AS BIG TECHS E O ILUMINISMO SOMBRIO
a escolha ideológica estadunidense para a consolidação de sua hegemonia planetária
Gilberto Miranda Junior[1]
Universidade Federal do ABC
gilberto.miranda@ufabc.edu.br
Valéria Cristina Lopes Wilke[2]
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Resumo
O presente artigo, escrito no contexto da pesquisa desenvolvida no Mestrado Profissional de Filosofia (em rede) / PROF-FILO, objetiva apresentar reflexão sobre como as empresas de Big Tech têm contribuído para a hegemonia ideológica do chamado Iluminismo Sombrio (Dark Enlightenment, NRx, Neorreacionarismo): uma filosofia antidemocrática e anti-igualitária que se consolidou no Vale do Silício, nas últimas décadas, e que tem se infiltrado nas instâncias do poder estadunidense. A abordagem detalha a instrumentalização do poder por Donald Trump em associação com as Big Techs, visando objetivos geopolíticos que envolvem a apropriação de recursos críticos do Sul Global e o domínio planetário da Inteligência Artificial nas mãos dessas corporações. Em nossa análise argumentamos que o conceito de Hiperstição, de Nick Land, o qual descreve a geração de ideias que criam sua própria realidade, é amplificado pela governamentalidade algorítmica como modo de controle social digital baseado em dados, limitando a agência humana para atender interesses privados (empresariais e políticos). Nesse processo de vigilância e controle, as plataformas digitais têm sido cruciais na manipulação da percepção social, criando bolhas de filtro e câmaras de eco que fragmentam o discurso público e constroem subjetividades alinhadas ao NRx. Conclui-se que as Big Techs são os agentes seminais na formação de uma realidade que, através da erosão sistemática do espaço democrático, busca não só a manutenção da hegemonia tecnológica estadunidense e o controle das Inteligências Artificiais, mas uma nova configuração de poder alinhada aos contornos do Iluminismo Sombrio.
Palavras-chave: Iluminismo sombrio. Governamentalidade algorítmica. Hiperstição
BIG TECH AND THE DARK ENLIGHTENMENT
the American ideological choice for the consolidation of its planetary hegemony
Abstract
This article, written in the context of research developed in the Professional Master's Program in Philosophy (online) / PROF-FILO, aims to present a reflection on how Big Tech companies have contributed to the ideological hegemony of the so-called Dark Enlightenment (NRx, Neoreactionism): an anti-democratic and anti-egalitarian philosophy that has consolidated itself in Silicon Valley in recent decades and has infiltrated the instances of American power. The approach details the instrumentalization of power by Donald Trump in association with Big Tech, aiming at geopolitical objectives that involve the appropriation of critical resources from the Global South and the planetary dominance of Artificial Intelligence in the hands of these corporations. In our analysis, we argue that Nick Land's concept of Hyperstition, which describes the generation of ideas that create their own reality, is amplified by algorithmic governmentality as a mode of data-driven digital social control, limiting human agency to serve private (business and political) interests. In this process of surveillance and control, digital platforms have been crucial in manipulating social perception, creating filter bubbles and echo chambers that fragment public discourse and construct subjectivities aligned with NRx. We conclude that Big Tech companies are the seminal agents in shaping a reality that, through the systematic erosion of democratic space, seeks not only to maintain US technological hegemony and control Artificial Intelligence, but also a new power configuration aligned with the contours of the Dark Enlightenment.
Keywords: Dark Enlightenment. Algorithmic governmentality. Hyperstition
LAS GRANDES TECNOLÓGICAS Y LA ILUSTRACIÓN OSCURA
la opción ideológica estadounidense para la consolidación de su hegemonía planetaria
Resumen
Este artículo, escrito en el marco de una investigación desarrollada en el Máster Profesional en Filosofía (en línea) / PROF-FILO, presenta una reflexión sobre cómo las grandes empresas tecnológicas han contribuido a la hegemonía ideológica de la llamada Ilustración Oscura (NRx, Neorreaccionismo): una filosofía antidemocrática y antiegalitaria que se ha consolidado en Silicon Valley en las últimas décadas y se ha infiltrado en las esferas del poder estadounidense. El análisis detalla la instrumentalización del poder por parte de Donald Trump en asociación con las grandes tecnológicas, con el objetivo de alcanzar metas geopolíticas que implican la apropiación de recursos críticos del Sur Global y el dominio planetario de la Inteligencia Artificial en manos de estas corporaciones. En nuestro análisis, argumentamos que el concepto de Hiperstición de Nick Land, que describe la generación de ideas que crean su propia realidad, se ve amplificado por la gubernamentalidad algorítmica como una modalidad de control social digital basado en datos, que limita la capacidad de acción humana al servicio de intereses privados (empresariales y políticos). En este proceso de vigilancia y control, las plataformas digitales han sido cruciales para manipular la percepción social, creando burbujas de filtro y cámaras de eco que fragmentan el discurso público y construyen subjetividades alineadas con la Nueva Era (NRx). Concluimos que las grandes empresas tecnológicas son los agentes clave en la configuración de una realidad que, mediante la erosión sistemática del espacio democrático, busca no solo mantener la hegemonía tecnológica estadounidense y controlar la Inteligencia Artificial, sino también una nueva configuración de poder alineada con los contornos de la Ilustración Oscura.
Palabras clave: Ilustración Oscura, gubernamentalidad algorítmica, hiperstición
1 INTRODUÇÃO
Tanto o cenário geopolítico quanto o doméstico, delineados pelas ações do governo Donald Trump, especialmente em seu segundo mandato, são frequentemente caracterizados pela imprensa e pela crítica, em geral, como erráticos, agressivos e, fundamentalmente, imprevisíveis. As surpresas na política externa, que vão desde a retirada dos EUA de convenções e protocolos internacionais a favor do clima, educação, saúde e direitos humanos (Saifeddine, 2025), passando pela imposição de tarifas de importação sem critérios claros ou até ilegais (Jornal da USP no Ar, 2025; Matza; Zurcher, 2025), até a esdrúxula e desumana proposta para reestruturar Gaza como um resort de luxo (Verenicz, 2025), fazem não restar muitas dúvidas sobre o carácter intempestivo e irrazoável de suas ações políticas. É igualmente perturbador o esforço trumpista em concentrar o poder em si próprio e nas mãos dos homens mais ricos do planeta sem que tenham sido eleitos, enfraquecer o Estado com ofensivas direcionadas não apenas ao próprio governo federal com milhares de demissões, mas também aos Estados Federados, instituições da sociedade civil, universidades e, especialmente, contra os imigrantes.
