A documentação e o contemporâneo

entrevista com Niels Lund

Asy Pepe Sanches Neto[1]

Joaquín Herrera Flores – América Latina

Centro Cultural de Cidadania e Economia Criativa

asy.sanches@gmail.com

Niels W. Lund[2]

Arctic University of Norway

niels.windfeld.lund@uit.no.

______________________________

Resumo

Esta entrevista com Niels Lund explora conceitos fundamentais de sua teoria do documento, incluindo as "Formas de Documentação" e o "Doceme," que oferecem novas perspectivas sobre a análise documental. Lund enfatiza a importância da documentação na vida humana, começando com o exemplo do grito de um bebê como o primeiro documento, destacando a conexão entre documentação e comunicação e a relação de ambas com a informação. O diálogo aborda a relevância da documentação em diferentes contextos culturais e sociais, com um enfoque especial no Brasil. Lund discute ainda a necessidade de uma nova disciplina científica de estudos de documentação, distinta da biblioteconomia e da arquivologia, e reflete sobre os impactos da documentação na sociedade contemporânea, especialmente no contexto pós-pandêmico. A entrevista também toca em questões de documentação política, identidade e as diferenças regionais no uso de tecnologias de documentação. Para contextualizar a entrevista, apresentamos uma breve biografia acadêmica do autor e realizamos a tradução do sumário de seu livro abordado “Introduction to documentation studies”.

Palavras-chave: teoria do documento; documentação; Niels Lund.

DOCUMENTATION IN THE CONTEMPORARY WORLD

an Interview with Niels Lund

Abstract
This interview with Niels Lund delves into fundamental concepts of his theory of the document, including "Forms of Documentation" and "Doceme," which provide new perspectives on document analysis. Lund underscores the significance of documentation in human life, beginning with the example of a baby's cry as the first document, highlighting the link between documentation and communication and their relationship to information. The discussion addresses the relevance of documentation in various cultural and social contexts, with a special focus on Brazil. Lund further explores the need for a new scientific discipline of documentation studies, distinct from library science and archival science, and reflects on the impacts of documentation on contemporary society, especially in the post-pandemic context. The interview also touches on issues of political documentation, identity, and regional differences in documentation technologies. For context, a brief academic biography of the author is provided, along with a summary translation of his book "Introduction to Documentation Studies."

Keywords: document theory; documentation; Niels Lund.

1 INTRODUÇÃO

Para a neodocumentação, as narrativas pessoais são fundamentais, a experiência individual, embora não responda ao todo, traz consigo o reflexo de um tempo, de uma geografia e um contexto. Vemos este tipo de texto em documentos dos autores pioneiros da neodocumentação, como Michael Buckland e Niels Lund, mas também em pesquisadores mais jovens da área como, por exemplo, Tim Gorichanaz (Gorichanaz, 2020). Desse modo, resolvi iniciar essa entrevista, narrando como cheguei aos trabalhos de Niels Lund, este percurso foi, de certo modo, ocasional e, assim, espero que possa demonstrar uma perspectiva de ligação entre os trabalhos do professor Lund e a Ciência da Informação brasileira.

Em 2014, durante meu mestrado, escolhi investigar os arquivos do hospital psiquiátrico de Jurujuba. Nesse contexto, integrei-me ao programa de pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense (PPGCI UFF). Durante as disciplinas de epistemologia e metodologia, os professores questionaram como eu pretendia conectar os arquivos do hospital psiquiátrico de Jurujuba com a ciência da informação, indagavam se meu interesse residia na abordagem arquivística, examinando a organicidade ou a classificação dos arquivos. Contudo, minha resposta era sempre negava esse enfoque: naquela época, buscava compreender os usos políticos, científicos e epistemológicos do discurso médico sobre os sujeitos internados no hospital psiquiátrico de Jurujuba na década de 1950.

Meu interesse era o de melhor compreender a forma através das quais os hospitais psiquiátricos eram empregados como mecanismos de controle social, mantendo certos indivíduos rotulados como “anormais” afastados da sociedade, perpetuando assim o poder daqueles considerados “normais”. Queria investigar como essas instituições contribuíam para a marginalização e estigmatização de pessoas associadas à loucura e doença mental, ao mesmo tempo em que reforçavam a autoridade dos indivíduos considerados socialmente aceitáveis. Dentro desse escopo de pesquisa, meu objetivo era explorar o papel dos arquivos e dos prontuários médicos nesse processo de exclusão e controle social.

Diante dessas reflexões, vários professores contestaram a pertinência do tema no escopo do campo da Ciência da Informação, sugerindo que este domínio pertencia mais à história ou à antropologia social. Eles argumentaram que os bibliotecários e arquivistas se concentravam em outras dimensões do documento, como sua organização e preservação. Enquanto buscava embasamento teórico para minha abordagem, meu orientador, Eduardo Murguia, referiu-se ao argumento de Michael Buckland de que os documentos eram essencialmente informações, conforme destacado em seu importante artigo "Information as Thing" (Buckland, 1991). Segundo Murguia, diante dessa perspectiva, não havia contradição em estudar os documentos por si mesmos, pois fazê-lo era, de fato, estudar informação.

Ao longo da pesquisa, percebi que o aspecto informacional era pouco relevante para a construção daqueles arquivos. Seu principal uso residia em outros contextos, justificado por outros princípios (Sanches Neto, 2016). Continuei buscando autores que corroborassem minha perspectiva, até que Murguia me informou sobre um texto de um autor norueguês, as palavras dele foram: “encontrei um autor que ousou criar uma teoria do documento”. O artigo em questão era "Document Theory" (Lund, 2022), de Niels Lund.

