A RACIONALIDADE COMUNICATIVA EM CRISE

inteligência artificial, plataformas digitais e o esgotamento do discurso público

Lucas Fernandes da Silva[1]

Faculdade Paulus de Comunicação

241181@sou.fapcom.edu.br

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Resumo

O presente artigo investiga a crise da racionalidade comunicativa e o esgotamento do discurso público na era digital. A partir do referencial teórico de Jürgen Habermas, analisa-se como as plataformas digitais e a inteligência artificial promovem a substituição do agir comunicativo, orientado ao entendimento, pelo agir estratégico, focado na manipulação. O estudo demonstra que essa dinâmica resulta na colonização sistêmica do mundo da vida por lógicas de mercado e poder, fomentando a criação de "anti-esferas públicas" que operam com base na exclusão e na coerção. Discutem-se questões como a desinformação em massa, a manipulação algorítmica e a consequente crise de identidade dos sujeitos, imersos em realidades fragmentadas. Por fim, a pesquisa aponta para uma dupla via de enfrentamento da crise: a necessidade de uma regulação democrática das tecnologias e o papel fundamental de uma educação crítica para a reconstrução do potencial deliberativo da esfera pública.

Palavras-chave: Esfera pública. Racionalidade comunicativa. Regulação democrática. Inteligência artificial. Deliberação digital.

COMMUNICATIVE RATIONALITY IN CRISIS

artificial intelligence, digital platforms, and the exhaustion of public discourse

Abstract

This article investigates the crisis of communicative rationality and the exhaustion of public discourse in the digital age. Based on the theoretical framework of Jürgen Habermas, it analyzes how digital platforms and artificial intelligence promote the replacement of communicative action, oriented towards understanding, with strategic action, focused on manipulation. The study demonstrates that this dynamic results in the systemic colonization of the lifeworld by market and power logics, fostering the creation of "anti-public spheres" that operate on the basis of exclusion and coercion. Issues such as mass disinformation, algorithmic manipulation, and the consequent identity crisis of subjects immersed in fragmented realities are discussed. Finally, the research points to a two-pronged approach to confronting the crisis: the need for democratic regulation of technologies and the fundamental role of critical education in reconstructing the deliberative potential of the public sphere.

Keywords: Public sphere. Communicative rationality. Democratic regulation. Artificial intelligence. Digital deliberation.

RACIONALIDAD COMUNICATIVA EN CRISIS

inteligencia artificial, plataformas digitales y el agotamiento del discurso público

Resumen

Este artículo investiga la crisis de la racionalidad comunicativa y el agotamiento del discurso público en la era digital. Basándose en el marco teórico de Jürgen Habermas, analiza cómo las plataformas digitales y la inteligencia artificial promueven la sustitución de la acción comunicativa, orientada a la comprensión, por la acción estratégica, centrada en la manipulación. El estudio demuestra que esta dinámica resulta en la colonización sistémica del mundo de la vida por las lógicas del mercado y del poder, fomentando la creación de «antiesferas públicas» que operan sobre la base de la exclusión y la coerción. Se abordan cuestiones como la desinformación masiva, la manipulación algorítmica y la consiguiente crisis de identidad de los sujetos inmersos en realidades fragmentadas. Finalmente, la investigación apunta a un enfoque dual para afrontar la crisis: la necesidad de una regulación democrática de las tecnologías y el papel fundamental de la educación crítica en la reconstrucción del potencial deliberativo de la esfera pública.

Palabras clave: Esfera pública. Racionalidad comunicativa. Regulación democrática. Inteligencia artificial. Deliberación digital.

1 INTRODUÇÃO

A era digital, inaugurada com a promessa de um espaço radicalmente mais inclusiva e democrática, conduziu a sociedade a um paradoxo. As mesmas tecnologias que potencializaram a conexão e o acesso à informação em escala global revelaram-se, simultaneamente, vetores de fragmentação, polarização e desinformação, colocando em xeque os próprios fundamentos do debate público. As redes sociais e, mais recentemente, a inteligência artificial, reconfiguraram as dinâmicas de comunicação de tal forma que o ideal de um discurso orientado pelo entendimento mútuo parece progressivamente se esgotar. É nesse contexto de profunda transformação que este artigo se propõe a investigar a crise da racionalidade comunicativa, analisando como as plataformas digitais e a IA mediam e, em grande medida, instigam o esgotamento do discurso público deliberativo.

A presente pesquisa, dedicada a analisar a crise da racionalidade comunicativa na era digital, fundamenta-se em uma metodologia de pesquisa bibliográfica. O arcabouço teórico constrói-se a partir das obras seminais de Jürgen Habermas, complementadas por contribuições de outros teóricos contemporâneos que investigam a reconfiguração da esfera pública. Através de uma revisão detalhada dessa literatura, busca-se compreender as dinâmicas entre tecnologia, ciência e ideologia no cenário digital. A análise dessas referências fornece os subsídios teóricos necessários para a elaboração do artigo, o que permite a aplicação de conceitos habermasianos como a colonização sistêmica do mundo da vida e a tensão entre o agir comunicativo e o agir estratégico, ao impacto concreto das plataformas digitais e da inteligência artificial sobre a deliberação democrática.

Severino (2013) afirma para a pesquisa documental:

A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses, e etc. utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir das contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes nos textos (p.122).

