DOCUMENTOS MUSICOGRÁFICOS COMO DISPOSITIVOS DE MEMÓRIA CULTURAL

Ana Claudia Medeiros de Sousa[1]

Universidade Federal da Bahia

ana.violista@gmail.com

Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira[2]

Universidade Federal da Paraíba

bernardinafreire@gmail.com

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Resumo

Esta pesquisa teve o objetivo de identificar os elementos constituintes do documento musicográfico e se esses evidenciam indícios de memória cultural e da identidade do compositor. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, com uso do método indiciário. A análise e a interpretação dos dados foram pautadas na abordagem qualitativa. Os resultados indicaram que o documento musicográfico reúne elementos da estrutura social, elementos musicais e elementos tecnológicos capazes de revelar o contexto da produção do item documental, como também os traços de memória e identidade do compositor. Portanto, o estudo conclui que a composição musical pode ser considerada um significativo dispositivo de memória cultural. 

Palavras-chave: informação musical; documento musicográfico; memória cultural.

MUSICOGRAPHIC DOCUMENTS AS CULTURAL MEMORY DEVICES

 

Abstract

This research aimed to identify the constituent elements of the musicographic document and whether they show signs of cultural memory and the composer's identity. This is a bibliographic and documentary research, using the indexical method. Data analysis and interpretation were based on a qualitative approach.  The results indicated that the musicographic document brings together elements of the social structure, musical elements and technological elements capable of revealing the context of the production of the documentary item, as well as the traces of memory and identity of the composer. Therefore, the study concludes that musical composition can be considered a significant cultural memory device.

Keywords: musical information; musicographic document; cultural memory.

 

 

 

 

 

 

 

DOCUMENTOS MUSICOGRÁFICOS COMO DISPOSITIVOS DE MEMORIA CULTURAL

 

Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo identificar los elementos constitutivos del documento musicográfico y si presentan signos de memoria cultural y de identidad del compositor. Se trata de una investigación bibliográfica y documental, utilizando el método indexical. El análisis y la interpretación de los datos se basaron en un enfoque cualitativo.  Los resultados indicaron que el documento musicográfico reúne elementos de la estructura social, elementos musicales y elementos tecnológicos capaces de revelar el contexto de producción del elemento documental, así como las huellas de la memoria y la identidad del compositor. Por tanto, el estudio concluye que la composición musical puede considerarse un dispositivo de memoria cultural significativo.

Palabras clave: información musical; documento musicográfico; memoria cultural.

 

 

1  INTRODUÇÃO

A informação é produzida em meio a determinadas práticas sociais e períodos históricos, por isso o registro dela é capaz de revelar as construções ideológicas, identitárias e memorialísticas de seus produtores, posto que os documentos materializam indícios da condição social e cultural de sujeitos e/ou grupos. O registro da informação possibilita a produção e acúmulo de documentos, que dependendo do seu valor simbólico, poderá ser considerado um bem patrimonial.

Os documentos quando considerados bens culturais, se constituem referenciais de memória, pois as informações e os vestígios neles contidos levam os sujeitos a evocarem acontecimentos e fenômenos, como também os apoiam na (re)significação das concepções que eles têm sobre seu contexto social e os valores simbólicos nele estabelecidos, além de possibilitar que esses sujeitos se sintam representados nos referidos documentos e, com isso, desenvolvam e/ou fortaleçam o sentimento de pertencimento.

Merriam (1964) defende que a música é elaborada socialmente e a define como som, conceito e comportamento. O autor afirma que, durante muito tempo, para entender a música, estudiosos centralizaram suas pesquisas na estrutura de som e não consideraram o contexto antropológico e cultural do objeto investigado. Stone (2008) concorda com o pensamento de Merriam (1964), ao afirmar que “[…] a performance da canção pode caracterizar uma cultura em termos de elementos estruturais básicos, tais como complexidade e nível de subsistência, estrutura política, complementaridade e costumes sexuais” (Stone, 2008, p. 8).

Nesse sentido, esta pesquisa defende que tanto a produção da informação quanto da música se vincula aos contextos sociais que rodeiam seus produtores. A atividade musical produz diversos gêneros e tipos documentais, tais como os instrumentos musicais, as composições, os programas de concertos, os figurinos e outros. Assim, compreende-se que os documentos provenientes das práticas musicais são capazes de descortinar os aspectos sociais, culturais e históricos de determinados sujeitos.