Niels Lund foi o fundador e idealizador do Centro de Estudos em Documentação da Noruega (Dokvit), que segue como uma importante instituição dedicada ao desenvolvimento deste campo científico. Em sua obra, destaca-se tanto a apresentação e divulgação da produção deste centro, quanto a organização das diferentes teorias (apresentadas historicamente) sobre o documento. O autor também estrutura uma teoria própria sobre como abordar e conceituar documentos. Sua teoria apresenta-se fortemente ligada à inter-relação entre as dimensões culturais, materiais e técnicas do documento. Em sua “teoria do documento” o professor Lund apresenta diversas formas teóricas de abordar o documento e, ao fim, aponta os avanços de suas próprias ideias sobre o tema.

Embora tenha tido pouca aplicação em meu mestrado, este primeiro contato com a pesquisa de Lund foi fundamental para compreender o desenvolvimento das pesquisas apontadas por Buckland em 1991. Esse foi meu primeiro contato com a chamada neodocumentação, uma vertente de pesquisadores que teorizam e enfatizam a reificação do documento como um dos elementos centrais para explicar nosso modelo de sociedade.

Niels Lund tornou-se um importante referencial teórico quando retornei à academia para cursar o doutorado, foi um período marcado pelo isolamento social devido à pandemia de coronavírus. Nesse momento, impossibilitado de pesquisar em arquivos e bibliotecas, optei por uma pesquisa de cunho teórico, que fornecesse um panorama sobre as formas de compreensão do contemporâneo a partir das perspectivas de diferentes autores da chamada neodocumentação. Além da importância de suas publicações, o professor Lund foi fundamental para que eu pudesse acessar muitos dos textos que eram importantes para a pesquisa que propunha. Ao enviar-lhe o primeiro e-mail, mostrou-se entusiasmado com a ideia de que suas pesquisas pudessem melhor circular no contexto latino-americano, uma vez que acredita na importância de estudar a documentação a partir de relações socioculturais definidas e amplas. A partir desse contato, intensificamos nossas discussões, que continuamos até hoje, e foi por meio delas que surgiu a possibilidade desta entrevista.

Próximo da metade de minha tese, Lund me informou que estava publicando um livro, onde concentrava parte de seus estudos dos últimos 25 anos. Conversamos sobre a importância de disponibilizar esse material para os pesquisadores brasileiros, não apenas para divulgar seu conteúdo, mas também para destacar como a documentação pode contribuir para o cenário científico da área de Ciência da Informação, Biblioteconomia, Museologia, Arquivologia e Documentação no país e, do mesmo modo, como é necessário ampliar os estudos sobre o documento e a documentação sob a ótica de pesquisadores do sul global.

 

2 UMA BREVE APRESENTAÇÃO DE NIELS LUND E DE DOKVIT[3]

O dinamarquês Niels Windfeld Lund nasceu em 1949, em Copenhague. Sua relação com os documentos e centros de documentação remonta à sua infância, quando, já aos doze anos de idade, recorria aos arquivos e centros de documentação do município, assim como à Biblioteca Nacional para recuperar e compreender a história da comunidade local e de sua família[4] (In DOCAM’s footsteps, 2019, tradução nossa). É nesse contexto que desenvolve uma admiração pelos bibliotecários e arquivistas que já o “tratavam como um pesquisador adulto” (ib., tradução nossa).

Foi para Paris em 1979 por acreditar que o modo de fazer história da Escola dos Annales era uma forma inspiradora de compreender as dimensões históricas dos acontecimentos. No caso de Lund, seu projeto tinha o objetivo de compreender a história de uma pequena comunidade local e descrever a vida de pessoas, em seus afazeres e vida cotidiana.

Parte da reportagem publicada no jornal Midtjyllands Avis, na edição de Ikast do dia 19 de outubro de 1979, enfatizava a vertente histórica que o então professor da Biblioteca Escola de Álborg (Álborg Biblioteksskole) trazia ao seu projeto. Sob o título: “Jovem pesquisador quer aproximar a história”[5], a reportagem enfatizava a abordagem em que se estruturavam mecanismos de aproximar a história (como saber) da cultura local. Como demonstração da relevância e vanguarda existente na proposta, podemos citar o fato de que abaixo da foto do jovem professor Lund estava escrito: “Niels Windfeld Lund irá nos demonstrar que existem pessoas de carne e osso por trás dos áridos fatos históricos”[6].

Lund credita fortemente à École Des Hautes Études en Sciences Sociales – E.H.E.S.S (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, em tradução livre) a construção de seu trabalho e enfatiza que essa relação se estabelece tanto na construção de suas bases históricas, quanto aos seus tipos de análise e diz que tanto os princípios teóricos quanto os princípios empíricos que constituiu durante essa experiência impactam a consolidação de seu trabalho (In DOCAM’s footsteps, 2019).

Sobre sua passagem pela E.H.E.S.S., Lund enfatiza a presença de professores com abordagens que eram profundamente radicais. Aulas em que visões antagônicas, disputas e debates de ideias faziam parte da interlocução travada entre alunos e professores, um cenário em que as disputas se abriam a todos os tipos de questões ao mesmo tempo em que erradicavam a possibilidade de que se estabelecesse um determinado elemento ou discurso como “o verdadeiro” (In DOCAM’s footsteps, 2019).

Tudo poderia ser questionado e discutido e eu acho que essa filosofia de manter a discussão, de continuar questionando os problemas foi muito importante [...] e acho que isso me ajudou muito a aprender a ensinar e foi isso mais ou menos isso o que eu depois tentei falar ou tentei treinar nos meus próprios alunos. Enquanto eles questionavam "o que é um documento?" não se tratava de que eles tivessem certeza de que obtiveram “a resposta”, mas que fosse mais interessante pensar “oh, wow” essa também poderia ser uma resposta possível à questão. (Lund. Entrevista In DOCAM’s footsteps, 2019, tradução nossa).

