir formariam uma contradição, onde a faculdade do inteligir trabalharia num momento subsequente de forma a trazer consciência das “coisas” originadas no real, traduzido por um esforço para “dar-se conta” (Zubiri, 2011a, p. 4-5). A inteligência seria assim uma busca de estados de consciência e o esforço intelectivo de apreender o mundo seria o de estar cada vez mais consciente das coisas subjacentes desse mundo.
Essa noção, que perfaz o senso comum, diz que se deve aumentar a consciência sobre os fenômenos para penetrar a essência destes fenômenos a partir de atos de consciência (Zubiri, 2011a, p. 5). A inteligência seria um modo de desenvolver consciência sobre as coisas do mundo a partir de si mesma.
Zubiri critica essa noção de consciência como ente:
Em primeiro lugar, a consciência não tem nenhuma substantividade e, portanto, não é algo que possa executar atos. A consciência não é senão a substantivação do próprio “dar-se conta”. Mas a única coisa que temos como fato não é “o” dar-se conta, ou “a” consciência, mas os atos conscientes, de índole muito diferente. Sob pretexto de não apelar para uma “faculdade”, substantivou-se o caráter de alguns atos nossos, e esses atos se transformaram então em atos de uma espécie de “superfaculdade” que seria a consciência. (Zubiri, 2011a, p. 5).
Zubiri quer dizer com isso que a consciência não é um ente separado a executar atos que levem a compreensão das coisas, como se a intelecção fosse proveniente de um cerne substativado e separado que busca lançar luz sobre o mundo desde si mesmo. Para ele, a consciência das coisas vai se dando nos subsequentes atos de intelecção (Zubiri, 2011a, p. 5-6); num fluxo continuado que apreende as coisas unindo sempre o sentir e o inteligir. O ato inteligente senciente é um ato que faz sentir. Sente-se as coisas, o mundo e a realidade na inteligência. Assim, compreende-se que o discernir senciente foge da noção tradicional de que a consciência opera num âmbito separado do mundo sensível.
É por conta disso que esse contínuo movimento de atos supervenientes de compreensão faz com que o sujeito intelija a realidade num continuado “dar-se conta”, mas em sensibilidade inteligente, colocando o sujeito de maneira muito presente no real (Zubiri, 2011a, p. 4-6). As coisas são assim compreendidas, porque atuam impressivamente em todas as suas significações humanas.
Zubiri busca responder como se dá a realidade no inteligir, por meio do que ele chamará de formalização de realidade no indivíduo senciente (Zubiri, 2011a, p. 17-20).
Formalizar a realidade diz respeito ao sentir inteiro humano, trazendo mudanças perceptíveis no tônus vital, na forma como se dá a coordenação de mãos e membros que se integram na capacidade do indivíduo de empreender um curso de ação, preparando o organismo respostas inteligentes apropriadas (Zubiri, 2011a, p. 18-20). O organismo todo busca uma significação na resposta, produzindo comportamentos que podem variar dos mais expressivos, abertos, espontâneos aos reflexivos, compenetrados ou desvitalizados (Zubiri, 2011a, p. 21).
O próprio tônus vital adquire, por formalização, diferentes matizes. O bem-estar e o mal-estar gerais adquirem, por mera formalização, matizes próprios: um modo de sentir apagado ou vivaz, apagado numa direção, mas não em outras, uma tonalidade de alegria, etc. Tudo isso segundo qualidades e em graus ou formas diversas (Zubiri, 2011a, p. 21).
Diferente da ideia de informação, noção que caracteriza que algo está ganhando forma interior na tessitura da mente humana, o formalizar lida com a mudança do organismo senciente como um todo, envolvendo a pessoa no âmbito de realidade próprio dela, permitindo com que ela distinga a si mesmo e as coisas do mundo, em matizes grandemente diversificados pela sensibilidade humana.
Para explicar detidamente a apreensão senciente Zubiri criará a noção de notas do real (Zubiri, 2011a, p. 15).
Notas seriam algo distinto de informação, pois vem indicar as qualidades substantivas das coisas, das propriedades do real sem as quais a inteligência não conseguiria se alçar em possibilidades humanas – distinção notável que a inteligência senciente faz da ação de reposta estimúlica típica dos animais (Zubiri, 2011a, p. 28-29).
O vocábulo nota é criado a partir da raíz latina gnoto, o participio que significa que algo foi notado, ou seja, tudo aquilo que é percebido e já está na inteligência com todas as qualidades e matizes sensíveis apreendidos de maneira unificada (Zubiri, 2011a, p. 15).
A raíz gnoto irá originar palavras essenciais da língua portuguesa como conhecimento, cognição, reconhecimento, notável, ignorância, notícia, etc.
Por exemplo, a cor verde apreendida em intelecção senciente possui o caráter virídio próprio dado em nota, gerando num ato único, significações, sentimentos e emoções que irão participar com outras notas presentes da formalização de realidade, inserindo a pessoa num campo de realidade (Zubiri, 2011a, p. 16 -17).
Pela apreensão das notas, a inteligência humana consegue aprofundar-se na dimensão real, pois consegue apreender o caráter substantivo das coisas e permite com que ela, a inteligência, se aprofunde distinguido realmente o caráter próprio das coisas. O sentir inteligente não é pura reação. É um sentir em profundidade (Zubiri, 2011a, p. 18-20).
4 A EMULAÇÃO DA INTELIGÊNCIA PELOS MEIOS ARTIFICIAIS
Essa preocupação demasiada da filosofia moderna com o “dar-se conta” lança por alto a ideia do estar presente, que presentifica a realidade que se atualiza sem se distanciar do que está se sucedendo (Zubiri, 2011, p. 99-100). E nisso justamente reside a inovação e o giro metafísico substancial da Inteligência Senciente, quando considera que o estar presente não é o mesmo do que o “dar-se conta” (Zubiri, 2011a, p. 4-6).
A apreensão de realidade é, pois, um ato estruturalmente uno e unitário. Essa unidade estrutural é o que expresso pelo “em”. A filosofia clássica, ao contrário, pensa que há dois atos: o ato de sentir dá “à” inteligência o que esta vai inteligir. Não é assim. É essencial a diferença entre o “a” e o “em”. Esta diferença expressa a diferença entre os dois conceitos de inteligência. Dizer que os sentidos dão “à” inteligência o que esta vai inteligir é supor que a inteligência tem como objetivo fundamental e adequado o que os sentidos apresentam “a” ela. Em razão disso, a inteligência seria então o que chamo de inteligência sensível. Inteligência sensível é inteligência do sensível. (Zubiri, 2011a, p. 56).
