O AMPLO, O RESTRITO E O SEM LUGAR
sentidos de organização do conhecimento em A Ordem do Discurso, de Michel Foucault
Marivalde Moacir Francelin[1]
Universidade de São Paulo
marivalde@usp.br
Duanne de Oliveira Ribeiro[2]
Universidade de São Paulo
duanne.oliveira@gmail.com
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Resumo
A proposta deste artigo é destacar de um texto de caráter programático no interior da obra de Michel Foucault – “A Ordem do Discurso”, sua aula inaugural no Collège de France – o que pode ser útil para pensar a Organização do Conhecimento. Apoiando-se na separação, instruída por Birger Hjørland, entre os sentidos amplo (voltado ao esquadrinhamento da real e à estrutura de produção e circulação do saber) e restrito (ligado a métodos de classificação, recuperação e sintetização do saber) de Organização do Conhecimento, analisamos como os procedimentos de controle do discurso examinados por Foucault abrangem as práticas pelas quais se organiza o conhecimento; não só, apontam para que precede, condiciona e se mantém no lado externo à área. Trata-se de um estudo exploratório, com base em revisão bibliográfica. Conclui-se, a partir dos insumos extraídos por meio dessa leitura, que podem ser encontradas em Foucault formas críticas de entender a Organização do Conhecimento nos dois sentidos. Buscamos, ademais, estimular pesquisas que usem recursos do filósofonessa direção.
Palavras-chave: organização do conhecimento; Foucault; discurso; saber; epistemologia.
THE BROAD, THE NARROW, AND THE PLACELESS
meanings of knowledge organization in The Order of Discourse by Michel Foucault
Abstract
The purpose of this article is to highlight from a programmatic text within Michel Foucault's work –“The Order of Discourse”, his inaugural lecture at the Collège de France - what can be useful for thinking about the Knowledge Organization. Based on the distinction proposed by Birger Hjørland between the broad (focused on questioning reality and the structure of knowledge production and circulation) and the narrow (related to methods of classification, retrieval, and synthesis of knowledge) senses of Knowledge Organization, we analyze how the procedures for controlling discourse examined by Foucault encompass the practices through which knowledge is organized. Furthermore, they point to what precedes, conditions, and remains external to the field. This is an exploratory study based on a bibliographic review. The findings suggest that Foucault offers critical ways of understanding Knowledge Organization in both senses. Moreover, we aim to encourage research that uses the resources of the philosopher in this direction.
Keywords: knowledge organization; Foucault; discourse; knowledge. epistemology.
LO AMPLIO, LO RESTRINGIDO Y LO SIN LUGAR
significados de la organización del conocimiento en El Orden del Discurso de Michel Foucault
Resumen
El propósito de este artículo es destacar, a partir de un texto programático de la obra de Michel Foucault – „A Ordem do Discurso“, su lección inaugural en el Collège de France—, lo que puede ser útil para reflexionar sobre la organización del conocimiento. Basándonos en la distinción propuesta por Birger Hjørland entre el sentido amplio (centrado en el escrutinio de la realidad y la estructura de producción y circulación del conocimiento) y el sentido restringido (relacionado con los métodos de clasificación, recuperación y síntesis del conocimiento) de la Organización del Conocimiento, analizamos cómo los procedimientos de control del discurso examinados por Foucault abarcan las prácticas mediante las cuales se organiza el conocimiento y señalan aquello que precede, condiciona y permanece externo al área. Se trata de un estudio exploratorio basado en una revisión bibliográfica. A partir de los aportes extraídos mediante esta lectura, se concluye que en Foucault pueden encontrarse formas críticas de entender la Organización del Conocimiento en ambos sentidos. Asimismo, buscamos estimular investigaciones que empleen los recursos del filósofo en esta dirección.
Palabras clave: organización del conocimiento; Foucault; discurso; saber; epistemología.
1 INTRODUÇÃO
O que é “organizar o conhecimento”? Aprofundar-se nessa expressão pode nos levar a cogitar sobre o que se organiza – o que se põe em ordem, a que se dá forma –, quando se usa esse termo, assim como sobre a problemática do ato de conhecer, suas condições e efeitos. A Ciência da Informação compreende principalmente por “organização do conhecimento” um trabalho sobre documentos e conceitos, com vistas a torná-los acessíveis aos interessados e evidenciar as redes formadas entre eles. Para além disso, a área admite que o conhecimento possui estruturas organizacionais de maior escopo, que determinam esquemas de ensino e de publicação, canais de distribuição e fluxos de produção; ainda mais, também há organização do conhecimento em um âmbito, digamos, metafísico, que figura definições a priori do que pode ser conhecido, de um dentro e de um fora do saber. Uma perspectiva consequente sobre essa corrente de prática e pesquisa deve levar em conta seu caráter polissêmico.
Propomos nesse artigo caminhos, a partir da obra de Michel Foucault, para pensar essa problemática. Por um lado, essa abordagem ressalta uma característica que atravessa a obra de Foucault – nela, há sempre o estudo de “momentos”, históricos, regionais, do saber, com suas exclusões e regras de admissão, ou seja, trata-se, podemos dizer, de organização, não só do conhecimento – e permite não apenas aproximar o filósofo da Ciência da Informação ou emprestar ferramentas suas, mas enxergá-lo pelo ponto de vista dos problemas colocados por essa outra tradição; por outro, fornece subsídios para abordar criticamente a organização do conhecimento em seus vários significados e modos de intervenção. Partimos da divisão, conhecida, entre sentidos amplo e restrito da Organização do Conhecimento e endereçamos nossa discussão por meio de revisão bibliográfica e de uma leitura detalhada de A Ordem do Discurso, de Foucault. Ao fim, sugerimos outras possibilidades de investigação.