Diante do exposto, esta pesquisa teve o objetivo de identificar os elementos constituintes do documento musicográfico[3] e se esses evidenciam indícios de memória cultural e da identidade do compositor. Quanto ao delineamento metodológico, a pesquisa se configura como bibliográfica e documental. O método adotado foi o indiciário que subsidiou o processo investigativo, na identificação de vestígios reveladores dos elementos constituintes das composições musicais, porquanto parte-se da hipótese de que na expressão artística, como a música, por exemplo, o sujeito responsável pela criação, agrega valor à manifestação artística em que apresenta seus anseios, desejos, suas crenças e seus estilos que acionam a sua memória e identidade e podem ser identificados nas composições musicais. A interpretação e análise dos dados foram pautadas na abordagem qualitativa. A pesquisa está fundamentada nas concepções de memória de A. Assmann (2011), J. Assmann (2008), Halbwachs (2006) e Dodebei (1997), como também, de identidade de Candau (2013) e Pollak (1992) e, ainda, de produção musical de Merriam (1964) e Stone (2008).

 

2 MEMÓRIA E IDENTIDADE

Desde os primórdios das relações sociais, o homem produz vestígios nos mais diversos suportes informacionais, que refletem os traços de sua memória e identidade. De acordo com Dodebei (1997, p. 44), “[...] como o homem habita o espaço cultural que ele próprio cria e transforma continuamente, ele necessita utilizar o passado como marco referencial e auto-identificador”. Sob esse prisma, o homem produz e preserva referenciais de memória diretamente relacionados ao sentimento de pertença. Ou seja, aquilo que a humanidade possui de melhor, o que contribui como referência para construir a identidade de um indivíduo e/ou grupo social.

Nesse ponto é válido destacar a importância dos espaços de memória que objetivam tratar, organizar, preservar e disseminar a informação, para assegurar sua integridade para as atuais e futuras sociedades. As instituições memoriais – aqui entendidas como as bibliotecas, arquivos e museus - são “[...] aquelas organizações, públicas ou privadas, eleitas ou constituídas pela sociedade para realizar a tarefa da guarda, da preservação e do acesso ao patrimônio memorial e cultural das sociedades a que servem” (Galindo, 2015, p. 71). Ao assumir o compromisso de salvaguardar os recursos que materializam informações provenientes das diversas áreas do conhecimento, as instituições de memória se responsabilizam por adotar políticas que possibilitem tais acervos serem considerados representativos de seus produtores. Ou seja, os documentos preservados devem ser mediados pelos profissionais da informação, com ênfase nos aspectos que permeiam o contexto social e o tempo histórico em que foram produzidos. Pois é a partir do acesso às informações que versam sobre o passado que o sujeito passa a compreender e atuar de maneira crítica no presente e, com isso, transita para o futuro compreendendo sua condição e sua potencialidade para agir no seu meio sociocultural. 

É das práticas sociais e culturais que advém a produção de vestígios informacionais que fomentam a construção da memória da humanidade. Esses vestígios passam pelo processo de seleção, em que a própria sociedade determina o que deve ser lembrado e esquecido. Nessa perspectiva, a memória possibilita perceber que o passado não está definitivamente inacessível, e para isso, as instituições de memória exercem um papel significativo na salvaguarda do conhecimento.

A produção e a preservação de documentos de um grupo social constituem o referenciamento de crenças, costumes, valores e ideologias, que são ancorados à concepção de cultura e podem alterar de acordo com o contexto, a região e o período em que os atores sociais vão dando forma às características que compõem suas identidades. Para autores como Candau (2013), Catroga (2001) e Pollak (1992), a memória e a identidade dependem uma da outra, são indissociáveis, pois não existe identidade individual e/ou de um grupo social sem os referenciais de memória, como também não é possível preservar e garantir a memória de um grupo com uma identidade fraca. Candau (2013, p. 143) cita que não existe identidade sem memória e que,

[...] inversamente não pode haver memória sem identidade, porque a conexão dos estados sucessivos que o sujeito conhece é impossível se esse não tem consciência a priori de que esse encadeamento de sequências temporais pode ter uma significação.