Esse modelo em dois momentos parece também servir como base para o desenvolvimento de simulacros operativos pelos quais as inteligências artificiais foram se estabelecendo. As inteligências artificiais generativas operam a partir daquilo que é dado a ela, a partir de delimitações de campos de contexto de discussão nas suas interfaces, onde o espaço de alta dimensão da inteligência artificial se utilizam de tokens desenvolvidos pelo aprendizado de máquina (Goodfellow et al., 2016).
Dentro do funcionamento da inteligência artificial, um token é a unidade básica de processamento. Pode ser uma palavra, um caracter, ou até mesmo partes de palavras (Goodfellow et al., 2016). Em processamento de imagens, tokens são pixels ou agrupamentos de pixels.
O espaço de alta dimensão é, então, o espaço de operação da inteligência artificial generativa resultante do conjunto do total treinamento que se estabelece a partir de vetores de alta dimensão (Goodfellow et al., 2016). Esses, por sua vez, se estabelecem a partir de processos sistemáticos e assistemáticos de tokenização e destokenização de informação (Jurafsky; Martin, 2019) a partir da busca de coerência semântica, permitindo então o estabelecimento de respostas congruentes segundo métodos probabilísticos bastante refinados (Bishop, 2006).
Essa distinção entre inteligência sensível e inteligência senciente é fundamental para a presente análise.
Em linhas gerais, a distinção é que as inteligências artificiais, segundo a inteligência senciente, não apreendem realidade. As IAs se baseiam em inputs de informação baseados em captura de estímulos provenientes do meio que se integram em bases de dados para a construção de representações. Assim, tal forma de entendimento da operação inteligente vem se aproximar das definições de filosofias modernas, tal como a representacional ou fenomenológica, ao que Zubiri definiu por formas concipiente de compreensão do funcionamento da inteligência humana (Zubiri, 2011b, p. 93).
Ainda que as inteligências artificiais se baseiem em um número extraordinário de informações e dimensões que fazem parte do cálculo probabilístico computacional (Bishop, 2006), elas formam representações produzidas pelo espaço de alta dimensão - formas indiretas de apreensão da realidade, e, baseado em “segundos momentos” no inteligir portanto, não seriam capazes de formalizar sencientemente realidade (Zubiri, 2011b, p. 128).
Essa problemática será assim apresentada por Xavier Zubiri em 1980:
A filosofia clássica escorregou na impressão de realidade. É esta impressão, porém, o que constitui o inteligir primordial, e não as combinações, incluindo as seletivas, do que se costuma chamar de inteligência animal. Muito menos ainda se pode falar, como é hoje frequente, de inteligência artificial. Tanto em um caso como no outro, o executado, seja pelo animal, seja pelo mecanismo eletrônico, não é inteligência, porque tudo isso concerne tão somente ao conteúdo da impressão, mas não é formalidade de realidade. São impressões de conteúdo, mas sem formalidade de realidade. Por isso é que não são inteligência. (Zubiri, 2011b, p. 57).
A distinção, algo sutil, da ênfase na filosofia moderna no “dar-se conta” daquilo que a inteligência já tem por apreendido é essencial para distinguir a inteligência humana natural das chamadas inteligências artificiais, que não conseguem presentificar a realidade sencientemente.
Essa indistinção nessa primeira análise sugere o que os propositores da inteligência artificial não souberam reconhecer (Goodfellow et al., 2016).
O inteligir da inteligência humana considera aquilo que está presente numa realidade em atualização, com toda a significação real de apreensão e de possibilidades. Atualização é uma palavra chave para indicar o caráter da presentificação se dando continuamente (Zubiri, 2011b, p. 105).
A apreensão de realidade é apreensão de substantividade, das qualidades e propriedades do real com todas as significações humanas e matizes de sensibilidade (Zubiri, 2011b, p. 146-150). A flor é sentida como realidade quando se apreende sua presença. Essa apreensão é substantivamente apreendida. Nessa apreensão a inteligência já indica que a flor possui qualidades e propriedades de si mesma e por si mesma. O caráter substantivo é inextricável a significação que podemos depreender no momento primeiro de apreensão inteligente e, no entanto, esse primeiro momento de realidade carrega consigo o potencial de desenvolvimentos ulteriores na medida em que a dimensão senciente se aprofunda (Zubiri, 2011b, p. 186).
Assim, aquilo que se compreende como uma operação de inteligência parte de processo de interpretação e processamento de estímulos e signos colocando o cálculo computacional num não lugar de sentir inteligente, que expurga a sensibilidade humana essencial para a compreensão do que faz o inteligir humano. Caracteriza uma noção vaga de reflexão sobre as coisas como princípio fundador da inteligência.
Quando ela leva as informações a serem processadas no campo de alta dimensão da inteligência artificial, o ato do inteligir senciente e todas as suas significações que se dão junto a sensibilidade inteligente são calculadas, interpretadas, ou seja, logificadas (Zubiri, 2011b, p. 161-162) substituindo a inteligência senciente, pela busca de respostas probabilísticas congruentes.
A definição concipiente da inteligência é aquela que usa o nome inteligência no nome sem investigar os fundamentos da biologia, da neurociência e da psiquê na explanação de como a inteligência humana se faz diferente de todo o resto.
Esse foco excessivo no “dar-se conta” acabou por disjutar todo o caráter da sensibilidade humana que diferencia os homens dos outros animais e das máquinas (Zubiri, 2011b, p. 27-31).
Por conta disso, alguns críticos, estudiosos da inteligência senciente, acabam por dizer que a inteligência artificial seria uma espécie de análogo da inteligência animal, por trabalhar a partir de uma espécie processamento simultâneo dos estímulos como se fora um operador a buscar algum tipo de resposta. Mas isso é muito diferente da definição de inteligência senciente que parte do pressuposto que a inteligência está em presença de uma realidade com significação humana e respostas tipicamente humanas.
Em síntese, a inteligência não trata apenas e fundamentalmente do dar-se conta, mas no estar presente das coisas humanas, trazendo profundas implicações no sentido amplo de uma definição de inteligência, que seria capaz de apreender a substantividade, as propriedades do real e aprofundamento das questões humanas na realidade.