Um ponto precedente parece importante à compreensão do motivo que cria a demanda para essa linha de orientações que se inseriam no escopo da pergunta: “o que é um documento?”, que o professor Niels Lund citou em sua entrevista.

Em 1989, a Noruega modificou o conceito da aplicação de sua legislação sobre o “depósito legal”. A questão do depósito legal tinha historicamente duas grandes motivações: a primeira delas, e que se liga mais fortemente a sua gênese na França de Henrique IV, era a de controlar as produções bibliográficas nacionais; secundariamente, a medida criava uma espécie de arquivo que compunha (já em termos mais recentes) a memória da produção de um país através do acúmulo legalmente depositado nas Bibliotecas Nacionais.

As mudanças tecnológicas que pulularam no século XX modificaram os serviços de bibliotecas e impactaram na questão do “depósito legal” promovendo um ordenamento ou, mais precisamente, uma atualização do conceito. Essa atualização exigia o:

[...] depósito na Biblioteca Nacional das novas publicações oriundas de todos os meios de comunicação, incluindo programas de televisão e rádio e filmes. No entanto, a obrigatoriedade de preservar e prover acesso a essas publicações não impressas criou um desafio prático para o qual as bibliotecas não estavam preparadas. Em resposta, um novo instituto de estudos biblioteconômicos e informacionais foi estabelecido na Universidade de Tromsø, em 1996. Dada a necessidade que seria abordada, foi nomeado como Institute for Documentation Studies [Instituto de Estudos de Documentação] e o Diretor fundador, Niels Windfeld Lund, desenvolveu um currículo centrado nos documentos e uma agenda de pesquisa que explorava a complementaridade entre as dimensões sociais, culturais e tecnológicas dos documentos. (Lund; Buckland, 2008, p. 162, tradução nossa).

Lund (2016) argumenta que havia outras questões que se somavam ao problema gerado pela atualização do conceito de depósito legal e que já polemizavam a discussão desde o final da década de 1980, pois existia uma falta de bibliotecários no Norte da Noruega. Diante desse cenário, a associação de bibliotecários da Noruega sugeriu que se criasse mais um programa de formação de bibliotecários no Norte da Noruega, para que se somasse ao de Oslo, localizado no Sul. Outro ponto importante foi a criação de Tim Berners-Lee, a World Wide Web (W.W.W) em 1989, o que o que provocou múltiplas questões no que se refere aos documentos, desde a criação à disseminação. “Havia a necessidade de um programa educacional que auxiliasse no manejo dessas questões - e, além disso, uma disciplina acadêmica dedicada a lidar com esses novos desafios.” (Lund, 2016, tradução nossa).

Dokvit é o nome em norueguês do Programa de Estudos em Documentação[7] e completou 25 anos em 2021. O professor Niels Lund possui dois importantes artigos sobre Dokvit são eles: “Construindo uma disciplina, criando uma profissão: um ensaio sobre a infância de “Dokvit” (Lund, 2007), escrito para a comemoração de 10 do programa; e “Como tudo começou: 1996, o primeiro ano de Dokvit” (Lund, 2016) para a comemoração dos 20 anos e, em ambos, ele reitera a importância de Dokvit e argumenta o sentido de estabelecê-la (no significado de estudos da Documentação) como uma linha de estudos científicos.

A conclusão de Lund (2007) sugere que somente o tempo poderia responder se a Documentação ou, mais precisamente, os estudos de Documentação manter-se-iam vivos, pois isso só ocorreria caso estes se comprovassem importantes para a sociedade. A introdução do artigo (Lund, 2016, p.1) vem precisamente respondendo a isso: “Dokvit vive […] e ainda é relevante para a sociedade”, diz o professor, embora informe que desde o ano de 2013 o seu nome tenha sido alterado para Estudos em Mídia e Documentação (Media and Documentation Studies).

Agora, em 2024, o livro “Introduction to Documentation Studies”, de Niels Lund confirma que, não somente a documentação não sumiu, como os estudos dos documentos tornaram-se um dos principais pontos de observação para a compreensão dos nossos modelos de comunicação e informação em nossas sociedades modernas. Abaixo, traduzimos o sumário de divulgação do livro “Introduction to Documentation Studies”, publicado pela Facet Publishing.

 

3 SUMÁRIO DO LIVRO INTRODUCTION TO DOCUMENTATION STUDIES por Niels Lund

Tradução de Asy Pepe Sanches Neto

 

3.1 A Documentação na vida humana – O grito como o primeiro documento da vida

Logo após o nascimento, assim que o cordão umbilical é cortado, o bebê grita e, com essa ação, cria o seu primeiro documento. O grito demonstra que ele está vivo e tem voz, documentando sua existência como ser humano. Além da voz, o bebê provavelmente usará os olhos, o corpo e os gestos para se expressar, mas, se não puder gritar, será difícil que outros o percebam, a menos que estejam próximos. A voz é um instrumento essencial para a sobrevivência humana; se um indivíduo não pode usá-la, outros meios devem ser encontrados para documentar sua presença, tanto para seus pais, irmãos e avós, quanto para enfermeiras e médicos.

Assim como os bebês precisam de um órgão vocal funcional para gritar, os pais precisam ser capazes de ouvir, possuindo audição e não sendo surdos. O ato de ouvir é tão documental quanto o grito em si. A mãe cria seu próprio documento ao distinguir as ondas sonoras do grito de outros ruídos, usando o ouvido e o cérebro para identificar o som.