Com isso, a memória é determinada fortemente pela identidade, uma vez que a identidade considerada fluída e processual - com tradições, costumes, rituais - é decisiva para tornar uma memória forte. Assim, a identidade está relacionada à maneira como o indivíduo interage com os elementos culturais do seu grupo social, na perspectiva de caracterizar tais elementos de forma que possa individualizá-lo.

Reitera-se assim, que o homem produz documentos em meio as suas experiências, práticas e formas de subsistir e de se socializar, que resultam no acúmulo de documentos que delineiam nosso presente e direcionam o futuro. Nesse ponto, convém mencionar Burke (2008), quando chama à atenção para o tratamento e o uso das fontes, uma vez que a significação de dado objeto é determinada pelas relações e o contexto socioculturais em que foi produzido. A própria sociedade exerce um papel fundamental nesse processo, em que tem o poder de controlar os documentos produzidos, quando decide o que deve ou não ser preservado, tendo como consequência a canonização ou silenciamento dos vestígios memorialísticos e identitários registrados neles. Isso demanda dos agentes mediadores um agir consciente e crítico frente aos acervos documentais, de modo a garantir que não apenas os documentos que registram o discurso oficial sejam disseminados, mas é necessário, portanto, buscar dar visibilidade aos contradiscursos, aos itens documentais que foram silenciados, a fim de fomentar que diferentes grupos formadores da sociedade encontrem ressonância nesses acervos e se sintam representados.

Documentos comprovam, através dos registros informacionais, que a memória e, consequentemente, as lembranças de um indivíduo e/ou grupo social dialogam com sua cultura, seus valores simbólicos e princípios, com seu modo de ser e sua maneira de compreender o mundo. Assmann, A. (2008) comunga da ideia de que a cultura é intrinsecamente relacionada à memória.

Compreende que a memória cultural cria um quadro para a comunicação através do abismo de tempo. No entanto, a capacidade de memória é limitada por restrições neurais e culturais. Nessa conjuntura, a autora assegura que

Através da cultura, os seres humanos criam uma estrutura temporal que transcende a vida individual relacionando o passado, o presente e o futuro. As culturas criam um elo entre os vivos, os mortos e os que ainda não vivem. Ao recordar, iterar, ler, comentar, criticar, discutir o que foi depositado no passado remoto ou recente, os seres humanos participam em horizontes estendidos de produção de significado. Eles não têm que começar de novo em cada geração porque estão em pé sobre os ombros de gigantes cujo conhecimento eles podem reutilizar e reinterpretar (Assmann, A., 2008, p. 97, tradução nossa).

Nessa perspectiva, a memória cultural é protegida em dispositivos que armazenam os saberes, os acontecimentos e os fenômenos. Para a autora, tais dispositivos superam épocas. Entretanto, já que não existe uma auto-organização da memória cultural, “[...] ela depende de mídias e de políticas, e o salto entre a memória individual e viva para a memória cultural e artificial é certamente problemático, pois traz consigo o risco da deformação, da redução e da instrumentalização da recordação” (Assmann, A., 2011, p. 19). Por isso a importância de analisar o contexto de produção e a autenticidade dos documentos e as relações de poder que os manteve preservados.

Assmann, J. (2008) estabelece uma síntese do que ele chama de ‘níveis de memória’, tomando esses níveis como determinantes para configurar a memória como individual, comunicativa e cultural. Para isso, ele utiliza ainda os parâmetros do ‘tempo’ e da ‘identidade’. O autor descreve os níveis de memória em três dimensões: o nível pessoal, o social e o cultural e apresenta uma síntese da conexão entre tempo, identidade e memória.  No nível pessoal, a memória é suportada no sistema neurológico, ou seja, a memória interior, a organização neurobiológica. Assim, é por meio da mente humana que ocorrem constantes interações com as lembranças e com as coisas/objetos e os símbolos exteriores.

