Psicopolítica da Informação

reflexões sobre o Panóptico Digital na filosofia de Byung-chul Han

Thalía da Silva Pires[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

thaliapires98@gmail.com

Fabiano Couto Corrêa da Silva[2]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

fabianocc@gmail.com

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Resumo

Este artigo explora as complexas teorias do filósofo Byung-Chul Han, com foco especial no conceito de "Panóptico Digital". Ao explorar a interseção entre tecnologia digital, vigilância algorítmica e transformações nas práticas informacionais na sociedade contemporânea, este estudo propõe desvendar como a era digital influencia e modifica parte da nossa percepção da informação e da liberdade individual. A pesquisa adota uma metodologia qualitativa, com análise documental das obras "Psicopolítica" e "No Enxame" de Han. Através da análise crítica do discurso, busca-se interpretar e compreender os argumentos de Han, destacando suas ideias e conceitos fundamentais que relacionam a era digital com as práticas sociais e políticas atuais. Os resultados revelam a complexa relação entre tecnologia, vigilância e subjetividade na sociedade moderna, emergindo o conceito de panóptico digital como uma ferramenta crítica para entender a influência da tecnologia na conformação das práticas informacionais e na percepção da liberdade.

Palavras-chave: panóptico digital; psicopolítica; vigilância algorítmica; práticas informacionais. Byung-Chul Han.

INFORMATION PSYCHOPOLITICS

reflections on the Digital Panopticon in the Philosophy of Byung-Chul Han

Abstract

This article explores the complex theories of philosopher Byung-Chul Han, with a particular focus on the concept of the "Digital Panopticon." By examining the intersection of digital technology, algorithmic surveillance, and transformations in informational practices within contemporary society, this study seeks to uncover how the digital age influences and reshapes our perception of information and individual freedom. The research adopts a qualitative methodology, based on document analysis of Han's works Psychopolitics and In the Swarm. Through critical discourse analysis, the study aims to interpret and understand Han’s arguments, highlighting his key ideas and concepts that connect the digital era to current social and political practices. The results reveal the complex relationship between technology, surveillance, and subjectivity in modern society, presenting the concept of the digital panopticon as a critical tool for understanding the influence of technology on informational practices and the perception of freedom.

Keywords: digital panopticon; psychopolitics; algorithmic surveillance; informational practices; Byung-Chul Han.

PSICOPOLÍTICA DE LA INFORMACIÓN
reflexiones sobre el Panóptico Digital en la filosofía de Byung-Chul Han

 

Resumen

Este artículo explora las complejas teorías del filósofo Byung-Chul Han, con especial atención al concepto de “Panóptico Digital”. Al examinar la intersección entre la tecnología digital, la vigilancia algorítmica y las transformaciones en las prácticas informacionales de la sociedad contemporánea, este estudio busca desentrañar cómo la era digital influye y modifica parte de nuestra percepción sobre la información y la libertad individual. La investigación adopta una metodología cualitativa, basada en el análisis documental de las obras Psicopolítica y En el Enjambre, de Han. A través del análisis crítico del discurso, se pretende interpretar y comprender los argumentos del autor, destacando sus ideas y conceptos fundamentales que vinculan la era digital con las prácticas sociales y políticas actuales. Los resultados revelan la compleja relación entre tecnología, vigilancia y subjetividad en la sociedad moderna, emergiendo el concepto de panóptico digital como una herramienta crítica para comprender la influencia de la tecnología en la conformación de las prácticas informativas y en la percepción de la libertad.

Palabras clave: panóptico digital; psicopolítica; vigilancia algorítmica; prácticas informacionales; Byung-Chul Han.

 

 

1  INTRODUÇÃO

A relevância de Han na filosofia contemporânea se dá pela sua crítica incisiva às dinâmicas de poder e controle na sociedade moderna, especialmente no contexto do capitalismo tardio e das tecnologias digitais. Han analisa como essas dinâmicas moldam a subjetividade e a liberdade individuais refletidas nos espaços digitais, fornecendo argumentos que embasam sua visão acerca da forma como a cultura digital e o neoliberalismo impactam a vida cotidiana extrínseca às plataformas digitais.

Byung-Chul Han é amplamente conhecido por suas obras "Psicopolítica: Neoliberalismo e Novas Técnicas de Poder" e "No Enxame: Perspectivas do Digital", nas quais ele explora a intersecção entre poder, controle e tecnologia na era digital. No primeiro título, Han introduz o conceito de psicopolítica. O “poder inteligente”, ou a psicopolítica, é uma técnica neoliberal que incide em nossa psiquê para explorá-la por meio de dispositivos como: a emoção, o consumo, o desejo, as necessidades etc. O poder, segundo Han, não concentra-se mais na repressão física ou legal, mas através da manipulação psicológica e emocional dos indivíduos. Ele argumenta que, na era digital, a vigilância é interiorizada pelos sujeitos, que voluntariamente se expõem e se subordinam aos mecanismos de controle através das redes sociais e outras plataformas digitais.

Essa autoexposição é facilitada pela promessa de reconhecimento e pertencimento, mas acaba servindo aos interesses de poderosos agentes econômicos e políticos. "No Enxame" discute com maior profundidade a transformação da esfera pública na era digital, assunto que anteriormente fora levantado no livro “Psicopolítica”. Han critica a cultura do like e a superficialidade das interações online, que substituem o pensamento crítico. O filósofo destaca preocupações sobre a perda da experiência humana autêntica devido à prevalência da comunicação digital, apontando para a “atrofia das mãos” como uma metáfora da incapacidade de agir genuinamente na era digital. Ele descreve como a vigilância algorítmica se torna uma ferramenta poderosa de controle social, onde os dados pessoais são constantemente coletados, analisados e utilizados para prever e influenciar comportamentos.