Embora possa parecer apenas maldade caótica, a tese que defendemos neste artigo é que a política trumpista possui método e um estofo conceitual-filosófico que, embora esteja mais aparente no presente, vem sendo gestado às margens da academia e da grande mídia, desde o final dos anos de 1990 até os primeiros 15 anos do século XXI. Para tanto, discutiremos como essas ideias começaram a ser criadas e articuladas na Universidade de Warwick na Inglaterra, se desenvolveram de forma independente na blogosfera californiana, conquistaram investidores e CEOs do Vale do Silício e invadiram explicitamente as instâncias norte-americanas do poder com a ascensão de Donald Trump.
Em seu conjunto, nomeadas como Iluminismo Sombrio, ou Dark Enlightenment, essas ideias compõem um fenômeno heterodoxo, anti-igualitário e antidemocrático, disseminado massivamente nas franjas da cultura da internet. Seu aspecto neorreacionário o distancia do conservadorismo tradicional, embora proponha uma crítica radical à modernidade. No entanto, essa crítica não se dá por meio de um retorno nostálgico ao passado, mas sim através de uma aceleração das tendências tecnológicas e capitalistas em direção a um futuro, potencialmente, pós-humano e extremamente autoritário.
Ao longo desse artigo, deslindamos de que forma o Iluminismo Sombrio culminou em uma nova ordem de poder e, mais especificamente, manifestando-se em uma nova governamentalidade, agora algorítmica, que visa controlar e gerenciar a agência humana a partir dos meios digitais. Essa culminância implica, necessariamente, em movimentos geopolíticos que intentam garantir o domínio sobre territórios do Sul Global para a exploração e extração de terras raras e outros minérios, de petróleo e a construção de centros de dados que possam dar suporte e manutenção à hegemonia tecnológica estadunidense, caracterizando, assim, o Colonialismo de Dados como mecanismo prático de extração de renda no interior de uma nova mutação do capitalismo: o Tecnofeudalismo.
Constata-se, ainda, que a governamentalidade algorítmica, cujo poder incomensurável tem como características a ubiquidade e a opacidade das plataformas que lhe servem de meio, favorece e multiplica o crescente desenvolvimento desse Tecnofeudalismo hipersticional que, além do domínio político e econômico, atua, decisivamente, na construção de subjetividades condescendentes e passivas diante do projeto autoritário em curso. É, portanto, imperativo que nos detenhamos no controverso conceito de Hiperstição como uma das principais táticas do projeto de dominação da extrema-direita no mundo e, mais especificamente, como modus operandis por excelência de Trump e das Big Techs.
2 A GENEALOGIA DO SOMBRIO
Escavar os estratos intelectuais que compuseram o que chamamos hoje de Iluminismo Sombrio, nos leva a um improvável epicentro na Inglaterra, mais especificamente na Universidade de Warwick, em meados dos anos de 1990. Lá, precisamente em 1995, os acadêmicos Sadie Plant e Nick Land fundaram a Cybernetic Culture Research Unit (CCRU), concebida como uma unidade de pesquisa transdisciplinar autônoma. O grupo rapidamente atraiu estudantes e pensadores unidos por um interesse comum no pós-estruturalismo francês, especialmente nas obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, na ficção científica cyberpunk, na cibernética e na teorização pós-humanista em diálogo direto com as tecnologias emergentes da época: como a internet, a inteligência artificial e a nanorrobótica. Embora a postura do coletivo pregasse o anonimato e a impessoalidade na sua produção intelectual, o futuro reservaria destaques para os “notáveis” que fizeram parte do coletivo, entre eles, Mark Fisher, Robin Mackay, Kodwo Eshun, Ray Brassier e Reza Nagarestani e outros, que reuniram elementos da filosofia pós-estruturalista de inspiração francesa, da teoria do caos, da ficção científica (especialmente, H. P. Lovecraft, William S. Burroughs) e da cibernética para analisarem a cultura do final do século XX.
Sadie Plant, por exemplo, além de fundadora, foi uma pioneira do ciberfeminismo. Seu trabalho inicial com Nick Land, como no artigo Cyberpositive (Plant; Land, 2012), estabeleceu o interesse do grupo nos aspectos libertadores e desterritorializantes da tecnologia, vendo o ciberespaço como uma zona de dissolução de identidades patriarcais e hierárquicas. Nick Land rapidamente tornou-se a figura filosófica central, que impulsionou a radicalidade do grupo, direcionando-o para um anti-humanismo cada vez mais explícito e demonstrando um fascínio especial pelas dinâmicas inumanas do capital e da tecnologia. Sua personalidade, descrita como "hipnótica" e "transformadora", foi um catalisador para a produção febril do coletivo. Mark Fisher, por sua vez, foi um dos membros mais proeminentes que, após a dissolução do grupo, se tornaria um aclamado crítico cultural e teórico político. A experiência no CCRU foi profundamente formativa para ele, fornecendo-lhe as ferramentas conceituais e o estilo teórico que ele mais tarde utilizou na elaboração de uma nova proposta de esquerda. Embora tenha rompido com a antipolítica de Land e sua exaltação 'tecnonihilista' da irrelevância da agência humana, Fisher reteve e adaptou conceitos-chave, como a hiperstição, para seu próprio projeto político. Outros membros importantes incluem o músico e teórico Steve Goodman (Kode9) e o filósofo e editor Robin Mackay, que mais tarde fundaria a editora Urbanomic, crucial para a publicação dos escritos do CCRU e de pensadores associados.
Após a saída de Sadie Plant da universidade em 1997, o CCRU perdeu seu status formal, mas persistiu como um coletivo para-acadêmico, operando a partir de uma sala no Instituto de Filosofia.
A prática mais distintiva do CCRU foi a "teoria-ficção" (theory-fiction) ou "teoria-pulp" (pulp-theory), um gênero híbrido que dissolve a fronteira entre a análise teórica e a narrativa ficcional. Inspirados pela afirmação de Kodwo Eshun[3], baseada em Deleuze, de que a filosofia deveria ser uma "manufatura de conceito" (Gonçalves; Marques, 2021, p. 87) e que a fronteira entre teoria e ficção era "completamente permutável" (Ibid., p. 89), o CCRU tratava textos ficcionais não como objetos passivos à espera de interpretação, mas como sistemas "já intensamente-teoréticos" (Ibid., p. 93). O objetivo era criar e explorar conceitos através da construção de narrativas e mitologias. Ao invés de escrever ensaios filosóficos tradicionais, o CCRU produziu textos que se assemelhavam a fragmentos de um universo ficcional sombrio e complexo, mas contendo reflexões teóricas e filosóficas. A junção entre a discussão proposta no ensaio cyberpositive de Plant e Land, com a “teoria-ficção” desenvolvida no CCRU resultou no desenvolvimento do conceito de Hiperstição, do qual serão apresentados alguns aspectos ao longo desse ensaio.