2 OS SENTIDOS AMPLO E RESTRITO DA ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO
É Hjørland quem propõe um duplo entendimento do termo Organização do Conhecimento – cisão descrita pelas expressões “sentido amplo” (broader) e “sentido restrito” (narrow), que nos parecem mais difundidas e que utilizaremos, mas também de outros modos, como será visto. O sentido restrito, afim à Ciência da Informação, se refere a “atividades como descrição de documentos, indexação e classificação realizadas em bibliotecas, bases de dados bibliográficos, arquivos e outros tipos de ‘instituições de memória’ [...]. Como um campo de estudo, a Organização do Conhecimento lida com a natureza a qualidade desses processos de organização do conhecimento, assim como dos sistemas de organização do conhecimento usados para organizar documentos, representações de documentos, obras e conceitos” (Hjørland, 2008, p. 86)[3]. São práticas que visam ao acesso à informação.
Em contraste, o sentido amplo se vincula a múltiplas áreas, sendo subdividido novamente em dois: organização social do conhecimento, concernente às estruturas da universidade e da mídia, às divisões disciplinares e profissionais, aos canais de disseminação do saber; e organização intelectual do conhecimento, referente a modos de classificar os elementos da realidade. O primeiro tipo é ligado pelo autor à sociologia do conhecimento e à história social do conhecimento; o segundo, às ciências em geral (por exemplo, a biologia, já que produz classificações dos seres vivos), à filosofia (esquemas metafísicos ou ontológicos) e os sciencestudies (Hjørland, 2016, 2008). Em resumo, “o sentido amplo é, dessa forma, tanto sobre como o conhecimento é socialmente organizado quanto sobre como a realidade é organizada” (Hjørland, 2008, p. 86-87).
Referindo-se a essa categorização de outra forma – ele fala de aspectos social e intelectual da Organização do Conhecimento – Hjørland (2013, p. 177) acrescenta em sua definição alguns fatores que nos interessam: a organização intelectual do conhecimento, que é dita “o conhecimento organizado em conceitos, proposições, modelos, teorias e leis”, para ele se apoia na problemática do que seja a verdade; já a organização social do conhecimento “é primordialmente relacionada a questões sobre relevância social, autoridade e poder”. Além disso, o autor enfatiza a interrelação entre esses campos; são eles “[...] dois tipos de Organização do Conhecimento movidos por critérios que podem reforçar ou opor um ao outro em complexas interações mútuas”; podem, assim, concordar ou discordar.
A divisão entre sentidos amplo e restrito parece ser afastada em Hjørland (2011), embora se efetive como que com outra roupagem. Nesse artigo, um debate no âmbito da filosofia da classificação – o que poderia explicar as diferenças na sua abordagem – o autor propõe classificação bibliográfica para designar a “classificação pela ótica da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, isto é, pesquisas de métodos para ordenar livros em estantes, para a construção de catálogos de assunto, para a recuperação de informação em bases bibliográficas, para a construção de sistemas de organização do conhecimento” (aduz ele pouco após que ela inclui também classificação automatizada, ontologias, bibliometrias, folksonomias e outras práticas). Os componentes são análogos aos do sentido estrito, mas, pelo fato de Hjørland recusar, nesse contexto, a expressão “classificação de organização do conhecimento”, pois, diz, “especialistas em Biblioteconomia e Ciência da Informação não são os únicos a lidar com organização do conhecimento”, tudo se passa como se só o sentido amplo possa de fato ser chamado de organização do conhecimento:
A organização do conhecimento é primordialmente estudada por cientistas [...] ou por filósofos, ou por sociólogos. Quando profissionais da Biblioteconomia ou da Ciência da Informação classificam um livro em particular, os conceitos usados são derivados da literatura, não conceitos e relações primariamente construídas por profissionais da Biblioteconomia e da Ciência da Informação (Hjørland, 2011, p. 11).
Por não criar os conceitos originalmente, o que seria chamado de sentido restrito não o é; e a Ciência da Informação para atuar com organização do conhecimento apenas de forma secundária. Não cabe discutir aqui com maior extensão essa polêmica interna aos artigos de Hjørland; fique essa parte como indicação de que pode haver um debate a ser feito.
Seja como for, a “divisão de trabalho” entre ciências no que se refere aos sentidos restrito e amplo da Organização do Conhecimento é reafirmada em Hjørland (2008, p. 87). Quem atua com o sentido restrito, principalmente, é a Ciência da Informação; no sentido amplo, são “a sociologia do conhecimento, as ciências individuais e a metafísica”. Não obstante, há relações entre esses polos; Hjørland (2013, p. 177) as define como “[...] dois tipos de Organização de Conhecimento, guiados por critérios, que podem apoiar ou se opor um ao outro em interações mútuas complexas”. Um mesmo item de classificação, por exemplo, pode permear o intelectual e o social – ele menciona o exemplo de “mamíferos”, que faz parte de taxonomias e constitui associações de estudo dedicadas a esses animais. De modo mais próximo aos interesses deste artigo, contudo, está a relação entre restrito e amplo na qual o segundo serve de suporte crítico ao primeiro:
A relevância de levar em conta o campo mais amplo da Organização do Conhecimento está relacionada com a questão de como a Organização do Conhecimento em sentido restrito pode ser desenvolvida. Uma das afirmações centrais deste artigo é que a Organização do Conhecimento não pode desenvolver um corpo fértil de conhecimento sem considerar essa Organização do Conhecimento de perspectiva ampla. Em outras palavras: não existe um ‘universo do conhecimento’ fechado que possa ser estudado pela Organização do Conhecimento de maneira isolada ao estudo da realidade feito pelas outras ciências. (Hjørland, 2008, p. 87)
Portanto, para Hjørland, a prática da Ciência da Informação no geral e da Organização do Conhecimento em particular – ambas, formas do sentido restrito – implica a compreensão do sentido amplo. É preciso ter em mente como a realidade é organizada para que se possa pensar a organização dos materiais que informam e acessibilizam essa realidade.