Para desenvolver este debate, o artigo estrutura-se em três seções. Primeiramente, analisa-se a crise da racionalidade e crise da identidade comunicativa na era digital, explorando-se como a ascensão de uma "anti-esfera pública" promove a exclusão e a coerção em detrimento da deliberação. Em seguida, aprofunda-se a ruptura entre o agir comunicativo e o agir estratégico, demonstrando-se como as plataformas digitais se tornam o principal meio por onde  podemos voltar a reconfigurar o discurso. Por fim, examina-se o papel da inteligência artificial, que, ao mesmo tempo, em que acelera a degradação do debate, também oferece ferramentas que, sob uma regulação democrática, podem ajudar a reconstruir uma esfera pública mais racional e plural.

Ao final, a reflexão aponta para a urgência de se pensar caminhos regulatórios e educacionais capazes de resgatar o potencial emancipatório da comunicação. Diante de um cenário de crescente instrumentalização do discurso, compreender e enfrentar essa crise torna-se uma tarefa central para a sobrevivência de uma sociedade democrática, livre e justa.

 

2 DISCUSÃO

2.1 A CRISE DA RACIONALIDADE E DA IDENTIDADE COMUNICATIVA NA ERA DIGITAL

Com a ascensão das redes sociais, a esfera pública deliberativa foi sendo colonizada e, no lugar do livre consenso, foi se impondo o agir estratégico. Nesse novo cenário, os agentes da ação comunicativa, não mais orientados pela liberdade, mas por discursos ideológicos, buscam a todo custo desacreditar os demais participantes. O objetivo é levá-los a abandonar a racionalidade do discurso e a adotar a lógica instrumental do mundo dos sistemas, no qual o sistema político[2] adentrou de forma agressiva, principalmente nas redes sociais que ganharam proeminência com o avanço da técnica e da internet.

Como consequência desse processo, evidencia-se um cenário onde a racionalidade é abandonada e, em seu lugar, absorve-se um discurso extremista. Tal fenômeno pode ser compreendido como a formação de uma "anti-esfera pública", pois está se funda em princípios opostos aos da deliberação, como a exclusão e a coerção. O discurso político-ideológico da extrema-direita, por exemplo, utiliza de forma agressiva essa “anti-esfera pública”. Ela também induz seus participantes à perda da identidade pessoal, que é substituída por uma identidade coletiva, produzida para levar seus agentes a uma gênese de radicalização. Esse processo culmina na polarização e até mesmo na criação e aceitação acrítica de fake news por parte desses grupos.

Sobre "anti-esfera pública" temos:

A "anti-esfera pública" descreve como essas plataformas subvertem os ideais de esfera pública de Hannah Arendt e Jürgen Habermas. Enquanto Arendt e Habermas veem a esfera pública como um espaço de deliberação racional e pluralidade, as redes sociais frequentemente promovem personalismo, polarização e dissenso, impulsionados por algoritmos que priorizam o engajamento em detrimento do debate construtivo. Assim, as redes sociais atuam como uma "anti-esfera pública" ao restringirem o potencial do discurso público e a ação política, desafiando os princípios de comunicação racional e inclusiva (Lima, 2024, p. 12).

É válido ressaltar que essa fragmentação da esfera pública não é um fenômeno exclusivo das atuais redes sociais. Outrora, plataformas como fóruns e blogs já apresentavam essa tendência, mas o que se discutia nesses espaços raramente era internalizado ou transposto para o mundo da vida dos participantes. Com as redes sociais contemporâneas, contudo, o mundo dos sistemas passou a colonizar esses ambientes de forma mais eficaz. Num primeiro momento, essa colonização ocorreu pela via do sistema econômico, onde, por meio do simulacro, os indivíduos foram induzidos ao consumo de roupas, cosméticos e produtos afins, como nos aponta o sociólogo Baudrillard:

Apareceu uma nova morfogénese, que depende do tipo cibernético (isto é, reproduzindo ao nível do território, do habitat, do trânsito, os cenários de comando molecular que são os do código genético), e cuja forma é nuclear e satelítica. O hipermercado como núcleo. A cidade, mesmo moderna, já não o absorve. É ele que estabelece uma órbita sobre a qual se move a aglomeração. Serve de implante aos novos agregados, como o fazem também por vezes a universidade ou ainda a fábrica - já não a fábrica do século XIX nem a fábrica descentralizada que, sem quebrar a órbita da cidade, se instala nos arredores, mas a fábrica de montagem, automatizada, de comando electrónico, isto é, correspondendo a uma função e a um processo de trabalho totalmente desterritorializados. Com esta fábrica, como com o hipermercado ou a nova universidade, já não nos confrontamos com funções (comércio, trabalho, saber, tempos livres) que se autonomizam e se deslocam (o que caracteriza ainda o desdobramento «moderno» da cidade), mas com um modelo de desintegração das funções, de indeterminação das funções e de desintegração da própria cidade (Baudrillard, 1981, p. 101).

Contudo, a colonização sistêmica não se limitou à esfera do mercado. O subsistema político também penetrou nas redes sociais, embora seu espaço não tenha sido conquistado de imediato, necessitando de alguns anos para se consolidar. Esse avanço foi fragmentando a esfera pública deliberativa, conforme aponta Habermas em sua obra de 2023, Uma nova mudança estrutural da esfera pública. Nela, o autor inicialmente aborda o potencial que as redes sociais teriam para alargar o debate público, ao englobar um número maior de agentes.

O progresso tecnológico da comunicação digitalizada promove, em primeiro lugar, tendências que dilatam os limites da esfera pública, mas também provocam sua fragmentação. O caráter horizontal da nova mídia, ao lado da esfera pública editada, cria um espaço de comunicação no qual os leitores, ouvintes e espectadores podem assumir espontaneamente o papel de autores (Habermas, 2023, p. 29).