5 METODOLOGIA
A pesquisa utilizada neste trabalho teve uma abordagem de natureza qualitativa, com a finalidade de descrever e compreender um fenômeno (Sampieri et al., 2013); além de ser empregada uma pesquisa bibliográfica para revisão da literatura (Lakatos; Marconi, 2003); e aplicação dos protocolos de coleta de dados através da análise de conteúdo, proposta por Bardin (2016), utilizando-se como ferramenta de análise o software ATLAS.ti.
5.1 ESTRUTURA CONCEITUAL E TEÓRICA
Para a construção do referencial teórico sobre inteligência artificial, utilizou-se a busca de artigos através de bases indexadoras, considerando artigos que realizaram uma revisão sistemática de literatura, a partir de duas técnicas: backward snowballing, chamada de back2bas, e o método ordinatio (Pagani et al., 2023).
O back2bas se trata de uma técnica que consiste em identificar as principais bases de dados que possuam maior probabilidade de que se encontre conteúdo relevante para a busca efetuada. O procedimento consiste em um processo sistemático que leva a bases indexadoras baseadas nas leis da bibliometria e na capacidade investigativa e dedutiva do pesquisador (Lakatos; Marconi, 2003).
As palavras-chave utilizadas para a busca dos artigos foram: “Artificial Intelligence” E “Systematic Review” OU “Systematic Literature Review”. Na primeira etapa, conforme método back2bas, foram identificadas as seguintes bases indexadoras para a formação do corpus que trouxesse o estado da arte sobre definições da IA: Directory of Open Access Journals (DOAJ), Web of Science (WOS) e PubMed.
A partir da identificação dos índices calculados pelo back2bas, em sequência, aplicou-se o método ordinatio, com o uso da plataforma R-Studio e da biblioteca bibliometrix, a fim de efetuar a classificação da pontuação dos artigos dessas mesmas bases em sequência ordinal, com o filtro de período de cinco anos.
Do resultado, chegou-se à seleção de sete artigos, conforme Quadro 1:
Quadro 1 – Artigos selecionados sobre IA.
Autor(es) |
Ano |
Base |
Título |
Del Gallo et al. |
2023 |
DOAJ |
Artificial Intelligence to Solve Production Scheduling Problems in Real Industrial Settings: Systematic Literature Review |
Colantonio et al. |
2021 |
DOAJ |
A Systematic Literature Review of Cutting Tool Wear Monitoring in Turning by Using Artificial Intelligence Techniques |
Lin; Chang |
2023 |
WOS |
Artificial Intelligence and Information Processing: A Systematic Literature Review |
Umar et al. |
2022 |
WOS |
E-Cardiac Care: A Comprehensive Systematic Literature Review |
Mariani et al. |
2023 |
PubMed |
Artificial intelligence in innovation research: A systematic review, conceptual framework, and future research directions |
Singh; Goel |
2022 |
PubMed |
A systematic literature review of speech emotion recognition approaches |
Poncinelli Filho et al. |
2022 |
PubMed |
A Systematic Literature Review on Distributed Machine Learning in Edge Computing |
Fonte: Os autores (2024).
Estes sete artigos compuseram a base para construção do referencial teórico sobre IA, uma vez que já apresentam em seu conteúdo uma discussão atual e conceitual do tema em questão.
Para o referencial teórico sobre Inteligência Senciente, os textos seminais de Zubiri (2011a; 2011b) são a principal fonte, complementados com artigos sobre o tema apresentado na base de periódicos The Xavier Zubiri Review.
5.2 OPERACIONALIZAÇÃO DA ANÁLISE DE CONTEÚDO
A análise de conteúdo compreende três etapas principais: (i) pré-análise: preparação e seleção do material; (ii) exploração do material: codificação e categorização; e (iii) tratamento dos resultados: análise dos resultados (Bardin, 2015).
Para a pré-análise, foram buscados textos que pudessem nortear a questão de pesquisa: até que ponto a IA pode capturar a essência da inteligência senciente, conforme concebida por Zubiri? Nesse sentido, optou-se por considerar artigos publicados principalmente no periódico The Xavier Zubiri Review, uma vez que nesta base se concentram os principais textos sobre inteligência senciente.
Acessado em dezembro de 2023, o repositório The Xavier Zubiri Review contava com 102 artigos publicados. Com base nesses artigos, buscou-se no título, resumo e conclusão, qualquer referência à inteligência artificial. Nesta consulta, foram selecionados cinco artigos, conforme Quadro 2:
Quadro 2 – Artigos selecionados na primeira etapa da pré-análise.
Autor(es)/Ano |
Título |
Fowler (2019) |
Artificial Intelligence in Light of Zubiri’s Theory of Sentient Intelligence |
González (2019) |
Pensar filosóficamente la inteligencia artificial |
Conill (2019) |
Noología en tiempos de neurociencias e inteligencia artificial |
Lagunas; Moral (2009) |
Corporalidad y cognitividad en inteligencia artificial débil: una reflexión desda la idea de inteligencia sentiente |
Hernáez Rubio (1999) |
Filosofía, actualidad e inteligencia en Xavier Zubiri |
Fonte: Os autores (2024).
Como parte da segunda etapa, cada um dos artigos foi lido de maneira integral, de forma a verificar se seu conteúdo contribuía para a investigação. Observou-se que o texto de Conill (2019) não abordava a questão sobre inteligência artificial. Dessa forma, os textos que compuseram o corpus da pesquisa foram os quatro relacionados no Quadro 3:
Quadro 3 – Corpus de análise.
Autor(es)/Ano |
Título |
Fowler (2019) |
Artificial Intelligence in Light of Zubiri’s Theory of Sentient Intelligence |
González (2019) |
Pensar filosóficamente la inteligencia artificial |
Lagunas; Moral (2009) |
Corporalidad y cognitividad en inteligencia artificial débil: una reflexión desda la idea de inteligencia sentiente |
Hernáez Rubio (1999) |
Filosofía, actualidad e inteligencia en Xavier Zubiri |
Fonte: Os autores (2024).
Definido o corpus de análise, constituído por quatro artigos, deu-se início à exploração do material, através do software ATLAS.ti, buscando identificar inicialmente os códigos dos elementos considerados relevantes (Silva; Fossá, 2015). A Figura 1 apresenta a relação de códigos levantados:
Figura 1 – Lista de códigos identificados.
Fonte: Os autores, utilizando o software ATLAS.ti (2024).
Durante a realização da codificação, foram inicialmente levantados todos os elementos considerados relevantes e relacionados aos objetivos da pesquisa. Nesta etapa foram identificadas as unidades de contexto, que correspondem a um trecho que representa o código, sendo codificadas em unidades de registro ou código.