2 FOUCAULT E O DOMÍNIO DO DISCURSO
A Ordem do Discurso é a aula inaugural de Foucault ao assumir uma cadeira no Collège de France. Com ela, Foucault não só declara suas filiações – em especial, destacando os nomes de Georges Canguilhem e Jean Hyppolite (este último, o intelectual a quem sucede na instituição) e aludindo ao exemplo da Nova História – como apresenta uma leitura dos seus trabalhos até então e anuncia suas próximas investigações. Nesse sentido, Foucault posiciona sua pesquisa entre problemas históricos da filosofia e define suas premissas de estudo, desde métodos até ferramentas conceituais. Aqui nos interessa em particular como ele descreve o conceito de discurso e as dinâmicas em que está implicado.
Vamos nos ater neste artigo ao que está exposto em A Ordem do Discurso, mas, para que se tenha uma perspectiva desse conceito na obra de Foucault como um todo, nós remetemos o leitor a Castro (2004, p. 117-123); neste verbete, se descreve discurso como um conjunto de enunciados ligado a certa formação discursiva; ambos os termos trazidos em itálico são técnicos em Foucault: o primeiro refere-se não a simples afirmações (para as quais o que importa é seu valor de verdade ou de falsidade), mas elementos que marcam um modo de dizer, de apresentar a realidade (caso em que importam mais seus efeitos); o segundo denota redes de enunciados e, sobretudo, o que regula a sua geração (a principal obra a definir essas noções é Foucault (2012); Castro (2004) trata de um e de outro, respectivamente). As formações discursivas não se limitam, por exemplo, às ciências ou a obra de um autor; transbordam essas unidades e dão suas condições de possibilidade. Dessa forma, um discurso retrata o real, possui uma estabilidade dependente das condições em que se efetua e acarreta efeitos.
Propriamente em A Ordem do Discurso, há pelo menos três momentos em que o filósofo provê definições desse conceito. A mais extensa está em Foucault (1996, p. 57-58):
Se os discursos devem ser tratados, antes, como conjuntos de acontecimentos discursivos, que estatuto convém dar a esta noção de acontecimento que foi tão raramente levada em consideração pelos filósofos? Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material.
De fato, essa é uma definição de acontecimento, pela qual se delineia o que são discursos. Castro (2004, p. 24-28) mapeia quatro sentidos desse termo em Foucault: acontecimento como novidade ou diferença (ou acontecimento arqueológico), que enfatiza rupturas com formas de saber; acontecimento como prática histórica (ou acontecimento discursivo), em que se enfoca o estabelecimento de regularidades; acontecimento como relação de forças, que pensa as disputas de poder que atravessam os campos discursivo e o não-discursivo; e acontecimentalização, recurso metodológico que intenta revelar a descontinuidade onde outras análises históricas imporiam coesão. Os significados do conceito, vê-se, captam as faces de transformações que as maneiras de pensar e de agir sofrem no tempo. No que se refere a acontecimentos discursivos, Castro (2004, p. 25) contextualiza e explica:
A arqueologia opõe a análise discursiva em termos de acontecimento às análises que descrevem o discursivo desde o ponto de vista da língua ou do sentido, da estrutura ou do sujeito. A descrição em termos de acontecimento, em lugar das condições gramaticais ou das condições de significação, leva em consideração as condições de existência que determinam a materialidade própria do enunciado [...].
O discurso acontece – demarca sua diferença em relação a outros discursos; constrói uma área de atuação; se inscreve em lutas, constituindo táticas e estratégias. Esse último nível de funcionamento, aliás, é indicado por outra das definições de discurso de A Ordem do Discurso, Foucault (1996, p. 10), em que se ele diz: “o discursonão é simplesmenteaquiloque traduz as lutas ou os sistemas de dominação,mas aquilo por que, pelo que se luta,o poder do qual nos queremos apoderar”. Resta, assim, apenas uma definição a tratar.
Em Foucault (1996, p. 53), lemos que “deve-se conceber o discursocomo uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomosemtodo o caso; e é nesta prática que os acontecimentosdo discurso encontram o princípiode sua regularidade”. A descrição, diferente das anteriores, trata da relação do discurso com a realidade – e, para o filósofo, esse é um relacionamento com tons de agressão: as palavras são impostas às coisas – digamos, para lembrar o nome de um dos livros de Foucault – cobrem-nas, sem serem capazes de reduzi-las. Disso podemos resguardar que há sempre algo para além do discurso, algo de irredutível que poderá ser captado de outro modo por outro discurso.