Entretanto, em vez de ampliar a esfera pública de forma democrática, essas redes acabaram por criar “semi-esferas públicas". Nelas, as pretensões de verdade são frequentemente desconsideradas, abrindo espaço para a propagação de mentiras. O objetivo principal deixa de ser o consenso e passa a ser o lucro que essas plataformas podem gerar para os sistemas político e econômico, permitindo que qualquer indivíduo, mesmo sem preparo técnico ou compromisso factual, edite e propague ideologias sem se responsabilizar perante a comunidade democrática.

A ascensão da nova mídia está ocorrendo à sombra de uma exploração comercial da comunicação da rede que, por enquanto está pouco regulamentada. Parece que se impõe entre os usuários exclusivos da mídia social um modo de comunicação semipública, fragmentada e que gira em torno de si mesma, o que deforma sua percepção da esfera pública política como tal (Habermas, 2023, p. 29).

A dinâmica interna dessas "semi-esferas públicas" merece uma análise mais detalhada. Num primeiro momento, elas surgem como espaços onde indivíduos com intersubjetividade compartilhada se agregam para compartilhar suas visões de mundo e modos de agir. Com o tempo, contudo, esses grupos evoluem a mera afinidade e passam a ditar regras como se fossem a própria esfera pública. Para sintetizar os principais aspectos da crise da racionalidade e da identidade comunicativa na era digital, apresenta-se o quadro a seguir, que organiza de forma esquemática os elementos centrais desse processo.

Quadro 1 - Crise da racionalidade e da identidade comunicativa na era digital

Aspecto

Descrição

Colonização da esfera pública

Redes sociais substituem o consenso deliberativo pelo agir estratégico, orientado por ideologias e manipulação.

Formação da “anti-esfera pública”

Espaço contrário à deliberação racional, marcado por exclusão, coerção, radicalização e fake news.

Perda da identidade comunicativa

Indivíduos abandonam a identidade pessoal em favor de uma identidade coletiva radicalizada.

Colonização sistêmica

Primeiro pelo mercado (consumo e simulacro), depois pelo sistema político (ideologias extremistas).

Fragmentação em “semi-esferas públicas”

Ambientes digitais que simulam deliberação, mas priorizam interesses econômicos e políticos, propagando realidades paralelas.

Fonte: Elaborado pelo autor, 2025.

Este processo leva seus participantes a desacreditar naquilo que é deliberativo e começam aderir a um "mundo editado", uma realidade paralela construída sob medida. Tal conjuntura é intensificada pelo advento das fake news[3], ferramenta que ideologias políticas extremistas começaram a utilizar de forma sistemática para manipular e distorcer a percepção da realidade.

Essas teorias encontram ressonância nos desafios contemporâneos, como a disseminação de fake news, que exemplificam a transformação da esfera pública em uma 'anti-esfera pública'. As redes sociais são espaços virtuais onde comunidades interagem em um ambiente digital que, no início, foi reservado para poucos. Com o tempo, o acesso à internet e às tecnologias de comunicação se expandiu, tornando-se mais democrático. Hoje, a internet é um espaço de trocas culturais e experiências imediatas, conectando pessoas de todo o mundo em segundos. Essas interações são tanto positivas quanto negativas, mas o fato é que a rede pode mudar as pessoas, rompendo barreiras de distância e tempo (Lima, 2024, p. 13).

Essa imersão acarreta, para os indivíduos outrora inseridos no debate deliberativo, uma profunda crise de racionalidade e de identidade. À medida que agentes sistêmicos editam a realidade e os participantes passam a acreditar veementemente nessas narrativas paralelas, a sua conexão com o mundo factual compartilhado se desfaz, no Brasil, um exemplo concreto desse fenômeno pôde ser observado nas eleições de 2018. Na ocasião, a extrema-direita, tendo como principal líder Jair Bolsonaro, utilizou de forma descriminada esses discursos para manipular o eleitorado, explorando um ambiente digital pouco regulamentado que oferecia brechas para tais práticas. Essa estratégia, contudo, não se limitou ao período eleitoral, tendo continuidade durante o governo por meio da estrutura que ficou conhecida como “Gabinete do Ódio”.

Por essa Razão a suposição de que existe algo como “verdades morais” acabaria expressando uma ilusão sugerida pela compreensão cotidiana intuitiva as abordagens não cognitivistas desvalorizam em um único golpe o mundo das instituições Morais cotidianas de acordo com essas teorias só é possível falar sobre a moral de uma perspectiva científica em termos empíricos (Habermas, 2023, p. 109).

A atuação dessa estrutura se intensificou até o pleito de 2022, período no qual a fragmentação da racionalidade e da identidade se tornou ainda mais explícita. Antes disso, porém, é crucial ressaltar um ponto: durante a pandemia de Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro já havia utilizado essas mesmas ferramentas de comunicação para propagar desinformação, uma estratégia que contribuiu para o agravamento da crise sanitária que vitimou mais de 700 mil pessoas.

Os interesses ligados à manutenção do modo de produção não são mais “claramente localizáveis” no sistema social como interesses de classe. Pois um sistema de dominação orientado pela prevenção dos perigos que ameaçam o sistema descaracteriza a “dominação” (seja no sentido da dominação política imediata ou da dominação econômica socialmente mediada) como algo cujo exercício representa o confronto de um sujeito de classe com outro sujeito de classe identificável como grupo (Habermas, 2014, p. 114).