Emergindo nos anos 2000, redes sociais, cada vez mais complexas, embrenham-se no tecido social desde então, evoluindo seus aparatos e interfaces de acordo com a demanda tecnológica e de seus usuários e, mais recentemente, visando a normalização do ato de associar-se aos espaços públicos de comunicação ao ponto de não ser possível (ou não facilitada) uma não-associação a estas plataformas. Inseridos nesses espaços, usuários apropriam-se das ferramentas dispostas para impulsionar suas exposições imagéticas e compartilhar suas informações pessoais e opiniões. As redes sociais são convidativas para que deixemos voluntariamente estes rastros digitais, nos fazendo crer que somos livres dentro destes espaços pois expressamos esse compartilhamento e autoexposição de maneira voluntária e quase orgânica. Com base em relatórios recentes, discute-se como as plataformas digitais influenciam a geração, distribuição e consumo de informações, utilizando o conceito de panóptico digital para entender a vigilância na era da informação. Tais plataformas hoje apoiam-se nos dispositivos decorrentes do “panoptismo”, ou a ferramenta de vigilância onisciente e invisível que ocorre na sociedade digital para monitorar e controlar comportamentos, coletando dados e informações dos usuários.

A relevância contemporânea do estudo sobre o Panóptico Digital é ilustrada pela crescente penetração das mídias sociais e do uso da internet globalmente e no Brasil. Atualmente, existem 5,07 bilhões de usuários de redes sociais em todo o mundo, evidenciando a extensão da interconexão digital. No Brasil, em janeiro de 2023, o país registrou um contingente de 153,9 milhões de usuários de mídias sociais, destacando a presença online da população brasileira (DataReportal, 2024). Esses números refletem a influência e a onipresença das mídias sociais e da internet na sociedade contemporânea, moldando interações, comportamentos e questões de identidade. A expansão do acesso móvel à internet tem sido associada a um desempenho empresarial mais inovador e a um crescimento mais rápido do emprego (Abreha et al., 2021). Além disso, a adoção de tecnologias de informação e comunicação e de aplicações de comércio eletrônico tem impulsionado o comércio bilateral em níveis diversos, demonstrando um potencial maior de comércio para países em desenvolvimento e menos desenvolvidos (Xing, 2024).

A análise das mídias sociais e do uso da internet, tanto globalmente quanto no Brasil, destaca a importância de compreender o Panóptico Digital. Esse conceito filosófico de vigilância e controle, o Panóptico, foi criado por Jeremy Bentham (1785) e popularizado por Michel Foucault (2013), ganha notoriedade numa realidade cada vez mais conectada digitalmente, onde questões de privacidade, segurança e influência se tornam centrais para a discussão e a pesquisa acadêmica. Na filosofia de Byung-Chul Han, encontramos argumentos que fundamentam a compreensão dos impactos sociopolíticos e o desenvolvimento conceitual do "panóptico digital", objeto de estudo deste artigo. Segundo Han, essa ferramenta contribui para a (de)formação de opiniões e a tomada de decisões, aprimorando-se através da autoexposição dos usuários em espaços públicos de comunicação, fornecendo informações suficientes para artifícios como a personalização de conteúdo e a publicidade direcionada. No entanto, a visão de Han vai além do impacto dentro das plataformas digitais, mostrando como a vigilância digital amplia esse modelo até o limiar da consciência, ou seja, extrínseco às redes sociais. A exemplo, temos as características “doenças da modernidade”, como depressão e ansiedade, oriundas da autoexposição destes sujeitos.

A exposição das ideias presentes neste artigo será qualitativa, centrada na análise das obras "Psicopolítica" e "No Enxame" de Byung-Chul Han, contextualizando suas ideias dentro do cenário contemporâneo e problematizando academicamente suas implicações sociais e políticas. A escolha dessas obras se deve à sua relevância no campo da filosofia contemporânea e sua contribuição para a compreensão das dinâmicas de poder e controle na era digital. Será realizada uma revisão de literatura focada em questões como vigilância digital, redes sociais e a influência da tecnologia na sociedade, fornecendo o pano de fundo para compreender como as teorias de Han se aplicam aos fenômenos atuais.

A análise crítica concentrar-se-á nos conceitos principais abordados por Han, como panóptico digital, psicopolítica, autoexposição e vigilância algorítmica. Cada conceito será explorado em profundidade, identificando-se suas definições, contextos de uso e implicações. Esse processo incluirá a identificação de passagens-chave nas obras de Han e a categorização de temas recorrentes. Os conceitos identificados serão contextualizados dentro da tradição filosófica e histórica, analisando-se a evolução do conceito de panóptico desde Jeremy Bentham e Michel Foucault até Byung-Chul Han, destacando as influências filosóficas e teóricas que moldam o pensamento de Han.

Então, serão discutidas suas implicações sociais e políticas no cenário contemporâneo, enriquecidas com exemplos práticos e estudos de caso que ilustrem como os conceitos de Han se manifestam na realidade atual. Serão abordados a influência das redes sociais na formação da subjetividade e na autoexposição voluntária dos indivíduos, a vigilância algorítmica e a coleta de dados pessoais para prever e influenciar comportamentos, a psicopolítica como forma de manipulação psicológica e emocional na era digital, e o impacto da tecnologia na percepção da liberdade e na formação de opiniões e decisões. A pesquisa questionará e analisará criticamente as formas de controle e poder presentes na era digital. Serão exploradas questões como a influência da vigilância digital na autonomia e liberdade individual, as implicações éticas da coleta massiva de dados pessoais e da vigilância algorítmica, a maneira como a psicopolítica molda comportamentos e opiniões de forma imperceptível e as formas de resistência às sutis dominação e controle na sociedade digital.

 

 

 

2  CONCEITOS-CHAVE E RELAÇÃO COM A INFORMAÇÃO DIGITAL

Um dos conceitos-chave discutidos por Han é o panóptico, originalmente proposto por Jeremy Bentham e posteriormente desenvolvido por Michel Foucault. Bentham concebeu o panóptico como uma prisão ideal, onde um único vigia poderia observar todos os prisioneiros sem que estes soubessem se estavam sendo observados, induzindo-os a auto-regularem seu comportamento.