Por tudo isso, fica claro que não podemos assimilar discurso a conhecimento. A palavra “conhecimento” significa comumente um acúmulo e um manancial, alinhado com nossas preocupações pragmáticas ou intelectuais; sobretudo, remete ao campo do verdadeiro. Já “discurso” transita pela história da verdade, abrangendo até o que deixou de se considerar conhecimento, e implica dinâmicas próprias, das quais trataremos a seguir.
3 A ORDEM DO DISCURSO COMO OC: PROCEDIMENTOS EXTERNOS
Na Ordem do Discurso, são as forças às quais o discurso é submetido que interessam. Foucault (1996, p. 8-9) diz: "[...] suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizadae redistribuída por certo número de procedimentosque têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade". Ressaltemos que o elenco de práticas assinaladas por Foucault inclui, ao lado do controle, da seleção e da distribuição, a organização. Se assumimos que a Organização do Conhecimento organiza discursos, ou seja, opera sobre a massa do que pode ser dito, então devemos pensar sobre como essa área se inscreve na contenção e escoamento da produção discursiva, e o quanto toma seu ímpeto dessa vontade de conjurar a aleatoriedade e a materialidade.
Por ora, avancemos mais um pouco no texto. Foucault cita dois grupos de procedimentos que agem sobre o discurso: o primeiro conjunto gira em torno da exclusão – operando por meio de práticas de interdição, de separação e rejeição e de oposição entre verdadeiro e falso – e pode ser compreendido como de efetuação externa ao discurso, ou seja, interfere de fora sobre ele. O segundo conjunto terá seus procedimentos definidos como internos, “visto que são os discursos eles mesmos queexercem seu próprio controle”, e é marcado por “procedimentosque funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, como se se tratasse, desta vez,de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso” (Foucault, 1996, p. 21).
Podemos assimilar os procedimentos externos e internos de intervenção no discurso aos sentidos amplo e estrito da Organização do Conhecimento. Vejamos como.
A interdição, Foucault (1996, p. 9) define, caracteriza-se pelo que se permite falar: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar”. Esses procedimentos, adicionamos, recortam tanto o quadro do dizer quanto o do conhecer: os objetos recolhidos para trás do tapume do tabu serão afastados da ciência; os rigores de situação impõem conformações a tempo, postura, lugar – ou seja, delimitam que o que seja dito se adapte, para que possa ser dito, já a uma organização –, de maneira que o que não se modula a contento pode não chegar a ser conhecível; a definição dos critérios que selecionam os que falam decide quem pode contribuir para o conhecimento, seja como fonte, seja como pesquisador.
Já a separação/rejeição, em vez de atuar de um modo que talvez possamos chamar mais “singularizado” – selecionando objetos, prescrevendo situações, determinando indivíduos – age com atos de classificação de grande escala. Para ilustrar tal procedimento, Foucault (1996, p. 10-13) lembra a divisão entre razão e loucura, da Idade Média ao século XVIII. No período, “o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros”: ou sua palavra é posta fora do âmbito da verdade, mesmo do significado, ou é vista como signo de uma verdade que a transcende, espécie de revelação. Há uma fronteira entre loucura e razão, portanto, que à primeira reduz ao silêncio e à segunda atribui a fala. Na medida em que a medicina passa a enxergar, nesse discurso, sintomas, essa estrutura se transforma – Foucault considera, não obstante, que a separação só se exerce de maneira diferente. Seja como for, podemos notar como a essas as distribuições de loucura correspondem formas do saber: nelas se decide o que e quem é capaz de produzir conhecimento e como.
Por fim, a oposição entre verdadeiro e falso. Foucault (1996, p. 14) distingue:
Certamente, se nos situamos no nível de uma proposição, no interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se nos situamos em outra escala, se levantamos a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos de nossa história, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se.
Não se trata, portanto, de aferir se são o caso ou não expressões como “O Brasil é um país da América do Sul”, ou de avaliar os valores de verdade de proposições lógicas como “Se P, então Q”, ou de recusar a capacidade descritiva de áreas como a economia, a linguística e a biologia. O que importa aqui é como se formam, e com que efeitos, estruturas que dão os critérios do que pode se constituir como “verdade” em uma época ou a uma disciplina. Essa análise, resume Foucault (1996, p. 17), comporta três tipos de história: “[...] história dos planos de objetos a conhecer, história das funções e posições do sujeito cognoscente, história dos investimentos materiais, técnicos, instrumentais do conhecimento”, portanto, histórias do que é dado ao conhecimento, do que é objetivado; de quem conhece, de como são subjetivados aqueles que conhecem; dos âmbitos técnicos e institucionais do saber.
Tornando mais concreto o seu ponto de vista, Foucault (1996, p. 14-16) faz um percurso panorâmico pela história da filosofia, no qual assinala viradas da vontade de verdade. Na Grécia antiga, dois momentos são contrastados: o primeiro, no século VI, em que o ritual de enunciação e o status de quem fala constituíam a verdade, aí entendida como elemento capaz de intervenção, mesmo mística, na realidade; o segundo, cem anos mais tarde, passa a verdade a ser uma relação entre o que se diz e um referente, e é estudada por suas facetas formais. Hesíodo, de um lado, e Platão, de outro; a verdade como algo que age contra a verdade como algo que diz. Veja como se movimentam, de um instante a outro, aqueles três âmbitos: mudam os objetos que se pode conhecer (o futuro era conhecível no século VI; ao V, resta o saber da linguagem); mudam as figuras do sujeito que conhece (profetas e poetas versus filósofos), mudam as estruturas que suportam o conhecimento (podemos pensar em uma oposição entre o templo e o oráculo e o espaço aberto da ágora).
