DO COGITO AO COGITAMUS

humanidades científicas e digitais em Bruno Latour[1]

Marcus Vinicius de Souza Nunes[2]

Universidade do Estado de Santa Catarina

mvds.nunes@udesc.br

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Resumo

A presente pesquisa teórica analisa o papel das Humanidades Científicas (HC) e sua possível articulação com as Humanidades Digitais (HD) a partir da obra ‘Cogitamus’, de Bruno Latour, abordando a crítica à “Grande Demarcação” moderna entre Ciência e Política, bem como à separação ontológica entre natureza e cultura, sujeito e objeto. O objetivo é compreender como as HC constituem um paradigma metodológico alternativo à epistemologia moderna, permitindo descrever de forma mais precisa a produção do conhecimento científico como prática sociotécnica e coletiva. A metodologia baseia-se na Teoria Ator-Rede (TAR), utilizando os conceitos de rede, controvérsia, provação e tradução. A análise é conduzida sob o enfoque de uma ontologia plana, que confere agência tanto a humanos quanto a não humanos, rompendo com a tradição dualista da Modernidade. Os resultados parciais indicam que as HC operam como uma epistemologia política que visa descrever o processo material e político de composição dos fatos científicos. Além disso, o estudo sugere que, para alcançar tal descrição em sua plenitude, as HC devem integrar as potencialidades das HD, ampliando a cognição distribuída por meio de ferramentas digitais. Conclui-se preliminarmente que a proposta de Latour convida à superação do paradigma moderno, promovendo um campo ampliado, as Humanidades Científicas e Digitais (HCD), como base metodológica para compreender e construir coletivamente o conhecimento em contextos sociotécnicos complexos.

Palavras-chave: humanidades científicas; humanidades digitais; teoria ator-rede; epistemologia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FROM COGITO TO COGITAMUS

digital and scientific humanities on Bruno Latour

Abstract

 The present theoretical research analyzes the role of Scientific Humanities (SH) and their possible articulation with Digital Humanities (DH) based on Bruno Latour’s work Cogitamus. It addresses the critique of the modern “Great Demarcation” between Science and Politics, as well as the ontological separation between nature and culture, subject and object. The objective is to understand how SH constitute an alternative methodological paradigm to modern epistemology, enabling a more precise description of scientific knowledge production as a sociotechnical and collective practice. The methodology is grounded in Actor-Network Theory (ANT), employing the concepts of network, controversy, trial, and translation. The analysis is conducted through the lens of a flat ontology, which attributes agency to both human and non-human actors, breaking with the dualistic tradition of Modernity. Partial results indicate that SH function as a political epistemology aimed at describing the material and political process by which scientific facts are composed. Furthermore, the study suggests that, in order to fully achieve this description, SH must integrate the potentials of DH, enhancing distributed cognition through digital tools. It is preliminarily concluded that Latour’s proposal calls for overcoming the modern paradigm, promoting an expanded field , Scientific and Digital Humanities (SDH), as a methodological foundation for collectively understanding and constructing knowledge in complex sociotechnical contexts.

Keywords: scientific humanities; digital humanities; actor-network theory; epistemology.

DEL COGITO AL COGITAMUS

humanidades científicas y digitales en Bruno Latour

Resumen

La presente investigación teórica analiza el papel de las Humanidades Científicas (HC) y su posible articulación con las Humanidades Digitales (HD) a partir de la obra 'Cogitamus' de Bruno Latour. Aborda la crítica a la "Gran Demarcación" moderna entre Ciencia y Política, así como a la separación ontológica entre naturaleza y cultura, y entre sujeto y objeto. El objetivo es comprender cómo las HC constituyen un paradigma metodológico alternativo a la epistemología moderna, permitiendo describir de forma más precisa la producción del conocimiento científico como una práctica sociotécnica y colectiva. La metodología se basa en la Teoría Actor-Red (TAR), utilizando los conceptos de red, controversia, prueba y traducción. El análisis se lleva a cabo bajo el enfoque de una ontología plana, que confiere agencia tanto a humanos como a no humanos, rompiendo con la tradición dualista de la Modernidad. Los resultados parciales indican que las HC operan como una epistemología política que busca describir el proceso material y político de composición de los hechos científicos. Además, el estudio sugiere que, para lograr tal descripción en su plenitud, las HC deben integrar las potencialidades de las HD, ampliando la cognición distribuida a través de herramientas digitales. Se concluye preliminarmente que la propuesta de Latour invita a la superación del paradigma moderno, promoviendo un campo ampliado, las Humanidades Científicas y Digitales (HCD), como base metodológica para comprender y construir colectivamente el conocimiento en contextos sociotécnicos complejos.

Palabras clave: humanidades científicas; humanidades digitales; teoría del acto-red; epistemología.

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

A obra de Bruno Latour apresenta um questionamento àquilo que ele trata como o modelo moderno de produção do conhecimento. Latour põe sob suspeita a rígida divisão disciplinar das ciências[3], a especialização e a subcategorização que se tornaram critérios do rigor e da cientificidade. De si mesmo afirma que pode ser chamado filósofo, sociólogo ou antropólogo, pois o rótulo não importa (Latour, 2019b). Essa postura não é meramente uma idiossincrasia pessoal, mas um compromisso metodológico e ontológico que pavimenta o caminho para a sua Teoria Ator-Rede (TAR).  A rejeição de Latour a rótulos disciplinares rígidos não se resume a uma idiossincrasia. É, de fato, uma precondição para a sua abordagem. A TAR, por sua própria natureza, busca traçar conexões entre domínios considerados como separados na Metafísica da Modernidade (Latour, 2019a), como ciência, tecnologia, sociedade, política e natureza. A aceitação de fronteiras disciplinares rígidas tornaria inviável a “ontologia plana” proposta por Latour, que suspende a separação sujeito/objeto e permite o rastreamento de "agenciamentos heterogêneos".1 Assim, a posição filosófica inicial de Latour, que transcende as barreiras disciplinares, é uma condição metodológica do trabalho da TAR.