Foucault conceberá, mais tarde, o Panóptico como um modelo de sociedade, a saber, a Sociedade Disciplinar de Controle, onde o olhar vigilante se estende às instituições regularizadoras dos indivíduos, tais como as escolas, faculdades, sanatórios, família e, claro, as próprias prisões.

Han atualiza o conceito de Panóptico para a era digital ao introduzir a ideia de um Panóptico digital contemporâneo que difere significativamente do Panóptico físico proposto por Bentham. Enquanto o Panóptico de Bentham dependia de um vigia centralizado para exercer controle e vigilância sobre os indivíduos, o Panóptico digital dispensa a necessidade de um vigia físico, substituindo-o por vigilância algorítmica e Big Data. Seguindo o mesmo pensamento, enquanto o Panóptico de Foucault entendia que a vigilância também deveria ser feita nos corpos, em muitos níveis da sociedade, o Panóptico de Han não se limita ao corpo, sequer a alguma regularização dos sujeitos, afinal, ele não se preocupa em aprisionar ou isolar o indivíduo. Essa evolução do conceito é fundamentada na ideia de que, na era digital, a vigilância e o controle são cada vez mais realizados de forma distribuída e algorítmica, em oposição à estrutura centralizada do Panóptico físico (Zuboff, 2015).

Na era digital, a liberdade dos indivíduos se transforma em autoexposição voluntária, onde as pessoas participam ativamente da construção do Panóptico digital por meio de suas interações nas redes sociais. Nesse contexto, a liberdade é reinterpretada como a escolha consciente de se expor e compartilhar informações pessoais online, contribuindo assim para a construção de um ambiente de vigilância e controle digital. Os próprios indivíduos se tornam parte integrante do Panóptico digital, alimentando-o com dados e conteúdo pessoal, o que reforça a vigilância algorítmica e a análise de Big Data como mecanismos de controle social (Hafermalz, 2020).

Os algoritmos e o Big Data desempenham um papel fundamental na vigilância digital, permitindo a coleta massiva de dados que são utilizados para prever e influenciar comportamentos. Através da análise de grandes volumes de informações, os algoritmos podem identificar padrões e tendências nos dados coletados, possibilitando a previsão de ações e decisões dos indivíduos. Por exemplo, na área da saúde, a integração de algoritmos de aprendizado de máquina com ferramentas de suporte à decisão clínica pode fornecer informações direcionadas e oportunas aos profissionais de saúde, melhorando as decisões clínicas (Gianfrancesco et al., 2018).

Esses dados coletados também podem ser utilizados para manipular ações e decisões dos indivíduos. Por meio da análise de dados pessoais, como preferências, histórico de compras e interações online, empresas e instituições podem criar perfis detalhados dos usuários. Esses perfis são então utilizados para direcionar anúncios, conteúdos e informações específicas, influenciando assim o comportamento dos usuários de forma sutil e muitas vezes imperceptível (Zuboff, 2015).

A psicopolítica opera ao manipular emoções e desejos dos indivíduos, utilizando algoritmos para criar perfis psicológicos e influenciar comportamentos de maneira pré-reflexiva. Através da análise de dados comportamentais e psicológicos, os algoritmos podem identificar padrões emocionais e preferências individuais, permitindo a personalização de conteúdos e mensagens para influenciar as decisões das pessoas de forma subconsciente. Dessa forma, a psicopolítica se baseia na manipulação das emoções e desejos dos sujeitos, utilizando a tecnologia para moldar comportamentos e opiniões de maneira eficaz e muitas vezes invisível (Zuboff, 2015).

Isto é, a transição do Panóptico físico de Bentham para o Panóptico digital contemporâneo representa uma mudança significativa na forma como a vigilância e o controle são exercidos na sociedade atual. A vigilância algorítmica e a autoexposição voluntária dos indivíduos nas redes sociais desempenham um papel central na configuração do Panóptico digital, onde a participação ativa das pessoas na sua própria vigilância e na dos outros é uma característica marcante desse novo paradigma de controle social.

A crítica empreendida à racionalidade informacional contemporânea se ancora na articulação entre três eixos fundamentais: o panoptismo reconfigurado pelas tecnologias digitais, o deslocamento da biopolítica para a psicopolítica, e a dissolução da negatividade no interior do regime neoliberal de transparência. A compreensão dessas categorias é essencial para delinear os contornos do que se poderia chamar de um regime psicoinformacional, no qual a produção, circulação e consumo de informação estão intrinsecamente ligados à constituição de subjetividades conformes às exigências do capital cognitivo.

O conceito de panóptico digital deriva, em Han, da reelaboração do modelo foucaultiano de vigilância. Enquanto Michel Foucault, inspirado na arquitetura idealizada por Jeremy Bentham, aponta a vigilância como técnica disciplinar voltada à conformação dos corpos a partir de uma assimetria visual, Han propõe que, no ambiente digital, tal vigilância não se impõe, mas é desejada. A novidade está no fato de que o sujeito digital não apenas consente, mas participa ativamente da vigilância ao se autoexpor em redes, ao compartilhar espontaneamente seus dados, desejos, hábitos e afetos. A transparência, nesse cenário, não é antídoto ao poder, mas seu modus operandi.

O neoliberalismo, segundo Han, transforma cada sujeito em um “empreendedor de si”, e cada ato de comunicação em potencial mercadoria. A produção de dados por meio da autoexposição digital, ao mesmo tempo que promete visibilidade e pertencimento, retroalimenta os sistemas de controle algorítmico. Trata-se de um modelo em que a liberdade é instrumentalizada como mecanismo de dominação. O sujeito se acredita livre justamente por não perceber que sua agência é moldada pelas arquiteturas técnicas da plataforma: ele age, comunica, consome e se manifesta conforme as sugestões do feed, do algoritmo, do padrão.