Quanto à Idade Moderna e seus desdobramentos até o século XIX, Foucault (1996, p. 16-17) faz um sobrevoo que pode nos interessar mais de perto:
Há, sem dúvida, uma vontade de verdade no século XIX que não coincide nem pelas formas que põe em jogo, nem pelos domínios de objeto aos quais se dirige, nem pelas técnicas sobre as quais se apoia, com a vontade de saber que caracteriza a cultura clássica. Voltemos um pouco atrás: por volta do século XVI e do século XVII (na Inglaterra sobretudo), apareceu uma vontade de saber que, antecipando-se a seus conteúdos atuais, desenhava planos de objetos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de saber que impunha ao sujeito cognoscente (e de certa forma antes de qualquer experiência) certa posição, certo olhar e certa função (ver, em vez de ler, verificar, em vez de comentar); uma vontade de saber que prescrevia (e de um modo mais geral do que qualquer instrumento determinado) o nível técnico do qual deveriam investir-se os conhecimentos para serem verificáveis e úteis.
Destacamos esse trecho não só porque ele retrata a emergência do modelo epistemológico que planta as raízes da ciência como a conhecemos hoje – e de cujos ramos a Organização do Conhecimento muita vez decalca sua grade de trabalho – mas porque Foucault aponta nessa fase de mutação a valorização do objeto classificável. Com efeito, é no século XVI que atua Conrad Gesner (1516-1565), que além de trabalhos de classificação em zoologia e botânica, trabalha sobre a “multidão de livros” (multitudolibrorum, como ele escreveu) e dá luz à bibliografia. Frente a essas informações, é possível propor, como hipótese, que a Organização do Conhecimento, tanto em sentido amplo quanto em sentido estrito, acha as suas condições de possibilidade nessa específica forma da vontade de saber.
Essa via de interpretação, não estando ela no escopo deste artigo, reservemo-la para outra oportunidade e retomemos os procedimentos de exclusão tendo em vista nosso tema. Nãosão eles – a interdição, a separação/rejeição, a cesura verdade/falsidade – organização do conhecimento; de fato, o conhecimento é algo que se desdobra dentro das linhas traçadas por esses determinantes. Assim, se os procedimentos de exclusão como que organizam o espaço do conhecível, a organização do conhecimento é algo que vem depois, em terceira posição. Por outro lado, essa perspectiva indica que a organização do conhecimento está sempre em relação com o seu outro, com aquilo que, deixado de fora da sua prática, marca não obstante as suas bordas. Essa ideia pode nos levar a posturas críticas frente à área.
Por fim, importa comentar as extensões institucionais e societais dos procedimentos de exclusão: “[...] essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído” (Foucault, 1996, p. 17). Ambos os sentidos de Organização do Conhecimento estão colocados aí: primeiro, no papel do “sistema dos livros, da edição, das bibliotecas” – trata-se do sentido estrito – como efetivadores da exclusão; segundo, e agora referimos o sentido amplo, na repartição, distribuição e atribuição dos saberes.
4 A ORDEM DO DISCURSO COMO OC: PROCEDIMENTOS INTERNOS
Como referido, os procedimentos que atuam desde o interior do discurso, para o filósofo, consistem principalmente em classificação, ordenação e distribuição. Com especificidade maior, Foucault cita nesse âmbito diversas práticas: o comentário, o autor, as disciplinas, o ritual, as sociedades de discurso, as doutrinas, a apropriação social do discurso; dessas, as três primeiras nos interessam mais no contexto deste trabalho. Assim, apresentaremos brevemente as quatro últimas e então trataremos com detalhe das anteriores, enfatizando como podem se imbricar na Organização do Conhecimento.
Ritual e doutrina, sociedade e apropriação do discurso são caracterizados – em oposição aos que enfocamos antes e ao que abordaremos a seguir – por se orientarem à “rarefação dos sujeitos que falam”, isto é, na determinação de espaços de circulação e de requisitos prévios à expressão. Nesses procedimentos, “[...] não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar os acasos de sua aparição; trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo modo tenha acesso a eles” (Foucault, 1996, p. 36-37). Assim, o ritual consiste em predefinir papéis, posturas, qualificações sem as quais o indivíduo não pode participar de uma rede de comunicação. Nas sociedades do discurso, o que se faz é fechar o espaço comunicativo, reservá-lo aos membros. As doutrinas, a um tempo adequam um número ampliável de indivíduos a um discurso único e segregam uns grupos de outros. Por fim, a apropriação social do discurso nomeia os sistemas pelos quais os sujeitos são capacitados a acessar mundos de discurso – é o caso da educação[4].
“Sistemas de restrição”, como diz o autor, voltados a aspectos comunicacionais, os quatro não nos parecem ser pertinentes à Organização do Conhecimento – embora, claro, possam se relacionar com ela. Já comentários, autor e disciplinas se referem diretamente.
Foucault (1996, p. 21-26) refere com o termo “comentário”, um movimento que implica, de saída, o estabelecimento social dos discursos que, em oposição àqueles que se emitem e se dispersam no dia-a-dia, são levados a perdurar e se tornam, por sua vez, apoio para a produção de mais discursos. “Comentário”, assim, denota a relação entre o texto primeiro e todos os textos segundos, relação essa que consiste em dizer o que já havia sido dito, ou melhor, revelar que havia sido dito, que estava contido, mesmo se inapreendido[5]. Sempre retomado, sempre inesgotável, o trabalho do comentário retorna ao texto, faz com que ele reemerja, a cada vez dizendo algo novo que se mantém nos limites da repetição. Por esse “paradoxo”, como o autor chama, o discurso é posto sob controle: uma novidade múltipla e aberta é anulada. O filósofo identifica como modos dessa prática a explicação religiosa, a análise jurídica, a crítica literária e mesmo a reinvenção da Odisseia por Joyce.