Quanto ao nível social, Assmann, J. (2008) concorda que é uma questão de interação com o coletivo e, sobretudo, exerce uma função social, como defendeu Halbwachs (2006, p. 30): “[...] jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos por nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem [...]” Assmann, J. concorda com Halbwachs sobre o fato de que as memórias são construídas através das convenções e dos laços sociais compartilhados entre indivíduos e grupos.

Assmann, J. (2008) compreende que o nível cultural é uma forma de memória coletiva, porque é compartilhada por um número de pessoas e lhes transmite um coletivo. Entretanto, o autor explica que a memória cultural resulta do acréscimo da esfera cultural na memória coletiva.

A partir dessa reflexão, compreende-se que memória cultural é constituída por acordos simbólicos estabelecidos pelos sujeitos somados às práticas sociais e aos dispositivos produzidos em dado contexto cultural e histórico, pois são eles que subsidiam a constituição dos referenciais que versam sobre o passado. Portanto, a memória cultural é constituída a partir da interação entre os indivíduos, agrega a esfera cultural e é registrada em dispositivos de comunicação.

Assmann, J. (2008) aponta que os artefatos como os textos, as danças, as performances, são dispositivos de difusão da memória cultural. Relacionando a afirmativa do autor à análise de documentos, reforça o pensamento de que o documento contribui para salvaguardar a memória, como mídias da memória cultural.

Para identificar os indícios de memória contidos nos documentos, é preciso analisá-los como dispositivos que subsidiam a difusão do saber científico, artístico, religioso, recreativo, enfim, os mais diversos saberes da humanidade que estão neles registrados. Logo, eles resguardam o conhecimento e a memória cultural.

 

3 ELEMENTOS QUE COMPÕEM O DOCUMENTO MUSICOGRÁFICO

Com o intuito de identificar os elementos que compõem os documentos musicográficos, esta seção discorre sobre a escrita musical, que é a representação gráfica da convenção de símbolos (notação musical), que tem suas peculiaridades com a representação linguística desenvolvida ao longo do tempo, por meio dos sistemas de escalas musicais, como a oriental, a grega, a eclesiástica e, atualmente, a moderna, as quais foram representadas em diversos meios até a elaboração da pauta moderna. Sobre a escrita musical,

[...] os monges medievais foram os primeiros a escrever e a indicar em linhas horizontais os sons com suas respectivas alturas. Inicialmente, usaram uma única linha. Mais tarde, outras foram acrescentadas formando uma pauta, possivelmente, de quatro, cinco, seis ou até mesmo de oito linhas. Dessas evoluções se dá o surgimento da partitura (Bennet, 1990, p. 9).

A pauta utilizada até os dias atuais é a de cinco linhas, considerada um recurso de registro da informação musical que auxilia o trabalho do músico. Grove (1994, p. 656) define a notação musical como “[...] um equivalente visual do som musical que se pretende, um registro do som ouvido ou imaginado, ou um conjunto de instruções visuais para intérpretes”. Ou seja, descreve a linguagem representada através dos símbolos: notas, ritmos, pausas, dinâmicas etc., que devem ser executados pelo músico. Os documentos que registram a notação musical são conhecidos como partituras, musicográficos, composições e outros.

No que diz respeito à elaboração e à compreensão da música, Copland (1974) descreve quatro elementos essenciais: o ritmo, a melodia, a harmonia e o timbre. Para o autor, como qualquer artesão que necessita de seus materiais para criar sua obra de arte, esses quatro elementos são a matéria-prima para o compositor na elaboração da música. Devido à importância dos elementos citados, eles serão descritos a seguir.

O primeiro elemento citado foi o ritmo, não por acaso, pois quando se referem aos primórdios da música, estudiosos comungam da ideia de que ela surgiu por meio de batidas rítmicas. Sobre essa assertiva, Copland (1974) defende que, se há alguma dúvida a esse respeito, encontra-se a confirmação ao se pesquisar e analisar a música dos povos primitivos, que é composta, quase que exclusivamente, de elementos rítmicos. “Milhares de anos haveriam de se passar antes que o homem aprendesse a escrever os ritmos que utilizava para a dança ou para as suas canções [...] Quando o ritmo foi anotado pela primeira vez, não foi distribuído em unidades métricas iguais, como acontece hoje.” (Copland, 1974, p. 37). O autor acrescenta que o ritmo é escrito na composição musical e marca os compassos como uma matemática do andamento rítmico, que, previamente, indica as séries de batidas que serão executadas à medida que a música se estende no tempo, com uma estrutura rítmica e temporal própria.