No total, foram definidos 21 códigos, conforme Figura 1. A listagem também ordena os códigos em relação à sua magnitude, ou seja, quantas vezes o mesmo código apareceu nos quatro artigos analisados.
Na próxima etapa, os códigos foram agrupados de acordo com sua similaridade e contexto, de forma a identificar categorias de análise. O agrupamento considerou, do ponto de vista da inteligência senciente, quais características estão presentes ou ausentes na inteligência artificial. Foram definidas duas categorias: características presentes e ausentes na IA, do ponto de vista da inteligência senciente, conforme Figura 2:
Figura 2 – Lista de categorias identificadas.
Fonte: Os autores, utilizando o software ATLAS.ti (2024).
Os códigos compreendidos na categoria “Características ausentes”, referem-se a características que a IA não possui de forma a ser caracterizada como inteligente, do ponto de vista da inteligência senciente. Os códigos na categoria “Características presentes”, relacionam as características que a IA possui de acordo com a inteligência senciente.
6 ANÁLISES E DISCUSSÃO
A discussão que se segue neste trabalho parte da problemática que busca compreender se a inteligência artificial pode ser entendida como inteligência em sua estrutura fundamental e a partir do processo de estabelecimento de resposta à luz dos pressupostos da inteligência senciente. Ou seja, até que ponto a Inteligência Artificial emula ou se baseia no que a inteligência senciente irá denominar por apreensão de realidade ou apreensão primordial de realidade.
Para tanto, esta análise de conteúdo terá como objetivos: (i) buscar estabelecer uma crítica da chamada inteligência artificial a partir dos princípios fundamentais que balizam a inteligência senciente da filosofia de Xavier Zubiri; e (ii) compreender se as bases operativas da IA conseguem incorporar em seu processo de geração de respostas a capacidade de imitar ou guardar paralelos com processos de imaginação e criatividade, considerados características distintivas da inteligência humana.
Busca-se lançar luz para o estabelecimento de possíveis paralelos entre a inteligência senciente e a inteligência artificial, com a proposição de um modelo conceitual, considerando que a verdadeira inteligência se faz notar pela forma como lidar com a dimensão afetiva, o cuidado humano, questão ligadas ao relacionamento interpessoal, a busca por realização, a autenticidade nas ações e a capacidade inventiva.
Alguns pioneiros desbravadores da tecnologia da informação, como Alan Turing, chegaram a dizer que as máquinas ultrapassariam em muito o poder da capacidade humana em trazer respostas inteligentes para os problemas e que em algum momento elas conversariam entre si e assumiriam o controle (Turing, 1951). Sam Altman, CEO da empresa Open AI, chega a dizer que a Inteligência Artificial seria uma superinteligência capaz de operar de acordo com o que super-humanos fariam (Feldman, 2019).
Para o pesquisador Thomas Fowler (2019), a Inteligência Senciente conforme estabelecida por Xavier Zubiri traria uma diferença fundamental em relação ao que este denominou por inteligência sensível. As máquinas operariam a partir de estímulos, signos e informações que seriam num segundo momento processados por algoritmos, mas que não fariam o que Zubiri denominou por formalização de realidade: “Neste artigo, desejo argumentar que máquinas baseadas em IA, como robôs, operam no paradigma da inteligência sensível; elas não sentem a realidade” (Fowler, 2019, p. 72).
Este “sentir a realidade” é fundamental para o entendimento preciso da inteligência senciente, uma vez que Zubiri define que a realidade só pode ser apreendida essencialmente por seres humanos. Os animais não apreendem as coisas em sua realidade significativa essencial, são estimulados a responderem as situações segundo um conjunto limitado de possibilidades auferidas pelo seu organismo, ainda que alguns animais possam escolher entre um número maior de alternativas responsivas dado seu grau maior de autonomia para combinação de respostas instintivas. No entanto, eles são condicionados a responderem àquilo a que estão submetidos segundo as circunstâncias da situação, não podendo agir fora da situação.
O ser humano consegue grande “distanciamento” e liberdade de atuação dado a sua capacidade imaginativa, lógica e racional. A caracterização precisa desse tipo de sensibilidade inteligente que permite estar na realidade apreendendo sensivelmente a situação em apreensão inteligente é denominada por Zubiri de Inteligência Senciente.
As máquinas funcionam de maneira similar, uma vez que os algoritmos trazem essa característica responsiva que parte também de algum nível de estimulação capturada por sensores e que são então transformadas em informações base para as operações computacionais com vista a emulação da inteligência humana:
Na medida em que possuem "inteligência", utilizam sensores que recebem algum tipo de entrada (estímulo) de seu ambiente. As entradas de todos os seus sensores (se houver mais de um) são processadas de acordo com algum algoritmo, e então algoritmos adicionais instruem a máquina a tomar alguma ação. Em nenhum momento elas são "conscientes", entendem a realidade ou mesmo sabem sobre o "mundo externo" (Fowler, 2019, p. 72).
A novidade da filosofia de Xavier Zubiri nesses tempos de grande propagação da inteligência artificial é trazer justamente uma filosofia da realidade, que é definida a partir da conjunção em sentido forte entre inteligência e sensibilidade. Dessa forma, aquilo que é apresentado como a vanguarda do instrumental contemporâneo, recenderia ainda a uma filosofia de separação aos moldes cartesianos: o dualismo corpo-mente atualizado em suas premissas básicas de apreensão da realidade. O cerne da inteligência computacional seria um representativo da dimensão da mente correspondendo aos algoritmos e o efetivo computacional de processamento seriam impulsionados pelos hardwares de ponta, correspondendo o equivalente ao corpo.
Assim, do ponto de vista da IA, o essencial é, portanto, o algoritmo, o programa, e o insubstancial é o elemento material onde tal programa está implementado, seja este um organismo vivo ou uma máquina. O dualismo mente-corpo vem aqui a ser substituído pelo dualismo programa-máquina. A consequência é que não saímos do cartesianismo, mas este se radicaliza, ao propor um modelo mecanicista da própria mente ou inteligência (Hernáez Rubio, 1999, p. 60, negrito dos autores).