Se a mãe estiver em outro cômodo, pode ser difícil ouvir o bebê gritar. Nesse caso, pode ser necessário o uso de um microfone e alto-falante para transmitir o som. Da mesma forma, se tiver audição reduzida, aparelhos auditivos podem ser utilizados. Tanto a voz como o microfone são instrumentos de documentação, assim como a caneta, o papel e o computador são para a escrita e leitura de histórias. Se você não pode documentar, não pode se comunicar. A comunicação envolve compartilhar algo com outras pessoas e criar uma comunidade. Para fazer parte de uma comunidade, é necessário chamar a atenção, como gritar, e as pessoas precisam ser capazes de ouvir. A primeira comunidade de um ser humano é sua família, e a próxima pode ser sua comunidade local ou nação. Um bebê deixado sozinho à beira da estrada é vulnerável e só sobreviverá se for cuidado. Ele pode gritar, mas só será ouvido por acaso, tornando-se parte de outra comunidade, dependendo de quem o encontrar.

Se as pessoas sabem que você não pode gritar, podem tentar interpretar seus olhos ou gestos para descobrir o que você pensa, observando seus movimentos e criando uma linguagem. Assim, elas serão informadas.

Uma situação complementar surge quando as três dimensões — social, mental e física — ocorrem e agem simultaneamente em um processo de comunicação, informação e documentação, que são complementares entre si. Esses processos geram documentos que desempenham um papel essencial na vida humana. É sobre isso que este livro trata: por que e como todos esses processos e documentos funcionam.

 

3.2 Estudos de Documentação - uma disciplina

Dado que a documentação é um fenômeno geral da vida humana, é necessária uma disciplina científica abrangente, que não pode ser limitada a apenas uma das três principais áreas científicas — humanidades, ciências sociais, ciências naturais — ou ao campo das ciências aplicadas. São necessárias todas as quatro perspectivas para explorar, entender e desenvolver a documentação em seu sentido amplo.

O humanista compreende como o ser humano pensa através da configuração de sua linguagem. As humanidades têm muitas disciplinas, teorias e métodos diferentes, mas todas se baseiam na suposição cartesiana de que o ser humano é humano por sua capacidade de pensar. A questão central é como ele pensa e se expressa em uma determinada linguagem ou outro sistema semiótico, um sistema de elementos que faz sentido pela diferença relativa entre eles. Esses sistemas podem ser expressos de diferentes maneiras, e o trabalho do humanista é explorá-los e ver como evoluem e funcionam.

O cientista social explora como o ambiente social interfere na configuração da estrutura cognitiva durante a comunicação. Enquanto o humanista explora a criação da configuração, o cientista social estuda como ela se insere em um ambiente social, como uma organização ou instituição. A mesma estrutura cognitiva formal pode funcionar de maneiras completamente diferentes em dois ambientes sociais distintos, como uma família ou um hospital, dependendo de quem a usa e de sua posição social.

O cientista natural e o tecnologista podem desenvolver e testar instrumentos utilizados em processos de documentação, como tecnologias de mídia, máquinas de escrever, microfones, câmeras, computadores, entre outros. Através de experimentos, é possível testar a eficiência desses dispositivos em um ambiente controlado e avaliar a satisfação no uso dos documentos produzidos.

Com todas as quatro tradições científicas, é possível entender a complexidade da documentação, fornecendo uma base científica para a profissão de documentarista.

 

3.3 Documentação - uma profissão

A documentalista francesa Suzanne Briet enfatizou o caráter técnico da documentação, citando Robert Pagès, a autora enfatiza que "a Documentação é para a cultura o que a máquina é para a indústria". Desse modo, descreveu a profissão de documentalista como metade intelectual, metade manual, com o objetivo de auxiliar a pesquisa prática, servindo como “serva dos servidores da Ciência”. No entanto, seguindo as afirmações contidas neste livro, a documentação não pode ser vista apenas como uma técnica a serviço da ciência e da cultura, é um processo que permeia toda a vida humana, podendo ser objeto de uma disciplina científica chamada estudos de documentação, que investiga tanto os processos documentais quanto os documentos resultantes. Com base nesses estudos, pode-se desenvolver uma profissão de documentarista que sirva à sociedade da mesma forma que médicos, psicólogos e sociólogos servem, contribuindo para o desenvolvimento de melhores formas de documentar, comunicar e informar as pessoas. Assim como médicos, psicólogos e sociólogos possuem técnicas práticas para suas profissões e suas pesquisas científicas, os documentaristas precisam estar qualificados para:

a)     apoiar e orientar pessoas em todos os setores na criação de documentos satisfatórios

b)    apoiar e orientar pessoas em todos os setores na gestão dos seus documentos.

c)     coletar, organizar e disponibilizar documentos em diferentes tipos centros de documentação.

3.4 O livro

Neste livro, demonstrarei como a documentação é uma dimensão geral da vida humana, presente em todas as interações humanas. É o objeto de uma nova disciplina científica e um campo dinâmico para uma profissão ampla. O livro está dividido em três partes, que abordam a documentação na teoria e na prática.

Na Parte I, apresentarei um contexto histórico, examinando a evolução conceitual das noções de documentação, comunicação e informação, e explicarei o crescente interesse pelos estudos de documentação hoje. Em seguida, introduzirei minha teoria geral complementar de documentação e um modelo analítico aplicável a qualquer estudo de caso sobre o tema.