Esta pesquisa, de natureza teórica, aborda a noção e o papel das Humanidades Científicas (HC) na obra de Latour como método de pesquisa e paradigma de suspeita que questiona o modelo moderno de se fazer ciências, não para desprezá-lo, coisa que Latour não faz, mas para reconhecer seus múltiplos condicionantes, atravessamentos e agenciamentos. Tal leitura usa como guia o livro ‘Cogitamus, seis cartas sobre as Humanidades Científicas’ (Latour, 2016), tomado aqui como uma espécie de guia metodológico. Assim, na primeira seção, ‘Do cogito ao cogitamus’, delineia-se o lugar das HC no contexto mais amplo da TAR, além de indicar o quanto elas dialogam com pressuposições ontológicas e epistemológicas da Modernidade.

Na segunda seção, ‘A Modernidade e a questão da Demarcação’, trata-se do tema que motivou boa parte da obra de Latour, a saber, a pressuposição de uma demarcação precisa entre Ciência e Política no pensamento da Modernidade. Essa demarcação, que para Latour nem mesmo ocorre de fato, impede que se veja os múltiplos atravessamentos entre essas duas atividades, impedindo assim que as ciências desempenhem mais eficientemente o seu papel de construir a comunidade política.

Em ‘Método e definições de Humanidades Científicas’, percorre-se a obra ‘Cogitamus’ no sentido de melhor apresentar o conceito de Humanidades Científicas segundo Latour e algumas características de sua prática metodológica. Nessa terceira seção, se indica a proximidade epistêmica das HC com os Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia e sua ligação crítica com a Epistemologia.

Na quarta seção traz-se o paradigma das Humanidades Digitais (HD). Pergunta-se até que ponto as HC de Latour são também digitais. O que se notará é que a noção de tecnociência de Latour indica que a produção de tecnologias digitais e produção de saber científico inerem uma a outra, dado que o método das HC é constituído sobre a análise das múltiplas materialidades, das quais o “multiverso digital” não escapa. Assim, a proposta da presente pesquisa é que convém antes pensar em um amplo paradigma chamado “Humanidades Científicas e Digitais” (HCD) do qual a obra de Latour constitui uma porta de entrada e um método de trabalho.

 

2 DO COGITO AO COGITAMUS

A Teoria Ator-Rede (TAR) surge na década de 1970 como uma tentativa de revitalização da Sociologia do Conhecimento. Sua proposta inicial é transcender a renovação das técnicas e métodos e constituir-se como uma provocação aos pressupostos epistemológicos da Pesquisa Social (Peverini, 2023). Com as pesquisas de autores como John Law, Madeleine Akrich, Steve Woolgar, Michel Callon e Bruno Latour, começa a indicar-se que “sociedade deve ser composta, estabelecida e mantida” (Callon, 2006, p. 272, tradução nossa). A rigor, tal afirmação não constituiria nenhuma novidade, dado que se assemelha a um tipo de construtivismo social. A diferença da TAR consiste no “papel que ela atribui aos não humanos na composição da sociedade[4]” (Callon, 2006, p. 272, tradução nossa). É nesse sentido que a TAR pode ser considerada uma espécie de neomaterialismo, que se recusa a considerar apenas a agência dos atores humanos como produtores da ação que constitui social. Desloca-se então de uma posição antropocêntrica para uma forma de empirismo radical (Lemos, 2020), que visa não apenas atribuir causas sociais à produção das ciências e tecnologias, mas entender como o próprio social se forma a partir da agência dos atores não humanos .

A posição não antropocêntrica defende que a agência está distribuída na rede/ agenciamento e que o controle e a fonte da ação não são privilégios do ator humano. Tudo se dá em uma associação localizada ou conectada localmente. A abordagem associativa/ local afirma que tudo se dá em uma rede plana, sendo que as análises das controvérsias não devem partir de explicações ad hoc. Valorizam-se os processos materiais e os fluxos de agências em experiências nas quais as questões sociais são sempre resultado de coletivos humanos e não humanos. Parte-se de uma ontologia plana, buscando sempre escapar, a priori, de análises estruturais ou interacionistas. (Lemos, 2020, p. 56)

Por isso, no contexto da TAR, o conceito de actantes/atores[5] é fundamental. No ambiente de um laboratório, por exemplo, as ferramentas técnicas, a agência dos pesquisadores, os problemas de financiamento, as questões éticas e metodológicas, a escassez de insumos, os produtos químicos, as planilhas e os registros se alinham e interagem (Latour, Woolgar, 1986; Latour, 2012). Todos esses elementos, sejam humanos ou não humanos, são considerados actantes e são descritos em suas inter-relações, formando redes. A TAR adota uma ontologia plana como pressuposto metodológico para observar esses atores, isto é, considera todos os elementos capazes de ação, sem reduzi-los a categorias pré-fabricadas da Teoria Social, como objetos, Estado, Política ou Ciência. O termo ator deve ser compreendido então em sentido semiótico, não se limitando ao universo humano (Peverini, 2023), indicando assim que a ação não é um a priori epistemológico, mas o resultado de lutas e negociações

Em ‘Reagregando o Social, uma introdução à Teoria do Ator-Rede’ (2012), Latour distingue a “sociologia das associações”, que é a feita pela  TAR, da “sociologia do social”. Para a TAR, o “social” não é uma categoria preexistente, mas sim o que a pesquisa social deve explicar: como os atores se associam e formam sociedades, coletivos ou grupos. A sociologia tradicional frequentemente opõe indivíduos a instituições, assumindo diferenças inerentes que pressupõem a ontologia moderna da absoluta cisão entre sujeito e objetos.