A psicopolítica emerge nesse contexto como o nome da nova racionalidade do poder. Se a biopolítica foucaultiana operava sobre a vida biológica da população — gestando corpos, higienizando espaços, normalizando condutas —, a psicopolítica neoliberal opera diretamente sobre a psique. Ela se infiltra nos afetos, na atenção, na linguagem e na autoimagem. É um poder que não reprime, mas seduz; não proíbe, mas estimula; não silencia, mas estimula o grito contínuo do “eu”. A psicopolítica explora o sujeito pela via da performance e da autoavaliação constante, incentivando um modo de vida regido por métricas de visibilidade, capital simbólico e aprovação alheia.

O valor informacional sofre uma transformação sem precedentes. A informação não é mais mensurada apenas por sua veracidade ou relevância cognitiva, mas por sua capacidade de gerar engajamento, atenção e dados. A lógica do click, do scroll, do like, substitui o juízo reflexivo por reações imediatas e quantificáveis. A transparência compulsória, conceito reiteradamente mobilizado por Han, indica essa inversão estrutural da esfera pública. O ideal habermasiano de um espaço argumentativo fundado na razão intersubjetiva é substituído por uma arena afetiva, saturada de imagens, impulsos e indignações passageiras. A ausência de negatividade — entendida aqui como a possibilidade de recusa, silêncio, hesitação ou contemplação — dissolve os limites entre o público e o privado, entre o ser e o parecer. Tudo deve ser visível, mensurável, compartilhável — e, portanto, governável.

Tal compulsão à visibilidade esvazia a experiência do pensamento crítico e silencia formas de resistência que dependem da recusa à exposição contínua. A negatividade — aquilo que escapa, que resiste à captura, que se retrai diante da lógica da performance — é condição de possibilidade para a liberdade e para a formação de subjetividades não colonizadas pelo imperativo da positividade. Sem negatividade, a subjetividade se torna totalmente permeável à norma algorítmica, à previsibilidade, à racionalidade do dado.

Nesse novo regime, a informação deixa de ser um recurso cognitivo para se converter em um vetor psicopolítico de antecipação e controle. Os rastros digitais — cliques, curtidas, localizações, padrões de consumo — passam a compor mapas de comportamento que alimentam sistemas preditivos. Com isso, a informação não apenas descreve a realidade: ela a performa, a governa, a reorganiza de acordo com parâmetros comerciais e de dominação simbólica. O digital deixa de ser apenas um meio para se tornar uma estrutura de poder capilarizada na vida cotidiana.

A crítica de Han se afasta, nesse ponto, de análises que se limitam à questão da privacidade. Assim, a vigilância algorítmica não se resume ao acesso indevido a dados individuais, mas constitui uma ontologia política em que o próprio conceito de liberdade é ressignificado. A liberdade digital é formatada por arquiteturas de escolha desenhadas por algoritmos que filtram o real, promovem determinadas narrativas e suprimem outras. A promessa de autonomia torna-se o nome contemporâneo da docilidade.

Isto é, a psicopolítica se revela uma tecnologia sofisticada de produção de subjetividades. Sua operação ocorre em tempo real, articulando o fluxo informacional à modelagem dos afetos, das crenças e dos desejos. A governamentalidade digital não exige coerção direta: basta induzir o sujeito a desejar o que lhe é oferecido. Nesse ponto, o neoliberalismo se torna não apenas um sistema econômico, mas uma pedagogia ontológica — um modo de formar sujeitos adaptáveis, produtivos e emocionalmente gerenciáveis.

A informação digital, portanto, não pode mais ser compreendida fora do contexto de sua performatividade social. Ela não circula em um vácuo técnico, mas em um ecossistema normativo onde tudo que é informado é, ao mesmo tempo, formatado e formador. A própria noção de “dado” — enquanto unidade bruta de informação — se mostra ideologicamente carregada, pois aquilo que é dado já implica uma decisão prévia sobre o que merece ser registrado, quantificado e transformado em valor.

 

 

 

 

 

 

 

3  IMPACTO DAS REDES SOCIAIS E VIGILÂNCIA ALGORÍTMICA

Sabe-se que as plataformas digitais oferecem atrativos capazes de direcionar a atenção dos usuários a determinados conteúdos, informações ou ferramentas. É comum que encontremos certas dificuldades em nos dedicarmos exclusivamente a uma tarefa enquanto estamos conectados às redes sociais. Embora o pensamento da sociedade digital esteja avançando, é uma observação comum que, devido ao regime neoliberal, essa dispersão de atenção seja considerada nossa culpa. Ora, vivemos cercados de aparatos digitais que nos convidam (por vezes literalmente) a ceder nossos rostos, vozes, performatividade e mente a esses espaços. As possibilidades de interação que nos rondam são intencionais para fomentar a nossa permanência online de maneira cada vez mais longínqua.

Na realidade psicopolítica, a liberdade é objeto de exploração. No recorte neoliberal de sociedade, as práticas e formas de expressão oriundas da liberdade são exploradas para fins de consumo. De acordo com Han (2017), é possível entender que o sujeito contemporâneo, ao exercer sua liberdade dentro do contexto neoliberal nas redes sociais, está, na verdade, alimentando uma série de estruturas que atuam para manipulá-lo. Manipulação que provém dos nossos movimentos online, e, por lógica, quanto mais tempo de exposição nós temos nestes espaços digitais, mais informações estamos subsidiando para a nossa própria manipulação.

Essa exploração da liberdade, revela a sutileza com que a psicopolítica neoliberal opera ao transformar o desejo de autonomia em um mecanismo de controle. Quando o sujeito se engaja voluntariamente nas redes sociais, compartilhando sua vida, opiniões e sentimentos, ele entrega dados preciosos que alimentam algoritmos capazes de prever e influenciar seu comportamento. Conforme Han (2017) destaca, essa exposição autoinvestida não produz apenas conteúdo para consumo coletivo, mas também gera um efeito de autoexploração, no qual o indivíduo se torna simultaneamente explorador e explorado.