            Na parte II, mostrarei, em primeiro lugar, como a teoria geral e o modelo podem ser utilizados na prática, para isso, apresentarei seis casos muito diferentes de documentação que abrangem as artes, a ciência, a administração, a política e a vida pessoal. Começarei com o “Réquiem” de 1791, que foi produzido quando o conde von Walsegg teve a necessidade de documentar sua dor e tristeza após a morte de sua esposa, a condessa, e precisava fazê-lo de maneira adequada para um nobre. Por isso, pediu a um compositor, Wolfgang Amadeus Mozart, (1756-91), um dos muitos que serviram a nobreza durante anos, que fizesse um Réquiem. Este foi o mesmo procedimento adotado em muitos outros casos em que uma pessoa da nobreza morreu, mas neste período as coisas começavam a mudar. Por volta do final do século XVIII/início do século XIX, o mundo da música clássica tornou-se mais amplo e deu aos compositores uma nova posição como artistas independentes. Eles reivindicaram a propriedade de seu trabalho como uma obra de arte, e não apenas como um documento para uso de algum comissário, utilizado apenas em uma única ocasião. Quando a partitura se tornou o Requiem de "Mozart", tornou-se o documento autógrafo e parte de um complexo interminável de documentos relacionados àquela obra de arte, como, por exemplo, às cópias, edições, performances, gravações e livros.

A documentação musical remonta à antiguidade, assim como a literária. A literatura, em sua essência, é composta por um conjunto de letras organizadas sistematicamente pelo autor para contar histórias, funcionando, assim, como uma forma de documentar essas narrativas. Neste contexto, analisarei um gênero literário específico: o conto, utilizando como exemplo o “Acampamento Indiano”, de Ernest Hemingway. No início de sua carreira, Hemingway (1899-1961) enfrentou dificuldades para sustentar-se como escritor, o que o forçava a trabalhar como jornalista. Ele frequentemente pedia a amigos e editores que publicassem suas histórias. Uma dessas narrativas foi publicada pela primeira vez em 1924, em uma crítica literária, ainda sem título, e referida como um "trabalho em andamento". Posteriormente, cogitou-se o título “Uma noite no verão passado”, mas, finalmente, em 1952, a história foi publicada como parte de uma coleção de contos sob o título “Acampamento Indiano”, tornando-se um dos contos mais reconhecidos de Hemingway.

Normalmente, uma pintura possui um título único e específico. No entanto, no caso do artista visual norueguês Edvard Munch (1863-1944), o título "As Meninas na Ponte" abrange não apenas uma, mas várias obras, criadas com diferentes técnicas, materiais e instrumentos ao longo do período de 1901 a 1935. Essas obras, todas intituladas com o mesmo nome, desafiam a noção tradicional de que uma obra-prima deve ser única e singular. Em vez disso, elas oferecem uma visão única sobre como Munch explorou e documentou um de seus temas favoritos: as meninas na ponte em Aasgaardstrand, na Noruega. Cada versão é um documento com sua própria trajetória, exibida em diferentes exposições, recebendo títulos variados e sendo adquirida por diversos colecionadores, galerias e museus. Apesar dessas variações, elas formam um complexo conjunto de documentos das obras de Munch, catalogadas em seus registros e estudadas por historiadores da arte.

O título desempenha um papel crucial na documentação não apenas nas artes, mas também nas ciências. Um exemplo é a dissertação do historiador dinamarquês Thorkild Kjærgaard, intitulada "A Revolução Dinamarquesa". Esta dissertação científica explora a história agrícola da Dinamarca entre os séculos XVII e XIX, utilizando o conceito de revolução para abranger quase três séculos de desenvolvimento. Kjærgaard combina a narrativa histórica com a análise científica para evidenciar mudanças revolucionárias, apoiando sua argumentação com mapas que mostram a evolução do cultivo do trevo domesticado.

Na política, o título e o corpo também servem como importantes ferramentas de documentação. Políticos, por exemplo, podem usar cartas e livros para expressar seus objetivos e demandas, mas também recorrem a manifestações físicas para demonstrar poder e influência. Um exemplo significativo é a marcha pelos direitos civis em Washington, em 1963, que é o quinto estudo de caso aqui analisado. Nesta marcha, os corpos humanos e os elementos visuais, como cartazes e chapéus, tornaram-se documentos políticos por si mesmos. A marcha não apenas documentou a força do movimento político, mas também destacou os desafios na criação de um documento político coeso, evidenciado pelas intensas discussões sobre oradores, músicas e slogans. Além disso, as memórias e registros do evento, como o icônico discurso de Martin Luther King Jr., "Eu Tenho um Sonho", contribuíram para um legado duradouro e influente para o futuro do movimento político.

Até agora, analisamos casos únicos de documentação que tiveram histórias específicas, mas os processos de documentação ocorrem o tempo todo, documentos são criados todos os dias em todo o mundo. No sexto e último estudo de caso, examinarei um dos processos de documentação cotidiana mais comuns, o documento de identidade. A identificação é uma das formas de documentação mais antigas e disseminadas na vida humana, determinada por diferentes tradições de identificação em diferentes sociedades. Devido às necessidades administrativas da sociedade, não basta apenas dizer o seu nome para documentar que você é a pessoa que afirma ser, para provar sua identidade pessoal. Você também precisa de um documento que contenha um número pessoal além do seu nome, isso ocorre tanto em passaportes, quanto em identificações bancária, carteira de motorista ou o cartão de seguridade social. Analisarei o número de seguridade social como um dos muitos documentos de identidade que um indivíduo recebe ao viver nos EUA e que é utilizado caso queira ser elegível para solicitar apoio social. Se uma pessoa não tem um nome ou um número, essa pessoa está des-documentada e não poderá participar da sociedade.

Na Parte III faremos uma comparação entre os 6 casos e demonstraremos como os processos de documentação diferem ao longo da história e dos diferentes campos e, ao mesmo tempo, identificaremos quais características os diferentes processos de documentação e seus documentos resultantes compartilham entre si. Também discutiremos como a documentação é uma parte essencial e geral da vida humana, e que é fundamental na interação humana complementar entre os processos de comunicação e informação.