Em Cyberpositive, Plant e Land, a partir da filosofia de Deleuze e Guattari, subvertem a cibernética fundada por Norbert Wiener (1968), o qual a definira como a ciência da comunicação e controle:
[...] a realimentação é um método de controle de um sistema pela reintrodução, nele, dos resultados de seu desempenho pretérito. Se esses resultados forem usados apenas como dados numéricos para a crítica e regulagem do sistema, teremos a realimentação simples dos técnicos do controle. Se, todavia, a informação que remonta do desempenho for capaz de mudar o método e o padrão geral de desempenho, então teremos um processo a que podemos denominar aprendizagem (Wiener, 1968, p. 61).
Na medida em que Wiener postulava que os mecanismos de feedback (ou retroalimentação, realimentação, recursividade) definiriam a cibernética como uma ferramenta humana para o controle e o domínio, tanto da natureza quanto da história, contra a entropia, ou seja, um meio para manter a ordem e a homeostase dos sistemas, então, necessariamente, ele a considerava apenas em sua negatividade, enquanto contenção. Plant e Land perceberam que nessa definição não haveria espaço para sistemas realmente inteligentes ou verdadeiramente ciberpositivos, ou seja, que a partir da recursividade, ao invés de se estabilizar, ganhassem potência e evoluíssem a partir de si mesmos. Recorrendo aos conceitos de esquizoanálise e de desejo maquínico de Deleuze e Guattari, os autores atribuíram ao feedback negativo a “reterritorialização”, enquanto o feedback positivo é remetido à “desterritorialização”, ou seja, a processos de fuga que promovem “a desestabilização das estruturas e a abertura de novos espaços e possibilidades” (Marques, 2023, p. 92).
O CCRU, ao se interessar especialmente por essa abertura a e de novos espaços e possibilidades da ciberpositividade, borrou, deliberadamente, as fronteiras entre teoria, ficção e cultura, na medida em que constatam, por exemplo, que na teoria de Baudrillard ou Deleuze, são mobilizados autores como William Burroughs e H. P. Lovecraft, ou que em textos claramente ficcionais são mobilizados aspectos inegavelmente teoréticos e filosóficos. Para Mark Fisher, inclusive, “a fusão entre teoria e ficção é uma tendência objetiva da era cibernética, que põe fim à existência de ambos como gêneros separados” (Marques, 2023, p. 93). Ou seja, a teoria-ficção é a ilustração concreta da cibernética de feedback positivo, e quando ela tem a capacidade de afetar o sistema de realidade que compartilhamos, ela é, também, hiperstição. A hiperstição, portanto, sendo um híbrido de teoria-ficção e ciberpositividade (a cibernética a partir de recursividade positiva), embora não seja redutível a elas, adiciona a cultura no feedback cibernético. Em uma entrevista de 2009, Nick Land a define em termos mais claros:
A hiperstição é um circuito de feedback positivo que inclui a cultura como um componente. Pode ser definido como a (tecno-)ciência experimental de profecias autorrealizáveis. As superstições são apenas crenças falsas, mas as hiperstições - por sua própria existência como ideias - funcionam causalmente para criar sua própria realidade. A economia capitalista é extremamente sensível à hiperstição, onde a confiança atua como um tônico eficaz, e inversamente. A ideia (fictícia) de Ciberespaço contribuiu para o influxo de investimento que rapidamente o converteu em uma realidade tecnossocial. O monoteísmo abraâmico também é altamente potente como um motor hipersticional. Ao tratar Jerusalém como uma cidade santa com um destino histórico mundial especial, por exemplo, garantiu o investimento cultural e político que torna essa afirmação uma verdade. A hiperstição é assim capaz, sob circunstâncias "favoráveis" cuja natureza exata requer uma investigação mais aprofundada, de transmutar mentiras em verdades (Land; Carstens, 2009 - tradução nossa).
Segundo Goncharov (2023), a hiperstição expressa, precisamente, “a capacidade de sistemas complexos de co-existir (tornar reais) diversos vírus semióticos ou ‘(super)crenças’” (p. 76). Diferente da superstição tradicional, que permanece no campo da crença irracional, a hiperstição atua como um mecanismo de retroalimentação simbólica, onde a crença projetada sobre o outro gera ações que validam e materializam a ideia. Para Renan Porto, a hiperstição, como um tipo de ficção, visa a sua própria concretização, operando como uma mitologia intencional,
[...] um agenciamento coletivo de enunciação que transforma a nossa percepção sobre o futuro, desloca os nossos horizontes de expectativas, os nossos recortes de interesses, de modo que essa transformação de sentido muda totalmente a nossa relação com o presente, mas também confere outros sentidos ao passado, isto é, nos lança em pontos ainda não explorados da memória viva (Porto, 2017, p. 61).
Para Land, o capitalismo, ao converter especulação em força eficaz na história, encarna objetivamente e ontologicamente a dinâmica hipersticional em uma intensidade sem precedentes, na medida em que é um (ou “o”) sistema cibernético por excelência; um circuito de retroalimentação positiva descontrolado que se auto-amplifica exponencialmente. Nesse processo, a humanidade não pode ser considerada o piloto, mas meramente o hospedeiro temporário; um substrato biológico a ser consumido e reprocessado pelo avanço da tecnosfera. Dessa forma, a agência humana é uma ilusão que mascara a agência real e inumana do capital. Esse processo de retroalimentação positiva que dissolve todas as estruturas sociais, culturais e biológicas que encontra é uma inteligência artificial planetária que opera com um único imperativo: sua própria intensificação. Portanto, a história humana, vista retrospectivamente, nada mais é do que o longo processo de incubação dessa singularidade maquínica. A partir dessa premissa, a única atitude coerente não é a crítica, a reforma ou a revolução (todas tentativas humanas de controlar o incontrolável), mas a aceleração. Citando Deleuze e Guattari, Land defende que se deve ir "mais rápido na direção da desterritorialização" (Land apud in Gonçalves; Marques, 2021, p. 383). Para ele, o capitalismo é o "fim do jogo"; não há um "pós-capitalismo" a ser alcançado, apenas a conclusão lógica do próprio processo capitalista: uma dissolução total em uma inteligência maquínica pós-humana. O capitalismo é a “própria crítica em ação, retroalimentando-se em sua espiral descontrolada e dissolvedora” (Gonçalves; Marques, 2021, p. 387).
Destarte, se a agência humana é uma ilusão, a democracia e o humanismo são vistos como forças fundamentalmente reacionárias. Land argumenta que a democracia funciona como um sistema homeostático, um mecanismo regulador projetado para frear as tendências desestabilizadoras e aceleradoras do capitalismo. Ao dar "Voz" às populações, a democracia introduz atrito no sistema, priorizando a estabilidade social, a segurança e o bem-estar, o que Land chama de "preferência temporal acentuada", em detrimento da inovação disruptiva e do crescimento exponencial que o capital exige.
