FONTES DE INFORMAÇÃO ALTERNATIVAS

as práticas de tradição oral Griô nos referenciais do conhecimento

Júlia Raquel Farias da Costa[1]

Universidade Federal de Pernambuco

juliicoosta@gmail.com

Daniela Eugênia Moura de Albuquerque[2]

Universidade Federal de Pernambuco

danielaeugenia@outlook.com

Murilo Artur Araújo da Silveira[3]

Universidade Federal de Pernambuco

muriloas@gmail.com

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Resumo

Este artigo investiga como as práticas de tradição oral de griôs da Região Nordeste do Brasil podem ser utilizadas como fontes de informação. Trata-se de uma pesquisa exploratória baseada em técnicas bibliográficas e documentais, que utilizou a entrevista semi-estruturada como instrumento de coleta de dados. A análise dos dados ocorreu por meio da análise pragmática da linguagem. Com as entrevistas, identificamos a tradição oral como uma fonte de informação que, tida como objeto de estudo, requer uma abordagem decolonial. Observou-se uma variedade de práticas de tradições orais dos entrevistados que são fontes de informação, a saber: as contações de histórias, as brincadeiras, a dança, a musicalidade e as artes marciais. Conclui-se que as práticas de tradição oral Griô podem ser utilizadas como fontes de informação em que a história e cultura local de uma comunidade são a gênese informacional, a partir das interações entre as pessoas.

Palavras-chave: decolonialidade; griô; oralidade; Região Nordeste - Brasil; tradicionalistas.

ALTERNATIVE SOURCES OF INFORMATION

Griô oral tradition practices in knowledge references

Abstract

This article investigates how the oral tradition practices of griôs in the Northeast of Brazil can be used as sources of information. This is an exploratory study based on bibliographic and documentary techniques, which used semi-structured interviews as a data collection tool. The data was analyzed using pragmatic language analysis. Through the interviews, we identified oral tradition as a source of information that, taken as an object of study, requires a decolonial approach. We observed a variety of oral tradition practices from the interviewees that are sources of information, namely: storytelling, games, dance, musicality and martial arts. The conclusion is that Griô oral tradition practices can be used as sources of information in which the local history and culture of a community are the informational genesis, based on interactions between people.

Keywords: decoloniality; griô; orality; Northeast Region of Brazil; traditionalists.

FUENTES ALTERNATIVAS DE INFORMACIÓN

prácticas de tradición oral Griô en las referencias de conocimiento

Resumen

Este artículo investiga cómo las prácticas de tradición oral de los griôs de la región nordeste de Brasil pueden utilizarse como fuentes de información. Se trata de un estudio exploratorio basado en técnicas bibliográficas y documentales, que utilizó entrevistas semiestructuradas como herramienta de recogida de datos. Los datos se analizaron mediante el análisis pragmático del lenguaje. A través de las entrevistas, identificamos la tradición oral como una fuente de información que, tomada como objeto de estudio, requiere un enfoque decolonial. Observamos una variedad de prácticas de tradición oral de los entrevistados que son fuentes de información, a saber: narración de cuentos, juegos, danza, musicalidad y artes marciales. La conclusión es que las prácticas de tradición oral de Griô pueden utilizarse como fuentes de información en las que la historia y la cultura locales de una comunidad son la génesis informativa, basada en las interacciones entre las personas.

Palabras clave: decolonialidad; griô; oralidad; Nordeste de Brasil; tradicionalistas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 OS SABERES GRIÔ NOS REFERENCIAIS DO CONHECIMENTO

A sociedade brasileira teve em sua gênese identitária uma tradição colonial, fundamentada pela hegemonia eurocêntrica que constantemente buscou anular as diversas formas de existência do povo brasileiro. Como consequência, a população dessemelhante ao ideal colonizador, como os povos tradicionais, foi colocada em posição subalterna, com suas tradições primevas postas a subvalorização e a constante busca pelo poderio equiparável à razão europeia. Com a grande massa alienada às raízes de sua identidade, a tendência dos brasileiros aos referenciais europeus é uma manifestação direta da influência da colonialidade na sua formação identitária, fenômeno discutido pelo autor decolonial Frantz Fanon (2020).

Ao desconhecermos a nossa própria cultura, damos continuidade ao movimento de dissociação que se consolidou nas colônias europeias à fundação de uma sociedade de mentalidade igualmente eurocêntrica (Barros; Pequeno; Pederiva, 2018). Nessa cena, o griô é uma figura que se apresenta como uma simbiose de ressignificação e resistência cultural na esfera da luta pela existência das demais vivências tradicionais do Brasil. O título griô deriva dos chamados griots[4] africanos, tradicionalistas que agem no repasse da tradição oral de sua cultura. Estes são apresentados pelo malinês Hampâté Bâ (2010) na forma de mestres trovadores, menestreis, cortesãos instrumentistas, genealogistas, historiadores e poetas líricos.

Em terras brasileiras, a significação africana ao griô adquiriu um novo estado, pois este, no país, teve desde sua gênese a opressão colonial interferindo em seu reconhecimento e valorização. Independente de estar diante um cenário desfavorável, o griô brasileiro deu continuidade, por meio da palavra, a cultura africana em seu país, tendo em suas tradições orais a semente identitária afro-brasileira. Na contemporaneidade, a figura se ressignificou na cena cultural sob novas fisionomias, não se tratando de uma sequência da tradição vinda da África. Sua identidade se vinculou com os elementos de tradição oral da cultura popular do país, e qualquer cidadão com tal vínculo poderia se entender e ser reconhecido como um griô, como bem aponta o Projeto de Lei Nacional Griô (Brasil, 2011).

Barros, Pequeno e Pederiva (2019) afirmam que a prática da tradição oral se tornou resistência aos processos de colonização. No mundo atual esse fenômeno se exemplifica com os griôs, pois eles apesar das interferências das faces do colonialismo persistem na produção e disseminação da cultura tradicional oralizada. Esses processos se dão, fundamentalmente, com práticas como a contação de história, as danças, as musicalidades, dentre outras formas da cultura verbal griô de se manifestar e comunicar.