Finalmente, esboçaremos uma maneira através da qual se pode desenvolver uma nova disciplina científica geral dos estudos de documentação que abranja as humanidades, as ciências sociais e as ciências naturais.

No epílogo de conclusão, abordamos as possíveis consequências da visão de documentação apresentada neste livro, o objetivo desta discussão é que melhor compreendamos as formas através das quais podemos melhor interagir uns com os outros na sociedade.

 

4 ENTREVISTA

Perguntas por Asy Sanches

Respostas por Niels Lund

 

1.     Professor Lund, poderia elaborar um pouco mais sobre como você fundamenta sua teoria do documento? Especialmente, você introduz novos conceitos, como Formas de Documentação e Doceme, que trazem diferentes perspectivas sobre o conceito de documento. Poderia falar brevemente sobre esses conceitos e explicar como eles contribuem para as discussões atuais sobre o documento apresentadas em seu livro?

 

Quando proponho três níveis de análise do documento, o faço para permitir uma análise sistemática dos resultados dos processos de documentação, ou seja, dos documentos.

Cada documento individual, resultado de um processo de documentação, é ao mesmo tempo completamente novo e, em certa medida, uma repetição de um documento semelhante, pertencente a um grupo ou classe de documentos que compartilham várias características desenvolvidas ao longo da história como uma tradição ou gênero. A noção de formas de documentação visa responder à pergunta: de que tipo de documento estamos falando?

O próximo nível é o documento em si, a entidade única e discreta que está sendo estudada, criada em um tempo e lugar específicos. Você pode nomeá-lo conforme o tempo, lugar, criador ou função.

O terceiro nível é o do doceme. Um doceme é definido como parte de um documento, o que permite desconstruir um documento em vários docemes e reconstruí-lo reunindo os docemes, criando um documento semelhante ou criando um documento diferente ao escolher um conjunto de docemes diferentes para reconstruir o documento.

Dessa forma, é possível realizar uma análise sistemática dos documentos e discutir como criá-los. A partir daí, pode-se avançar para uma análise diacrônica dos processos de documentação e ver quais tipos de condições diferentes documentos exigem para serem criados.

 

2.     Por que você escolheu enfatizar o papel da documentação na vida humana, começando com o exemplo do grito de um bebê como o primeiro documento? Como isso estabelece o cenário para a discussão mais ampla em seu livro?

 

O exemplo cria uma plataforma e um espaço não apenas para formular uma teoria universal da documentação e uma definição universal de documento, mas também para ser aberto à diversidade tanto de tradições quanto de formas de documentação e documentos.

 

3.     Em seu livro, você menciona que, se alguém não pode documentar, não pode se comunicar. Poderia explicar a conexão entre documentação e comunicação, e por que isso é crucial para a construção de comunidades?

 

Quando afirmo que não é possível se comunicar sem documentar, refiro-me ao fato de que é necessário um instrumento, algum tipo de meio para usar na comunicação. Se o bebê não pode gritar ou falar, ele precisa usar outro meio para se comunicar, por exemplo, os dedos ou os olhos. O mesmo ocorre caso o bebê ou a pessoa seja surda e não possa ouvir. Da mesma forma, isto pode ser expandido para todos os instrumentos e meios que temos à nossa disposição para a comunicação.

4.     Considerando os diversos contextos culturais e sociais ao redor do mundo, como você vê a importância da documentação evoluindo em diferentes regiões, especialmente fora do foco tradicional no Norte Global?

Vejo como extremamente importante para a comunidade global reconhecer a diversidade das formas de documentação ao redor do mundo e torná-las visíveis por meio de estudos comparativos, a fim de reconhecer diferentes maneiras de viver no mundo, diferentes concepções e entendimentos da vida ao redor do globo.

 

5.     Você discute a natureza interdisciplinar dos estudos de documentação. Como essa abordagem pode beneficiar países como o Brasil, onde há uma vasta tapeçaria cultural e uma combinação única de fatores sociais, históricos e tecnológicos?

 

Especifico minha abordagem como uma abordagem complementar, na qual combino uma abordagem física, social e mental em uma análise complexa das formas de documentação. No caso do Brasil, (sobre o qual sei muito pouco!) quando penso no país, penso no carnaval no Rio de Janeiro, mas o primeiro carnaval da região, segundo a Wikipédia, foi realizado em 1641, então que tipo de formas de documentação viva existiam no Brasil antes de 1641 e, não menos importante, antes de 1500?? Que tipos de formas de documentação musical, dramática, literária e visual existiram no Brasil ao longo da história e hoje? Quais foram as condições sociais, físicas e mentais para todas essas formas de documentação no Brasil?

 

6.     O livro enfatiza a documentação como uma profissão. Como as habilidades e responsabilidades dos documentalistas os distinguem de outros profissionais envolvidos no manuseio de documentos? De que maneiras você vê seu papel único em guiar e auxiliar indivíduos de diversos setores na criação e gestão eficaz de documentos?

 

Vejo-os como cruciais no apoio às pessoas para fazerem uma documentação sólida. A pioneira francesa Suzanne Briet falava sobre documentação como uma técnica cultural. Ela pensava nisso dentro das paredes de bibliotecas, arquivos e museus, mas se você for além dessas paredes, o documentalista pode ser um guia e especialista para todos os tipos de grupos na melhor maneira de usar todos os tipos de instrumentos e mídias na documentação.

 

7.     Na Parte I de seu livro, você fornece um contexto histórico sobre documentação, comunicação e informação. Como essa perspectiva histórica pode ser relevante para o público brasileiro, considerando a diversidade cultural e histórica do país?