A natureza performativa do social e dos fatos na TAR é um pilar central. A sociologia tradicional frequentemente concebe o social como uma estrutura ou um recipiente preexistente. A sociologia das associações de Latour redefine explicitamente o social como um resultado da associação e dissociação contínua entre atores heterogêneos. Da mesma forma, os fatos não são descobertos, mas construídos por meio de processos de negociação (Latour, Woolgar, 1986). A aparência de estabilidade e a naturalização dos fatos científicos na realidade implica no processo de transformá-los em caixas-pretas, isto é, de desconectá-los das controvérsias que os geraram (Latour, Woolgar, 1986; Latour, 2011) e, em seguida, fechá-los em um conjunto estabilizado de conhecimentos naturalizados. Por isso, a ontologia plana da TAR é performativa: a realidade (social ou científica) não está simplesmente aí disponível, mas é feita e mantida por meio de trabalho contínuo, negociações e o fechamento estratégico de controvérsias.

A noção de caixa-preta é introduzida por Latour para se referir a fatos científicos ou tecnologias que se tornam amplamente aceitos e não mais questionados, como por exemplo a hélice de DNA, ou o processo de pasteurização (Latour, 2011). A estabilização permite que as ciências avancem sem a necessidade de revisão constante de suas pressuposições fundamentais. A TAR, contudo, busca revelar o processo de constituição dessas caixas-pretas, que se dá a partir de controvérsias, deslocamentos e processos de tradução nos quais a construção dos fatos científicas é negociada com os atores: pesquisadores, objetos técnicos, agências de financiamento, legislação, entre outros. Uma caixa-preta é uma entidade que incorpora argumentos anteriores, o que Latour (2016) chama “sistema de citações” e trabalho complexo em um equipamento ou conceito, tornando seus resultados quase incontestáveis. Outros atores, em especial as redes sociotécnicas, “sentam-se” sobre caixas-pretas, o que simplifica sua existência e lhes confere estabilidade.

A tradução, conceito inspirado na obra de Michel Serres (Latour, 2016), é central para o método da TAR, substituindo a ideia de um corte abrupto entre as ciências e o restante da existência pelas noções de desvio e composição. Traduzir é “transcrever, transpor, deslocar, transferir e, portanto, transportar transformando” (Latour, 2016, p. 30), mantendo uma continuidade na descontinuidade. Significa também o conjunto de negociações, tensões, atos de persuasão e cálculos pelos quais um ator se permite ou lhe é atribuída a autoridade de falar ou agir em nome de outro. A tradução não é meramente linguística, mas um processo fundamental de transformação e agregação de interesses e forças (Latour, 2011). Quando um ator “traduz” outros, ele não está apenas representando, mas ativamente incorporando-os em um coletivo (Callon, 2006). Esse processo é central para como os “fatos” são construídos e estabilizados e como as caixas-pretas são formadas. O sucesso da tradução, frequentemente testado por meio de “provações”, determina o resultado das “controvérsias”.

A provação associa-se à tradução como um método para tirar partido de uma variedade de provas no curso das quais se revela, de forma muito clara, como se encaixam os desvios e as composições. Um exemplo marcante de provação é a pane técnica, onde o mau funcionamento de um objeto técnico o transforma de um mero objeto (Gegenstand) em algo que se interpola (Ding), revelando sua natureza sociotécnica (Latour, 2016). A “dureza” de uma técnica, nesse contexto, refere-se à sua capacidade de eliminar explicações alternativas. A provação ainda mostra o quanto a TAR mantém-se atenta às diversas materialidades. Não seria possível a construção de um fato científico que não passasse pela série de objetos técnicos: centrífugas, computadores, servidores, microscópios, aceleradores de partículas, bancadas, relatórios, projetos.

Entre todos esses conceitos operativos da TAR destaca-se o de controvérsias. Para Latour, um enunciado considerado certo nada mais é que uma espécie de “fotografia” tirada de um momento final, depois de longos ciclos de debates, incorporação de novos atores, traduções, provações. Fato e opinião, nesse sentido, não são intrinsecamente diferentes, mas dois momentos distintos no curso de uma controvérsia. As controvérsias são resolvidas, e as afirmações transitam de um estado contestável para o de fatos aceitos.

A obra ‘Cogitamus, Seis Cartas sobre as Humanidades Científicas’ (Latour, 2016) atua como uma explicação dos passos metodológicos para o empreendimento inaugurado pela TAR. O livro esclarece conceitos fundamentais como rede, controvérsias, provação e tradução, que compõem a estratégia das Humanidades Científicas (HC). A questão central do livro é o questionamento da autonomia das ciências e técnicas, uma noção que pressupõe uma fratura ontológica.

A crítica de Latour à Modernidade estende-se à própria fundação do pensamento ocidental, desafiando o “cogito” cartesiano. Em oposição ao isolamento do “eu penso” de Descartes, Latour (2016) propõe o “cogitamus”, que representa o pensamento e o cálculo em comum, produzido nas muitas redes de pesquisadores, instrumentos e laboratórios. Esta transição do “cogito” para o “cogitamus” assinala uma mudança epistemológica e ontológica, deslocando o foco do pensamento isolado para a agência coletiva. As ciências são produzidas em uma verdadeira rede de cognição distribuída, que é mais que mera aprendizagem social, envolvendo atores humanos que interagem entre si, mas mediada por “artefatos cognitivos”, como os instrumentos técnicos, e “ambientes cognitivos”, como os laboratórios (Hutchins, 2000).  Todavia, não se pode considerar essa mudança como algo propriamente novo ou original. Latour indica que a cognição distribuída sempre foi a característica principal da produção do saber científico.

Nesse que continua o mais surpreendente “romance da matéria” jamais escrito, Descartes, na solidão de seu gabinete aquecido (o que quer dizer, vinculado a toda comunidade experimental europeia de sua época”, imaginará - é isso mesmo: imaginar - a res extensa tal como consegue pensar - sim, pensar - a res cogitans. (Latour, 2016, p. 136).