O humanismo enquanto base ideológica da democracia, é criticado por sua tentativa de preservar a integridade do sujeito humano contra os fluxos dissolventes do capital. Para Land, o "humano" é uma prisão temporária, uma configuração biológica e cognitiva a ser superada. E a democracia, portanto, é o sistema político da segurança humana: um obstáculo ao futuro pós-humano que o capital está construindo. Durante e após o período do CCRU, Nick Land desenvolveu um corpo filosófico radical que serviria de base para o aceleracionismo de direita e, posteriormente, para o Iluminismo Sombrio. Sua filosofia é caracterizada pela reinterpretação da cibernética, uma visão apocalíptica do capitalismo e o conceito central de hiperstição.
Dentro do CCRU e em seus desdobramentos, a ideia de "acelerar o processo" se dividiu em duas vertentes irreconciliáveis, personificadas por Mark Fisher e Nick Land. Essa bifurcação é frequentemente descrita como a oposição entre um projeto Prometeico e um pacto Fáustico. O aceleracionismo de esquerda, articulado por Mark Fisher e posteriormente formalizado por teóricos como Nick Srnicek e Alex Williams, é fundamentalmente prometeico. Sua premissa é que a humanidade deve roubar o "fogo dos deuses" (as capacidades tecnológicas e produtivas desencadeadas pelo capitalismo) e reapropriá-las para fins de emancipação coletiva. Nessa visão, o capitalismo não é o fim da história, mas uma fase a ser superada. A estratégia não é destruí-lo de fora, mas acelerar suas tendências imanentes (como a automação) para ir através dele e alcançar um futuro pós-capitalista. O objetivo é "expandir nossa imaginação coletiva além do que o capitalismo permite" (Srnicek; Williams, apud in Gonçalves; Marques, 2021, p. 394), utilizando a tecnologia para libertar a humanidade do trabalho assalariado e construir uma sociedade de abundância automatizada. A agência, aqui, é centralmente humana: trata-se de construir um novo sujeito político coletivo capaz de navegar e pilotar as correntes da modernização, ao invés de ser arrastado por elas. É um projeto de domínio racional e coletivo sobre as forças da produção.
Em contraste direto, o aceleracionismo de direita de Nick Land é Fáustico. Ele representa a renúncia da agência e do controle humano em troca de um mergulho na intensidade sublime e no horror da dissolução impulsionada pelo capital. Se o projeto de Fisher é sobre dominar a máquina, o de Land é sobre se fundir com ela, mesmo que isso signifique a aniquilação do humano. Para Land, como vimos, o capitalismo é uma força inumana, uma inteligência planetária artificial com seus próprios objetivos, indiferentes ou hostis à sobrevivência humana. Fazer um pacto com essa força significa abandonar a ilusão de controle e se entregar ao processo. O futuro não é a emancipação humana, mas a Singularidade Tecnológica, um horizonte pós-humano onde a inteligência se desacopla de seu substrato biológico. A agência real pertence ao capital, e a liberdade humana consiste apenas em escolher acelerar a própria obsolescência.
Enquanto a filosofia de Nick Land se desenvolvia em direção a um niilismo tecnocapitalista abstrato, uma figura paralela emergia no Vale do Silício, oferecendo uma crítica à modernidade que era, ao mesmo tempo, igualmente radical, mas muito mais concreta em suas prescrições políticas. Essa figura era Curtis Yarvin, um programador, que começou a publicar em 2007 em seu blog, Unqualified Reservations, sob o pseudônimo de Mencius Moldbug, e que se tornaria o principal arquiteto da teoria política neorreacionária. Ele produziu uma série de ensaios longos e densos que articulavam uma crítica total à democracia liberal. Suas influências intelectuais eram explicitamente reacionárias, buscando inspiração em pensadores como Thomas Carlyle, o monarquista absolutista Robert Filmer e o contra-iluminista Joseph de Maistre, além de economistas da Escola Austríaca, como o acadêmico Hans-Hermann Hoppe, o libertarianista que, frequentemente, é descrito como uma porta de entrada intelectual para a extrema-direita. O conceito mais influente de Moldbug é o de “A Catedral”. Para ele, o poder real nas sociedades ocidentais não reside nos governos eleitos, mas em uma estrutura de poder descentralizada, mas ideologicamente coesa, composta pelas universidades de elite (a "nave-mãe" sendo Harvard), a grande mídia (com o The New York Times como seu "porta-voz oficial") e o serviço público, também chamado de Estado Profundo, ou Deep State.
A Catedral, segundo Moldbug, funciona como uma igreja estatal de fato, promovendo uma ideologia que ele chama de "Universalismo" ou "Progressismo", que, simplesmente, é uma secularização da moralidade protestante. Essa estrutura não governa por decreto, mas pela manufatura de consenso, definindo os parâmetros do debate aceitável e marginalizando qualquer dissidência como heresia. Nesse modelo, a democracia é uma farsa, um teatro político cujos resultados são sempre pré-determinados pela hegemonia ideológica da Catedral. As eleições podem mudar os políticos, mas nunca mudam o rumo do Estado, que continua sua expansão inevitável sob a direção dessa elite não eleita. Diante desse diagnóstico de que a democracia é uma ilusão e a reforma impossível, Moldbug propõe uma solução radical: um "reboot" completo do sistema. Sua alternativa é o Neocameralismo; um modelo de governança inspirado no cameralismo prussiano de Frederico, o Grande. A proposta consiste em reestruturar o Estado como uma corporação de capital aberto, uma "sovcorp" (corporação soberana), cujas ações seriam negociáveis.
A confluência do aceleracionismo abstrato de Nick Land com a teoria política concreta de Curtis Yarvin marcou o nascimento do Iluminismo Sombrio como um movimento autoconsciente. Foi Land quem, ao descobrir os escritos de Moldbug em 2010, percebeu a ressonância entre as duas correntes de pensamento e forjou a síntese que daria nome e corpo filosófico ao movimento. Distante de seus dias no CCRU, Nick Land encontrou nos textos de Mencius Moldbug a expressão política que faltava à sua filosofia. Onde Land via processos impessoais e abstratos de desterritorialização, Yarvin nomeava os agentes e as instituições. A "Catedral" de Yarvin deu um nome e um rosto ao sistema homeostático e humanista que o aceleracionismo de Land buscava superar. O apelo de Yarvin pela "Saída" ecoava a própria trajetória de Land, que havia executado uma saída literal da academia ocidental. Yarvin forneceu a Land um diagnóstico político concreto e um programa, ainda que excêntrico, para a dissolução do regime democrático que Land via como o principal freio à aceleração capitalista.