Para Zubiri, a inteligência senciente deve considerar um sistema autoconsciente que apreende realidades em notas, baseando sua a capacidade de compreensão por se inserir na dimensão do real apreendido em sensibilidade. A IA não conseguiria atender essas características, justamente por conta de sua principal limitação: segue regras e premissas lógicas, seria uma inteligência logificada. Para Zubiri, a inteligência é constitutivamente aberta com potencial de desligar-se de regras uma vez que a apreensão da realidade exerce influência sobredeterminante no desenvolvimento da marcha inteligente.
Na inteligência senciente as dimensões da substantividade das coisas do mundo e, portanto, da corporalidade no homem são fundamentais para o entendimento de um sistema que forma um tudo indissociável. Para Zubiri, o homem é formalmente uma realidade substantiva psico-orgânica (Lagunas; Moral, 2009, p. 32), que não pode desvincular seus subsistemas psíquicos dos respectivos subsistemas orgânicos. A inteligência forma um todo corporal, portanto físico indissociável. Essa forma de se apresentar ao ser vivente humano é que caracteriza a sua dimensão total senciente, formando um tipo muito peculiar de ser vivo. Essa mesma conformação que dará às suas ações um caráter original e único.
Zubiri afirma que a inteligência humana é uma inteligência senciente e que a natureza senciente da inteligência não ocorre apenas em certos níveis de inteligência, mas em todos. O momento senciente de intelecção em Zubiri exige seu caráter corpóreo; não é que o senciente da intelecção seja meramente identificado com a corporeidade, mas que aponta junto a ela, se dando com ela. Isso sugere dois pressupostos intrínsecos: (a) existem diferentes níveis de inteligência; (b) podem ser vislumbradas diversas estruturas materiais que determinam os vários níveis de inteligência.
A realidade física para Zubiri é sempre designado por um “estar” no real, que diz que é necessário tomar o corpo nas suas condições materiais presentes. O caráter substantivo das coisas é também caracterizado na definição própria do homem, ser de realidade substantiva, incluindo a ideia do substantivo de si mesmo.
Isso é indicado pela ideia Zubiriana de atualidade do real, onde o homem tem condições de situar a si mesmo diferentemente, porque tem condições de expressar aquilo tudo que vive na realidade, inclusive quando toma o próprio corpo. A expressão humana é a ideia base pelo qual a inteligência senciente indica que o organismo humano não está à mercê das condições que o define. É pela expressão humana que o homem consegue abrir-se para novas realidades por um mover-se para novas condições a partir de um movimento inteligente que é autônomo e aberto ao novo.
Não podemos esquecer, chegando a este ponto, que a corporeidade orgânica se posiciona como a noção mais limitada de corporeidade e tem sua origem no pensamento de Von Uexküll, Maturana e Varela, e sua distinção entre seres vivos e não vivos: os seres vivos são sistemas autônomos e autopoéticos, em contraste com as máquinas que são heterônomas e alopoéticas (Lagunas; Moral, 2009, p. 34).
Daqui, depreende-se que a autonomia da máquina sempre teria um fator limitante, uma vez que ela não poderia abrir-se para novas realidades, porque em seu substrato de funcionamento haverá sempre a necessidade de um conjunto de regras que a prende a um determinado limite de respostas. Ela não possuiria um caráter de abertura transcendente no seu modo de operar sobre os dados. Ao mesmo tempo as máquinas são mecanismos alopoéticos, pois construídos e mantidos por agentes externos, tanto em seu fundamento como na sua capacidade de originar respostas.
Dessa forma, para Zubiri, a corporeidade é um elemento fundamental para explicar a cognição. A corporeidade, assim como a substantividade e a reciprocidade com o real, irão se inserir numa noção de desenvolvimento da inteligência humana mais ampliada, que fundamenta a inteligência senciente a partir da forma como o todo é apreendido. Essa modulação senciente apreensiva é chamada de formalização da realidade. A inteligência se dá fundamental apreendendo formas concretas, mas com profunda significação humana.
Fowler, citando Follet, destaca, a partir das qualidades ímpares da inteligência senciente humana, que ela é radicalmente diversa da maneira operativa com que as máquinas trabalham por ali não haver formalização e tudo que é concernente a ela:
Os modelos de aprendizagem automática não têm acesso a essas experiências e, por isso, não podem "compreender" os seus dados de uma forma humanamente relacionável. Ao anotar um grande número de exemplos de treino para alimentar os nossos modelos, conseguimos que eles aprendam uma transformação geométrica que mapeia os dados para conceitos humanos neste conjunto específico de exemplos, mas este mapeamento é apenas um esboço simplista do modelo original nas nossas mentes, aquele que foi desenvolvido a partir da nossa experiência como agentes incorporados - é como uma imagem fraca num espelho (Fowler apud Follet, 2019).
O risco de tal tipo de aparato tecnológico comece a servir de estofo para o desenvolvimento de iniciativas e novos empreendimentos humanos seria o da artificialização na criação de soluções e artefatos, que em dado momento estariam desligados das reais necessidades humanas, pois que operando apartadas da dimensão senciente de fundo.
Os artefatos criados pelo homem foram centrais para a evolução humana ao longo das eras. É possível estabelecer uma intrínseca relação entre o desenvolvimento da inteligência senciente e a forma como os problemas reais de sobrevivência e de aprofundamento do viver humano foram se aprofundando pela inventividade e a criatividade ante os novos desafios (Fernandes, 2019).
A dimensão senciente, com sua riqueza em notas parece ser uma das chaves para a ação criativa. “Uma distinção importante entre dispositivos de automação e sistemas, incluindo IA, e a inteligência senciente, é que o contato com a realidade possibilita uma capacidade criativa de lidar com o desconhecido” (Fowler, 2019, p. 73).
Na inteligência senciente, a realidade possui caráter de força de imposição ao mesmo tempo que traz consigo uma abertura de possibilidades - conferindo a ação humana um empreender que se notabiliza pelo singular. Àquilo que não está programado e que foge a lógica de antecipação pode ser alcançado por um novo situar-se, impulsionado pelo saber dramático, artístico e poético. Assim, o ordinário na dimensão senciente pode alçar ao extraordinário pela ação criativa.
É razoável inferir que a inteligência senciente, devido ao seu contato direto com a realidade, é capaz de fazer o que não pode ser programado, não pode ser reduzido a regras e requer interação criativa com a realidade, como amor, amizade, formulação de hipóteses científicas, criação de arte e outras tarefas que não se encaixam no paradigma de feedback estímulo/resposta (Fowler, 2019, p. 74).
Para que um sistema seja chamado de inteligente, ele dever ser capaz de sentir, ter afetividade e ser capaz de agir, para compreender sua realidade de conhecimento.