O regime da visibilidade imposto pelas redes sociais intensifica essa dinâmica, pois a constante necessidade de reconhecimento e validação social cria um ciclo de dependência emocional que reforça o comportamento de exposição e autocontrole. Essa busca incessante por visibilidade impõe padrões de performance emocional e identitária, exigindo esforço contínuo para manter uma imagem socialmente valorizada. Como resultado, o sujeito experimenta um desgaste psíquico sutil e naturalizado, dificultando sua capacidade de perceber criticamente os mecanismos que regulam sua liberdade aparente.

Por outro lado, a vigilância algorítmica atua de maneira quase imperceptível, configurando o ambiente digital para capturar a atenção dos usuários e maximizar seu engajamento. Essa vigilância não se limita à coleta passiva de dados, mas envolve práticas avançadas de análise e predição que permitem antecipar desejos e comportamentos, moldando as experiências digitais de forma personalizada. Segundo Zuboff (2020), esse modelo de “capitalismo de vigilância” utiliza as informações pessoais para influenciar decisões e direcionar ações, comprometendo a autonomia dos indivíduos ao submeter suas escolhas a uma lógica econômica e tecnológica invisível.

O sujeito contemporâneo vive um paradoxo: ele acredita estar exercendo sua liberdade ao participar das redes sociais, mas, ao fazê-lo, fortalece estruturas que limitam suas possibilidades de ação e reflexão. Esse processo ocorre com tamanha sutileza que o controle se torna internalizado, dando origem a uma conformidade silenciosa e a um autoregulamento que dificultam a percepção do domínio exercido. A psicopolítica, portanto, manifesta-se como um poder que opera diretamente sobre a subjetividade, explorando afetos, desejos e emoções para moldar comportamentos e garantir obediência sem necessidade de coerção explícita. Esse cenário implica uma transformação na compreensão de autonomia e liberdade na era digital, na qual a interação entre tecnologias de comunicação e regimes de poder cria novas formas de sujeição. É fundamental, portanto, desenvolver uma postura crítica que permita identificar essas dinâmicas e pensar estratégias que resgatem a autenticidade e a capacidade de ação genuína dos indivíduos em meio a uma realidade marcada pela vigilância e manipulação psicológica constante.

As redes sociais configuram espaços centrais para a construção da subjetividade na contemporaneidade, ao estabelecerem um ambiente no qual os indivíduos passam a se perceber e a se constituir a partir do olhar e da interação com os outros. Segundo Han (2017), essa dinâmica reforça que o valor do sujeito está intimamente relacionado à quantidade de reconhecimento e exposição que consegue alcançar. A busca incessante por aprovação social, expressa em métricas como curtidas, compartilhamentos e comentários, não apenas molda a forma como as pessoas apresentam suas identidades, mas também orienta seus comportamentos, pensamentos e emoções em direção a padrões socialmente valorizados. A subjetividade, assim, torna-se performativa, construída e reconstruída numa constante tentativa de adequação a expectativas externas.

Nesse processo, a autoexposição não é simplesmente um ato voluntário, mas um fenômeno complexo de socialização digital que internaliza normas e pressões invisíveis. Marteleto (2001) enfatiza que as plataformas digitais impõem padrões estéticos e comportamentais que regulam os modos de expressão, criando uma homogeneização das experiências subjetivas. A norma do compartilhamento contínuo e a necessidade de estar sempre “presente” virtualmente produzem uma espécie de vigilância autoimposta, onde o indivíduo age como seu próprio controlador, calibrando suas atitudes para se enquadrar em modelos de aceitação e sucesso social. Essa autocensura e conformidade silenciosa têm impactos profundos na formação da identidade, restringindo a espontaneidade e a autenticidade.

Paralelamente, a vigilância algorítmica emerge como um mecanismo sofisticado que transcende a mera observação passiva dos comportamentos digitais para se transformar em uma forma ativa de controle. Lyon (2014) destaca que a vigilância algorítmica utiliza vastos conjuntos de dados coletados em diferentes plataformas para mapear padrões comportamentais, emocionais e cognitivos, criando perfis psicológicos detalhados. Tais perfis possibilitam a personalização de conteúdos e a manipulação preditiva, uma vez que os algoritmos são capazes de antecipar desejos e direcionar informações que moldam decisões e atitudes antes mesmo que o sujeito tenha plena consciência delas. Zuboff (2020) chama esse fenômeno de “capitalismo de vigilância”, na medida em que as práticas de coleta e análise de dados pessoais são empregadas para extrair valor econômico e exercer controle comportamental.

A manipulação promovida por esses sistemas algorítmicos é sutil, frequentemente imperceptível, e se manifesta na curadoria de feeds, anúncios direcionados, recomendações personalizadas e filtros que criam bolhas informacionais. Essa curadoria seletiva reforça predisposições cognitivas e emocionais, limitando a exposição a perspectivas diversas e ampliando a polarização social (Galvão et al., 2018). Consequentemente, o ambiente digital não apenas molda as preferências e opiniões, mas influencia as emoções e os estados de humor dos usuários, instaurando um ciclo contínuo de estímulos que mantém o engajamento e a dependência das plataformas. Essa relação simbiótica entre redes sociais e vigilância algorítmica configura uma nova forma de exercício do poder, na qual o sujeito é simultaneamente produtor e produto do sistema digital.

 

4  AUTONOMIA E MANIPULAÇÃO PSICOLÓGICA NA ERA DIGITAL

A psicopolítica, conceito central na obra de Byung-Chul Han (2015), representa uma forma de poder característica da racionalidade neoliberal contemporânea, distinta dos modelos disciplinares e repressivos descritos por Michel Foucault. Enquanto a biopolítica operava sobre os corpos, regulando a vida por meio de instituições como prisões, escolas e hospitais, a psicopolítica desloca o eixo do controle para a esfera subjetiva. Ela atua sobre a mente, os afetos e os desejos, explorando a liberdade individual como instrumento de dominação. Trata-se de um regime de poder que seduz em vez de coagir, que incentiva o desempenho em vez de impor disciplina, e que obtém obediência por meio da autoexploração e da autorregulação.