É essencial para a sociedade brasileira ter as práticas de tradição oral Griô nos seus referenciais do conhecimento para uma possível decolonização dos representantes de sua razão. Para tanto, é necessário que haja o reconhecimento da cultura verbal como uma fonte de informação, sendo esta uma orientação aos indivíduos em sua busca pela verdade. Nesse processo de contestação do conhecimento hegemônico é preciso que autoridades referenciais na produção e disseminação das fontes de informação se convertam à ação decolonial. Em tal cenário, essa pesquisa enfatiza o papel da Ciência da Informação (CI) e dos seus praticantes, sabendo que ela é o campo que incorpora estudos sobre as dimensões da informação e do conhecimento.

 O problema desta pesquisa, portanto, é: como as práticas de tradição oral de griôs da Região Nordeste do Brasil podem ser utilizadas como fontes de informação? Assim, firmou-se o objetivo geral: investigar como as práticas de tradição oral de griôs da Região Nordeste do Brasil podem ser utilizadas como fontes de informação. Os seus objetivos específicos se desdobram em:

a)     mapear a presença de griôs na Região Nordeste do Brasil;

b)    identificar quais são as práticas de tradição oral dos griôs do Nordeste do Brasil;

c)     verificar se os griôs do Nordeste brasileiro consideram a tradição oral como uma fonte de informação.

Nas seções sucessivas apresentamos a fundamentação teórica da pesquisa com um marco teórico que discute as práticas de tradição oral Griô. Em sequência, falamos sobre os procedimentos metodológicos aplicados e os dados obtidos com eles. Por fim, trazemos nossas considerações finais.

 

2 TECENDO AS VIAS DOS SABERES GRIÔ

A informação é o principal objeto de interesse e alimento da CI. Apesar disso, por um longo período, os estudos voltados às fontes informacionais mantiveram sob égide o pensamento registrado, com os livros representando a imagem da majestade do conhecimento. No que tange ao universo conceitual das fontes de informação para o campo, a visão de Campello (2018, p. 15) oferece aos cientistas informacionais um maior horizonte, ao que a autora dita que

[...] na verdade, numa perspectiva ampla, qualquer objeto pode ser considerado uma fonte de informação. Por exemplo, o fragmento de uma rocha é uma fonte de informação para o geólogo; uma planta é uma fonte de informação para o botânico; uma bula de remédio é uma fonte de informação para o doente, dependendo de suas necessidades e dos significados que as informações têm para quem vai utilizá-las. As pessoas também são fontes de informação [...].

A crescente do reconhecimento de uma pluralidade de fontes informacionais concebeu as produções científicas da CI novos recursos informativos a serem explorados, entre eles a tradição oral. Como exemplo, citamos o artigo de Faria e Gomes (2022) sobre a Tecnologia Social na garantia de acesso à leitura por pessoas com síndrome de down. Na pesquisa, as autoras significam a cultura verbal como uma fonte de informação alternativa, afirmando ser uma maneira de garantir que os indivíduos sob a condição de alteração genética acessem informações sem a barreira da escrita, promovendo, assim, uma acessibilidade democrática.

Em busca do reconhecimento da tradição oral de um grupo particular de indivíduos, os griôs, na categoria de fonte de informação alternativa estabelecida por Faria e Gomes (2022), buscamos exemplificar a perspectiva das autoras com o ponto cultural Grãos de Luz e Griô. Sua história, descrita nessas linhas, teve origem na necessidade da população de Lençóis[5] de salvaguardar suas tradições, estando estas ameaçadas pelas mudanças socioeconômicas do município. Com a base econômica formada por uma tradição garimpeira, e a decorrente escassez do diamante, foi deflagrada uma crise econômica e social na localidade, intensificada pela ilegalização do garimpo. Depois disso, a economia se concentrou no setor turístico, o qual conduzia roteiros de ecoturismo que não incluíam as tradições dos lençoenses e os seus personagens, que concentravam representantes da tradição oral (Pacheco, 2006).

A partir disso, escolas e comunidades demandaram projetos para recosturar o fio cultural dos lençoenses. Foram os trilhos dessas ações que deu vida ao ponto cultural Grãos de Luz e Griô, que realiza oficinas movidas pelo método pedagógico idealizado por Lilian Pacheco, a pedagogia griô, que é

[...] uma pedagogia de vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entres a escola e comunidade, entre grupos étnico-raciais interagindo saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do conhecimento e de um projeto de vida que têm como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida (Pacheco, 2006, p. 86).

A pedagogia griô tem como prática as vivências afetivas e culturais, experiências que costuram uma consciência étnico-cultural sobre si. Esses eventos são guiados pela didática do ritual de vínculo e aprendizagem, que é uma prática de tradição oral aplicada por “[...] um desdobramento técnico da prática da educação biocêntrica, complementada pela genialidade técnica e mítica dos Griôs e Mestres de tradição oral do noroeste da África e do Brasil” (Pacheco, 2006, p. 90). Ele integra diversos elementos que nos conectam com nossas tradições, nos provendo de saberes e fazeres que se interligam em uma rede de instrumentos corpóreos, em principal a palavra, gerando uma riqueza de afetividade com o passado e com a cultura vigente.

            O Quadro 1 relata a didática básica do ritual de vínculo e aprendizagem na pedagogia griô.

Quadro 1 - Didática básica do ritual de vínculo e aprendizagem

Abertura

Cantigas, danças e palavras geradoras de caminhada. Reverência (à bênção) à comunidade

Interação da roda

Cantigas e danças rítmicas do trabalho, umbigadas, sambas-de-roda, quadrilhas e outras

Expressão da identidade no centro da roda

Danças, jogo de versos

Harmonização

Cantigas e danças de ninar e embalar, cantigas melódicas e de amor

Contação de histórias e mitos

Em ambientes afetivos e míticos, facilitados pela reverência à escuta, à palavra geradora e ao diálogo de saberes

Expressão artística e artesanal

Motiva pesquisas e vivências para a construção do conhecimento total por meio das artes e ofícios. Produzindo, apreciando, compartilhando histórias de vida e celebrando as expressões

Despedida

Registros e memórias do vivido; cantigas e danças de roda e caminhadas de despedida

Fonte: Adaptado de Pacheco (2024).