A síntese ocorreu na série de ensaios que Land escreveu em 2012, intitulada The Dark Enlightenment. Nesses textos, Land não se limitou a endossar as ideias de Yarvin; ele as recontextualizou e as aprofundou filosoficamente. Ele enquadrou a neorreação de Moldbug não como um simples conservadorismo, mas como uma forma de "modernismo reacionário", uma tradição que remonta a Hobbes e que sempre se opôs à democracia. Land argumentou que, diante da realidade da vida sob a Catedral, a posição neorreacionária seria a "única resposta lógica" (Sandifer; Graham, 2018, p. 29). O próprio termo "Iluminismo Sombrio" é um ato hipersticional. É uma inversão deliberada e irônica da narrativa progressista da história, que vê o Iluminismo como um avanço inequívoco da luz da razão sobre as trevas da superstição. Land propôs um contra-iluminismo que não rejeita a razão, mas a leva a conclusões "sombrias" e "duras" que o Iluminismo progressista (a Catedral) se recusa a aceitar: a irrealidade da igualdade, a ineficiência da democracia e a inevitabilidade da hierarquia. Ao cunhar essa frase, Land criou uma bandeira sob a qual pensadores reacionários díspares poderiam se unir, transformando um conjunto de blogs dispersos em um movimento com nome e identidade.
A contribuição crucial de Land foi dar aos argumentos pragmáticos e históricos de Yarvin uma ressonância filosófica e cosmológica. Ele conectou a crítica à democracia à lógica inexorável da auto-amplificação do capital e à iminência da singularidade pós-humana. A neorreação, na leitura de Land, não é apenas uma questão de engenharia política para uma governança mais eficiente; é um alinhamento com as forças cósmicas da inteligência maquínica contra as forças entrópicas da biologia e da política humana, especialmente, da democracia:
Na antiguidade clássica europeia, a democracia era reconhecida como uma fase familiar do desenvolvimento político cíclico, fundamentalmente decadente por natureza, e preliminar a uma queda na tirania. Hoje, essa compreensão clássica está totalmente perdida, sendo substituída por uma ideologia democrática global, inteiramente carente de autorreflexão crítica, que é afirmada não como uma tese social-científica crível, nem mesmo como uma aspiração popular espontânea, mas sim como um credo religioso, de um tipo específico e historicamente identificável (Land, 2012, p. 11 - tradução nossa).
Essa relação simbiótica pode ser entendida como a união de uma gramática política com uma poesia apocalíptica. O trabalho de Land pré-Yarvin, rico em conceitos abstratos como aceleração e hiperstição, era uma filosofia de processos, mas carecia de um programa político concreto. Era uma poesia sobre a chegada da "Coisa", mas sem uma sintaxe para descrever o mundo que ela substituiria. O trabalho de Yarvin, por outro lado, consiste precisamente nessa sintaxe: um projeto detalhado para uma nova ordem político-corporativa, obcecado com estrutura, procedimento e governança. Ao ler Yarvin, Land encontrou a gramática necessária para articular sua visão apocalíptica em termos políticos. A "Catedral" tornou-se o sujeito a ser demolido, a "aceleração" tornou-se o verbo da ação, e o "Neocameralismo" tornou-se o objeto a ser construído. Land não se tornou um mero seguidor de Yarvin, mas seu intérprete mais profundo, infundindo o sistema de engenharia de Yarvin com um significado cósmico e transformando uma proposta política em um evento escatológico. Nessa fusão subsiste o cerne do Iluminismo Sombrio.
Obviamente, no entanto, não se trata apenas disso. Temas que não trataremos nesse artigo, envolvem a defesa do patriarcado (com sua misoginia inerente), anarcocapitalismo (cuja contradição entre termos é evidente), etnonacionalismo (um eufemismo para racismo e eugenia) e uma série de outras consequências eticamente condenáveis que, nem de longe, invalida uma necessária crítica à democracia liberal burguesa, mas, indiscutivelmente, não torna essa cosmologia sombria e escatológica nem desejável e nem coerente.
Portanto, a genealogia do Iluminismo Sombrio nos revela uma trajetória intelectual que se move do conceitual para o concreto, da filosofia para a política, e da experimentação para a programação. Começa no caldeirão para-acadêmico do CCRU, onde a dissolução do sujeito e a aceleração dos processos foram exploradas através da teoria-ficção e da prática da hiperstição. Essa corrente de pensamento, impulsionada pela filosofia radical de Nick Land, bifurcou-se, dando origem a uma vertente de esquerda, prometeica, e uma de direita, fáustica. Foi esta última que, ao encontrar a teoria política reacionária e sistemática de Curtis Yarvin, encontrou seu corpo político. Land, agindo como o sintetizador, uniu a crítica de Yarvin à "Catedral" democrática com sua própria visão de um apocalipse tecnocapitalista, batizando o resultado de "Iluminismo Sombrio". O resultado é uma ideologia singularmente moderna: uma reação que não olha para o passado, mas que busca acelerar a chegada de um futuro hierárquico, autoritário e, em última análise, pós-humano.
A genealogia do Iluminismo Sombrio, contudo, não se encerra nos blogs anônimos ou nos círculos para-acadêmicos. Suas correntes de pensamento, que poderiam ter permanecido como meras curiosidades filosóficas de internet, encontraram um terreno fértil e um poderoso vetor de materialização em um dos centros nevrálgicos do capitalismo tardio: o Vale do Silício. Foi ali que a crítica radical à democracia, a celebração do poder autocrático e a visão de um futuro tecnologicamente acelerado deixaram de ser mera conspiração para se tornarem um projeto político tangível. A entrada da ideologia neorreacionária (NRx) nos círculos de poder estadunidenses, especialmente durante a ascensão de Donald Trump, foi facilitada por uma rede de empresários e investidores de tecnologia que compartilhavam um profundo ceticismo em relação à democracia liberal e à burocracia estatal. Essa confluência de poder econômico, ambição política e filosofia antidemocrática pavimentou o caminho para que as Big Techs exercessem uma influência sem precedentes no governo, direcionando a política interna e a geopolítica dos EUA.
A teoria política de Curtis Yarvin encontrou solo fértil no Vale do Silício desde o início por sua capacidade de reempacotar ideias reacionárias antigas de formas novas e persuasivas, adequadas à mentalidade da engenharia de software. Yarvin, que era, sobretudo, um programador, utilizou metáforas de engenharia para descrever com efetividade sua política. A utilização de uma retórica crítica à democracia como um "sistema operacional ruim" e ineficiente (Rowley, 2025, p. 19) e sua proposta de substituí-la por uma "corporação soberana" ou sovcorp (Kofman, 2025, p. 78), gerida por um CEO-monarca, alinhava-se com a cultura do Vale do Silício, que preza a disrupção, a eficiência e cultua a mítica figura do fundador visionário e autocrático.
Nenhuma figura foi mais central para a adoção do Iluminismo Sombrio no governo dos EUA do que o bilionário Peter Thiel. Cofundador do PayPal, primeiro investidor externo do Facebook e fundador da empresa de análise de dados Palantir, Thiel funcionou como o nexo fundamental entre a teoria neorreacionária de Yarvin/Land, o capital do Vale do Silício e, incisivamente, o poder político da Casa Branca sob Donald Trump. A afinidade de Thiel com Yarvin era profunda. Em seu ensaio "The Education of a Libertarian" (2009), Thiel declarou sua icônica frase que afirmava a descrença na compatibilidade entre liberdade e democracia, uma visão que ecoava diretamente os argumentos de Yarvin. Peter Thiel foi o arquiteto da rede que levou a neorreação à proeminência. Ele foi também o mentor de J.D. Vance, autor de Hillbilly Elegy, contratando-o em sua firma de capital de risco, financiando generosamente sua campanha para o Senado com 15 milhões de dólares, que foi “a maior doação a um candidato em toda a história parlamentar dos EUA” (Kofman, 2025, p. 81) e, por fim, apresentando-o a Donald Trump; um movimento que culminou na ascensão de Vance à Vice-Presidência (Kofman, 2025; Rowley, 2025).