A abordagem de Latour é caracterizada por um “materialismo prático” (Latour, 2016), oposto ao materialismo moderno que caracteriza como “idealismo da matéria” (Latour, 2016).  Nesse “neomaterialismo” latouriano a matéria não é pressuposta, mas seguida nas redes de mediações  para “pensar de forma mais completa e integrada como os humanos são agidos e agem no interior dos processos associativos sem retirar da equação agentes fundamentais para compreensão desses processos (os objetos e suas materialidades)” (Lemos, 2020). Latour critica a ideia de res extensa como uma garantia suficiente para a continuidade de objetos díspares e descontínuos no laboratório, considerando-a inverossímil. Para ele, a própria noção de universo carece de materialidade, sendo mais uma “concepção metafísica” do que uma realidade ontológica. A Ciência, ao pretender uma coerência ontológica e metodológica, baseia-se, no fundo, em uma pressuposição metafísica que, para Latour, é idealista.

O projeto das Humanidades Científicas (HC) em ‘Cogitamus’ é, seguindo o fio das controvérsias sobre a produção de ciência, mostrar que a  cognição, nessa perspectiva, não reside unicamente na mente individual que contempla passivamente o “romance da matéria” (Latour, 2016) desenrolar-se ante seus olhos, mas é distribuída e realizada por meio dessas redes heterogêneas de atores, isto é, dos múltiplos entes capazes de agência que podem aportar mudança a uma determinada rede.

As HC propostas por Latour são um meio de destacar que “do cogito não se pode deduzir nada, nem sequer que existo. Mas, do cogitamus, pode-se deduzir tudo” (Latour, 2016, p. 174). O modelo moderno insiste no isolamento da mente individual que só pode redundar em “idealismo da matéria” (Latour, 2016, p. 136), na medida que não ouve de fato os atores e pressupõe certos conceitos sobre a matéria, como a res extensa cartesiana, como ponto de partida metafísico. As HC, como um método de pesquisa no qual se aplicam os princípios da TAR, ilustrariam a capacidade generativa inerente à ação coletiva, um poder que a mente isolada não possui. Mesmo Descartes, em sua aparente solidão no “gabinete aquecido”, estava, na verdade, vinculado a uma comunidade de produção de ciência incorporada à seu trabalho de reflexão aparentemente solitária.

3 A MODERNIDADE E A QUESTÃO DA DEMARCAÇÃO

A crítica de Latour à Modernidade é profundamente articulada em torno de dois procedimentos centrais na produção de saberes e práticas políticas: a hibridização e a purificação. Em ‘Jamais fomos modernos, Ensaio de antropologia simétrica’ (2019), ele argumenta que a modernidade é caracterizada por uma divisão fundamental entre natureza e sociedade, e entre humanos e não-humanos. A purificação é o processo que busca manter essas categorias separadas e distintas, enquanto a hibridização, paradoxalmente, as mistura e as entrelaça constantemente. Latour considera que essa divisão é uma construção artificial, uma mania que a antropologia deveria explicar, em vez de uma distinção natural ou autoevidente (Peverini, 2023).

Latour desafia a visão tradicional da sociedade como uma estrutura preexistente dentro da qual os atores se desenvolvem. Em vez disso, propõe que a sociedade é uma construção ou performance contínua, realizada por seres sociais ativos que transitam entre os níveis micro e macro (Latour, 2012, 2020).  Essa definição performativa do social implica que não é possível, em princípio, estabelecer propriedades da vida social que sejam puramente sociais, pois elas se referem intrinsecamente a dimensões econômicas, biológicas ou psicológicas. O que deve ser investigado, segundo o autor, é essa insistência moderna em separar natureza e cultura, mesmo os dados empíricos que essa separação é insustentável, projeto de investigação que Latour conduz ao longo de sua obra. ‘Cogitamus’ tenta traçar um projeto metodológico de uma pesquisa que ultrapasse essa separação que se sustenta em vários pressupostos, dentre os quais a autonomia das ciências e o que Latour  (2016) chama “a grande Demarcação”, isto é, a divisão artificial entre as ciências e a política.

A Modernidade, segundo ele, busca uma Ciência que se desvincule completamente da confusão com o mundo da política, dos sentimentos e das paixões, concedendo-lhe uma suposta autonomia que garantiria sua veracidade e eficácia. Essa separação artificial manifesta-se na distinção entre matters of fact (questões de fato) e matters of concern (questões de interesse), que é fundamental para a epistemologia moderna. Latour critica essa Demarcação, argumentando que Ciência e Política não são esferas separadas, mas intrinsecamente interligadas e coproduzidas. A ideia de uma ciência pura, livre de influências sociais e políticas, é, para ele, uma invenção moderna; Fatos científicos e artefatos técnicos são, na verdade, construções híbridas que emergem de complexas negociações e interações entre atores humanos e não-humanos. A obra ‘Cogitamus’ reforça essa visão, defendendo que as esferas da ciência e da política não existem separadamente, mas como “cosmogramas” que se sobrepõem e que devem ser descritos em sua complexidade (Latour, 2016, p. 116).

A demarcação é insustentável porque a Ciência e a técnica nunca foram verdadeiramente autônomas da história, da sociedade e da política. A própria Natureza (com “N” maiúsculo, referindo-se à metafísica da natureza moderna) não é autônoma; ela também é construída e negociada. A crise atual dessa demarcação é comparável à Reforma Protestante, sugerindo a necessidade de “secularizar a ciência” e transformá-la em “ciências” (no plural), reconhecendo sua diversidade e suas conexões (Latour, 2016, p 150). O poder moderno, em sua essência, utiliza aliados humanos e não-humanos simultaneamente, e as análises tradicionais que separam esses elementos levam a uma compreensão incompleta do exercício do poder. Para Latour (2016), “Ciência”, “tecnologia” e “economia” são rótulos distintos para um único e sério problema estratégico: o de recrutar aliados, forçá-los a obedecer, lançá-los na batalha e vencer ou perder.