Seria altamente relevante que os pesquisadores brasileiros explorassem profundamente a história da documentação e as tradições culturais do Brasil, assim como as de toda a América Latina e América do Sul. Esse aprofundamento não seria apenas de interesse para o público brasileiro, mas também permitiria que pessoas ao redor do mundo conhecessem melhor a rica história e as dinâmicas políticas da região.

8.     Você explora seis casos diversificados de documentação na Parte II, incluindo as artes, a ciência e a política. Como você acha que esses estudos de caso podem ter afinidade com o público brasileiro e suas experiências nesses domínios?

 

Estou bastante confiante de que esses estudos podem ressoar com o público brasileiro, especialmente se incluirmos casos específicos do Brasil nos mesmos setores, como artes, ciência e política. Embora os desafios enfrentados por artistas, cientistas e políticos possam variar em termos de formato e expressão, os princípios subjacentes são universais e aplicáveis a todos os seres humanos, independentemente da região. O mais interessante seria a criação de um programa internacional de pesquisa que permitisse comparar esses diferentes contextos de documentação em uma perspectiva global.

 

9.     Você menciona o papel dos políticos usando seus corpos para documentar o poder político. Poderia falar mais sobre essa questão?

 

Falo sobre pessoas atuando na política usando seus corpos físicos. O melhor exemplo disso é quando as pessoas participam de manifestações ao redor do mundo. Basta pensar nas mulheres no Irã, nos estudantes em Pequim, na marcha do sal de Gandhi. Também é interessante observar como as diferentes partes discutem o tamanho das manifestações, o tamanho do documento, para ampliar ou diminuir o poder dos manifestantes.

 

10.  No sexto estudo de caso, você aborda o processo cotidiano de documentação de documentos de identificação. Como a discussão em torno dos processos de documentação de identidade pode ser aplicável às estruturas administrativas e sociais na América Latina?

 

É importante examinar as estruturas administrativas específicas de cada sociedade, de cada país ou continente. Na Dinamarca, toda a administração é altamente digitalizada. Eu não sei, mas presumo que o cenário seja diferente do existente na América Latina, nesse sentido, acredito que que minha discussão enfatiza a necessidade de criarmos estudos comparativo dos processos de documentação de identidade ao redor do mundo, para ver como nos diferenciamos ou somos semelhantes na maneira de nomear e identificar uns aos outros. Por exemplo, acho que o reconhecimento facial é altamente desenvolvido na China, tornando o rosto uma espécie de documento.

 

11.  Você propõe uma nova disciplina científica geral de estudos de documentação. Poderia falar um pouco mais sobre a distinção entre esta e outras ciências, como a biblioteconomia, a arquivologia e a ciência da informação?

 

Sugiro uma disciplina geral de estudos de documentação como uma espécie de disciplina científica básica, no mesmo nível da física, sociologia, linguística, psicologia, antropologia, mas também da ciência da comunicação e da ciência da informação. Vejo a biblioteconomia, a arquivologia e a museologia como disciplinas aplicadas, que estudam processos em instituições específicas de documentação. Acredito que é muito importante desenvolver uma disciplina geral de estudos de documentação para obter uma melhor compreensão da diversidade das formas de documentação ao redor do mundo; qual a diferença de usar o corpo, a voz ou a caneta para documentar a si mesmo e a sociedade.

 

12.  No epílogo, você discute as possíveis consequências da visão da documentação apresentada no livro. Como essa perspectiva pode impactar a maneira como os brasileiros interagem entre si na sociedade e quais mudanças potenciais isso pode trazer?

 

Acredito que, para todos no mundo, tanto no Brasil quanto na Dinamarca, onde vivo, podemos aprender a reconhecer a condição de contingência em nossas vidas. É sempre, em princípio, possível escolher outra direção na vida, fazer as coisas de uma maneira diferente, considerar se é possível fazer de forma diferente e, quem sabe, de uma maneira melhor. Ao mesmo tempo, devemos também reconhecer o caráter complementar da vida humana, que vivemos sob condições físicas, sociais e mentais que podem limitar nossas possibilidades de escolher uma forma de vida diferente da que estamos vivendo agora.

 

13.  Como as lições e insights de seu livro podem ser aplicados para enfrentar desafios e oportunidades específicos relacionados à documentação na vida moderna?

 

Hoje, a documentação digital é mais ou menos dominante na vida moderna cotidiana. Espero que meu livro abra uma discussão sobre como utilizar diferentes formas de documentação, não apenas a documentação escrita, não apenas a documentação digital, mas também a documentação oral e performativa em nossa vida moderna. Como mencionado na resposta à pergunta anterior, desejo que as pessoas questionem seu modo usual de se comunicar, utilizando diferentes meios, ou seja, como elas documentam ao se comunicar e informar umas com as outras. De maneira muito prática, como as pessoas se comunicam em comunidades locais, na família, etc.

 

14.  Durante a pandemia de COVID-19, experimentamos um aumento significativo no isolamento social, transformando a forma como nos comunicamos e interagimos. Como você percebe a importância contínua do campo da documentação e dos profissionais neste contexto pós-pandêmico? De que maneiras a documentação pode contribuir para enfrentar os desafios e oportunidades que surgem com essa nova dinâmica social?

 

Acredito que, se iniciarmos estudos comparativos de formas e processos de documentação em comunidades locais e famílias, poderemos obter uma melhor compreensão das condições de diferentes formas de documentação e do impacto que elas têm na vida cotidiana de diferentes grupos de pessoas.