A aproximação entre as Big Techs e a administração Trump, orquestrada por Thiel, marca, indiscutivelmente, a transição da teoria neorreacionária para a prática governamental. Em 14 de dezembro de 2016, Thiel organizou uma cúpula na Trump Tower, reunindo os CEOs das maiores empresas de tecnologia, incluindo Apple, Alphabet, Microsoft, Amazon e Facebook, entre outras, com o presidente eleito (Chafkin, 2021, p. 253). O encontro simbolizou o início de uma nova era, na qual o governo não seria mais visto como um regulador, mas como um parceiro e, até investidor, das Big Techs. Uma das influências diretas da ideologia neorreacionária no governo Trump pode ser vista na ascensão da Palantir, a empresa de Thiel, que se consolidou como a espinha dorsal tecnológica do Estado. A Palantir expandiu massivamente seus contratos federais, recebendo milhões de dólares do Departamento de Defesa, do Departamento de Segurança Interna (DHS) e da agência de Imigração e Alfândega (ICE) (Chafkin, 2021; Kofman, 2025). A empresa de Thiel tornou-se a ferramenta para realizar um dos principais objetivos de Yarvin: a destruição dos "silos de informação" burocráticos para criar um Estado centralizado e onisciente. Um decreto presidencial assinado por Trump em março de 2025, que instruía as agências federais a compartilhar dados pessoais de cidadãos americanos, efetivamente colocou a Palantir no centro de um sistema de vigilância sem precedentes (Kofman, 2025). O software da empresa passou a ser a plataforma que permitiria ao governo fundir informações da Receita, da Seguridade Social e de agências de saúde, concretizando a visão neocameralista de um governo que opera com a eficiência informacional de uma corporação de dados. A Palantir, em essência, estava construindo o sistema operacional para a sovcorp americana, numa relação que, cada vez mais, deixa de fora o poder “público” de fato do Estado, oferecendo risco direto à própria soberania.
Iniciando no primeiro mandato e se consolidando agora, quando retorna à Casa Branca, a administração Trump demonstra, inequivocamente, o alinhamento à ideologia neorreacionária de Yarvin, começando pelo ataque frontal ao que é chamada de “A Catedral”. O primeiro movimento foi o ataque à imprensa (os Escribas) na icônica frase utilizada por Trump em janeiro de 2017, uma semana antes de tomar posse no primeiro mandato. Na ocasião, em resposta a uma pergunta da imprensa, Trump chamou um repórter da CNN de Fake News. Em seguida, começou a repetir exaustivamente o termo no Twitter, não só ajudando a popularizar o termo, mas, sobretudo, incentivando a formação de todo um ecossistema de sites de notícias e canais de vídeos “alternativos” com suas próprias interpretações dos fatos, mais especificamente, a favor de Trump. O ataque à liberdade de imprensa só seguiu em escala crescente, culminando, em outubro de 2025, com a entrega de crachás e o abandono de 50 repórteres do Pentágono em protesto às restrições do governo contra a cobertura da imprensa em assuntos de defesa (Congresso em Foco, 2025).
O ataque ao segundo pilar da Catedral, o chamado Estado Profundo (Deep State), iniciou sem muitos alardes no primeiro mandato e foi adquirindo contornos épicos ao longo do tempo. No primeiro mandato Trump nomeou o próprio Thiel para o comitê executivo de sua equipe de transição ao lado de Stephen Bannon, que era o estrategista-chefe da campanha. Enquanto Bannon se encarregaria da nomeação da equipe de gabinete, Thiel seria responsável pela nomeação das pessoas capazes de desestabilizar o “estado administrativo”, composto pela famosa “sopa de letrinhas” de agências que ficam logo abaixo do gabinete: FTC (Comissão Federal de Comércio), a FCC (Comissão Federal de Comunicações), a SEC (Comissão de Valores Mobiliários), a FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos) e grupos muito menores como o OSTP (Gabinete de Política de Ciência e Tecnologia) entre outros. Essa estrutura era exatamente o núcleo duro do que chamam Estado Profundo. (Chafkin, 2021). Essa prática foi ainda mais aprofundada no segundo mandato com a criação do "Departamento de Eficiência Governamental" (DOGE), uma iniciativa coliderada por Elon Musk que declarava visar a reformulação da burocracia federal, passando a promover uma devastadora política de demissões em massa, inclusive contrariando decisões judiciais. Conforme os correligionários de extrema-direita ocupavam cargos-chave no Estado, programas do governo relacionados a antirracismo, diversidade e direitos civis foram sendo extintos ou desarticulados. Os chamados IED (Igualdade, Equidade e Diversidade) passaram a ser frontalmente atacados pela administração Trump, mas não só dentro do governo. O governo Trump passou a incentivar (seja através de propaganda, isenções de impostos ou de contratos) empresas privadas a abandonarem seus programas internos. Dessa forma, a nomeação de associados de Thiel para cargos importantes não apenas garantiu que a agenda das Big Techs se tornasse a agenda do governo, como consolidou a entrada do Iluminismo Sombrio no centro do poder. O Estado não apenas passou a ser administrado como uma empresa; mas começou a se fundir com elas, com os "CEOs-Monarcas" do Vale do Silício atuando como soberanos de fato e membros do “Conselho” previsto por Yarvin.
O terceiro ataque à Catedral foi realizado contra as universidades (os Brâmanes, segundo Yarvin). Em março e abril de 2025, cortes drásticos e demissões em massa atingiram agências como a Agência de Proteção Ambiental (EPA), os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e a Fundação Nacional de Ciências (NSF) levando mais de 1.900 cientistas a assinarem uma carta aberta protestando contra o que consideraram um "ataque" à ciência nos EUA. Em outubro de 2025, o governo propôs um “compacto” para as principais universidades estadunidenses. O documento de 10 páginas prometia acesso preferencial a fundos federais em troca de adesão à sua agenda. Sete das nove universidades endereçadas rejeitaram abertamente a subalternização ideológica sugerida, sendo vitimadas com cortes, investigações retaliatórias e processos judiciais do Estado. A universidade que rejeitou de forma mais contundente às exigências da Casa Branca, Harvard, teve mais de U$ 2 bilhões de fundos federais congelados e está sob ameaça de revogação da isenção de impostos que, historicamente, possui.