As HC propõem-se a questionar a autonomia das ciências e a descrever as situações complexas das quais elas fazem parte, representando assim um novo ponto de partida para abordar a realidade sociotécnica, rompendo com a ideia de reconciliar esferas separadas de Ciência e Política. Elas constituem uma “epistemologia política” que se foca na descrição detalhada de como o conhecimento e os objetos são produzidos em meio a uma “multidão de compromissos”, apoios, obstáculos, programas e anti-programas (Latour, 2016, p. 53). Para as HC, o princípio de que “materializar é socializar; socializar é materializar” (Latour, 2016, p. 6) é ainda mais verdadeiro.

A economia política da produção de conhecimento na crítica de Latour é um aspecto crucial, não se limitando às categorias ditas intelectuais. Sociologia do Conhecimento em Latour só se realiza como Sociologia Política A “purificação” que cria a Grande Demarcação entre Ciência e Política serve para ocultar as negociações e interesses que constituem a “materialidade dos agenciamentos” (Latour, 2016. p. 115). Essa materialidade aparece, sobretudo, quando os atores políticos, os mesmos que dificultam o financiamento e questionam o trabalho realizado nas universidades e institutos de pesquisa, recorrem ao “discurso científico” para respaldar sua tomada de decisão. A crise climática e a pandemia de Covid-19 são claros exemplos disso. Entre negacionismos e positivismos de toda sorte, o discurso científico aparece nas mídias como forma de ratificar ou desacreditar tal ou qual decisão política. Ciência e Política são na verdade coproduzidas.

 

4 MÉTODO E DEFINIÇÕES DE HUMANIDADES CIENTÍFICAS (HC)

Nas seções precedentes se localizou o lugar de ‘Cogitamus’ e das HC no contexto da TAR. Indicou-se ainda como o projeto das HC como prática metodológica da TAR se insere no quadro mais amplo da crítica à Modernidade, sobretudo à Grande Demarcação que impede de ver o quanto a prática das ciências é coproduzida nas práticas políticas. Na presente seção apresentam-se algumas possíveis definições de HC para além de sua operação como quadro metodológico da TAR, destacando o seu caráter de campo (trans)disciplinar emergente.

As Humanidades Científicas (HC) são concebidas por Latour como um domínio cujas fronteiras não são fixas, mas sim delineadas a partir de campos como os Estudos da Ciência (Science Studies). Na ‘Primeira Carta’, indica que ao ministrar cursos de HC, concentra-se nas “ciências e técnicas em suas relações com a história, cultura, literatura, economia, política” (Latour, 2016, p. 12), o que denota um escopo sem fronteiras disciplinares rígidas. Para as HC, todas as ciências são consideradas igualmente importantes, sem hierarquias predefinidas.

As HC são apresentadas como uma designação alternativa para Science Studies, Science and Technology Studies (STS) ou Sociologia da Ciência. Latour, no entanto, evita o termo “epistemologia” no sentido “francês”, que historicamente buscou remover as conexões entre as ciências e outras disciplinas. Não obstante, Science Studies é ainda a melhor tradução do grego epistemología. Todavia, o termo epistemologia carregou-se dos sentidos da Modernidade, isto é, denota na maioria das vezes alguma forma de materialismo - como já dito, “idealismo da matéria”, ja que é “uma nova concepção de matéria sonhada pelas ideias” (Latour, 216, p. 137) -, naturalismo, ou reducionismo de toda sorte. Como esforço transdisciplinar, as HC não podem correr o risco de se verem confundidas ou reduzidas a um esforço que, ao fim, é metafísico, isto é, uma pressuposição sobre a natureza dos atores e que não permite descrevê-los interagindo.

Para Latour (2016), mais adequado seria entender as HC como “epistemologia política”, focada na descrição detalhada de como o conhecimento e os objetos são produzidos em meio a uma “multidão de compromissos”, apoios, obstáculos, programas e anti-programas. Entretanto, Latour justifica o uso de HC, tanto pelo fato da confusão que a expressão “Epistemologia Política” poderia causar, quanto por uma preferência estilística, já que afirma que “acostumei-me a humanidades, essa bela palavra que durante tanto tempo serviu para definir a educação e que tem um cheirinho bom de Renascimento” (Latour, 2016, p. 26). Importante notar que “esse cheirinho bom de Renascimento” aponta metodologicamente para mais longe, isto é, para um período em que a Grande Demarcação não havia ocorrido.

Para definir melhor as HC, deve-se partir de sua “regra fundamental”, formulada como uma questão-problema na ‘Segunda Carta’:

durante quanto tempo um curso de ação qualquer prosseguir - quantas linhas de um artigo, quantas frases de uma conversa - sem que seja mencionada de forma mais ou menos explícita a interposição ( a tradução) de uma técnica ou de uma ciência (hard ou soft, natural ou social)? (Latour, 2016, p. 42)

O curso de ação da produção científica não se resume ao método científico moderno. Ele  é sempre sociotécnico. Dado que “para nós, não existe sequer um curso de ação que não seja social [...] e que, além disso, não seja obrigado a abrir caminho por meio de um ou vários dispositivos técnicos” (Latour, 2016, p. 56)

Na ‘Terceira Carta’ Latour dá pistas mais concretas sobre o método das HC, o que pode levar a sua definição mais precisa. As HC são um procedimento de hesitação a respeito dos discursos. São uma forma ainda de acompanhar os conflitos de autoridade que ocorrem no interior das ciências e entre as ciências e a política. Por isso, sua forma de trabalho  se baseia na observação do “trabalho completo”, isto é, em todo o curso da ação com suas controvérsias e negociações, em vez de se limitar a atos isolados, às caixas-pretas. Na imagem abaixo, apresenta-se o diagrama de Latour na ‘Terceira Carta’ em que o autor indica o caminho percorrido pelas HC na descrição da produção das ciências. As ecologias são o objetivo último das HC, isto é, a descrição dos cosmogramas sobrepostos de várias fontes de ação, compostos de organizações, sociedades e impérios, mas também de máquinas, técnicas e ferramentas. Uma ecologia incorpora atores heterogêneos, sem os quais não se sustenta. O financiamento público de uma pesquisa de grande porte, por exemplo, o desenvolvimento de vacinas, ou ações emergenciais e programadas de enfrentamento à mudança climática é, nesse sentido, tão “científico” quanto os princípios de cientificidade modernos, como plausibilidade e replicabilidade. 