Dada essa elasticidade do conceito de comentário, talvez possamos considerar as práticas de representação da informação como abrangidas por ele. Nelas, em primeiro lugar, temos também uma relação entre textos de origem e textos secundários; a forma dessa conexão é abordada, por exemplo, em Novellino (1996, p. 38, grifo nosso):
A principal característica do processo de representação da informação é a substituição de uma entidade linguística longa e complexa – o texto do documento – por sua descrição abreviada. O uso de tal sumarização não é apenas uma consequência de restrições práticas quanto ao volume de material a ser armazenado e recuperado. Essa sumarização é desejável pois sua função é demonstrar a essência do documento.
Em “demonstrar a essência do documento” podemos entrever a proposta de “dizer o que já havia sido dito”, e tanto a criação de resumos e a determinação de assuntos quanto toda inclusão de metadados parece poder ser incluída nisso. Já a extração de conceitos do texto e a integração desse texto, por via do ordenamento conceitual, em uma rede de textos, nos lembra mais a ideia de “revelar o inapreendido”, na medida em que o estabelecimento de relações potencializa leituras e evidencia a rede em que se inclui um texto, os diálogos, deliberados ou não, de uma produção textual com outras. Ressaltemos também o fato de que para um texto chegar a ser representado, ele precisa ser validado por aquela percepção fundamental do comentário – a que o marca como um enunciado que deve perdurar.
Seguindo adiante, Foucault (1996, p. 26) trata do “autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso [...]”. Sem ignorar, ele o ressalta, que haja indivíduos reais que tenham produzido as obras, o que importa a ele é a função de coesão exercida pelo recurso a um “eu”. Para notar o caráter organizacional que está implicado nessa ótica, vejamos a expressão de Foucault (1996, p. 28, grifo nosso) ao figurar um oponente imaginário:
Bem sei que me vão dizer: ‘Mas você fala aqui do autor tal como a crítica o reinventa após o fato consumado, quando sobreveio a morte e não resta senão uma massa confusa de escritos ininteligíveis; é preciso, então, repor um pouco de ordem em tudo isso; imaginar um projeto, uma coerência, uma temática que se pede à consciência ou à vida de um autor, na verdade talvez um pouco fictício [...].’
Oposta à “massa confusa”, o “pouco de ordem” – o autor, enquanto função, sem dúvida, é um ato de Organização do Conhecimento: o que seria uma dispersão de escritos, todos com sua especificidade – por exemplo, obras éditas e não-éditas, correspondências, falas registradas por outros, rascunhos, documentos não-literários – é agregada pelo recurso a um nome de autor, ao qual se atribuirão certo conjunto de características (tornando-o, de fato, um conceito) que permitirá classificar e interpretar a fatura do indivíduo autor[6].
Não obstante, o autor não é um ponto de apoio da Organização do Conhecimento; embora o nome autoral possa servir para a recuperação de obras, a área se dedica mais a utensílios – como categorias e facetas – que abranjam fontes de autoria variada. Entre eles, estão os últimos “sistemas de restrição” tratados em A Ordem do Discurso que queremos frisar: as disciplinas[7]. Divisões disciplinares marcam o pensamento desde a Antiguidade; contudo, a sua influência decisiva na Organização do Conhecimento – antes que esse nome sequer existisse – parece ter começado na Idade Moderna, de acordo com o panorama de Gnoli (2020). Antes disso, tinham papel mais vago: as taxonomias “não consideravam a relação entre as diferentes ciências, nem sua ordem geral”, e os bibliotecários, embora separassem os livros por áreas, aplicavam categorizações “bem amplas, como Teologia, Filosofia ou Literatura; adicionalmente, suas subdivisões internas tendiam a depender dos tamanhos acidentais de prateleiras e salas, ou dos tamanhos dos livros” (Gnoli, 2020, p. 17). Com a invenção da prensa e a ampliação do número de obras, isso deixou de ser suficiente.
A classificação tripartite das ciências proposta por Francis Bacon no século XVI – entre aquelas da memória, da imaginação e as da razão – influenciou diversos autores, como os enciclopedistas Denis Diderot e Jean le Rond d’Alembert (que a seguem em seu “sistema figurado do conhecimento humano”), o ex-presidente americano Thomas Jefferson (que organizou seu acervo pessoal, depois integrado à Biblioteca do Congresso Americano, de acordo com essa tríade, da qual derivou 44 classes) e o bibliotecário Melvil Dewey, este último o criador da Classificação Decimal (conhecida como CDD, Classificação Decimal de Dewey), por sua vez também bem influente (impactou, entre outros, o trabalho de Paul Otlet e Henri La Fontaine, que com base nela inventaram a Classificação Decimal Universal, CDU). Esses sistemas de organização do conhecimento – e outros, como a Classificação Expansiva de Cutter – têm suas bases nas disciplinas[8].