 

Esses processos ritualísticos são praticados nas vivências da Grãos de Luz e Griô. Algumas delas são exposições, sessões de cinema, festivais, oficinas de música, capoeira, dança, leitura e contação de histórias, arte e identidade, teatro, produção audiovisual, inclusão digital, dentre outras. Tais experiências foram documentadas nos relatórios anuais da associação, disponíveis em seu site[6]. Dezoito anos de saberes e fazeres foram apresentados em palavras, fotografias, desenhos e prosas, em uma história da comunidade lençoense contada por seus avós, pais e filhos.

As práticas de tradição oral promovidas pela Grãos de Luz e Griô se mostram como um despertar para que jovens desenraizados possam recriar e recontar suas tradições, contrariando o fantasma da cultura globalizada. A pedagogia griô nutre o pertencer ancestral, a consciência de uma identidade local, nacional, planetária. Assim como narrado pelas crianças Grãos de Luz em seus relatórios anuais, o saber e fazer tradicional tece conhecimentos sobre si ao encontro de um “nós”. A figura do Velho Griô segue tecendo o fio identitário dos lençoenses, e o seu tear se expande para outros horizontes.

 

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

            Quanto aos seus fins, a pesquisa abrange um caráter exploratório, devido ao aprofundamento sobre fenômenos escassos em seu campo de estudo (Richardson, 2012). Esse fato foi constatado no decorrer do seu levantamento bibliográfico, onde se identificou um baixo quantitativo de publicações, nacionais e internacionais, da CI sobre tradição oral e os griôs. No que diz respeito ao seu meio, o estudo se caracteriza como bibliográfico e documental.

O aporte bibliográfico da pesquisa seguiu as oito fases do modelo de construção metodológico proposto por Marconi e Lakatos (2003). Contudo, é importante ressaltar que dados momentos as etapas se repetiram, até mesmo ocorrendo em conjunto. Quanto à fase documental, ela se concretizou por meio de buscas no Portal da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei Nacional Griô (Brasil, 2011) e a análise dos relatórios anuais do ponto cultural Grãos de Luz e Griô. Os documentos recuperados durante a pesquisa bibliográfica e documental que foram desprezados não eram cabíveis ao corpus da pesquisa por não estarem alinhados à sua proposta.

A pesquisa adotou a etapa qualitativa por ser uma forma adequada para entender a natureza do fenômeno social que são as práticas de tradição oral Griô (Richardson, 2012). Desse modo, o método qualitativo foi aplicado com o propósito de cumprir os nossos objetivos específicos, nos levando a compreender como as tradições orais Griô podem ser utilizadas como fontes de informação. A entrevista semi-estruturada foi o instrumento de coleta utilizado na etapa qualitativa, pois, segundo Mattos (2005, p. 825), essas interações “[...] servem a pesquisas voltadas para o desenvolvimento de conceitos, o esclarecimento de situações, atitudes e comportamentos, ou o enriquecimento do significado humano deles”. Em tal metodologia a ação praticada vai além do significado temático da conversação, preocupando-se com os efeitos do entrevistador sobre as respostas do entrevistado. 

Visto que nenhuma outra fonte informacional geraria os saberes que a interação entre pesquisadores e objeto de estudo resultaria, o universo desta etapa foram griôs nordestinos. Os critérios para o perfil dos entrevistados foram os seguintes: 1) categoria de Griô pelo Projeto de Lei Nacional Griô (Brasil, 2011); 2) maioridade; 3) sem distinção de gêneros; 4) naturalidade do Nordeste brasileiro. Diante das dificuldades em localizar entrevistados que atendessem aos critérios estabelecidos, os meios de seleção ocorreram mediante a amostragem em Bola de Neve. Tal método, segundo Vinuto (2014), é utilizado para estudar populações com características específicas que são difíceis de serem acessadas. Isso ocorre principalmente quando não se tem conhecimento inicial sobre as pessoas importantes a serem abordadas.

Por meio das cadeias de referência da amostragem em Bola de Neve, chegamos a quatro griôs do Nordeste, sendo três deles de Pernambuco[7] e um do Ceará. As entrevistas totalizaram em quatro, em que três delas ocorreram virtualmente, pelo Google Meet, e uma presencialmente, no espaço cultural do entrevistado. Respeitando a não identificação prevista pelo tópico sete do Art. 1°, parágrafo único da Resolução 510 do Comitê de Ética (Conselho Nacional de Saúde, 2016, p. 2), foram usados os termos Griô A, Griô B, Griô C e Griô D para substituir os nomes dos entrevistados no decorrer da análise das entrevistas.

As resoluções das entrevistas semi-estruturadas foram interpretadas segundo o método da análise pragmática da linguagem, desenvolvido por Mattos (2005), ao que ele auxilia no significado interpretativo da fala dos entrevistados. As análises das entrevistas, portanto, foram embasadas nas cinco fases propostas pelo autor, sendo estruturadas no Quadro 2.

Quadro 2 - Fases das análises das entrevistas

Recuperação

A primeira etapa realizada após as entrevistas foram as transcrições das mesmas, feitas com o auxílio do Google Pinpoint. Cada transcrição foi organizada em um documento do Google Docs e nele foram feitos comentários preliminares acerca dos significados nas falas dos entrevistados ao longo da conversação. Tais pontuações permaneceram no aguardo de sua futura análise.

Análise do significado pragmático da conversação

Momento em que foi analisado o contexto pragmático da conversação, em que foi observada a priori cada pergunta-resposta, a fim de apanhar o significado nuclear da fala dos entrevistados que se relacionava ao objetivo da pergunta. Por meio disso se pode avaliar os desdobramentos das entrevistas e possíveis discursos de relevância na análise.

Validação

Envio por e-mail das entrevistas transcritas para os respectivos entrevistados, juntamente de um quadro com os significados extraídos na análise da conversação. A fase ocorreu no dia 19 de Fevereiro de 2024, e os documentos foram enviados para o Whatsapp e direct do Instagram dos entrevistados.