Segundo Gonzáles (2019), a Inteligência Artificial trabalharia a partir de algoritmos, aprendendo com os dados e utilizando esse aprendizado para a tomada de decisões. Dessa forma, os algoritmos não só apenas executam rotinas ou levam a resultados programados como apreende novos procedimentos ante novas situações, produzindo respostas a partir da capacidade de comparar e combinar novas alternativas geradas.
Os propósitos dessas máquinas virtuais são fundamentalmente dois. Utilizar máquinas virtuais para realizar tarefas úteis para eles (finalidade tecnológica). Utilizar os modelos e estratégias com que operam essas máquinas virtuais para solucionar questões sobre o ser humano e os seres vivos em geral (finalidade científica). Para desenvolver essas máquinas virtuais, como vimos, aprofundou-se a ideia de reduzir o funcionamento do cérebro à lógica proposicional de Russell que poderia ser formulada em uma linguagem matemática.
Se dermos uma definição do que entendemos por IA, podemos indicar que são máquinas virtuais, independentes dos diversos suportes que possam adotar, que utilizam uma lógica binária matematizada para processar quantidades imensas de informação (os teóricos da IA falam em aprender) dentro de um campo de busca previamente definido para tomar decisões que, de fato, podem levar a uma situação neutra (empates), sucesso ou fracasso (como a partida de xadrez com a qual este artigo começou) (Gonzáles, 2019, p. 122, tradução dos autores).
González não entende que a IA seja inteligente, por trabalhar no âmbito dos sinais e símbolos, mas não na realidade. O autor irá argumentam que os teóricos da Inteligência Artificial têm desenvolvido suas linhas argumentativas em torno da ideia de processamento de dados ou da tomada de decisão. No entanto, ele diz que o ato intelectivo primeiro é anterior e mais radical ao processamento de informações ou a tomada de decisão. Seria um “[...] estar a inteligência com o inteligido e o inteligido com a inteligência, um estar no âmbito não da informação, nem no âmbito da resposta, mas no âmbito da realidade (Gonzáles, 2019, p. 123, tradução dos autores).
Assim, segundo esta crítica, as informações e as respostas obtidas pela IA se moveriam a partir de sinais e de signos, mas não de um estar na realidade. Para isso, seria necessário a realidade mesma e o transcorrer dessa mesma realidade num realitas in essendo, ou seja, uma “realidade se dando no ser”. Dessa forma, a cognição viria a trabalhar concomitantemente e sem que houvesse algum grau de interrupção no seu movimento, modulando a realidade sencientemente a partir de uma apreensão primeira da realidade. Esta por sua vez impulsionaria os subsequentes atos intelectivos, que no ser humano é essencialmente aberto. Daí o caráter de possibilidade de um transcender a realidade num movimento que revela meandros até então ocultos para o sujeito cognoscente pela sua possibilidade de um aprofundar-se em pensamentos que podem trazer dimensões outras por esse impulso que o “estar presente” pode ir conduzindo.
O âmbito da informação e o âmbito da resposta movem-se mais nos âmbitos dos sinais e dos signos, mas não na realidade. Entendendo por realidade não coisa, conjunto de coisas ou algo fora do ato que o afeta, mas um modo de estar. Modo de estar pelo qual tanto o ato quanto o que o ato faz presente ficam, no próprio ato e não fora dele, como "de si mesmo". Esta unidade de ato é o que Zubiri chama de apreensão e é de realidade. Isso, nos desenvolvimentos que temos atualmente de IA, não ocorre (Gonzáles, 2019, p. 123, tradução dos autores).
Outro destaque que o autor traz é a radicalidade da filosofia senciente que não divide o ato da intelecção da ideia primeira inserida em seus fundamentos de que o ato inteligente trabalha de maneira indissociável ao da sensibilidade no próprio ato.
Assim, o autor argumenta que as chamadas máquinas virtuais trabalham processando dados estruturados ou não estruturados, gerando respostas e ações concretas buscando busca níveis internos de coerência. Num sentido senciente bastante estrito e radical não poderia se dizer que as máquinas apreendem impressões de realidade, ainda menos compreensão do real. Ainda que estejam trabalhando a partir de informações do real, elas não estão situadas no real, não nos termos de uma realidade senciente.
Outro ponto que González (2019) vem chamar a atenção é que as IAs se equivaleriam ao inteligir humano a partir das chamadas máquinas virtuais. Entretanto, ele chama atenção para o fato de que para que estas operem “inteligentemente” necessitariam de aparatos físicos, tais como computadores, dispositivos móveis, servidores, sistemas embarcados, robôs e qualquer outro tipo de hardware capaz de executar algoritmos. Isso diferiria da ideia mesma de um inteligir humano em sua unidade radical senciente.
Em segundo lugar, essas IAs são máquinas virtuais que podem adotar diferentes tipos de suportes físicos. Isso também as diferencia da inteligência humana ou do ato intelectivo sensível humano. Este não é um sentir mais um inteligir, mas sim uma unidade radical desses dois momentos. Ou seja, o ato intelectivo humano é radicalmente sensível e isso não é acidental ao nosso momento intelectivo. Não há um ato intelectivo que poderia ocorrer à margem do momento sensível e não afetado por ele ou que pudesse adotar diferentes tipos de momentos sensíveis sem que isso supusesse uma constituição diferente de seu momento intelectivo (Gonzáles, 2019, p. 123, tradução dos autores).
A inteligência humana é sensível não apenas porque o ser humano processa informações sensoriais, mas porque suas emoções, percepções e experiências sensíveis influenciam profundamente o seu pensamento e compreensão. Isso sugere que a compreensão humana vai além do de compreender dados e informações e se pautar pela tomada de decisão consciente. Abrange, pela via senciente, a experiência vivida de estar no mundo de forma sensível e substancial.
Dessa forma, a ação humana pode ser marcadamente significativa em sua essência. Isso seria base para todo o âmbito das ações éticas em face a novas situações, que em situações de complexidade as máquinas não poderiam alçar-se a uma compreensão verdadeira. Faltaria sempre a compreensão mútua que apenas poderia ser estabelecida pela sensibilidade.
Mudanças reais são produzidas em outras pessoas, cujas vidas são frequentemente alteradas radicalmente por sua experiência de contato com a pessoa boa cuja vida, obras e exemplo as inspiraram de maneiras que nenhum argumento racional poderia fazer (Fowler, 2019, p. 75).