Para analisar como a psicopolítica manipula emoções e desejos dos indivíduos na era digital, é essencial considerar a interseção entre redes sociais, vigilância algorítmica e racionalidade neoliberal. Han (2015) argumenta que, na sociedade atual, marcada pela transparência compulsória e pela hiperexposição voluntária nas plataformas digitais, o sujeito se torna simultaneamente agente e alvo da vigilância. Nesse cenário, a vigilância algorítmica — conforme conceituada por autores como Lyon (2014) e Zuboff (2020) - opera como uma forma automatizada de controle, capaz de analisar dados comportamentais e emocionais para antever e direcionar ações futuras. A coleta massiva de dados pessoais alimenta sistemas de inteligência artificial que constroem perfis psicológicos precisos, permitindo a personalização de conteúdos, anúncios e recomendações que moldam desejos, emoções e comportamentos de forma pré-reflexiva (Galvão et al., 2018).

Esse tipo de manipulação emocional e comportamental, ainda que invisível, compromete significativamente a autonomia e a liberdade dos indivíduos. Como aponta Zuboff (2020), o capitalismo de vigilância transforma a experiência humana em matéria-prima para práticas comerciais ocultas de predição e modulação de comportamento. O sujeito digital, ao mesmo tempo que se sente livre para escolher, já está condicionado por um ecossistema informacional que limita silenciosamente suas possibilidades de ação. A liberdade, nesse contexto, torna-se uma simulação, uma sensação gerada por interfaces que operam com base em dados e predições, não mais em escolhas genuínas.

As redes sociais — como Instagram, Facebook, TikTok e X — são os principais dispositivos psicopolíticos desse sistema. Seus algoritmos são projetados para capturar a atenção, estimular a interação contínua e promover a produção constante de si. O regime da visibilidade, incentivado por curtidas, compartilhamentos e comentários, transforma os usuários em performers de suas próprias vidas, engajados na manutenção de uma imagem idealizada e competitiva. Esse processo resulta no que Han (2017) chama de "sociedade do cansaço": uma coletividade de indivíduos que se autoexploram em busca de reconhecimento e pertencimento, adoecendo psiquicamente sob a pressão de uma performance constante.

Atendo-nos a observação de Harari (2018), a fusão entre Big Data e inteligência artificial ameaça não apenas a privacidade, mas também a própria noção de sujeito autônomo. Quando sistemas computacionais conhecem melhor os indivíduos do que eles mesmos, torna-se possível interferir em decisões políticas, econômicas e pessoais com alto grau de eficácia — como ficou evidente no caso do escândalo da Cambridge Analytica. Essa capacidade de predição algorítmica e manipulação comportamental representa uma forma extrema de psicopolítica, onde o poder se oculta sob a aparência de neutralidade tecnológica.

Marteleto (2001) alerta que, nesse novo paradigma informacional, os indivíduos tendem a conformar-se a padrões e valores hegemônicos mediados pela tecnologia, perdendo gradualmente sua capacidade de reflexão crítica e de tomada de decisão autônoma. A vigilância, nesse contexto, não se impõe como força externa repressiva, mas é introjetada, naturalizada e até desejada. O desejo de ser visto, de se conectar, de participar, reforça os mecanismos de controle, criando uma dinâmica em que a dominação opera por meio da subjetividade.

Para Han (2015), a sutileza da psicopolítica reside justamente na sua capacidade de agir sem se manifestar como um poder opressivo tradicional, sendo seu principal instrumento a transformação do sujeito em um agente que internaliza o controle. Essa dinâmica torna o controle mais eficaz, uma vez que a resistência se enfraquece quando o sujeito se vê como autor de suas próprias ações. Dessa maneira, o poder psicopolítico constrói um cenário em que o sujeito é levado a uma hiperatividade emocional, movida pela busca incessante por validação externa, o que fragiliza a capacidade de autoquestionamento e reforça padrões comportamentais normativos. Assim, o controle não se limita ao monitoramento, mas se estende à conformação emocional e afetiva.

Para além, Han argumenta que essa lógica de controle tem como efeito o esvaziamento da crítica social e política, pois a psicopolítica opera em um nível pré-reflexivo, dificultando o reconhecimento dos processos de manipulação. O sujeito, imerso em um ciclo contínuo de estímulos e recompensas, não apenas perde a capacidade de autonomia crítica, como também se torna incapaz de perceber a extensão do seu próprio condicionamento. Essa forma de poder, portanto, neutraliza a resistência não pela força, mas pela absorção do sujeito na dinâmica do próprio controle.

O sujeito é compelido a gerir sua vida como um empreendimento, sob a lógica do autodesempenho e da autovigilância, o que implica em uma sobrecarga psíquica permanente. Essa condição configura o que Han denomina de “sociedade do cansaço”, onde o esgotamento mental e emocional são sintomas diretos da forma contemporânea de dominação que explora a própria liberdade do sujeito como meio de sujeição. Dessa forma, a psicopolítica não apenas molda comportamentos por meio da influência sobre emoções e desejos, mas também reconfigura a própria experiência da subjetividade, dificultando a emergência de uma verdadeira autonomia. O poder, agora, se manifesta de forma invisível e internalizada, eliminando o antagonismo tradicional entre dominador e dominado e instaurando um regime em que o sujeito se torna cúmplice e executor de sua própria sujeição.

Essa cumplicidade entre sujeito e poder, resultante da interiorização dos dispositivos de controle, inaugura um novo paradigma político e existencial. O que se observa não é mais um antagonismo entre opressor e oprimido, mas uma fusão entre os polos, de tal modo que o sujeito passa a desempenhar simultaneamente os papéis de dominado e dominador de si mesmo. Essa reversão da lógica clássica do poder representa, segundo Han, um salto qualitativo no modo como o controle opera: ele deixa de ser percebido como imposição para ser vivido como expressão da própria liberdade.