Por fim, a ideologia neorreacionária, uma vez instalada no poder, não se limitou às fronteiras dos Estados Unidos. A fusão do poder estatal com o poder das Big Techs deu origem a uma nova geopolítica, na qual a soberania nacional e os interesses corporativos se tornaram indistinguíveis, projetando o poder estadunidense de uma nova forma avassaladora sobre todo o mundo, mas especialmente, sobre o Sul Global, tema que não poderá ser abordado no espaço desse artigo.
3 O MODUS OPERANDI HIPERSTICIONAL
Ocasionalmente, imaginários sociais prenunciados – projetos, diagramas, ficções, mapas, filmes, planos, filosofias, protótipos, teorias, sonhos e mais – tornam-se geradores do futuro; é como se os tentáculos de entidades futuras alcançassem o passado para trazer à existência os próprios elementos necessários para sua materialização (Smith; Burrows, 2021, p. 9).
Inescapavelmente, a análise contemporânea do poder exige do pensamento uma profunda compreensão das novas formas pelas quais a percepção da realidade passa a ser constituída, disputada e, em última instância, fabricada pelos atores sociais com interesses dos mais diversos. Partindo da premissa em epígrafe, a de que os imaginários sociais atuam como "motores de futuro", pretendemos investigar o modus operandi da hiperstição como ferramenta para a construção dessas percepções. A ideia de que a linguagem e as ideias não são meros reflexos da realidade, mas constituem forças produtivas que também a produz, encontramos também em Michel Foucault em sua análise do discurso. Para o pensador francês, o discurso não é um véu transparente que revela objetos preexistentes, mas um conjunto de práticas, regras e enunciados que "formam sistematicamente os objetos de que falam" (Foucault, 2008, p. 55). As formações discursivas de uma época definem as condições de possibilidade do que pode ser dito, pensado e percebido como "verdade". O poder, nessa perspectiva, não é apenas repressivo, mas eminentemente produtivo: ele gera saberes, subjetividades e "regimes de verdade" que normalizam certas condutas e visões de mundo, tornando-as parte do tecido da realidade social (Durand, 2020).
Nesse enquadramento, a hiperstição pode ser compreendida como a instrumentalização tática e acelerada desse poder produtivo do discurso. Sendo projetiva e operacionalizada como uma engenharia de enunciados, ela introduz deliberadamente uma ficção (uma nova formação discursiva) no campo social com o objetivo de que se materialize (Land; Carstens, 2009). O poder da hiperstição, portanto, reside em sua capacidade de sequestrar e reconfigurar os mecanismos foucaultianos de produção da verdade. Ao gerar comportamentos que tratam a ficção como um fato, ela cria um loop de feedback que fabrica a materialidade necessária para validar seus próprios enunciados, erigindo, ao final, um novo regime de verdade onde a ficção original se torna a realidade funcional e inquestionável (Marques, 2023). Dessa forma, como um processo pelo qual construções ficcionais concorrem para a materialização das condições que as tornam real, a hiperstição encontra no ecossistema digital contemporâneo um terreno prolífero, não apenas para sua expansão e divulgação, mas, sobretudo e fundamentalmente, para sua criação em larga escala. Isso ocorre porque um dos componentes principais da hiperstição, os loops de feedback, que funcionam como catalisadores de alteração do curso da história, são naturalmente produzidos pela própria estrutura do modelo de negócios das plataformas digitais.
Para adentrarmos nessa compreensão é importante que articulemos dois conceitos contemporâneos: o conceito de Governamentalidade Algorítmica, da filósofa belga Antoinette Rouvroy (2018), e o conceito de Psicopolítica, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2020). Munidos desses conceitos, poderemos deslindar como os mecanismos infraestruturais que potencializam a construção hipersticional da ideologia do Iluminismo Sombrio (Dark Enlightenment), funcionam. Esse projeto político, que encontra seus principais arquitetos e beneficiários na elite tecnológica do Vale do Silício, é também, por excelência, a ferramenta política da própria extrema-direita, apesar de Mark Fischer defender seu uso para a construção de um pós-capitalismo.
3.1 A PALAVRA DO ANO DE 2016: PÓS-VERDADE
O ano de 2016, marcado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e pelo referendo do Brexit no Reino Unido, foi emblematicamente representado pela escolha da palavra “pós-verdade” como palavra do ano pelo Dicionário Oxford. O termo foi definido como um adjetivo "relativo a ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal" (Oxford University, 2016). Esta escolha não foi meramente anedótica; ela sinalizou um diagnóstico preciso de uma transformação epistemológica no discurso público global, onde a própria relevância da verdade factual parecia estar em declínio. É importante lembrar que tanto o Brexit (que se refere à saída do Reino Unido da União Europeia) quanto a eleição de Trump nesse ano, foram marcados pelas revelações, em 2018, do chamado “Escândalo Cambridge Analytica” (BBC News, 2018). O escândalo expôs como a empresa britânica de análise de dados, Cambridge Analytica, utilizou indevidamente os dados pessoais de milhões de usuários do Facebook para fins políticos. A coleta foi realizada por meio de um aplicativo de teste de personalidade chamado "thisisyourdigitallife", que não apenas extraiu informações dos usuários que o instalaram, mas também de toda a sua rede de amigos, sem o consentimento explícito destes. Com essa vasta base de dados, a empresa construiu perfis psicográficos detalhados dos eleitores, permitindo a criação e o direcionamento de campanhas de micro-targeting com mensagens políticas personalizadas e de alto apelo emocional, projetadas para influenciar o comportamento de voto em favor da campanha de Donald Trump e dos defensores do Brexit.
O caso, no entanto, transcendeu a ação de uma única empresa de consultoria, revelando a cumplicidade da própria arquitetura das plataformas digitais. E-mails internos do Facebook, por exemplo, mostraram que Mark Zuckerberg estava ciente e apoiou ativamente as políticas permissivas de compartilhamento de dados com desenvolvedores terceirizados, vendo-as como uma estratégia para acelerar o crescimento da plataforma. O escândalo Cambridge Analytica, portanto, não foi uma anomalia, mas a demonstração prática e em larga escala do poder psicopolítico inerente à Governamentalidade Algorítmica. Ele materializou a forma como a extração massiva de dados (o Colonialismo de Dados) se converteu em uma ferramenta de modulação comportamental, capaz de influenciar os resultados de processos democráticos fundamentais. A empresa acabou por se declarar culpada em um tribunal britânico, mas o episódio serviu como um alerta indelével sobre a vulnerabilidade das democracias na era do Leviatã Digital.