Copland (1974, p. 46) compreende que, “[...] se a ideia do ritmo está ligada, em nossa imaginação, à ideia de movimento físico, associamos a ideia de melodia a uma emoção íntima”. Assim, é posto mais um elemento essencial para se elaborar uma música, a melodia. “Sob o ponto de vista puramente técnico, todas as melodias existem dentro dos limites de algum sistema de escalas”, as quais são formadas por uma série de notas.

A harmonia é mais um dos elementos essenciais para elaboração da música. De acordo com Copland (1974), a harmonia é mais sofisticada, pois advém da capacidade e da concepção intelectual da mente do homem. Dedica-se ao estudo dos acordes e suas relações, porquanto fundamenta o encadeamento dos sons ecoados simultaneamente, seguindo a lógica das regras da base tonal.

O quarto elemento essencial para elaborar uma música é o timbre, também conhecido como ‘colorido tonal’. “O timbre, na música, é análogo à cor na pintura” (Copland, 1974, p. 64). Por meio do timbre é que reconhecemos e distinguimos os sons de diferentes instrumentos. É importante citar que existem outros elementos, tais como afinação, forma, textura e outros, que estão presentes em composições.

Copland (1974, p. 159) compreende que, ao analisar mais de perto a questão do caráter individual de um músico/compositor, “[...] descobriremos que ele é feito de dois elementos distintos: a personalidade com que ele nasceu e as influências do tempo em que viveu”. O músico torna as suas composições e performances atributos para se expressar e interagir com o mundo que lhe rodeia.

Quanto aos documentos referentes à música são todos aqueles relacionados à atividade musical. Como afirma Sotuyo Blanco (2016, p. 74), “[...] pode-se encontrar música em diversas fontes documentais, tais como textuais, sonoras, iconográficas, audiovisuais e musicais”. Dessa maneira, a diversidade de suportes informacionais de registro musical acarreta dificuldades tanto no âmbito do tratamento documental quanto no processo de recuperação da informação por parte do usuário.

É necessário voltar os esforços para avançar nas questões peculiares que os acervos de documentos musicais demandam, porque, além da especialidade da área, as fontes musicais são diversas e têm características intrínsecas. A respeito dos documentos musicais organizados nos arquivos e nas bibliotecas, Sotuyo Blanco (2016, p. 74) refere que,

Na maioria das vezes, eles não são reconhecidos (nem definidos) como tais. São ‘reduzidos’ a documentos textuais ou sonoros (vinculados ou não a imagens fixas ou em movimento) e assim dissociados, sem a devida compreensão da sua ontologia, sua tipologia ou do seu vínculo intrínseco.

Sotuyo Blanco (2016, p. 78), entende “[...] a informação musical como aquela que emana tanto da dimensão fenomenológica da música (materializada em registros sonoros e audiovisuais) quanto de sua dimensão linguística e semiológica (materializada nos registros em notação musical)”. Com base nesse entendimento, o autor classifica os documentos musicais em: relativos à música (os que dizem respeito à música, em qualquer um dos seus aspectos e graus de relação com ela); musicais (os que contêm informação musical em alguma de suas dimensões); e musicográficos (que descrevem em caracteres os sons musicais). Independente do gênero ou tipologia documental, entende-se que os documentos musicais podem se constituir como acionares de memória e identidade do produtor.

4 ARRANJO METODOLÓGICO

Esta pesquisa se caracteriza como bibliográfica, fundamentada na revisão sistemática de literatura que versa sobre memória e informação musical. A pesquisa também se configura como documental. Esta última, possibilita evidenciar fenômenos sociais, bem como, o modo de viver de sujeitos que compõem dada estrutura sociocultural. Ou seja, permite a identificação de traços culturais que transparecem o contexto social dos produtores dos documentos. A análise do documento torna-se um processo dinâmico, uma vez que envolve: a atividade funcional que o gerou; seu teor informacional; e ainda, o possível indício de valor cultural que ele registra.