 

15.  Você discute o grito como o primeiro documento na vida humana, destacando sua importância. Como essa teoria ampla da documentação, começando com o ato primordial de gritar, se alinha ou diverge das perspectivas de estudiosos como Bernd Frohmann e Michael Buckland no campo dos estudos de documentação? De que maneiras essas teorias convergem e como sua abordagem contribui para o discurso contínuo na área?

Acho que minha abordagem fornece uma teoria ou estrutura geral dentro da qual todos os outros estudiosos de documentação podem ser incluídos. Penso que houve foco excessivo no documento em si, em vez dos processos de documentação, e foco excessivo na forma escrita de documentação. Frohmann, Buckland, Day e outros têm se concentrado principalmente na documentação escrita, em bibliotecas, arquivos e museus.

 

16.  Como última pergunta, qual a principal mensagem que você gostaria de transmitir ao público brasileiro sobre a importância da documentação em suas vidas e seu impacto mais amplo na sociedade? Além disso, você acredita que é mais benéfico investir em departamentos dedicados especificamente aos estudos de documentação, ou vê isso como algo que pode ser incorporado nos departamentos de Ciência da Informação como uma disciplina? Quais seriam os benefícios em ambas as perspectivas?

 

Vejo uma terceira solução, ou seja, ter um departamento de estudos complementares de documentação, comunicação e informação como a melhor solução. Sei que tanto a ciência da informação quanto os estudos de comunicação têm sido disciplinas independentes, mas vejo como ideal um departamento que inclua as três perspectivas em igualdade de condições ou três departamentos independentes de três disciplinas iguais, complementando-se mutuamente.



REFERÊNCIAS

BUCKLAND, Michael. Information as thing. Journal of American Society of Information Science, v. 42, n. 5, p. 351-360, 1991.

GORICHANAZ, Tim. Documentary Ghosts. Proceedings from the Document Academy, v. 7, n. 1, 2020. Disponível em: https://ideaexchange.uakron.edu/docam/vol7/iss1/1. Acesso em: 26 ago. 2024.

 “In DOCAM's Footsteps”, entrevistas realizadas por Sabine Roux e disponível no canal de “Tim Gorichanaz” através do link https://www.youtube.com/watch?v=ZGeJGduoTO4&t=125s. Acesso em: 05 mar. 2021.

LUND, Niels Windfeld. Building a discipline, creating a profession: An essay on the childhood of “Dokvit”. In: SKARE, R.; LUND, N. W.; VÂRHEIM (Orgs.). A document (re)turn: Contributions from a research field in transition. Frankfurt am Main, Germany: Peter Lang, 2007. p. 11–26.

LUND, Niels Windfeld; BUCKLAND, Michael. Document, documentation, and the Document Academy: introduction. Archival Science, v. 8, n. 3, p. 161–164, set. 2008. DOI: 10.1007/s10502-009-9076-3. Disponível em: http://link.springer.com/10.1007/s10502-009-9076-3. Acesso em: 6 abr. 2022.

LUND, Niels. How It All Started: 1996, the First Year of Dokvit. Proceedings from the Document Academy, v. 3, n. 1, 15 jun. 2016. Disponível em: https://ideaexchange.uakron.edu/docam/vol3/iss1/2. Acesso em: 2 maio 2022.

LUND, Niels. Teoria do documento. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, RJ, v. 8, n. 2, p. 6–46, 2022. Disponível em: https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/5907. Acesso em: 2 jun. 2024.

SANCHES NETO, Asy Pepe. O que é Neodocumentação? Acompanhando a formação da rede, dos discursos e das agências a partir das obras de Niels Lund, Michael Buckland, Ronald Day e Bernd Frohmann. 2022. 280 f. Il. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação Social, Niterói, Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: http://app.uff.br/riuff/handle/1/26731. Acesso em: 07 out. 2024.

SANCHES NETO, Asy Sanches. A construção da segregação (ou como o documento inscreve quem é (a)normal). 106 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/10870. Acesso em: 07 out. 2024.

 

 



[1] Doutor em Ciência da Informação. Pesquisador do Joaquín Herrera Flores – América Latina (IJHF-AL) e do Centro Cultural de Cidadania e Economia Criativa (MACquinho).

[2] Professor Emérito de Estudos de Documentação na UiT, The Arctic University of Norway, atualmente vive na Dinamarca. O autor continua ativo, pesquisando sobre documentação e também se dedica à história local e à arte têxtil.

[3]  Esta apresentação foi integralmente retirada da supracitada tese de doutorado, apenas com fins de facilitar uma melhor compreensão do leitor, nesse sentido, é necessário agradecer às pesquisadoras Elisabete Gonçalves de Souza e Maria Nélida Gonzalez de Gómez, respectivamente a orientadora e coorientadora da pesquisa (Sanches Neto, 2022).

[4]  História contada no Vídeo-Documentário: “In DOCAM's Footsteps”, entrevistas realizadas por Sabine Roux e

disponível no canal de “Tim Gorichanaz” através do link https://www.youtube.com/watch?v=ZGeJGduoTO4&t=125s.Acesso em 05 mar. 2021.

[5]  “Ung forsker vil gøre historien naeraerender”

[6]  “Niels Windfeld Lund vil fortælle os, at der bag de tørre historisk facts gemmer sig mennesker af kød og blod.”

[7]Em Buckland e Lund (2006) chamaram “Institute for Documentation Studies”, em Lund (2016), chamou de “ Documentation Studies program”. Embora essa mudança de nomenclatura seja possivelmente oriunda da tradução ao inglês ou da relação com o Programa/Instituto no decorrer do tempo entre os artigos, preferimos não criar uma unidade entre ambos os nomes. De todo modo, salientamos que nos parece sempre haver uma dupla função de referir-se mutuamente ao programa/instituto e aos “Estudos de Documentação” (nesse sentido mais genérico).