Na era digital, a autonomia não é atacada diretamente, mas gradualmente minada por dispositivos de sedução, repetição e saturação informacional. O sujeito contemporâneo se vê inserido em um ambiente onde sua experiência interior é colonizada por estímulos constantes, mediada por plataformas e direcionada por sistemas de recomendação que naturalizam padrões de comportamento. O desafio, portanto, não é apenas a vigilância externa, mas a desarticulação progressiva da interioridade como espaço de elaboração crítica e autodeterminação.

O que está em jogo não é mais o impedimento da ação, mas a conformação da vontade. A autonomia, assim, é enfraquecida não pela imposição, mas pela obliteração da diferença: tudo se apresenta como natural, desejável, inevitável. O que se observa é uma erosão da interioridade crítica, substituída por um "eu operacional", voltado à exposição, à performance e à resposta imediata. Essa dissolução do espaço interno favorece a adesão sem questionamento a narrativas, produtos, valores e lógicas de eficiência. O sujeito não mais se posiciona diante do mundo, mas é continuamente posicionado por ele — por fluxos de dados que capturam seu tempo, atenção e afetividade.

A lógica da otimização subjetiva, central à racionalidade neoliberal, se articula à psicopolítica de modo a transformar a liberdade em performance. A noção de escolha torna-se uma métrica de engajamento, e o ideal de autonomia se reduz à capacidade de se adaptar rapidamente às demandas da visibilidade e da produtividade. Em lugar de refletir sobre suas escolhas, o sujeito passa a quantificá-las: seguidores, curtidas, resultados, alcance. Esse deslocamento empobrece o exercício da liberdade enquanto ato ético e deliberativo, convertendo-a em conformidade aos padrões da eficácia

A manipulação subjetiva não opera apenas por meio de conteúdos, mas por estruturas temporais que impedem o amadurecimento de juízos, a escuta do outro, o conflito interno. A atenção fragmentada e o estímulo constante reduzem a capacidade de elaboração simbólica, condição fundamental para a autonomia. O sujeito se vê sempre em movimento, mas incapaz de se deter: preso em um presente contínuo, onde nada se fixa, nada se sustenta. Na sociedade da informação, o que circula não é sentido, mas reação. O excesso de comunicação gera ruído, e a multiplicidade de vozes não se converte em diálogo, mas em monólogos simultâneos. A manipulação da subjetividade não depende da censura, mas da saturação. Em meio a tantas narrativas, perde-se o eixo, e a autonomia se dilui na busca por pertencimento instantâneo e pela validação imediata.

Longe de amadurecer com as promessas de emancipação digital, o sujeito se infantiliza diante da abundância de estímulos e da escassez de interioridade. A autonomia, que exige demora, silêncio e conflito interno, é incompatível com a lógica da aceleração e da positividade total. Em vez de sujeitos políticos, formam-se consumidores de afetos, permanentemente interpelados por demandas externas que se apresentam como escolhas próprias. A superação dessa condição exige, segundo Han, não o retorno a um passado idealizado, mas a criação de novas formas de subjetivação que escapem à lógica da positividade. A resistência, nesse sentido, não passa por confrontos frontais com o poder, mas por práticas discretas de recusa, como o silêncio, o distanciamento, a opacidade. Recuperar a autonomia implica recuperar também a negatividade — o direito de não responder, de não participar, de não se adequar.

Nessa nova configuração, a autonomia não é negada diretamente, mas instrumentalizada e esvaziada de seu conteúdo crítico. A ideia de autodeterminação, fundamental para a tradição iluminista e para os valores democráticos, é reconfigurada dentro da racionalidade neoliberal como obrigação de sucesso, performance e visibilidade. O indivíduo se vê compelido a otimizar todas as esferas de sua vida — produtiva, estética, emocional — sob pena de fracasso pessoal e invisibilidade social. O imperativo do "seja você mesmo" torna-se, assim, o novo comando da sujeição: uma liberdade moldada por métricas, algoritmos e validações externas.

Assim, autogerenciamento conduz inevitavelmente ao desgaste psíquico. A constante vigilância de si e o engajamento permanente nas redes configuram um regime de exaustão afetiva, em que o sujeito é simultaneamente monitorado e monitor de si próprio. O cansaço, a ansiedade, a depressão e o burnout não são meros efeitos colaterais desse sistema, mas sintomas estruturais de uma subjetividade capturada. O neoliberalismo, ao explorar a positividade da liberdade, dissolve os espaços de silêncio, contemplação e pausa — essenciais à formação de uma consciência autônoma.

Tal subjetividade, então, já não é apenas moldada por estruturas sociais externas, como nas análises clássicas da sociologia e da filosofia política, mas por dinâmicas informacionais incorporadas no cotidiano. O eu digital não é apenas um reflexo da pessoa, mas um constructo que retroage sobre ela, redefinindo seus modos de pensar, sentir e agir. O sujeito se torna, nas palavras de Han, um “projeto permanente de si mesmo”, submetido à pressão incessante da autoapresentação e do autoaperfeiçoamento. O controle se dissimula sob a forma de liberdade, autonomia e expressão pessoal. Ao fazê-lo, dificulta a emergência de qualquer resistência que não seja imediatamente cooptada pelo mesmo sistema de visibilidade e aprovação social. O dissenso, a crítica, a recusa — elementos fundamentais da vida política — tornam-se cada vez mais raros ou simbólicos, pois a subjetividade já não se constitui a partir da negação do poder, mas da adesão ao seu jogo.