 As HC constituem uma forma de análise sociotécnica que observa a emergência de uma técnica sob “provação” (ou seja, quando enfrenta dificuldades) e seu subsequente desaparecimento como objeto de atenção ao se tornar uma forma de saber incorporada ao conhecimento científico já disponível. Para chegar à descrição desses processos, as HC se valem de três conceitos já desenvolvidos pela TAR e que são seus próprios conceitos fundamentais: tradução, provação e controvérsias, que se realizam ao longo de todo o mecanismo de substituição e composição que marcam as negociações tecnopolíticas da produção das ciências.

Ao atentar-se aos processos de substituição e composição, de desvios e traduções, que formam as ecologias, uma questão ainda fica: como é possível que ainda se afirme uma progressiva separação entre os domínios da ciência/técnica e o da história? Essa visão, herdeira da Modernidade, precisa ser substituída pelas de vinculação e ecologização. A história da ciência não pode ser vista como um relato extrínseco sobre o desenrolar de fatos cumulativos. Ao contrário, a história é intrínseca à ciência. Assim, as HC são um método de descrição das ecologias tecnopolíticas mais amplas considerando sua dimensão histórica inerente.

Por isso, no método das HC, o uso de uma técnica aparentemente tão simples se torna tão importante: o “diário de Bordo”. Trata-se de uma ferramenta herdada da etnografia. Seu uso consiste na anotação de todos os fatos pertinentes percebidos pelo observador. Se na etnografia “clássica” a anotação consistia nas ações performadas por atores humanos, nas HC registra-se o curso da ação como um todo: técnicas e instrumentos utilizados, legislação, financiamento, ou seja, todos os atores que desempenhem algum papel crucial na ecologia sendo descrita.

 Latour menciona o uso de plataformas digitais como diários de bordo e a possibilidade de substituir sistemas de tutoria tradicionais por plataformas digitais, destacando a evolução e a adaptabilidade dessa ferramenta. Em ‘Laboratory Life’ (Latour, Woolgar, 19686), as “notas do observador” são apresentadas como dados brutos que são transformados em um relato ordenado, evidenciando o papel central do registro detalhado. As HC, como uma epistemologia política, são fundamentalmente empíricas e descritivas. O diário de bordo é a matéria-prima dessa etnografia, capturando as minúcias da atividade científica. Esse compromisso com a observação empírica das  práticas é o que permite que as HC revelem  a natureza sociotécnica da produção de conhecimento, transcendendo debates filosóficos abstratos sobre a ciência. Trata-se de mostrar como as coisas são feitas e estabilizadas, em vez de apenas o que são.

Mas como indicar quais atores devem ser descritos ou não? Na ‘Quarta Carta’ Latour (2016, p. 118)  apresenta as HC como “atentas à emergência de novos seres”. Ao observar as controvérsias, as HC possibilitam não só reconhecer esses novos seres como importantes em seu relato, mas funcionam como tentativa de encontrar-lhes um lugar. Assim, mais que descrever uma possível aplicação prática das ciências, uma ideia ainda baseada no pressuposto de que as ciências são uma descrição neutra do real, as HC preocupam-se com “a implicação e mesmo a complicação das ciências no mundo” (Latour, 2016, p. 131).

Como dito anteriormente, as HC são um verdadeiro “materialismo prático” (Latour, 2016, p. 137), justamente por ser um método que descreve os instrumentos e objetos que participam na composição das ciências. Entretanto, seria um erro dispensar toda e qualquer teoria. A crítica à especulação metafísica pressuposta pela epistemologia moderna não é equivalente ao abandono de toda teoria. As HC não abrem mão de dois tipos de instrumentos: os da teoria e os da prática, a metafísica e a materialidade dos instrumentos. Não se pode abandonar a metafísica! O seu abandono ou a atitude de assumi-la acriticamente são igualmente equivocados. O materialismo prático exige uma revisão metafísica do real. Só assim se pode superar duas angústias que abalam o fazer dos cientistas: a da multidão e a da torre de marfim. Essas angústias devem ser superadas tendo em vista “que não podemos sem separar nem fazer coincidir por completo ciências e sociedade” (Latour, 2016, p. 155). Pela TAR, já se sabe que é impossível separá-las por completo. Entretanto, tomá-las como equivalentes seria recair nos erros do Construtivismo, que reduz a materialidade dos atores à performatividade meramente discursiva.

O que se pretende é restabelecer agenciamentos de pensamento coletivo à dignidade do saber. O conhecimento é construído no vai e vem entre a ágora e o laboratório, entre a política e as ciências, mas ágora e laboratório não são a mesma coisa. Não reconhecer isso seria negar a materialidade própria dessas formas de agenciamento.

O saber é retirado da ágora e passa pelo laboratório. Mas ágora e laboratório não são o mesmo. A multidão, segundo Latour apresenta em ‘Cogitamus’, constitui o temor do cientista e do filósofo, desde a filosofia clássica grega. Pode-se deixar a multidão decidir o que é verdadeiro ou não? Mas essa não é a questão para Latour. Trata-se antes de perceber como as ciências implicam-se na construção da própria ágora. Fechar-se na torre de marfim acadêmica, a rejeição de qualquer implicação, é o sufocamento do próprio fazer científico. As HC são, em suma, a adequada descrição do “cogitamus”: como podemos pensar em comum? Quais instrumentos são necessários? E qual mundo comum podemos construir com esse saber?