O método adotado foi o indiciário, que possibilitou o direcionamento investigativo, por meio do qual se pôde evidenciar vestígios informacionais reveladores para pesquisa. São traços que contribuem para esclarecer a realidade. Na expressão artística, como a música, por exemplo, o sujeito responsável pela criação ou performance da obra, agrega valor à manifestação artística em que apresenta seus anseios, desejos, suas crenças e seus estilos que refletem a sua identidade. Para que nenhum traço passasse despercebido na análise dos documentos, o método indiciário subsidiou a identificação de vestígios significativos.

Ginzburg (1989, p. 177) parte da hipótese de que: “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la [...]”, onde torna a pesquisa em um processo investigativo. Assim, o autor identifica os sinais do saber indiciário, sobretudo, baseado no trabalho de Giovanni Morelli (1816-1891), em análises de obras artísticas, onde afirma ser “[...] necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia [...]” (Ginzburg, 1989, p. 144). A partir da reflexão do autor, é que se optou pelo método indiciário, o qual possibilitou a identificação de indícios reveladores do contexto sociocultural, temporal e particulares/individuais presentes nas composições musicais.

A análise dos dados foi realizada considerando-se a sequência de significados dos elementos que compõem o documento musicográfico. Na leitura documental deu-se atenção ao aspecto qualitativo dos dados, visando propiciar significação aos elementos constituintes da composição musical. A natureza qualitativa assume diversas funções, na perspectiva de trabalhar subjetivamente os valores que constituem determinada estrutura social (Minayo, 2003). Nessa conjuntura, este estudo evidencia valores simbólicos de contextos socioculturais perceptíveis nos documentos musicográficos.

 

 

5 COMPOSIÇÃO MUSICAL: Traços memorialísticos e identitários

Para alcançar o objetivo proposto neste estudo, buscou-se identificar os elementos constituintes do documento musicográfico e se esses evidenciam indícios de memória cultural e da identidade do compositor, a partir de um levantamento bibliográfico sobre as concepções acerca da intersecção entre documento e memória cultural. Em seguida foi elaborado um esquema que apresenta os ‘elementos da composição musical’. A partir desse esquema foi realizada a análise de um documento musicográfico, conforme exposto nesta seção.

Pode-se dizer que o músico que acumula os documentos de suas atividades, mesmo que seja de maneira despretensiosa e desordenada, estrutura, de certa forma, uma fonte de informação capaz de transparecer as características de sua produção musical, que poderá delinear seus traços socioculturais. Tais documentos passam a se configurar como referenciais de memória e identidade de dada prática musical.

Para Merriam (1964), a música vai além de som e contribui para que o indivíduo manifeste sua percepção e concepção de mundo, através da sensibilidade artística. Stone (2008) também concorda com esse entendimento defendendo que a música pode caracterizar uma cultura. Assim, entende-se que a música tem uma função social, cuja linguagem objetiva expressar as nuances do sentimento que rodeiam os sujeitos. Portanto, produz informações e documentos que transparecem a cultura musical do produtor.

Defende-se que os documentos musicais irão refletir o resultado da combinação das práticas socioculturais do músico que viveu em determinada época, em dada região. Essa afirmativa se pauta nas concepções de Copland (1974) ao defender que um músico/compositor carrega consigo traços de personalidade vinculados às influências do tempo em que viveu, e Assmann, A. (2008), quando apresenta a concepção de memória cultural e aponta a função da cultura e o tempo histórico que contextualizam o indivíduo como essenciais para a constituição de sua memória.

Independentemente de sua categoria e/ou dimensão, os documentos que emanam das atividades musicais, como musicográficos, iconográficos, sonoros, textuais e tridimensionais, são capazes de desvendar os indícios memorialísticos do produtor. Na produção da composição musical, os signos registrados em um suporte físico viabilizam a leitura desses registros pelos músicos e, ao serem executados, são transformadas em sons que podem evidenciar características de gêneros musicais, manifestações culturais, costumes, entre outros.