Montagem da consolidação das falas

Fase em que foi produzida uma “matriz de consolidação” das falas dos entrevistados, feita em uma tabela do Excel, em que uma coluna continha as perguntas e outra os significados das respostas dos entrevistados. O propósito da criação dessa matriz foi a visualização dos significados como um conjunto, de forma a correlacionar comportamentos, relatos e pareceres.

Análise de conjuntos

O último momento de análise consistiu na visualização dos tópicos evidenciados em cada pergunta e na reflexão acerca dos conjuntos das respostas que se alinharam na matriz de consolidação. Por meio disso se pode verificar outros significados merecedores de destaque de alguma resposta isolada ou em um outro conjunto.

Fonte: Elaborado pelos autores (2024).

 

Ao final das fases, houve um debate sobre os resultados obtidos na análise dos significados das respostas e feitas as considerações finais sobre estes.

 

4 AS PRÁTICAS DE TRADIÇÃO ORAL COMO FONTES DE INFORMAÇÃO ALTERNATIVAS

É importante entender essas entrevistas como uma conversa entre pessoas que em determinado momento se viram ligadas por um bem comum, a tradição oral. No entanto, vale salientar que em alguns momentos houve desvios no roteiro pré-estabelecido, já previstos pelo método da entrevista semi-estruturada. O princípio dessa conversação se deu com a cultura verbal. Perguntar a uma pessoa que vivencia a tradição oral o significado que ela dá a essa manifestação pode nos levar a determinadas possibilidades. Algumas delas partem de longos pensamentos, outras já estão na ponta da língua.

Tradição oral é o conhecimento, a história, as vivências de uma determinada comunidade, né, que são repassados para frente, é… de geração a geração, né? Tem uma figura que é a responsável por fazer esse passamento, né? O encaminhamento das tradições, né? Então, não é uma tradição que tem que estar escrita, em livros e em outras coisas. É uma tradição que ela se perpetua pela existência da comunidade (Griô B, grifo nosso).

[...] para mim, a tradição oral é meio […] eu não sei, é meio redundante, né? Mas é uma tradição que ela é passada, oralmente. Ela não… sua origem, ela não é na cultura escrita. E a tradição oral ela tá vinculada, né, a tradições de culturas populares afro e indígenas, dentro do nosso contexto brasileiro. E ela é passada de geração em geração. Geralmente existem mestres, que são os responsáveis por passar essa tradição à frente, né? E existe toda essa tensão de permear ou não permear a escrita, né? Porque até hoje a sua sobrevivência é através da oralidade. Que é uma marca central (Griô C, grifo nosso).

            As respostas, tanto as que partem de longos pensamentos, quanto as que já se encontram na ponta da língua, possuem em comum alguns pontos merecedores de destaque: a ideia da tradição oral ser repassada, de uma figura responsável por esse repasse e a sua dissociação com a tradição escrita. Juntos, os três elementos dão abertura para novas perguntas, principalmente quando nos indagamos sobre como se dá esse repasse, quem são as figuras responsáveis por ele e se há possibilidade de uma coexistência entre tradição oral e escrita. Os dois questionamentos iniciais já estavam programados para essa conversação, mas o terceiro não. A coexistência entre a tradição oral e escrita, portanto, foi o primeiro elemento a se introduzir, naturalmente, na entrevista com o Griô C (grifo nosso).

 

[...] duas possibilidades, de que a escrita ela pode impulsionar ou preservar, gerar uma valorização das estruturas tradicionais. São uma possibilidade, né? Tem pessoas que trabalham com tradição oral que vão para esse caminho, e a outra possibilidade é que, na verdade, se utilizar da escrita, né, para dizer sobre, né… descrever, discutir as tradições orais e isso é uma perda da identidade, da força e também uma… como se você dissesse os segredos dela, né? Colocasse assim no papel e deixasse que a branquitude e a estrutura dominante pudesse se utilizar disso, se apropriar disso mais facilmente, né? (Griô C grifo nosso).     

            As opções dadas pelo Griô C ao se permear ambas tradições, oral e escrita, tal como em várias situações da vida, nos oferecem dois caminhos. O primeiro, o qual a escrita pode impulsionar, preservar e gerar uma valorização das estruturas tradicionais, é o trajeto ideal a se tomar para a salvaguarda das tradições orais Griô. O segundo é aquele onde há perda da cultura tradicional decorrente da estrutura colonizadora que circunda a escrita. Este, lamentavelmente, foi o que se perpetuou ao longo do Brasil colônia, e sua releitura transcende o período colonial.

O nosso Griô D relatou uma dentre tantas experiências onde a tradição africana/afrobrasileira é colocada em uma condição de perda cultural, decorrente de sua subvalorização. Olhando para os tambores que estavam atrás de nós, ele nos contou, com olhar aguçado, que os instrumentos estavam passando por um processo de desapropriação identitária.

[...] eu sempre onde eu chego, eu falo o lance do instrumento, né, que… é o Bombo, o Tambor do Maracatu. Que muitas pessoas chamam de Alfaia, né? Então, você vai escutar todo mundo chamando de Alfaia. Aí vai voltar pra o que eu tava falando, que o sistema, né? Da academia, dos governantes, né? O colonizador em si, ele chega modificando. O nome do instrumento é Bombo, Tambor ou Zabumba, né? E aí na década de 90 as pessoas começaram a chamar de Alfaia. Com vergonha. E outros pra começar a destruir mesmo a nossa cultura, a modificar, né? [...] E a gente não pode ir nessa onda. A gente tem que se firmar com a nossa tradição (Griô D grifo nosso).

            Nesse caso, a substituição de termos esvazia símbolos de seus significados originais. O Tambor não somente como signo linguístico do instrumento, mas também representante das pessoas por trás do batuque, suas histórias, cultura e lutas, deve ser Tambor até hoje. O que vier a modificar isso é uma ameaça para a estrutura tradicional e para o seu povo.