Assim, González (2019) traz nas partes concludentes de seu artigo o entendimento de que as IAs são incapazes de sofrer as consequências de suas ações operativas numa dimensão do que Xavier Zubiri chamará de dimensão afetante. Justamente por isso, jamais poderão se equivaler a uma verdadeira inteligência nos moldes da inteligência humana, pois não carregam o fardo de aprenderem segundo consequências típicas daqueles que assumem uma verdadeira responsabilidade sobre sua conduta ante outros indivíduos.
Começando pela ética, a dimensão da deliberação, surge de sentir-se afetado pelo que resta no ato intelectivo senciente e assumir o controle dele como real, assumindo as responsabilidades que nossas decisões sobre ele acarretam. Dado que a IA, pelo menos por agora, não é capaz de ter a impressão de alteridade, muito menos de ter a impressão de realidade, não pode decidir sobre isso porque lhe falta a capacidade de ser afetada por ela. Só é possível uma ética que leve em conta a condição; uma ética que leva em conta as emoções (González, 2019, p. 125, tradução dos autores).
Para González (2019), este inicialmente diz que as inteligências artificiais podem realizar duas tarefas principais: aprender e tomar decisões. Porém, com o desenvolvimento do texto e, a partir da filosofia de Xavier Zubiri, traz a compreensão de que as IAs não tomam decisões no sentido lato do termo, uma vez que as IAs não têm a capacidade de apreender realidade e com isso ser afetada pela mesma no sentido que Zubiri dá ao termo afecção.
Não há decisões na IA porque não há impressão, momento de afecção da realidade, e por isso a responsabilidade de uma decisão não compete às próprias máquinas virtuais e aos seus diversos suportes físicos, mas àqueles que projetaram sua arquitetura de lógica matemática, aos que a levaram ao seu suporte físico, aos que as usam... mas nunca à própria IA (González, 2019, p. 125, tradução dos autores).
E, finalizando a discussão ética, González (2019) trará a distinção, algo concludente, entre um inteligir senciente e o que Zubiri denominará por logificação da inteligência, que em linhas gerais seria o tornar claro aspectos do real pelo exercício continuado da lógica: um nomear às coisas a partir definições e o exercício da argumentação discursiva. Isso redundaria numa confusão entre aquilo que se está a esclarecer pelo uso do método da razão e aquilo que a própria inteligência apreende vivamente nas circunstâncias reais a que está situada.
Se falamos de IA, o que eu acredito que no estágio atual não se poderia falar disso, teríamos que dizer que é um além do humano [...] não por superação, mas por ser algo diferente da inteligência senciente dos humanos. Poderíamos falar de "Ciências de Dados", já que o nível atual é de processos de elaboração de dados que em alguns casos se autorregulam. Se olhássemos para Zubiri, deveríamos falar de uma logificação da inteligência. (González, 2019, p. 127, tradução dos autores).
O Quadro 4 apresenta o resultado da análise de conteúdo, considerando o corpus da pesquisa e os objetivos propostos, a fim de propor um modelo conceitual. A condução da pesquisa permitiu identificar duas categorias principais relacionadas à IA sob a ótica da inteligência senciente: características ausentes e presentes da IA conforme entendimento da inteligência senciente. Dentro das características ausentes, foram levantadas 14 unidades de registros; para as características presentes, 7 unidades de registro, totalizando 21 códigos.
Também estão relacionadas as unidades de contexto para cada código, baseadas no corpus de pesquisa, com uma breve definição da literatura sobre cada unidade de registro:
Quadro 4 – Modelo conceitual proposto.
Inteligência Senciente |
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Categoria de Análise |
Unidade de registro (código) |
Unidade de contexto |
Características ausentes |
Apreensão |
O ato de apreensão é uma unidade de dois momentos que, seguindo a tradição, podemos chamar de sentir e inteligir (González, 2019). |
Autoconsciência |
É aqui que, a partir da descrição zubiriana da inteligência senciente, aflora o conceito de mismidade, do estar em mim, da autoposse biológica e, em última análise, da consciência. Segundo Zubiri, a essência completa da inteligência senciente só se revela quando se reconhece o seguinte fato: na mera atualidade da coisa e do inteligir, a intelecção e o inteligido se atualizam, por identidade numérica de sua atualidade, como duas realidades distintas (Hernáez Rubio, 1999). |
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Experiência humana |
Se fosse algorítmico, teria que fornecer um sistema matemático formal que fosse específico para fazer matemática sofisticada. Tais coisas estão muito distantes da experiência humana comum (Fowler, 2019). |
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Impressão |
O específico do momento do sentir é a impressão, que, como vimos, foi mal conceptualizada na tradição ocidental. A impressão tem, por sua vez, como seus momentos a afeição, a alteridade e a força de imposição. A IA não tem impressão porque não tem esses momentos que a constituem (González, 2019). |
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Formalização |
Formalização é, como já vimos, independência, autonomização. E aquilo que é apreendido de maneira meramente estimulativa é independente do animal mas apenas como um sinal (Fowler, 2019). |
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Sentimento |
(...)é necessário que um sistema que possa ser chamado de inteligente seja capaz de sentir (Lagunas e Moral, 2009). |
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Corporeidade |
(...) podemos afirmar que o conteúdo e a formalidade do sistema dependem da natureza do animal. Isso é importante porque mostra, mais uma vez, a importância da corporeidade em relação ao processo cognitivo. No caso dos seres vivos, pode-se dizer que quanto maior a corticalização cerebral, maior a emergência de estruturas cognitivas (Lagunas e Moral, 2009). |
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Significado |
Um computador digital é um dispositivo que manipula símbolos, sem qualquer referência ao seu significado ou interpretação (Fowler, 2019). |
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Realidade |
(...)porque a realidade não pode ser capturada em nenhuma "fórmula" humana e, portanto, não pode ser simulada por máquinas, por mais sofisticadas que sejam (Fowler, 2019). |
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Capacidade de tomada de decisão |
Não há decisões na IA porque não há percepção, momento de afetação pela realidade. Portanto, a responsabilidade por uma decisão não compete às próprias máquinas virtuais e seus diversos suportes físicos, mas sim àqueles que projetaram sua arquitetura de lógica matemática, àqueles que a implementaram em seu suporte físico, àqueles que as usam... mas nunca à própria IA (González, 2019). |
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Capacidade de compreender |
Não pode haver, portanto, atividade do que é pura potência, isto é, não pode haver compreensão produto da pura inteligência, como de certa forma o modelo da IA pretende. A inteligência deve ser, portanto, senciente e deve ter uma função no âmbito da conservação do seu equilíbrio dinâmico para que possa estar "habilitada" a inteligir (Hernáez Rubio, 1999). |