A música é uma sequência linguística, fundamentada por séries de signos que dão um sentido a algo. Materializa indícios de práticas socioculturais que evidenciam ideologias, traços identitários e memorialísticos, por isso, compreende-se que o documento musicográfico é um artefato constituído de indícios de memória e identidade, e portanto, se configura um dispositivo de memória cultural, pois reúne e registra aspectos próprios dos produtores dos documentos, de seus contextos sociais e dos seus períodos históricos. Essa reflexão toma como base a compreensão de Assmann, J. (2008) de que os artefatos, tais como os textos, as danças, as performances, e aqui se inclui a música, são dispositivos de difusão da memória cultural, quando transparecem traços inerentes dos produtores e subsidiam a disseminação da tradição, da cultural e dos comportamentos sociais desses sujeitos.

Com base no exposto, entende-se que os mais diversos grupos sociais e civilizações teve e têm suas práticas musicais e produzem escritos/registros que podem delinear os emblemas de dada memória. A partir dessa compreensão, este estudo indica alguns elementos que compõem o documento musicográfico, são eles: os elementos que se apresentam a partir da estrutura social em que o compositor está inserido; dos elementos musicais, tais como, ritmos, melodias, timbres etc., presentes em seu tempo histórico; e os elementos tecnológicos disponíveis em seu contexto temporal. A figura a seguir representa os elementos do documento musicográfico defendido nesta pesquisa, os quais são materializados através da informação musical.

 

Figura 1 - Elementos do documento musicográfico

Fonte: Elaborado pelas autoras.

 

Dessa maneira, a composição musical se constitui de elementos composto dessas três categorias - os elementos da estrutura social (costumes, crenças, etnias, tradições etc.), os elementos musicais (ritmo, melodia, harmonia, timbre etc.) associados aos elementos tecnológicos (mídias, equipamentos de gravação de som, instrumentos musicais etc.). A junção desses três elementos, independentemente de sua ordem, constitui o que se poderia chamar de criação artístico-musical, que conflui para a concepção da informação musical. Portanto, compreende-se que esses elementos subsidiam a produção musical, e ao adotar os elementos disponíveis em seu tempo histórico, o compositor ao produzir um documento musicográfico, cria um dispositivo de memória cultural. 

Como afirma Assmann, J. (2008), pode-se compreender memória cultural como um conjunto de memórias que são constituídas a partir de acordos, laços sociais e construções ideológicas compartilhadas entre indivíduos, contudo, considera e agrega as mídias disponíveis em um período e/ou uma região. Ou seja, a memória cultural é constituída de mídias e de convenções sociais compartilhadas entre indivíduos, que se configuram como fonte de informação e, que no contexto das práticas musicais, de maneira direta ou indireta, influenciam a criação artística e/ou musicográfica.

Os documentos produzidos a partir da manifestação da informação musical são nutridos pela memória cultural, ao mesmo tempo em que a nutrem, uma vez que ela é suportada em mídias, conforme defendem Assmann, J. (2008) e Assmann, A. (2011). Partindo desse pressuposto, confirma-se que os documentos musicais podem revelar os traços identitários e memorialísticos de seu produtor, visto que será composto de elementos que transparecem o contexto social e contextualizam o produtor; os equipamentos tecnológicos utilizados na produção sonora, na gravação de som e nos instrumentos musicais executados e os traços significativos dos elementos musicais utilizados pelo autor na composição da obra, como os que caracterizam um gênero musical.

Para ilustrar a afirmação de que o documento musicográfico é um dispositivo de memória cultural, foi selecionada uma composição para se analisar os traços memorialísticos e identitários nela expostos. A Figura 2, apresenta uma ilustração das três primeiras páginas da Ópera Il Guarany de autoria do compositor brasileiro Antônio Carlos Gomes. Esse documento musicográfico está custodiado no Arquivo Nacional, disponível digitalmente no Sistema de Informações do Arquivo Nacional[4]. Na primeira página dessa partitura tem um trecho que descreve: “Cena, recitativo e balada da ópera O guarani [...] Milão, Itália, 30 de agosto de 1866.”

Figura 2 – Partitura Il Guarany

Fonte: sian.an.gov.br

Carlos Gomes passou um período na Itália e dessa experiência ele compôs Il Guarany coadunando influências orquestrais europeias e melodias alusivas ao romantismo e aos traços característicos do Brasil. Essa foi a primeira ópera brasileira que alcançou um reconhecimento internacional, com sua estreia em 1870 na Itália. Seu libreto no idioma italiano foi escrito por Antonio Scalvini e Carlo D’Ormeville (Silva, 2011).