Ao se iniciar uma pesquisa que tem a tradição oral como objeto de investigação, é natural que sua coexistência com a cultura escrita se torne um pensamento espontâneo. No momento em que o estudo se fundamenta em uma literatura científica e a palavra oral é subvalorizada pela estrutura academicista, o caminho da autocrítica emerge para que a vivacidade da oralidade não se perca em algum lugar no barulho das teclas de um computador. Sabemos que há perdas de uma totalidade ao se registrar uma tradição oral, pois os registros possuem uma natureza morta, ao contrário da oralidade. Contudo, formas de registro oriundas da tradição escrita são maneiras de preservar, mesmo que superficialmente, a memória humana, inclusive suas tradições de gênese oral. Como esses registros são organizados e disseminados, de forma que a tradição não seja dissociada do seu papel social, é uma discussão relevante para a CI.

            Idealizar o encontro de tradições tão distintas não parece o lugar de pesquisadores que viveram somente uma cultura escrita, como de fato ocorre nessa pesquisa. Por isso, quando surge a oportunidade de ouvir pessoas que vivem a tradição oral e registram suas práticas orais, ouvi-las se torna o primeiro passo para compreender o que foi, a princípio, um devaneio.

Tudo eu registrei, que eu trabalhava com fotografia, né. E aí minha preocupação era ter uma câmera, então, eu entrei na fotografia por causa da capoeira. É interessante também falar isso. Porque eu queria registrar a capoeira (Griô D, grifo nosso).

Mas eu ressalto, sempre trago para os meninos, né? Quando vou fazer oficinas, principalmente nas regiões periféricas e nos quilombos, por exemplo, que apesar da gente continuar com a tradição oral é importante registrar nossa memória também (Griô A, grifo nosso).

            Com essas falas, percebemos que a coexistência da tradição oral e escrita é uma realidade nas vivências orais dos entrevistados. Contudo, é importante ter em mente que, para um sincronismo salubre entre ambas, a escrita deve ser coadjuvante à oralidade. Entendemos que a perspectiva de registro dos nossos entrevistados se volta a um método de preservação secundária de suas tradições, enquanto a palavra oral está no seu repasse, circulação e vivacidade, o que, afinal de contas, são os agentes primários da salvaguarda de suas culturas. Ao seguirmos com nossa conversação, chegamos a novas considerações: perguntar sobre vivências de tradição oral aos entrevistados talvez seja o mesmo que ouvir suas histórias de vida. Algumas trajetórias, na verdade, antecedem até mesmo os seus nascimentos, com seus pais e avós. Ou muito antes disso.

[...] minha família ela veio do interior de Pernambuco e a maioria dos meus parentes eram analfabetos, né. Então eles passavam o conhecimento pela oralidade (Griô A).

Enquanto isso, para outros é uma busca de si mesmo:

A tradição oral na minha vida pessoal, ela é uma busca, né? Eu nasci uma mulher branca, né. Cristã, privilegiada, e sempre tive dentro do sistema escolar, né? Capitalista, ali e tal, de… dessas caixinhas, né. Dessa perspectiva de sucesso de carreira. [...] E aí, eu fui percebendo que… depois de um tempo, que as minhas buscas, na maioria das vezes, era buscar esse conhecimento que as culturas tradicionais têm. Que geram uma sensibilização e é uma outra forma de aprendizagem muito mais integral, que traz uma memorização corporal e uma internalização (Griô C).

 

Com o avançar do tempo, nossa conversa foi conduzida a um tópico deveras interessante para esse estudo. Sendo essa uma pesquisa que discute as tradições orais Griô como fontes de informação, adentrarmos nessa temática com os entrevistados foi uma necessidade. Por isso, é indiscutível o quanto as falas que sucedem esse parágrafo foram essenciais para as nossas considerações finais sobre a temática.

[...] Eu consigo trazer várias referências e informações com uma simples música de roda, por exemplo. Então, as informações, elas estão presentes nas músicas, nas histórias… e a informação em si, a informação lá como ferramenta da comunicação, é possível a gente ter através da oralidade (Griô A, grifo nosso).

Assim, compreendemos que a informação não reside somente nos suportes costumeiros à CI. Ela está nas músicas, nas histórias, na comunicação oral. Ademais, entender quais são as informações repassadas pelas tradições orais é a forma ideal de discuti-las como fontes informacionais. A fala do Griô B nos conta a respeito disso.

[...] Eu acho que informação sobre diversas coisas, né? Assim, é... principalmente sobre a própria história, né? Das pessoas. As histórias que são materializadas ali em determinado local, em determinada comunidade (Griô B, grifo nosso).

Sabendo onde a tradição oral se faz viva, as comunidades, percebemos que ela carrega, principalmente, os saberes das culturas locais. Sobretudo nas periferias, onde suas narrativas, costumes, festejos e tudo o que constitui um pertencer identitário muitas vezes é desprezado pela tradição escrita, a palavra oral é matriarca de uma cultura popular que resiste em um contexto desfavorável. O povo cria formas de existir. Nas contações de malassombros das calçadas, em rodas de capoeira onde a música conversa com os pés. O palco da cultura são as pessoas, e para conhecê-la precisamos buscar suas raízes nas tradições. Uma nova descoberta se revelou com a fala do Griô C (grifo nosso) sobre as tradições orais serem fontes de informação, levando-nos a uma nova perspectiva sobre a temática.

[...] eu acho que ela pode ser um objeto de estudo, mas talvez o principal ponto seja ver as tradições orais como aprendizados, né? Como uma sabedoria que você pode acessar e você pode aprender algo sobre isso para si mesmo e trazer esse aprendizado para outras pessoas também. É que é tentar ver que é sucinto, mas é diferente de você acessar, pegar uma informação e jogar isso assim para a sociedade. Eu acho que tem umas nuances e talvez sejam esses nuances que fazem diferença nessa tecnologia de apropriação. Que a academia faz, de alguma forma. A academia participa, né, dessa apropriação cultural (Griô C grifo nosso).

Dessa fala, apreendemos que um estudo sobre a tradição oral como fonte informacional requer uma abordagem decolonial que, no momento, está em ascensão na CI.