 

5 HUMANIDADES CIENTÍFICAS: E DIGITAIS?

As Humanidades Digitais (HD) são um paradigma emergente que visa o atravessamento criativo e produtivo entre a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais e as novas tecnologias da informação e comunicação.

Para nós, as digital humanities referem-se ao conjunto das Ciências humanas e sociais, às Artes e às Letras. As humanidades digitais não negam o passado, apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimentos próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspectivas singulares do mundo digital.

As digital humanities designam uma transdisciplina, portadora dos métodos, dos dispositivos e das perspectivas heurísticas ligadas ao digital no domínio das Ciências humanas e sociais. (Manifesto, 2011, s.p.)

As HD nascem assim no contexto das novas tecnologias da informação e comunicação, sobretudo na possibilidade de digitalização dos dados. Muito debate tem se realizado nesse campo, sobretudo sobre o sentido desse atravessamento. As HD por vezes são consideradas como a digitalização de processo de pesquisa, de dados e informação no campo das Humanidades e por vezes pela pesquisa sistemática realizada nas Ciências Humanas e Sociais sobre o mundo e a cultura digital (Castro, Pimenta, 2018). Embora se possa questionar o sentido do vetor de implicação entre as Humanidades e o digital, o que se nota é que o aparecimento das HD se dá como efeito da transformação digital, isto é, uma profunda mudança social que alterou padrões de comportamento, comunicação, integrações de sistemas privados e públicos, e de produção de ciência  (Viola, 2023).

Para Latour (2016),  a integração das Humanidades Digitais é apresentada como uma evolução natural e até necessária das Humanidades Científicas (HC). Na ‘Quinta Carta’ chega a estabelecer até mesmo uma equivalência entre ambas, ao afirmar que podemos chamar o método que está apresentando como  Latour estabelece uma equivalência fluida entre as duas, afirmando “humanidades científicas - ou digitais, como desejar” (Latour, 2016, p. 172). Esse “tanto faz” de Latour é fundamental. As HD não são para ele uma simples justaposição das tecnologias digitais às Humanidades. O digital é visto como uma condição de possibilidade de criação de uma ágora de pensamento coletivo e cognição distribuída até então apenas imagina.

AS HC só atingem seu objetivo, de descrever as ecologias mais amplas na qual o saber científico se compõe, se são também HD. Até porque “cada dia diminui mais a diferença entre um pesquisador e um search engine” (Latour, 2016, p. 173). Para Latour, isso não deve ser um motivo de alarme para o pesquisador em Ciências Humanas e Sociais. Ao contrário, um verdadeiro humanista abraça o digital como a possibilidade de uma amplificação da construção coletiva do saber.

Se o corolário das HC está correto, que “do cogito não se pode deduzir nada, nem sequer que existo. Mas, do cogitamus, pode-se deduzir tudo” (Latour, 2016, p. 174), resta utilizar da melhor maneira possível as ferramentas disponíveis para a composição da cognição distribuída. O “cogitamus” – o pensar e calcular em comum – é o cerne do papel das tecnologias digitais. Essas tecnologias atuam como instrumentos cruciais para habilitar e estender essa cognição distribuída, onde a inteligência e o conhecimento não se confinam a mentes individuais, mas se espalham por uma rede de atores humanos e não-humanos.

Além disso, se as HC descrevem os novos atores emergentes, entre esses devem ser contados os muitos objetos inteligentes possibilitados pelos avanços da computação e da inteligência artificial. Eles interagem ativamente com humanos e outros objetos, gerando o fenômeno da “interobjetividade” (Peverini, 2023), de atores não humanos interagindo continuamente entre si sem a interferência direta de atores humanos. A proliferação de objetos demonstra a insustentabilidade da assimetria sujeito-objeto e redefine a prática científica.

Assim, as HD permitem passar do universo fechado da Ciência moderna para o multiverso das interações entre atores humanos e não humanos. O termo multiverso, que Latour adota a partir de Willian James, indica a sobreposição de várias formas de agência e de vários cosmos. “Observar de quantas maneiras diferentes pode ser composto o multiverso” (Latour, 2016, p. 185), de como os mundos científicos se formam, exige uma capacidade de análise empírica que hoje pode ser empreendida através dos recursos às ferramentas digitais disponíveis.  As HC exigem uma atenção à cultura material, ao desenvolvimento dos objetos técnicos que é, na realidade, o ponto de partida das HD.

As tecnologias digitais atuam como casos catalisadores das teses centrais da TAR. A integração das Humanidades Digitais (HD) nas Humanidades Científicas (HC) não é uma mera atualização tecnológica, mas um reforço e amplificação dos argumentos epistemológicos e ontológicos centrais de Latour. As tecnologias digitais incorporam a cognição distribuída e atuam como atores que ativamente traduzem e engajam outros atores, moldando hábitos e borrando a divisão  entre humano e não humano. Elas tornam o “cogitamus” mais explícito e pervasivo. Assim, desde esses argumentos apresentados por Latour, talvez seja mais preciso deixar de tratar as HC e as HD como domínios separados ou tangenciáveis, e pensar um amplo campo de pesquisa da produção do conhecimento que poderia chamar-se Humanidades Científicas e Digitais (HCD).

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho percorrido do “cogito” ao “cogitamus” na obra de Bruno Latour revela uma redefinição radical da natureza do conhecimento, da ciência e do próprio social. Ao desafiar as rígidas demarcações da Modernidade, Latour propõe uma ontologia plana onde atores humanos e não-humanos se associam em redes complexas. O princípio “cogitamus” emerge como o cerne dessa cognição distribuída, um pensamento em comum que é fundamentalmente performativo e generativo, em contraste com o isolamento do “cogito” cartesiano. A metafísica da Modernidade, que segundo Latour sustenta uma separação radical entre natureza e cultura, Política e Ciência, sujeito e objeto, é apenas um conjunto de pressuposições de difícil verificação. Mais que isso, a análise empírica e histórica dos processos de composição de saberes aponta para a insustentabilidade dessas separações. Em seu lugar, deve emergir uma ontologia plana, capaz de descrever os agenciamentos mais amplos nos quais os lados desses supostos binômios aparecem em contínua relação e sustentando-se mutuamente no curso da ação e na formação de coletivos.