Inspirado na obra literária O Guarani do escritor José de Alencar, o compositor Carlos Gomes retoma na ópera a história de amor entre Cecília e Peri, ela descendente portuguesa e ele indígena da etnia guarani. Nessa ópera temas melódicos fazem alusão aos sons e traços culturais do Brasil, o que já confere um valor simbólico ao documento musicográfico, uma vez que o enredo além de rememorar os conflitos provenientes do processo de exploração estabelecida pelas pessoas colonizadoras do território brasileiro, seus temas melódicos carregam indícios da cultura indígena do país. Ao registrar tais elementos em sua obra, o compositor contribuiu com o nacionalismo e a difusão da música brasileira.

Esse documento musicográfico revela indícios de memória por materializar a estrutura social em que o compositor esteve inserido, que foi o cenário musical italiano do século XIX; os elementos musicais presentes na obra, tais como a melodia que faz alusão aos traços culturais brasileiros; e os elementos tecnológicos, que neste caso são os instrumentos musicais indicados na obra. Portanto, esses aspectos contribuem para que este documento musicográfico seja reconhecido como um dispositivo de memória cultural.

Retomando os elementos constituintes da composição musical, neste estudo entende-se que a substancialidade e materialidade da informação musical, no âmbito da produção musicográfica, são considerados indícios que propiciam o delineamento da memória e constituição da identidade de indivíduos e/ou sujeitos produtores, portanto, são dispositivos de memória cultural.

 

 5 CONSIDERAÇÕES

Desde os tempos mais remotos, a música tem uma significativa força de representatividade no cotidiano do homem. Na atualidade, os diferentes grupos sociais têm suas práticas musicais e, consequentemente, produzem documentos capazes de revelar os seus emblemas de memória. Diante disso, os acervos musicais têm despertado o interesse de estudiosos, já que revelam, por meio de documentos, as trajetórias, os vínculos sociais e um panorama da atuação de músicos em acontecimentos artísticos, políticos e históricos.

Analisar as concepções de autores como Merriam (1964) e Stone (2008) ao afirmarem que a música possibilita o sujeito expressar sua percepção de mundo, caracterizar uma cultura em seus diferentes aspectos; somado à concepção de J. Assmann (2008) e A. Assmann (2011), que destacam a importância dos documentos como dispositivos de memória cultural, é que se reitera a compreensão de que o documento musicográfico se constitui em um significativo referencial de memória e identidade.

Os documentos musicográficos dão visibilidade aos vestígios das práticas musicais, além de contextualizar a estrutura sociocultural em que foi produzida, os instrumentos necessários para sua performance, etc. A memória cultural subsidia vestígios informacionais que potencializam o processo de criação musical, ao mesmo tempo que esta última, quando materializada em mídias, torna-se um dispositivo de memória cultural.

Considerando que a criação artística/intelectual registrada no documento musicográfico se dá em meio a uma estrutura social (costumes, crenças, tradições, etnias, etc.), fazendo uso dos elementos musicais (ritmo, melodia, harmonia, timbre, etc.) e dos elementos tecnológicos (mídias, equipamentos de gravação de som, instrumentos musicais, etc.) disponíveis, confirma-se que o documento musicográfico se configura como um dispositivo singular de memória cultural, cuja materialidade registra traços de identidade do sujeito produtor.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

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BENNET, Roy. Elementos básicos da música. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

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[1] Docente Adjunto do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba. Professora permanente da Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia.

[2] Doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Associado da Universidade Federal da Paraíba. Na pós-graduação em Ciência da Informação leciona as disciplinas Informação, Memória e Sociedade, e, Informação, Memória e Identidade e orienta nos níveis de mestrado e doutorado.

[3] “Musicografia diz respeito à arte de escrever música, de pôr em caracteres próprios os sons musicais” (Sotuyo Blanco, 2016, p. 79). Ou seja, os documentos musicográficos são aqueles que registram a notação/escrita musical, também conhecidos como partituras, composições, obras musicais, etc.

[4] https://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login-novo-com-cadastro.asp