Retomando o contexto eleitoral, o "Gabinete do Ódio" consolidou nas redes sociais, principalmente no Telegram[4] e no X (antigo Twitter), um verdadeiro "exército" digital. Sob o pretexto de uma "defesa da pátria" contra o que denominavam "comunismo", esses grupos se tornaram canais para a propagação de fake news, posicionando a extrema-direita como a única salvação para o país. Nesses ambientes, as narrativas mais inverossímeis eram divulgadas, e os próprios membros, acreditando naquelas histórias, se encarregavam de amplificar ainda mais o seu alcance.

A personalização dos feeds e a polarização das opiniões criam "bolhas de opinião" que propagam realidades paralelas na esfera pública virtual por meio de feeds e hashtags enganosos, permitindo que indivíduos escolham sua própria verdade. É crucial refletir sobre o papel das redes sociais na disseminação de informações falsas e na formação de realidades paralelas, questionando até que ponto a difusão de notícias falsas e o avanço das tecnologias da informação permitem aos usuários criar e disseminar conteúdo falso livremente (Lima, 2024, p. 8).

Mesmo com a derrota eleitoral da extrema-direita no Brasil, seus agentes continuam a se valer dos mesmos discursos para manipular suas bolhas de opinião. Esses grupos permanecem ativos e com força no cenário nacional, orientados pelos signos ideológicos da extrema-direita. Nas recentes manifestações por anistia, por exemplo, ficou nítida a persistente crise de racionalidade, principalmente entre pessoas mais velhas, que foram mais suscetíveis a essa onda de desinformação.

Fotos e vídeos registros desses eventos, circulam afirmações de que o atual presidente seria um clone, de que os EUA representam a salvação do mundo ou de que Bolsonaro ainda retornará como "salvador da pátria", o que demonstra a profundidade do descolamento da realidade.

Nesse aspecto, media[5] de controle não podem ser entendidos como uma especificação funcional da linguagem; pelo contrário, operam funções linguísticas especiais. Todavia a linguagem server também de modelo para os media em outro aspecto. Algumas caraterísticas, por exemplo a corporificação simbólica de conteúdos semânticos ou a estrutura de pretensão e resgate, são imitadas pelos media de controle; outras características, sobretudo a estrutura racional interna de um entendimento que termina no reconhecimento de  pretensões de validade criticáveis e se insere em um contexto de mundo da vida, não são reproduzidas. A conversão da coordenação da ação que vai da linguagem a media de controle significa um desacoplamento entre a interação e os contextos do mundo da vida em geral (Habermas, 2022, p. 405, grifo do autor).

Fica evidente, portanto, que as redes sociais, em seu formato atual, fragmentaram o discurso público racional. Diante disso, a tarefa que se impõe é a de voltar a construir o consenso e a de fortificar a esfera pública. No entanto, as próprias plataformas digitais e até mesmo a inteligência artificial, se bem reguladas, podem auxiliar nesse processo de fortalecimento. O desafio consiste em reverter a colonização sistêmica das redes sociais, promovida pelo mundo dos sistemas, em favor de uma comunicação que restaure o debate público e democrático.

2.2 ENTRE O AGIR COMUNICATIVO E O AGIR ESTRATÉGICO: PLATAFORMAS DIGITAIS E A RECONFIGURAÇÃO DO DISCURSO

Pode-se observar que, ao longo dos anos, as plataformas digitais, e mais especificamente as redes sociais, adotaram uma forma discursiva pautada no agir estratégico para alcançar fins que, por vezes, não são democráticos. Esse tipo de ação é comumente empregado pelo sistema político e pelo mundo econômico, ambos agentes do mundo dos sistemas. Inicialmente, cabe conceituar esses tipos de agir dentro do pensamento habermasiano.

Sobre o agir comunicativo:

O conceito de ação comunicativa se refere à interação de pelo menos dois sujeitos capazes de falar e agir que contraem uma relação interpessoal (seja com meios verbais ou extraverbais). Os atores buscam um entendimento sobre a situação da ação a fim de coordenar concordamente seus planos de ação e, com isso, suas ações. O conceito central da interpretação se refere principalmente à negociação de definições da situação suscetíveis de consenso. Nesse modelo de ação, a linguagem ocupa, como veremos, uma posição proeminente (Habermas, 2022, p. 158-159).

Sobre o agir instrumental:

A ação instrumental é regida por regras técnicas baseadas em conhecimentos empíricos. Elas implicam, em cada caso, prognósticos provisórios sobre acontecimentos observáveis, sejam eles físicos ou sociais, os quais podem ser comprovados verdadeiros ou falsos. O comportamento de escolha racional, por sua vez, é regido por estratégias baseadas em conhecimentos analíticos. As estratégias são deduzidas com bases ou regras de preferências (sistema de valores) e máximas gerais cujo enunciados podem ser deduzidos de modo correto ou falso (Habermas, 2014, p. 90).

O mundo dos sistemas, em seu âmbito político, aproveita-se da tecnificação do mundo da vida, termo cunhado por Habermas para burocratizá-lo e colonizá-lo de forma concreta. Nas redes sociais, esse sistema fragmenta a razão gerada pelo mundo da vida, levando os participantes a abandonar a ação comunicativa e a adotar o agir instrumental. Contudo, nesse tipo de agir, as verdadeiras intenções nem sempre são explícitas, com alguns objetivos permanecendo ocultos até o momento estratégico para serem usados.

Quadro 2 –  Atribuição de reputação e influência

Disposição

Atributos

Recursos

Motivação

Força: intimidação por meio de punição temida; estímulo por meio de proteção esperada.

Posse: estímulo por meio de compensação esperada.

Empiricamente

Capacidade: estímulo por meio de êxito esperado.

Atração corporal: vínculo afetivo.

Racionalmente

Imputabilidade: desconfiguração da razão.