Pensar a autonomia na era digital exige ir além das noções tradicionais de liberdade negativa (ausência de coerção) ou positiva (realização de uma vontade racional). É preciso repensar a autonomia como capacidade de resistência ao engendramento subjetivo promovido pelas plataformas digitais, o que implica recuperar a negatividade como espaço de intervalo, de hesitação, de não-engajamento. A psicopolítica, ao capturar a vida interior e convertê-la em dado, desafia os pressupostos fundamentais da democracia, da liberdade e da subjetividade.

 

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

As teorias de Byung-Chul Han são fundamentais para a compreensão das complexas dinâmicas de poder e controle na era digital. Suas ideias fornecem uma perspectiva crítica sobre como as tecnologias digitais influenciam as práticas informacionais e a percepção da liberdade e subjetividade individuais. Ao atualizar o conceito de panóptico para o contexto digital, Han demonstra como a vigilância se tornou uma prática disseminada e interiorizada, onde os indivíduos voluntariamente se expõem e se sujeitam ao controle algorítmico. Essa autoexposição, incentivada pelas plataformas de redes sociais e outros serviços digitais, transforma os dados pessoais em commodities, servindo aos interesses de poderosos agentes econômicos e políticos.

A noção de psicopolítica introduzida por Han aprofunda a compreensão de como o poder na era digital opera, não mais por coerção física ou repressão legal, mas pela manipulação psicológica e emocional. Esse controle sutil e insidioso molda subjetividades e comportamentos, muitas vezes de forma imperceptível, influenciando decisões e atitudes cotidianas. As obras de Han, como "Psicopolítica" e "No Enxame", são essenciais para refletir sobre os impactos das tecnologias digitais nas relações sociais e políticas, convidando a uma reconsideração crítica e consciente sobre a utilização dessas tecnologias.

A importância do panóptico digital reside em sua capacidade de revelar as estruturas de poder ocultas nas práticas informacionais modernas. Compreender essa dinâmica é essencial para questionar e resistir às formas de controle que ameaçam a liberdade individual e a autonomia. As reflexões propostas revelam-se fundamentais para a compreensão crítica das estruturas de poder que operam de maneira invisível, mas profundamente eficaz, na era digital. Suas teorizações sobre o panóptico digital e a psicopolítica não apenas atualizam conceitos clássicos da filosofia política e da teoria social, mas os reinventam a partir das condições específicas da sociedade conectada, hiperexposta e psicotecnologicamente governada.

O grande mérito da abordagem está em explicitar que a vigilância digital não se dá mais por meio da coerção física, tampouco pela repressão explícita das liberdades civis, mas por uma lógica de adesão voluntária, performativa e afetiva. O indivíduo contemporâneo, ao se entregar à visibilidade constante das redes, deixa de ser apenas vigiado: ele se transforma em colaborador do sistema de controle, produtor de dados, executor dos próprios imperativos de otimização e transparência. A liberdade subjetiva, outrora associada à resistência, converte-se em ativo explorável no interior da racionalidade neoliberal.

A psicopolítica, nesse cenário, é a nova gramática do poder. Ela não impõe limites de fora, mas atua nas interioridades: molda desejos, organiza afetos, canaliza expectativas. Trata-se de uma forma de dominação que, ao mesmo tempo que promete autonomia, sequestra a própria capacidade reflexiva do sujeito. Ao reduzir a negatividade — ou seja, a capacidade de dizer “não”, de se retirar, de permanecer opaco — a um ruído disfuncional, a sociedade da positividade elimina os espaços da crítica, do silêncio e da diferença. As redes sociais, nesse sentido, operam como centros nevrálgicos dessa arquitetura de controle. Elas não apenas espelham os comportamentos, mas os induzem; não apenas refletem os afetos, mas os normatizam. Os algoritmos, por sua vez, realizam uma curadoria invisível da realidade, filtrando o mundo conforme padrões de interesse comercial e ideológico. A pluralidade é sacrificada no altar da personalização, e a alteridade cede lugar ao reforço narcísico.

Diante disso, a relevância da filosofia de Han para os estudos informacionais torna-se evidente. Sua crítica à informação enquanto ferramenta de captura e conformação subjetiva propõe uma virada teórica necessária: deixar de ver a informação como neutralidade técnica ou recurso funcional, e compreendê-la como arena política, como dispositivo de governo, como campo de disputa sobre a própria constituição do sujeito. O panóptico digital, ao tornar a vigilância onipresente e desejada, revela as engrenagens sutis de um novo paradigma de dominação: um poder que não mais se impõe, mas se infiltra, que não reprime, mas seduz. Compreender essa dinâmica é imprescindível para resistir aos seus efeitos normalizadores, e para construir uma ética informacional capaz de enfrentar os desafios da hiperconectividade.

Assim, as obras não devem ser lidas apenas como diagnóstico sombrio do presente, mas como convite à imaginação crítica. Ao denunciar as armadilhas da liberdade instrumentalizada, ele nos conclama à reinvenção do político, à valorização da negatividade, à redescoberta do silêncio e da contemplação como formas de insurgência. Em tempos de algoritmos oniscientes e dados onipresentes, a resistência talvez passe por aquilo que não pode ser quantificado, previsto ou governado: o gesto ético, o pensamento lento, o olhar que escapa ao controle.

 

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[1] Possui graduação em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é Bibliotecária Escolar e pesquisadora vinculada ao DATALab (UFRGS). Tem experiência na área de Ciência da Informação, com ênfase em Filosofia da Informação, atuando principalmente nos seguintes temas: vigilância automatizada, colonialismo de dados, assimetria de poder e oligopólios digitais.

[2] Professor Adjunto do Departamento de Ciência da Informação/FABICO da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando no curso de graduação de Biblioteconomia e o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCIN), ambos da mesma instituição. Graduado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002), mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008) e doutor em Información y documentación en la Sociedad del Conocimiento pela Universitat de Barcelona (2017). Tem experiência na área de Ciência da Informação, atuando principalmente nos seguintes temas: Gestão de Dados Científicos, Produção Científica, Aprendizagem Colaborativa e Ciência Aberta.