Isso deve bastar para sugerir a importância, como fundamento, da divisão disciplinar para a Organização do Conhecimento. Voltemos, então, a Foucault. Para ele, as disciplinas são “um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos”, o que “constitui um sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode se servir dele” (Foucault, 1996, p. 30). Além de circunstanciar a geração de novos conhecimentos – ou “proposições”, como usa o filósofo –, as disciplinas estipulam as exigências para que algo possa ser validado como um saber, definindo que objetos são possíveis, que características devem ser levadas em conta etc.; o que não atender a esses critérios não será nem mesmo um erro: estará, uma “monstruosidade linguística”, fora do “verdadeiro”.
Nesse sentido, afirma Foucault (1996, p. 35): “É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem;mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cadaum de nossos discursos”. Com tudo isso, o pensamento de Foucault sobre as disciplinas pode nos provocar a análises mais críticas das grades disciplinares usadas em sistemas de organização do conhecimento, na medida em que ele as delineia não como simples compartimentos, mas como complexos com dinâmicas próprias, que controlam e selecionam, que determinam o dentro e o fora. Ao perceber as disciplinas como estruturas agentes, a Organização do Conhecimento pode assumir tarefas metaepistemológicas.
Se, por um lado, isso pode levar a área a um campo anterior a ela própria – o mesmo caso que apontamos quando discutíamos os procedimentos de exclusão –, por outro pode trazer mudanças de perspectiva e prática nos atos de classificação. Por exemplo: seria plausível a necessidade de acessibilizar saberes para além e através dos policiamentos disciplinares. Outra questão que pode surgir nesse sentido seria: tendo em vista isso, é a Organização do Conhecimento uma Organização do Verdadeiro? E, inversamente, não poderia também ela se preocupar com o que fica fora do verdadeiro? Com efeito: metaepistemologia.
5 A ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO ENTRE O CONTROLE E O FOMENTO DO DISCURSO
Com essa deixa, retomemos um fio que deixamos solto em uma seção anterior: qual papel cumpre a Organização do Conhecimento no controle do discurso? Não se tratará, aqui, de resolver essa questão, mas de delinear o problema, lendo, ainda, A Ordem do Discurso.
Reformulemos, para tanto, o que diz Foucault (1996, p. 36):
Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva.
Se ajustada à Organização do Conhecimento, essa provocação talvez possa ser formulada assim: estamos habituados a ver nos sistemas de organização do conhecimento – apoiados no autor, no comentário, na disciplina, conforme dissemos – forças de acessibilização do discurso; contudo, é preciso considerar, ao lado dessa faculdade multiplicadora, seu vetor de contenção. A pergunta que fica é: como a Organização do Conhecimento potencializa e coage o discurso?O que a Organização do Conhecimento exige dos discursos para que eles possam aparecer como elementos organizáveis e, então, serem acessibilizados? Essas são perguntas que se aplicam tanto ao sentido estreito quanto ao sentido amplo.
Podemos também identificar a ambas um direcionamento social, uma repulsa ao discurso concomitante ao seu elogio. É Foucault (1996, p. 50) quem diz que:
[...] sob esta aparente veneração do discurso, sob essa aparente logofilia, esconde-se uma espécie de temor. Tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso. De modo a que sua riqueza fosse aliviada de sua parte mais perigosa e que sua desordem fosse organizada segundo figuras que esquivassem o mais incontrolável: tudo se passa como se tivessem querido apagar até as marcas de sua irrupção nos jogos do pensamento e da língua.
É possível, assim, argumentar que há uma vontade de organização no interior da cultura. Admitindo isso, podemos compreender a Ciência da Informação como uma manifestação dessa vontade – o que de resto se alinha com a ideia de informação como neguentropia, ou seja, como o que se antepõe ou retroage estados entrópicos – desordenados, caóticos. Caberia pensar, por outro lado, no que seria uma Ciência da Informação que assumisse a “proliferação do discurso”, que não se propusesse ou fosse fundada em mecanismos que o põem sobre controle. O que poderia ser essa liberada Ciência da Informação?
6 CONCLUSÃO: IMPACTOS DO SENTIDO AMPLO SOBRE O SENTIDO ESTRITO
Ao longo desse texto, vimos como A Ordem do Discurso pode ser lida do ponto de vista da Organização do Conhecimento e como a Organização do Conhecimento pode ser relida por meio dessa obra. O livro de Foucault trata tanto dinâmicas que constituem o que pode ser considerado como conhecimento (e que poderá, então, ser submetido a procedimentos de organização) quando descreve instrumentos – como o comentário, o autor, a disciplina – que formam a ação da área. No que tange à divisão proposta por Hjørland, entre sentido estrito e sentido amplo, o filósofo alude a ambas ao tratar do que estrutura a disseminação e a produção do saber (indicando, aí, recursos específicos, como as bibliotecas). Embora o conceito de “discurso” transborde o de conhecimento, os vetores que agem nessa ordem do discurso prescrevem como entendemos e efetivamos o organizar informação.
Apresentamos no nosso percurso uma série de insights trazidos pela leitura de A Ordem do Discurso em confronto com a Organização do Conhecimento. Propusemos que a fonte da área pode estar numa forma específica da vontade de saber, qual seja, a que se estabelece entre o século XVI e XVII e que se caracteriza pelo domínio dos objetos por via da visão, da medida e da classificação. Também aventamos que a Organização do Conhecimento – e a Ciência da Informação – está em relação (tensão?) contínua com aquilo que está fora da sua eficácia, o que não foi construído como “conhecível”. Nesse sentido, perguntamos se a Organização do Conhecimento pode operar para além dos procedimentos de controle do discurso, ela que, como sugerimos, talvez possa ser compreendida ou construída como Organização do Verdadeiro. Enfim, ideamos o campo como metaepistemologia.