Saber: afastamento do saber válido.

Fonte: Adaptado de Habermas, 2022.

 

Essa dinâmica pode ser claramente observada em discursos utilizados nas redes sociais, nos quais o agente é levado a acreditar nessa realidade feita sob medida, como trabalhado anteriormente. Com esse recorte seletivo da realidade, perde-se a racionalidade e, consequentemente, a própria identidade do indivíduo.

Sobre a tecnificação do mundo da vida:

Subsistemas socais que se diferenciam por meio de tais media podem se torna independentes em relação ao mundo da vida, repelido para o entorno sistêmico. O ajuste da ação aos media de controle aparece por isso, da perspectiva do mundo da vida, tanto como uma desoneração do dispêndio e do risco comunicativo quanto também como um condicionamento de decisões em espaços ampliados de contingência e, nesse sentido, como uma tecnificação do mundo da vida (Habermas, 2022, p. 278).

Dentro dessa perspectiva argumenta-se que ainda é possível reconfigurar a esfera pública e superar a colonização sistêmica, utilizando até mesmo as próprias redes sociais, em determinados contextos, como ferramentas para a conscientização crítica dos participantes. Essa tomada de consciência, contudo, perpassa fundamentalmente pela educação. Nesse sentido, é preciso chamar a atenção para as ciências humanas, que sofreram diretamente com a colonização sistêmica em seus currículos. Disciplinas como a Geografia, a Sociologia e a Filosofia tiveram uma notória redução de suas temáticas, principalmente daquelas ligadas ao fomento do pensamento crítico.

A violência estrutural e exercida mediante a restrição sistêmica da comunicação; ela é ancorada nas condições formais da ação comunicativa de tal sorte que, para os participantes da comunicação, o nexo entre mundo objetivo social e subjetivo é prejulgado de maneira típica. As formas de entendimento historicamente variantes formam por assim dizer as superfícies de corte que surgem ali onde as coerções sistêmicas da reprodução material interferem discretamente nas formas da própria integração social, mediatizando com isso o mundo da vida (Habermas, 2022, p. 283).

Para essa reconfiguração da esfera pública, podem-se citar inúmeros caminhos, mas o foco deste artigo recai sobre a via educacional. Como se pode observar ao longo dos anos, a educação em nível escolar tem sofrido uma verdadeira colonização sistêmica pela economia neoliberal[6], a qual visa não à emancipação do sujeito pelo processo educacional, mas à formação de mão de obra barata. Esse tipo de formação prejudica a esfera pública, pois a racionalidade instrumentalizada faz com que esses agentes não tenham a capacidade crítica para formar suas opiniões nos espaços deliberativos, exatamente o oposto do que a teoria da esfera pública de Habermas defende: um espaço livre de coerção e pautado no livre consenso.

Quando esses indivíduos perdem essa capacidade crítica, perdem também, de certa forma, o uso racional de suas interações no mundo da vida. O mundo dos sistemas, aproveitando-se dessa fragilidade, faz com que os participantes ajam de forma instrumentalizada para a obtenção de conquistas no campo pessoal. Consequentemente, eles fogem da esfera pública deliberativa por não saberem se posicionar de modo crítico diante dos assuntos debatidos no âmbito político e social. Isso acaba deixando o espaço livre para que ideias não deliberativas ganhem proeminência, levando até mesmo à criação de realidades não condizentes com o mundo factual, como já citado acima.

Nesse contexto, embora Habermas não tenha desenvolvido estudos diretamente sobre o mundo da educação formal, da escola particularmente, seu pensamento acerca da ação comunicativa se alinha com uma educação crítica e emancipadora. Por seu caráter emancipatório diante dos processos de retificação do dinheiro e do poder, e por seu enfoque multicultural, reconhece o Outro, respeita as diferenças, desenvolve a cooperação e a reciprocidade (Carneiro, 2022, p. 84).

Dado esse contexto a educação critica emancipatória e um caminho para a reconfiguração da esfera pública e até mesmo dessa crise da racionalidade, claro que a geografia não é salvadora total da esfera pública, mas por meio da criticidade a emancipação desses agentes que adentraram a mesma. A Geografia do Mundo da Vida e do Agir Comunicativo, teoria criada por Rosalvo em 2022, aponta o caminho para a emancipação do mundo da vida através da educação geográfica critica. Não para ficarmos num criticismo vazio, mas para a emancipação desses agentes.

Sobre a educação geográfica do Agir comunicativo:

A educação geográfica do agir comunicativo ou Geografia escolar do mundo da vida simbolizam uma mesma ideia por serem conceitos complementares; por enfatizarem os processos da reprodução cultural, da solidariedade e das personalidades da nossa existência pela interação simbólica; ou por destacarem os processos de descolonização frente aos imperativos de reprodução material do mundo dos sistemas e de suas patologias humanas e sociais, o que cabe às interações socais pelo paradigma intersubjetivo da linguagem (Carneiro, 2022, p. 111, grifo do autor).

A Geografia do agir comunicativa ao trazer a construção de verdades, o livre consenso e a participação, e até mesmo a linguagem como um meio de entendimento como uma correção normativa ao mundo da vida Contribui de forma significativa (Carneiro, 2022). Além disso, a ação didática do docente, dentro da perspectiva da virada linguística, leva o discente a entender a sua realidade a partir do espaço onde ele está inserido. Esse processo o auxilia a contribuir para a construção de um mútuo entendimento, partindo da racionalidade do saber preexistente em si, que é então alargada ao mundo da vida e, futuramente, a uma cidadania deliberativa.