A Teoria Ator-Rede (TAR) e as Humanidades Científicas (HC) são quadros teóricos metodológicos para explorar essa realidade sociotécnica. Conceitos como tradução, provação e controvérsias são os mecanismos pelos quais o conhecimento é produzido, negociado e estabilizado Essa abordagem desvela a economia política intrínseca à produção do conhecimento, onde a “purificação” moderna oculta as negociações e interesses que moldam o que se torna conhecimento aceito e reconhecido. As HC, como verdadeira epistemologia política, tornam visíveis essas relações de poder. Além disso, as HC se revelam como uma forma de materialismo prático, que não se furta a explicitar as materialidades que a epistemologia moderna do “idealismo do materialismo” rejeitava: teorias e técnicas, comunidades políticas e científicas, ferramentas, instrumentos, objetos técnicos e financiamento, o curso da ação como um todo é seguido e descrito.

A integração das Humanidades Digitais (HD) não é uma justaposição às HC. Em certo sentido, ampliam e validam os argumentos da TAR. As tecnologias digitais, atuam como atores que incorporam a cognição distribuída, moldam hábitos e borram as fronteiras entre o humano e o não humano. Sua relação com a prática das HC, entendida como materialismo prático, antes pressupõe uma verdadeira inerência entre os conceitos. Fazer HC exige fazer HC. Assim, o termo Humanidades Científicas e Digitais (HCD) aparece como um descritor adequado para a prática metodológica proposta em ‘Cogitamus’.

A tarefa das HCD não é apenas crítica. Mais que desconstruir o edifício da da Ciência moderna, as HCD são uma tentativa de implicar cada vez mais as ciências, plurais e controversas, na construção de um mundo habitável comum. Por isso, fazer HCD exige persistência para lutar “resultado por resultado, laboratório por laboratório” (Latour, 2016, p. 207).

REFERÊNCIAS

CALLON. Michel. Sociologie de l’acteur réseau. In: AKRICH, Madeleine; CALLON, Michel; LATOUR, Bruno. Sociologie de la traduction. Textes fondateurs. Paris: Presses des Mines, 2006.

CASTRO, Renan Marinho de; PIMENTA, Ricardo Medeiros. Novas práticas informacionais frente às Humanidades Digitais. A construção de acervos digitais como suporte para as Digital Humanities. Informação e Informação, v. 23, n. 3, p. 523 – 543, set./dez., Londrina, 2018. Disponível em https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/27952. Acesso em 15 mai. 2025.

MANIFESTO DAS HUMANIDADES DIGITAIS. Paris. (2010). Disponível em: https://tcp.hypotheses.org/497. Acesso em: 10 abr. 2025.

LATOUR, Bruno. Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 422 p.

LATOUR, Bruno. Cogitamus. Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34, 2016.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2019a.

LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência. Uma antropologia dos modernos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019b. 403 p.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Uma introdução à Teoria do Ator-Redes. Salvador, São Paulo: Edufba, Edusc, 2012. 399 p.

LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. Laboratory Life. The Construction of Scientific Facts. 2a ed. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1986.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. 159 p.

LEMOS, André. Epistemologia da comunicação, neomaterialismo e cultura digital. Galaxia,, n. 43, jan-abr, p. 54-66, São Paulo, 2020. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020143970. Acesso em 01 mai. 2025.

NUNES, Marcus Vinicius de Souza. Teoria Queer e Teoria Ator-Rede. Cartografia de masculinidades em mídia social. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2024.

PEVERINI, Paolo. Bruno Latour in the Semiotic Turn. An inquiry into the Networks of Meaning. Cham, Switzerland: Springer, 2023.

VIOLA, Lorella. The Humanities in the Digital. Beyond Critical Digital Humanities. Cham. Switzerland: Palgrave MacMillan, 2023.



[1] Esta pesquisa foi realizada com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina - FAPESC.

[2] Doutor em Educação (PPGE/UDESC). Estágio de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Informação e Comunicação (PPGTIC/CTS/UFSC). Professor Colaborador no Departamento de Educação Científica e Tecnológica (DECT/CEAD/UDESC).

[3] Seguindo o uso de recorrente de Latour, neste texto se grafa ‘Ciência’ (com inicial maiúscula e no singular) quando se refere ao projeto moderno da Grande Demarcação entre Ciência e Política e ‘ciências’ (com inicial minúscula e no plural” sempre que diz respeito à produção científica analisa sob o método das Humanidades Científicas e dos princípios da Teoria Ator-Rede. O termo ‘ciências’ evidencia a pluralidade das materialidades que compõem o fazer científico, em oposição à metafísica materialista da ciência, herdada do método cartesiano (Latour, 2016).

[4] “[...] rôle qu’elle assigne aux non humains dans la composition de la societé”.

[5] Na obra de Latour, dois termos aparecem descrevendo os entes capazes de ação: ora são chamados atores, ora actantes. Não há um consenso sobre uma distinção entre os dois termos, dado que o próprio Latour parece por vezes entendê-los de maneira diferente e variável. Uma possível interpretação da variação semântica dos termos é compreender o termo ator como descrevendo os elementos da rede que têm sua função e modo de ação já descritos e actante como referindo-se aos agenciamentos ainda não plenamente incorporados e descritos em uma rede (Nunes, 2024). Neste texto se usa os dois termos como intercambiáveis, já que sua precisa descrição e a problematização de sua variação semântica não fazem parte do escopo da presente pesquisa.