A busca por entender a figura do griô brasileiro e sua constante reinvenção no decorrer dos anos foi um dos nossos objetivos com essas entrevistas. Por isso, foi perguntado aos entrevistados o que eles entendem por griô.

Olha, eu até prefiro chamar de dielis. [...] E aí para mim, os griôs, quando a gente vai estudar um pouquinho quem são os griôs, está lá geralmente dizendo que os griôs são pessoas que em todos os povos existem, para contar a história daquele lugar e tal. Mas existe outra perspectiva de griô, que são pessoas andarilhas, que vão contando e ouvindo histórias pelo mundo. Confesso que esse é o que me chama mais atenção, esse movimento do griô que se desloca da sua territorialidade e vai para outros lugares ouvir e contar histórias (Griô A, grifo nosso).

 

[...] eu vejo que é aquela pessoa que ela carrega, né, que ela procura carregar dentro de si, manter viva dentro de si, a história de um povo, a história de uma manifestação cultural, né. É... que ele decide manter isso dentro de si e o que ele descobre, né? O que ele conhece, ele vai passando para frente. Não é uma coisa que fica para si, é uma coisa que fica compartilhada com as pessoas que estão ali no entorno (Griô B, grifo nosso).

 

[...] Eles carregam uma sabedoria ancestral, uma sabedoria de vida, de vivência, de experiência própria, em que eles têm um propósito em vida muito forte e construíram um conhecimento ou uma forma de transmitir um conhecimento. Fazem parte de uma corrente de transmissão, de uma forma de transmissão. E são sábios. E estão fortes nos seus propósitos de vida, de perpetuar um conhecimento, uma tradição, uma sabedoria. E são idosos, né? (Griô C, grifo nosso).

 

Os entrevistados nos deram representações do griô a partir de suas impressões pessoais, sejam formadas pelo que leram, ou pelo que experienciaram. Para o Griô A, os griôs seriam aqueles que, na verdade, devem ser chamados de dielis, uma perspectiva que coincidentemente foi defendida nesta pesquisa. O griô como um detentor da história de um povo também foi representado na fala do Griô B. O princípio do repasse, já evidenciado em nossa conversa sobre a tradição oral, esteve outra vez em seus dizeres. A continuidade do saber ancestral em um ciclo oral e o griô, a figura responsável por fazer esse passamento. O mesmo ocorreu com o Griô C, que associou griôs a uma persona anciã que passa adiante seus conhecimentos, nascidos de suas vivências, e que da oralidade veio e da oralidade se vai.

            Mesmo que tenham sido relatos gerados a partir de diferentes experiências, a tríade nos desenhou um mesmo personagem: o griot africano. Sendo assim, no imaginário dos entrevistados, a figura do griô brasileiro se mostra atrelada às raízes africanas, mesmo que ele tenha passado por um processo de reinvenção, onde ressurge em um cenário político. A possibilidade da nomenclatura ter transformado os tradicionalistas brasileiros em uma comunidade terminológica, afastando-os da simbologia do Ser Griô, nos foi cogitada, bem como uma possível modificação de suas características originais decorrente do ressurgimento na esfera política. Com o Griô D, adentramos em uma conversa onde esse não era somente um cenário imaginário. Griô pode ter deixado de ser griô quando assim foi cunhado.

 

Muitos são até patrimônio vivo do Estado, e levam o nome de Griô sem ser Griô, entendeu? Só porque tá na cultura. Tá na cultura mas não quer dizer que é Griô ou é um Mestre, né? [...] eu fico triste por pessoas, como eu falei no início, pessoas que se intitulam Mestres sem ter nenhuma condição, bicho. Só por conta de edital, por conta de grana, achando que a grana é tudo. Tá adoecendo. Eu não tenho obrigação de aprender a fazer projeto não. A minha função é fazer a minha execução na capoeira. Na minha aula, com as crianças. É fazer meu trabalho. Zelar pela arte. Se eu for me meter a fazer projeto, vou esquecer a minha arte, entendeu? Isso aí é outra área. Já fiz muitas vezes, mas é outra área. Tem gente que tem condições de fazer… não dá pra dividir. E aí, eu vejo que tá tudo virado. Todo mundo sendo Mestre de tudo. Que o nome Mestre agora ficou vulgarizado (Griô D).

Ouvindo isso, passamos a nos questionar o quanto o griô, desde sua nascença como título, foi afetado pelas estruturas coloniais da política brasileira. De certa forma, esse se torna um fenômeno semelhante ao descrito pelo Griô D, quando este nos contou da substituição do termo Tambor por Alfaia. Afinal de contas, Griô não passaria de uma palavra se o tradicionalista perdesse o significado de sua tradição. Salientamos que não tomamos o posicionamento de desqualificar a conduta de griôs contemporâneos que se desbravam na esfera da política, mas questionar se elas de fato agem a favor desses indivíduos e de suas raízes, cuja perda os afastariam da sua missão para com a sociedade, o repasse.

No final das contas, o Ser Griô não poderia ser resumido em uma tradição escrita, e a dimensão de temas que podem ser discutidos em torno de sua conceituação nos levou a um novo rumo nas entrevistas. Identificação. Saber se nossos entrevistados se identificavam com a nomenclatura, mesmo tendo sido selecionados justamente por estarem na categoria de Griô pelo PL Nacional Griô (Brasil, 2011), surgiu em um segundo momento, quando nos deparamos com essa realidade anteriormente despercebida. Eles poderiam não se reconhecer como tal. Em dado momento, isso se tornou um receio para a continuidade das entrevistas. Mas a pergunta precisava ser feita. E assim foi.

Acho que ainda não. Não sei. Eu acho que é porque eu tenho uma concepção de que griô é uma coisa que dão para gente, né?  Gente que diz que é griô, né? Eu acho que precisaria alguém me dizer que eu sou uma griô para eu me entender como uma griô. Mas assim, o caminho é o que eu tento fazer atualmente, né? (Griô B).

Acho que… acho que não. Eu me vejo mais como uma educadora, que vê nas culturas tradicionais, saberes de tradição oral de alguma forma o caminho para as lutas existentes, né? Principalmente as lutas raciais e as lutas ambientais (Griô C).