Tendo por meta uma educação geográfica do agir comunicativo pela virada linguística, a educação e a escola devem se constituir pela fala, pelas ações de fala de todo e de cada professor ou professora, de todo e cada educando e educanda. Falamos em virada linguística para representar, de um lado, a passagem da predominância da ação instrumental e estratégica para a ação docente comunicativa; de outro, para nos referir à inserção da ação discente em contextos sempre mais complexos.

Uma geografia do agir comunicativo terá de considerar, como fundamento de sua existência, a relação entre racionalidade e saber. Todo saber tem uma estrutura proposicional que pode ser expressa em enunciados ou exteriorização  verbais ou não verbais, respectivamente: em forma de saber explicito na comunicação com outras pessoas e no modo de saber implícito em intervenções  no mundo objetivo (Carneiro, 2022, p. 115).

Além desse contexto educacional, outro elemento que pode ajudar a reconfigurar a esfera pública deliberativa é a questão da regulação das redes sociais e da própria internet. Essa é uma via defendida pelo próprio Habermas em seu livro de 2023, Uma nova mudança estrutural da esfera pública. Conforme o autor, essas redes sociais possuem um poder quase absoluto e operam sob o lema da liberdade de expressão. No entanto, quando surge o debate sobre a regulamentação, elas imediatamente reagem, acusando qualquer tentativa de controle de ser uma censura à livre expressão. “As plataformas também são responsáveis e precisam ser responsabilizadas por notícias que elas não produzem nem editam; porque essas informações também têm uma força para forma opiniões e mentalidades” (Habermas, 2023, pg. 80).

Essa apropriação do discurso de liberdade de expressão pelo mundo dos sistemas é, em si, uma manobra estratégica. Ela esvazia o conceito de seu sentido democrático e deliberativo que pressupõe responsabilidade e um compromisso com a verdade e o transforma em um mero sinônimo de publicação irrestrita, mesmo que o conteúdo seja factualmente falso ou socialmente destrutivo.

Portanto, a regulação não deve ser vista como censura, mas como uma condição de possibilidade para a reconfiguração da ação, deliberação racional e para a proteção da esfera pública contra seu uso totalmente instrumentalizado.

Quadro 3 – Formas de ação dos médiuns

Fonte: elaboração própria, 2025.

A validação da razão não é um ato individual, mas um processo comunicativo público, o conhecimento se torna possível através do entendimento racionalmente motivado, o que evita tanto o dogmatismo quanto o ceticismo, e isso acontece pautado no agir comunicativo, pois e ela que trará esses agentes inseridos nessas semiesferas publicas para o mundo objetivo onde se possa acontecer a criação de enunciados verdadeiros, pautados nessa relação autor com o mundo, de acordo com Habermas (2022), o entendimento só se torna um motor para a ação conjunta quando os participantes de um diálogo reconhecem e aceitam uns dos outros a validade do que é dito. Esse reconhecimento compartilhado das pretensões de validade de cada um é o que permite a colaboração.

Todo processo de entendimento ocorre perante o pano de fundo de uma pré- compreensão culturalmente arraigada. O saber de fundo permanece a problemático em seu todo; apenas a parte do acervo do saber que os participantes da interação utilizam e tematizam em cada caso para suas interações é posto à prova. Na medida em que as definições de situação são negociadas pelos próprios participantes esse recorte temático do mundo da vida se encontra também à disposição juntamente com a negociação de toda nova definição de da situação (Habermas, 2022, p. 179).

As mesmas pretensões de validade e o próprio processo de alargamento da esfera pública, com o advento das redes sociais, podem ser resgatados. As próprias plataformas digitais podem ajudar a reconfigurar a ação comunicativa dentro das bolhas e das "anti-esferas públicas" ao devolverem aos participantes a potencialidade da ação racional e deliberativa.

Adicionalmente, elas podem trazer os agentes marginalizados para esse debate público que ainda hoje é crucial para a democracia, permitindo que todos levantem pretensões de validade passíveis de aceitação e contestação. O objetivo é que se deixe de construir argumentos inválidos, propagados pela colonização sistêmica do mundo da vida, que levam à crise da razão pública observada nos dias atuais.

A mudança de atitude na passagem da ação comunicativa para o discurso no caso do tratamento de questões de justiça não é diferente do das questões de verdade. O que até agora em relação ingênua com as coisas e eventos, consideravam-se “fatos” têm de ser visto como algo que pode existir ou também pode não existir. E assim como fatos se convertem em estados de coisas que podem ou não ser o caso assim também normas socialmente habituais se convertem em possibilidades de regulação que podem ser aceitas como válidas ou repelidas como não válidas (Habermas, 2023 p. 207).

Em suma, as plataformas digitais aprofundam nesse momento a tensão entre o mundo da vida e o mundo dos sistemas. Superar a fragmentação da racionalidade e reconstruir as bases para o consenso é o desafio central para a democracia atual. Trata-se, da análise, de um projeto para resgatar a comunicação de sua captura pelo poder e pelo dinheiro, devolvendo-a ao seu propósito mais fundamental: o de ser o elo que constitui uma sociedade verdadeiramente livre, justa e democrática.

2.3 O PAPEL DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA ESFERA PÚBLICA

A ascensão da Inteligência Artificial (IA) representa um novo e complexo capítulo nos desafios enfrentados pela esfera pública contemporânea. Se as redes sociais reconfiguraram as dinâmicas de comunicação, a IA aprofunda e acelera essas transformações, apresentando um potencial ambivalente: ao mesmo tempo que oferece ferramentas para a degradação do debate, também abre caminhos para uma possível reestruturação da racionalidade comunicativa.