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Afetividade |
(...)é necessário que um sistema que possa ser chamado de inteligente seja capaz de sentir, de ter experiência de afetividade, capacidade de ação para poder determinar que realmente possui um conhecimento (Lagunas; Moral, 2009). |
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Criatividade |
Sistemas automatizados podem ser programados para reagir de maneiras específicas a uma variedade de condições, mas não para lidar com a realidade de uma forma que exija pensamento criativo (Fowler, 2019). |
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Ética |
Começando pela ética, a dimensão da deliberação (que não podemos aprofundar aqui) surge do sentir-se afetado pelo que permanece no ato intelectivo sensível e assumir a responsabilidade por ele como real, assumindo as responsabilidades que nossas decisões sobre ele implicam. Como a IA, pelo menos por enquanto, não é capaz de impressão de alteridade, e muito menos de impressão de realidade, ela não pode decidir sobre ela porque não está afetada por ela (González, 2019). |
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Características presentes |
Algoritmo |
Assim, do ponto de vista da IA, o essencial é, portanto, o algoritmo, o programa, e o insustancial é o elemento material onde tal programa está implementado, seja este um organismo vivo ou uma máquina (Hernáez Rubio, 1999). |
Máquina virtual |
(...) talvez seja crucial destacar que a IA, antes de ser uma máquina física (computadores, celulares ...), é uma máquina virtual. Por máquina virtual, como demonstramos, entende-se um “sistema de processamento de informação” (González, 2019). |
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Modelo mecanicista |
O dualismo mente-corpo aqui é substituído pelo dualismo programa-máquina. A consequência é que não saímos do cartesianismo, mas sim que este se radicaliza, ao propor um modelo mecanicista da própria mente ou inteligência (Hernáez Rubio, 1999). |
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Limitação lógica |
O problema e o ponto fraco da IA como programa de pesquisa no âmbito da filosofia da mente seria, do ponto de vista zubiriano, sua identificação da inteligência com a lógica, com o logos computacional, partindo de um conceito epistemológico da inteligência que a define como mera capacidade de resolver problemas geralmente simbólicos, sejam numéricos ou linguísticos (Hernáez Rubio, 1999). |
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Emular |
Simplesmente emular o que os humanos fazem em alguma tarefa especializada não é o mesmo que realmente realizar essas ações com entendimento e percepção da realidade (Fowler, 2019). |
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Sinais e símbolos |
O âmbito da informação e o âmbito da resposta se movem mais nos âmbitos dos sinais e dos signos, mas não na realidade (González, 2019). |
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Capacidade de aprender |
A IA se apresenta como capaz de apreender. O problema é que os que trabalham em IA assumem que o significado de "apreender" é evidente, e isso é um luxo que o filósofo não pode se permitir (González, 2019). |
Fonte: Elaborado pelos autores (2024).
Dessa forma, pela filosofia da inteligência senciente, o que se chama de Inteligência Artificial seria de forma estrita o exercício do que pode ser chamado de uma logificação da inteligência, a confusão de que o inteligizar humano seria compreendido em sua totalidade com a dimensão da lógica clareando e orientando os desafios humanos de vida.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação sobre as interações entre inteligência artificial (IA) e inteligência senciente, baseada na estrutura filosófica de Xavier Zubiri, revela uma compreensão profunda das restrições e capacidades da IA em emular as complexidades da inteligência humana.
Ao empregar uma metodologia qualitativa e conduzir uma análise de conteúdo, essa investigação reforça que, embora a IA funcione dentro de uma estrutura de inteligência sensível caracterizada por algoritmos e manipulação de dados, a inteligência senciente humana se distingue por sua capacidade de apreender a realidade de maneira sensível e substancial, abrangendo afetividade, criatividade e autoconsciência.
A análise do conteúdo demonstra que, apesar de seus avanços consideráveis, a IA permanece confinada às limitações impostas por suas regras predefinidas e pela lógica programada, tornando-a incapaz de atingir a expansividade e a inventividade intrínsecas à inteligência consciente. A crítica de González (2019), reforçada pelos princípios filosóficos de Zubiri, acentua a importância do envolvimento direto com a realidade, um encontro que a IA, como entidade virtual, não pode experimentar de maneira sensível e tangível.
Este estudo contribui para o tema da inteligência artificial ao elucidar as demarcações entre a capacidade da IA de manipulação de dados e a compreensão humana senciente, indicando que, embora a IA possa emular certos aspectos da inteligência humana, ela não pode replicar a totalidade da experiência senciente.
A pesquisa ressalta a necessidade do avanço contínuo da IA que reconheça essas limitações, ao mesmo tempo em que explora novos caminhos para preencher a lacuna entre a máquina e as complexidades da inteligência humana, ao mesmo tempo em que permanece ciente das ramificações éticas e sociais inerentes a esse empreendimento.
Em face das considerações apresentadas, este estudo conclui que, embora a IA tenha avançado significativamente em termos de capacidade de processamento e autonomia, ela permanece fundamentalmente distinta da inteligência senciente humana.
A IA, por mais sofisticada que se torne, opera dentro de um paradigma de processamento de dados e execução de algoritmos, incapaz de replicar a experiência senciente integral e rica que caracteriza a condição humana. A inteligência senciente, conforme discutido por Zubiri, envolve uma apreensão direta e integral da realidade, que é mediada pela corporeidade e afetividade, aspectos esses que a IA, em sua forma atual, não pode experienciar ou replicar.
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[1] Doutorando em Gestão da Informação pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Administração pela Universidade Federal do Paraná (2022). Graduado em Estatística pela Universidade Federal do Paraná (2013).
[2] Doutorando em Gestão da Informação pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina na temática de Inovação do Valor (Value Innovation). Possui formação Psicodrama e Sociodrama pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama - São Paulo. Graduação em Engenharia de Produção e Sistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atuou em grandes organizações no desenvolvimento de estratégias de negócio e Inovação.
[3] Doutorando pelo Programa de Pós Graduação em Gestão da Informação da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Administração pelo Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Positivo (PR). Bacharel em Administração pela Universidade São Judas Tadeu (SP). Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade São Judas Tadeu (SP) e Licenciatura em Pedagogia pela Faculdade Alfa América (SP).