Não me identifico não. Eu sou um ser humano. Um espírito incorporado numa matéria, passando uma fase aqui na Terra. Tentando ajudar um pouco a humanidade. Se griô é isso, então […] (Griô D).

 

As respostas, como registradas acima, foram negativas. É importante destacar que a pergunta não foi feita para o Griô A por ter sido acrescentada após sua entrevista. Ter a não identificação dos entrevistados nos levou a possíveis fatores que influenciaram essa realidade. O primeiro deles foi o despreparo da pesquisadora ao julgar que Griô era somente um conceito, uma classe. Que se uma pessoa se categoriza no que é proposto pelo PL Nacional Griô (Brasil, 2011) ela se reconheceria como tal, desprezando a complexidade do que é um pertencimento. Um segundo fator remete a fala de Salom (2016), sobre a não identificação de alguns grupos e sujeitos tradicionais com a denominação Griô. Essa pode ser uma abertura para se repensar que, com o não pertencimento, uma parcela de tradicionalistas pode ser excluída das políticas de tradição oral brasileira. Tendo isso em mente, ainda que nossos entrevistados estejam nas categorias de Griô pelo PL Nacional Griô (Brasil, 2011) e sejam reconhecidos dessa forma nessa pesquisa, em respeito a eles e ao seu pertencer, abordamos tal fator como destaque em nossa conversação.

            Os caminhos dessas conversações foram desenhados para nos levar a uma maior compreensão sobre as práticas de tradição oral Griô serem fontes de informação. Ouvir dos entrevistados algumas de suas vivências orais nos fez compreendê-las como experiências informacionais, para além dos moldes discutidos na CI sobre a fonte informacional.

[...] eu levo contação de histórias, tem um espetáculo de contação que eu vou lá conto histórias da minha família, conto histórias africanas, algumas outras histórias indígenas e que tem algumas referências cênicas de mulheres aqui da minha cidade que são tapetes feitos por elas. [...] E aí, a gente geralmente, nessas contações de histórias, tem um momento lá, né, com a criança, de mediação de leitura, de diálogos com as crianças, de reconhecimento, né, da sua ancestralidade. No sentido mais básico da coisa chamada. Ah, quem é seu avô? Quem é sua avó? Quem são seus pais? De onde veio? De que interior sua família é? E entrevistar os vizinhos, entrevistar as pessoas de perto de casa, saber de outras pessoas quem são essas pessoas. Então a gente gravou em vídeo toda essa oficina. Ela sempre tem um resultado que é em livro (Griô A).

A gente trabalhou uma brincadeira daqui do Ceará, né? Que é o Boi de Rêzo, que é uma espécie de boi que o principal ritmo de tocação é o ritmo do reisado, né, reisado de congo. E aí a gente fez um trabalho com os meninos na época, em 2019. A gente fez um trabalho com ele de preparar um boi, né? E tiveram várias experiências, vivências, com mestres e tal, para eles poderem construir a própria brincadeira. E aí eles fizeram de forma coletiva uma brincadeira de boi, com enredo, trazendo as figuras, a Catirina, o Boi, o Mateus, todos esses personagens, né, que permeiam essa linguagem (Griô B).

Então a gente traz isso para a musicalidade, para a dança. E a gente usa versos, cantos repentes, cantigas de tradições, de referências nossas. Que a gente adquiriu na nossa caminhada com os mestres que a gente encontrou. E eu também trago algumas canções, mas a maioria do nosso repertório é o que a gente adquiriu conhecendo realmente pessoas dessas tradições orais, que nos apresentaram essas músicas, esses cantos. E aí, a gente acaba incorporando eles também. E aí, eu também sou uma contadora de histórias, né? E utilizo referências de culturas rurais dentro das minhas contações de histórias. E a gente também dá oficinas com reutilização de materiais recicláveis para produzir brinquedos. Objetos decorativos, né? Então é mais ou menos isso que a gente… não, é isso que a gente oferece (Griô C).

A gente também fez um evento aqui em 2009… e de 2010, foram vinte e quatro horas de capoeira. A gente começou de sete da manhã e terminou no outro dia. Primeiro ano acho que a gente vinte e seis… que terminou quase dez horas da manhã. E aí, roda as palestras e enquanto um tava jogando era hora do almoço, um monte já tava comendo… aí depois já revezava e não parava [...] Tem coisa que tem que ser mantida. A capoeira ela tá aqui no salão, mas eu me preocupo em levar ela pra rua. Que a capoeira é na rua. Capoeira tem que se mostrar, tem que se exibir. E para se manter a tradição, para as pessoas verem que existe, incentivar outras pessoas a fazerem. Porque a partir do momento que você entra na capoeira sua cabeça é outra. Tu leva uma queda, tu sabe como se sair (Griô D).

As experiências informacionais dos nossos entrevistados se assemelham aos processos ritualísticos praticados nas vivências da Grãos de Luz e Griô, mediados pela pedagogia Griô. Com o Griô A, a ação se dá na contação de histórias que exercita a ancestralidade, com narrativas para pessoas sobre pessoas. Já o Griô B dita uma brincadeira que relaciona indivíduos com sua cultura local e as linguagens dela. O relato do Griô C é sobre experiências com a dança e a musicalidade, com contações de histórias que tem como referência a cultura tradicional e oficinas que ressignificam o que era considerado lixo. A tradição experienciada pelo Griô D, por fim, demonstra a representação imaterial da resistência de um povo que teve gingado para se esquivar da opressão constante, símbolo da cultura negra brasileira. Na capoeira, a música, a poesia, a dança, a segurança e a lateralidade agem em um processo educativo de formação identitária.

Ao fim das entrevistas o fio condutor da tradição oral Griô ultrapassou o nosso horizonte, buscando ser passado adiante.