Essas são hipóteses de trabalho, que expomos no intuito de incentivar mais pesquisas nas direções abertas, cremos, em A Ordem do Discurso. Igualmente são vias abertas os demais livros de Foucault: podem ser estudados em vários deles como aparece a Organização do Conhecimento. As Palavras e as Coisas, por exemplo, descreve o nascimento da maneira de pensar (grosso modo, a episteme, em sentido foucaultiano) que permite a constituição de sistemas de organização intelectual e social de conhecimento. Na História da Loucura, poderíamos analisar como a uma organização do conhecimento se liga uma organização das pessoas e dos espaços institucionais. Essas pistas podem ser frutíferas.
REFERÊNCIAS
CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1999.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
GNOLI, C. Introduction to Knowledge Organization. Londres: Facet Publishing, 2020.
HJØRLAND, B. Knowledge Organization (KO). In: ISKO Encyclopedia of Knowledge Organization, 2016. Disponível em:https://www.isko.org/cyclo/knowledge_organization. Acesso em: 5 ago. 2008.
HJØRLAND, B. What is Knowledge Organization (KO)? Knowledge Organization, v. 35, n. 2/3, p. 86-101, 2008. Disponível em: https://www.nomos-elibrary.de/10.5771/0943-7444-2008-2-3-86/what-is-knowledge-organization-ko-volume-35-2008-issue-2-3?page=1. Acesso em: 3 nov. 2024.
HJØRLAND, B. Theories of Knowledge Organization – Theories of Knowledge. Knowledge Organization, v. 40, n. 3, p. 169-181. 2013. Disponível em: https://www.nomos-elibrary.de/10.5771/0943-7444-2013-3-169.pdf. Acesso em: 7 nov. 2024.
NOVELLINO, M. S. F. Instrumentos e metodologias de representação da informação. Informação & Informação, v. 1, n. 2, p. 37-45, jul./dez., 1996. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/1603/1358. Acesso em: 6 out. 2024.
RIBEIRO, D de O. A criatividade do excesso: historicidade, conceito e produtividade da sobrecarga de informação. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. 2017. São Paulo: USP, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27151/tde-12012018-101648/publico/DUANNEDEOLIVEIRARIBEIROVC.pdf. Acesso em: 7 out. 2024.
[1] Doutor em Ciência da Informação. Docente do Departamento de Informação e Cultura e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de São Paulo. Graduado em Biblioteconomia.
[2] Doutorando e mestre em Ciência da Informação no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo. Graduado em jornalismo e filosofia.
[3]Ao longo do artigo, traduções dos originais realizadas pelo autor.
[4] Alguns desses procedimentos parecem úteis para pensar a Ciência da Informação. A área parece se incluir como um dos sistemas da apropriação social do discurso (seja no caso da recuperação da informação, que exige mais ou menos treinamento e/ou mediação para abrir caminhos dos sujeitos aos mundos de discurso, seja pela alfabetização informacional, afim ao citado exemplo da educação, entre outras possibilidades) – a expressão “apropriação social da informação” é, aliás, o nome de um eixo de pesquisa na área (comparar com o termo foucaultiano renderia uma reflexão). Além disso, podemos pensar o papel do ritual no acesso à informação, pelo menos do ponto de vista dos usuários: por exemplo, Ribeiro (2017, p. 97-99) fala da ansiedade sentida por visitantes de espaços acadêmicos que não se sentem adequados a eles. Por fim, podemos talvez pensar a análise de domínio como uma análise de sociedades do discurso.
[5] Na medida em que este artigo mantém com Foucault uma relação desse tipo – A Ordem do Discurso é o nosso texto primeiro; diante dele atuamos como texto segundo – parece interessante refletir sobre como o que escrevemos repõe procedimentos que o filósofo atribui ao comentário. De fato, parecemos ou queremos dar a aparência de apenas reincidir no texto, exibir o que ele já diz; por outro lado, pelo reposicionamento do livro em um contexto no qual ele não atuava em sua elocução original, relemos o que ali é dito em outra linguagem, e alimentamos outra linguagem com a linguagem desse texto. Não se trata, nesse caso, menos de controlar o discurso como de fomentar sua proliferação, como quem aproxima dois elementos químicos e observa que reações inesperadas podem ter em conjunto? Há um caráter de emergência aqui.
[6]Seria interessante avaliar como a função autor age no contexto mais amplo da Ciência da Informação. Por exemplo, ao passo que um instrumento tal qual o princípio monográfico de Otlet a dilui – por não submeter a prática documentária à autoria como índice de coesão, mas operar com frações individualizáveis das obras – o autor cumpre uma função (como fator de busca, como elemento da vontade de informação do usuário) que não é a mesma da função autor (certa subjetivação e certa imposição de leitura) de que Foucault trata. Contrastar essas noções, pode revitalizar suas análises.
[7] Lembremos que as disciplinas foram categorizadas como parte da organização social do conhecimento.
[8]Considere-se também o que afirma Novellino (1996, p. 39, grifo nosso) sobre um dos primeiros recursos utilizados pela linguagem documentária: “As listas de cabeçalhos de assunto foram construídas parainstrumentalizar a indexação de assuntos de documentos, que seriam registradas em fichas catalográficas para compor o catálogo alfabético de assuntos. Elas foram projetadas para bibliotecas de acervos gerais e compreendiam o conhecimento como um universo fragmentável em disciplinas”.