Por um lado, a IA surge como um poderoso motor de desinformação e fragmentação. A capacidade de gerar deepfakes e fake news, textos e imagens sintéticas com alto grau de realismo ameaça a própria base factual sobre a qual o debate deliberativo se assenta. A disseminação automatizada de narrativas falsas ou enviesadas, otimizada por algoritmos para maximizar o engajamento, intensifica a colonização sistêmica do mundo da vida.

Pois as plataformas digitais não apenas convidam a criação espontânea de mundos próprios confirmados de maneira intersubjetiva, como também, ao mesmo tempo, parecem dar a obstinação dessas ilhas de comunicação o posto epistêmico de esferas publicas concorrentes. Mas antes de podermos avaliar esse lado subjetivo das atitudes dos destinatários alteradas pela oferta da mídia, devemos olhar para a dinâmica econômica que distorce cada vez mais a percepção subjetiva da esfera pública editada. Pois os traços idiossincráticos desses modos de recepção promovidos pela mídia social não devem distorce a ancoragem econômica da transformação da estrutura midiática esboçada em linhas gerais e, por enquanto, largamente não regulamentada do ponto de vista político (Habermas, 2023, p. 67- 68).

Nesse cenário, a ação comunicativa é substituída por uma ação estratégica em massa, onde o objetivo não é o entendimento mútuo, mas a manipulação da opinião pública. Além disso, os sistemas de recomendação baseados em IA tendem a reforçar as bolhas e os "campos de eco", isolando os indivíduos em realidades informacionais particularizadas e erodindo o espaço comum necessário para a deliberação democrática.

A racionalidade técnica que penetra no mundo da vida acaba por enfraquecer as dinâmicas comunicativas, gerando um distanciamento entre os cidadãos e as questões políticas e sociais que afetam suas vidas. Ao preferir favorecer a emancipação e a construção de uma esfera pública verdadeiramente inclusiva e deliberativa, a tecnologia se converte em um mecanismo que fortalece as estruturas de poder e controle. Nesse cenário, a esfera pública digital, em vez de promover uma renovação democrática e um espaço de participação ampliado, tende a perpetuar as desigualdades e as dinâmicas excludentes do mundo dos sistemas (Silva; Motta, 2024, p. 10).

Por outro lado, a Inteligência Artificial também detém um potencial construtivo que não pode ser ignorado. Ferramentas de IA poderiam ser empregadas para identificar e rotular a desinformação em larga escala, auxiliando na curadoria de um ambiente informacional mais saudável. Poderiam, igualmente, ser utilizadas para criar novas plataformas de deliberação, capazes de sintetizar argumentos complexos, traduzir idiomas em tempo real e conectar cidadãos com diferentes pontos de vista de maneira estruturada, fomentando um debate mais inclusivo e racional.

Portanto, o papel da Inteligência Artificial na esfera pública não é predeterminado. Ele dependerá fundamentalmente da regulação e da orientação ética que lhe serão impostas. O desafio central é submeter a lógica instrumental e otimizadora da IA aos imperativos normativos da democracia deliberativa.

As plataformas digitais e seus algoritmos são exemplos dessa modulação constante na medida em que coletam, armazenam, manipulam e distribuem informações capazes de influenciar o comportamento de maneira quase imperceptível. Todas as ações realizadas nas plataformas são capturadas para análise: cliques, movimentações de dedos ao interagir com a tela, compras, o tempo utilizado em determinado tipo de conteúdo; tudo passa a ser processado e utilizado para ajustar futuras interações e decisões. Esse monitoramento mostra a ideia de que o controle na sociedade atual não ocorre em intervalos (Medeiros, 2024, p. 6)

Sem uma governança democrática que paute seu desenvolvimento e aplicação, a IA tende a se tornar a mais nova e eficaz ferramenta para a instrumentalização e o esvaziamento da razão pública. Contudo, se orientada por princípios éticos e pelo objetivo de fortalecer o agir comunicativo, ela pode se tornar uma aliada inesperada na reconstrução de uma esfera pública mais robusta e racional.

 

3 CONCLUSÃO

Ao longo deste percurso investigativo, buscou-se diagnosticar a profunda crise que assola a racionalidade comunicativa na contemporaneidade, um fenômeno intrinsecamente ligado à ascensão das plataformas digitais e ao advento da inteligência artificial. O ideal de uma comunicação orientada para o entendimento mútuo, pilar do agir comunicativo, foi sistematicamente suplantado pela lógica do agir estratégico, onde a manipulação, o engajamento a qualquer custo e a busca por poder se sobrepõem à construção do consenso.

As redes sociais, enquanto principal arena do debate público atual, operam como catalisadoras dessa crise. Elas não apenas facilitaram a criação de "semi-esferas públicas" bolhas informacionais que giram em torno de si mesmas, mas também deram origem a uma "anti-esfera pública", um espaço regido por princípios antagônicos à deliberação, como a exclusão e a coerção. Nesses ambientes, a propagação de desinformação e notícias falsas não é um mero subproduto, mas uma ferramenta estratégica, utilizada por agentes do sistema político e econômico para desacreditar a própria noção de verdade e minar a confiança nas instituições democráticas.

O cenário político brasileiro recente, com a atuação do "Gabinete do Ódio", ilustra de forma contundente como essa dinâmica se materializa, resultando em uma polarização aguda e em uma profunda crise de identidade para os cidadãos, cuja percepção da realidade é moldada por narrativas editadas e instrumentalizadas.