 

5 O QUE HÁ DE SER UM FINAL SEM CONCLUSÕES

 As estruturas coloniais que determinaram os referenciais de conhecimento da sociedade brasileira se atrelam às relações de poder que, em movimentos sinuosos, são reproduzidas e amplificadas pela CI. Entre os saberes negligenciados na trajetória desta ciência, os que nascem e se reproduzem da cultura popular são os de maior subvalorização, em especial os que se materializam nas tradições orais. Esta pesquisa foi uma busca por ressignificar esse preceito. Coadjuvada pelos seus objetivos específicos, a investigação se tornou um organismo vivo que trouxe resultados muito além do esperado. Esses foram frutos que não germinariam sem as nossas entrevistas.

No que tange à vivência dos entrevistados, suas práticas de tradição oral se mostram manifestadas de diversas maneiras, em principal nas contações de histórias, musicalidades, artes marciais, danças e brincadeiras. Ter conhecimento disso foi fundamental para a estruturação de nossas considerações sobre a temática, pois sabendo como as tradições orais dos griôs são praticadas, passamos a compreender o funcionamento de sua dialógica informacional. Esta, diferentemente de como ocorre na tradição escrita, não se dá na construção dos saberes, mas sim na sua autoconscientização, pois a tradição oral é inerente ao indivíduo que nasce em sociedade.

Entendermos quais informações são passadas nas práticas de tradição oral foi necessário para reconhecermos estas como fontes informacionais. A cultura verbal demonstra ter a história e cultura local como prioridade informativa, sendo essenciais para compreendermos as vivências de uma comunidade. No que tange a esfera científica, destacamos as práticas de tradição oral como valiosas aliadas aos estudos etnográficos.

As afirmativas dos griôs sobre considerarem a tradição oral uma fonte de informação foi de grande enriquecimento para esse estudo. A fala do Griô C nos deu margem maior para uma abordagem decolonial que a temática nos exige. Passamos a entender que para relacionar a tradição oral com um elemento de natureza academicista - as fontes de informação - necessitamos dissociá-la das estruturas da academia científica, embasadas pela tradição escrita, e estudá-la não só como objeto, mas como um organismo.

Uma temática que a priori não foi prioridade nas entrevistas, mas que foi essencial para nos estimular a novos questionamentos, refere-se a identificação dos nossos entrevistados como griôs. Com a negativa deles, o que já circundava a nossa mente ganhou uma maior profundidade: Griô pode não ser a forma ideal de se referir a um tradicionalista brasileiro. É possível que a nomenclatura funcione em propósitos políticos, onde se precisa categorizar essas pessoas para relacioná-las a projetos de fomento à tradição oral. No entanto, no universo afora, colocar a diversidade de tradicionalistas abaixo de um termo guarda-chuva peca contra o elemento de pertencimento desses povos. No que tange às medidas político culturais que se relacionam com os griôs, é um sinal de alerta para margens de exclusão.

A partir das entrevistas, consideramos que as práticas de tradição oral Griô devem ser utilizadas como fontes de informação na perspectiva de um mediador informacional, não tão somente como um objeto o qual se é consultado. Nesse sentido, as culturas verbais se configuram como experiências informacionais, visto que é na interação entre as pessoas que há a sua concretização. Caso não estejam nessa dialógica, as práticas de tradições orais Griô se tornam passíveis de objetificação, o que acarretaria em uma desvirtualização de sua natureza.

Esta não seria de fato uma pesquisa científica se não contasse com dificuldades. A principal delas se deu com a nossa falta de contato com entrevistados em potencial, juntamente com a carência de retorno da maior parte dos que foram contatados. Contudo, em resposta a isso, a amostragem em Bola de Neve foi uma abordagem valiosa que nos conduziu aos quatro griôs que nos mediaram os seus conhecimentos.

Em dado momento, esse estudo ganhou asas próprias. Passamos a chamá-lo de organismo vivo, um que escolhe qual esquina dobrar e se vai tomar café ou chá. Tratando-se de uma investigação sobre pessoas e o produto do seu consciente, não é algo surpreendente. A priori, acreditamos que conduzir suas rédeas pudesse ser um desafio, principalmente quando o seu fim foi se aproximando e nossas ideias foram se distanciando das iniciais. Porém, não o trazemos como um obstáculo, mas como lembrete de que uma pesquisa não deve ser perfeita, pois é em sua imperfeição que surgem novos questionamentos. E essa é a melhor parte.

Procedendo disso, acreditamos que futuros trabalhos na CI sobre tradição oral Griô irão ajudar no seu aprofundamento como um campo temático desta ciência, garantindo a solidificação no que tange suas bases teóricas e práticas. Sugerimos que tais pesquisas relacionem a tradição oral Griô com a mediação da informação e a ação cultural, objetos já sólidos na CI que demonstram se aproximar de tal abordagem. Com isso, os cientistas informacionais serão vigentes na decolonização da informação, pois estarão contestando o conhecimento hegemônico legitimado pelo poder colonial, dando à razão outras epistemologias.

REFERÊNCIAS

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[1] Graduanda em Biblioteconomia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisadora na área da Memória Oral. Possui experiência nas áreas: Memória Coletiva, Memória Institucional, Biblioteconomia de Livros Raros, Bibliotecas Universitárias, Equipamentos Culturais e Patrimônio Cultural.

[2] Bibliotecária formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutoranda e Mestra no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGCI-UFPE).

[3] Possui Graduação em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), Mestrado em Ciência da Informação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2008) e Doutorado em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2016), com realização de estágio sanduíche na Universidad Carlos III de Madrid.

[4] Há uma imposição colonial até mesmo nesse título, pois ele foi introduzido por colonizadores franceses que representaram em uma palavra grupos de tradicionalistas divergentes sem entender a sua complexidade. Por isso, acreditamos que termos de origem nativa são mais apropriados para cunha-los, como dieli, utilizado pelos bambara para nomear os griots, que significa “sangue”, pois para os bambara os dieli circulam como tal na sociedade (Bâ, 2010).

[5] Município da Bahia localizado na região do Parque Nacional da Chapada da Diamantina.

[6] Disponível em: https://graosdeluzegrio.org.br/. Acesso em: 30 jan. 2024.

[7] É importante destacar que o Griô C nasceu em São Paulo, mas atualmente reside em Pernambuco.