Essa tecnificação do mundo da vida, impulsionada pelos algoritmos das plataformas, representa a mais recente e talvez mais insidiosa forma de colonização sistêmica. A lógica do mercado e do poder burocrático, que constituem o mundo dos sistemas, penetrou nas interações cotidianas, transformando a comunicação em um recurso a ser otimizado para fins de lucro e controle. A consequência direta é o esvaziamento do potencial crítico e deliberativo do discurso, deixando os indivíduos isolados em suas realidades paralelas e incapacitados para o exercício de uma cidadania plena e racional

Diante deste cenário desafiador, a superação dessa crise exige uma ação em duas frentes complementares e interdependentes: a reconfiguração da educação e a regulação democrática das tecnologias. Primeiramente, a urgência de se combater a colonização sistêmica no próprio campo educacional. A ênfase neoliberal na formação de mão de obra em detrimento do pensamento crítico esvazia o potencial emancipatório da educação. Propõe-se, em contrapartida, um retorno ao papel fundamental das ciências humanas  como a Filosofia, a Sociologia e a Geografia na formação de cidadãos capazes de deliberar criticamente.

A perspectiva de uma "educação geográfica do agir comunicativo", por exemplo, aponta para um caminho pedagógico que, ao valorizar a linguagem, a intersubjetividade e a conexão com o mundo da vida, pode instrumentalizar os indivíduos a resistirem à lógica puramente instrumental e a se engajarem de forma autônoma e racional na esfera pública.

Em segundo lugar, a regulação das plataformas digitais e da internet emergiu não como uma forma de censura, mas como uma condição de possibilidade para a restauração da saúde do debate democrático.

A apropriação estratégica do discurso da liberdade de expressão por parte das grandes corporações de tecnologia ocultou a sua imensa responsabilidade na formatação do discurso público. Uma governança democrática sobre essas tecnologias é imperativa para garantir que elas sirvam ao interesse público, e não apenas aos interesses sistêmicos do poder e do dinheiro.

A análise sobre o papel da inteligência artificial revelou sua natureza ambivalente. Se, por um lado, a IA potencializa exponencialmente as ameaças já existentes, com a capacidade de gerar desinformação em massa e manipulações de mídia extremamente realistas que dissolvem a fronteira entre o real e o simulado, por outro, ela também oferece ferramentas que, se bem orientadas, podem auxiliar na reconstrução da esfera pública. 

A IA pode ser utilizada para identificar e combater a desinformação, para criar novas plataformas de deliberação mais estruturadas e inclusivas, e para processar a complexidade do debate público contemporâneo. O desafio, portanto, não é tecnológico, mas eminentemente político e ético: trata-se de submeter a lógica instrumental da IA aos imperativos normativos da democracia deliberativa.

Em suma, este trabalho investigou que a crise da racionalidade comunicativa é o sintoma de uma batalha mais profunda entre as forças da integração social, ancoradas no mundo da vida, e as forças da desintegração sistêmica, movidas pelo poder e pelo mercado. Este debate, longe de estar esgotado, representa uma fronteira de pesquisa e reflexão que tem ganhado força nos últimos anos, apontando para a necessidade de um aprofundamento contínuo.

 

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. França: Éditions Galilée, 1981.

CARNEIRO, Rosalvo Nobre. Educação geográfica do agir comunicativo: geografia escolar do mundo da vida. Pau dos Ferros: Appris, 2022. 194 p.

HABERMAS, Jugen. Teoria da Ação Comunicativa: para a crítica da razão funcionalista. São Paulo: Unesp, 2022.

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e ação comunicativa. São Paulo: Unesp, 2023.

HABERMAS, Jurgen. Técnica e ciência como "ideologia". São Paulo: Unesp, 2014.

HABERMAS, Jurgen. Teoria da Ação Comunicativa: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Unesp, 2022.

HABERMAS, Jurgen. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. São Paulo: Unesp, 2023.

LIMA, Edilson Vilaço. A crise da verdade na era digital. Logeion: Filosofia da Informação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 1-23, 25 nov. 2024. Disponível em: https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/7367. Acesso em: 14 set. 2025.

MEDEIROS, Jackson da Silva. Um olhar sobre a codificação e a decodificação de informações em plataformas digitais. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 1-16, 25 nov. 2024. Disponível em: https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/7371. Acesso em: 13 set. 2025.

SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2013.

SILVA, Lucas Fernandes da; MOTTA, Carlos Jacinto Nascimento. Tecnologia e regulação democrática. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, v. 11, p. 1-18, 25 nov. 2024. Disponível em: https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/7390. Acesso em: 18 set. 2025.

 

 

 

 

 

 



[1] Graduando em Filosofia

[2] Pode ser entendido como a personificação do mundo dos sistemas.

[3] Do Inglês notícia falsa.

[4] Foi no Telegram que o 8 de janeiro foi arquitetado, pois, dentro dessa rede social de mensagens, foram construídos os grupos onde, num primeiro momento, se organizaram as pessoas para irem para a frente dos quartéis. Posteriormente, em janeiro, foi planejada a invasão da Praça dos Três Poderes. Como a plataforma não conta com moderação nem censura, ela foi muito utilizada para a crise da racionalidade dessas pessoas que comungavam dessas ideias extremistas.

Claro que, além do Telegram, o Instagram e o X (antigo Twitter) também tiveram suas participações, mas a plataforma que possui mais moderação para esse tipo de conteúdo é o Instagram. Por isso, foi usada de forma menos agressiva para atacar a esfera pública e na tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.

[5] Por media entendemos aqui o poder político que influencia a integração social, como traz Habermas ao analisar a teoria do mundo dos sistemas de Parsons.

[6] A economia neoliberal e um dos braços a colonização sistêmica a parti da reprodução simbólica material.

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