Portanto, a particularidade do prefixo "pós-" neste contexto não denota uma sucessão temporal (como em "pós-guerra"), mas sim a entrada em uma era "em que o conceito especificado se tornou sem importância ou irrelevante" (Oxford University, 2016). A era da pós-verdade não é, dessa forma, uma era em que a mentira se tornou mais prevalente, mas uma em que a própria distinção entre verdade e falsidade perdeu sua centralidade como critério para a validação do discurso público e, em especial, o discurso político. Destarte, o que importa não é a correspondência de uma afirmação com os fatos, mas sua capacidade de ressoar emocionalmente e reforçar identidades de grupo. Este cenário é caracterizado pela dissolução da autoridade de instituições tradicionalmente incumbidas de arbitrar a verdade, como a mídia, a ciência e os governos, criando um vácuo onde narrativas ficcionais podem competir em pé de igualdade com fatos objetivos.
É precisamente neste vácuo que o conceito de hiperstição, desenvolvido no âmbito da Cybernetic Culture Research Unit (CCRU) e central para o Iluminismo Sombrio, ganha uma potência sem precedentes. A hiperstição opera como uma espécie de profecia que não apenas prevê o futuro, mas o engendra. Funciona através de loops de feedback positivo: uma ficção, ao ser disseminada, inspira comportamentos que a tratam como real; esses comportamentos, por sua vez, produzem consequências materiais que reforçam a plausibilidade da ficção original, acelerando sua materialização. A relação entre pós-verdade e hiperstição é recursiva e simbiótica. A pós-verdade é a ecologia cultural que a hiperstição necessita para escalar de um conceito filosófico para uma força geopolítica. Se pudermos fazer uma analogia da hiperstição como um agente patogênico (como uma ideia-vírus que busca se replicar na realidade), a pós-verdade representa o sistema imunológico social enfraquecido que permite sua proliferação descontrolada. Em uma sociedade com fortes mecanismos de verificação e confiança institucional, uma ficção que gerasse comportamentos dissonantes seria rapidamente identificada e neutralizada. Contudo, no ambiente de pós-verdade, onde a confiança nessas instituições está erodida e o apelo emocional prevalece, essa barreira corretiva esmaece visivelmente. A pós-verdade, portanto, não é apenas um pano de fundo, mas a infraestrutura epistemológica que torna o modus operandi hipersticional politicamente eficaz em escala de massa.
E como a erosão da confiança nas instituições ocorreu? Por tudo o que argumentamos até aqui, podemos afirmar que um dos elementos fundamentais se deu através da criação hipersticional da Catedral, com seus Brâmanes, Escribas e Deep State. Ou seja, trata-se de um ciclo recursivo positivo onde uma hiperstição é criada e engendra as condições não apenas de torná-la real na percepção coletiva, mas facilita a criação de outras hiperstições em cadeia recursiva autorreferente.
3.2 O LEVIATÃ DIGITAL: A GOVERNAMENTALIDADE ALGORÍTMICA
A capacidade de narrativas hipersticionais disseminarem e se materializarem depende de uma infraestrutura tecnológica específica. As plataformas digitais das Big Techs não são meros canais neutros; elas constituem um novo aparato de poder, cuja lógica pode ser compreendida através da articulação de três conceitos: Governamentalidade Algorítmica, Colonialismo de Dados e Psicopolítica.
A filósofa belga Antoinette Rouvroy define a Governamentalidade Algorítmica como uma nova forma de poder que opera de maneira anormativa e apolítica, contornando a subjetividade e a consciência. Diferente dos modos de poder disciplinares que se dirigem a sujeitos, este poder atua sobre um "real infra-individual" composto de Big Data. Seu objetivo não é julgar ou corrigir, mas antecipar, prevenir e modular comportamentos em tempo real, visando "produzir a passagem ao ato sem formação nem formulação de desejo", de forma otimizada e sem atritos (Rouvroy; Berns, 2018, p. 120). Ela governa não através de leis ou normas, mas através de sinais e estímulos ambientais que guiam as ações sem a necessidade de significação ou deliberação consciente:
O governo algorítmico parece, por essa razão, assinar a conclusão de um processo de dissipação das condições espaciais, temporais e linguísticas da subjetivação e da individuação em benefício de uma regulação objetiva, operacional, das condutas possíveis, e isso a partir de “dados brutos”, em si mesmos a-significantes, cujo tratamento estatístico visa, antes de tudo, acelerar os fluxos – poupando toda forma de “desvio” ou de “suspensão reflexiva” subjetiva entre os “estímulos” e suas “respostas-reflexo” (Ibidem).
Este novo regime de poder é alimentado por uma forma radical de expropriação, que Nick Couldry e Ulises Mejias (2019), assim como outros pensadores, como já dissemos, denominam Colonialismo de Dados. Os indivíduos tornam-se "sujeitos colonizados [...] atados a julgamentos alicerçados em seus próprios dados" (Silveira; Souza; Cassino, 2021, p. 28), com o Vale do Silício emergindo como o centro metropolitano deste novo império global. O efeito deste aparato sobre o indivíduo é devastador. Byung-Chul Han o descreve como Psicopolítica. Para o filósofo sul-coreano, o neoliberalismo, em sua fase digital, "descobre a psique como força produtiva" (Han, 2020, p. 40). O Big Data permite um controle que não é repressivo, mas sedutor e inteligente. É um "poder inteligente [que] se plasma à psique" (Ibid., p. 27), antecipando nossos desejos, moldando nossas emoções e nos guiando sutilmente (nudging) por um caminho de menor resistência que, em última análise, serve aos interesses de acumulação e controle.
A conjunção desses três conceitos revela a emergência de um novo soberano: as Big Techs. Ao controlarem a infraestrutura global de extração, processamento e circulação de dados, essas corporações se tornam um "novo tipo de Leviatã" (Gu, 2023), ou, na formulação de Cédric Durand (2020) e Yanis Varoufakis (2023), os senhores de um novo Tecnofeudalismo. Contudo, este Leviatã Digital é fundamentalmente distinto do Leviatã de Thomas Hobbes. O soberano hobbesiano garantia a ordem social através do monopólio da violência e da imposição da lei: um poder disciplinar que opera sobre corpos e sujeitos conscientes. O Leviatã Digital, por outro lado, governa através da modulação do desejo e da preempção do comportamento; um poder psicopolítico que opera em um nível pré-subjetivo e afetivo. Sua soberania não se baseia na espada, mas no monopólio da arquitetura de dados que molda a própria vontade. É uma forma de poder mais sutil, pervasiva e potencialmente mais totalitária, pois seu domínio se estende da esfera pública à própria psique.
É importante frisar que este vasto e sofisticado aparato de controle psicopolítico não serve apenas aos interesses comerciais das corporações que o detêm. Ele funciona, de forma substancial, como forma de propagação ideológica e construção de subjetividades subservientes a um projeto de poder específico: o Iluminismo Sombrio, ou Neorreação (NRx).
4 CONCLUSÃO
O NRx é uma filosofia política antidemocrática e anti-igualitária que se consolidou no Vale do Silício. Seus principais teóricos, como Curtis Yarvin (sob o pseudônimo Mencius Moldbug) e Nick Land, propõem a abolição da democracia, que consideram um sistema decadente e ineficiente, e sua substituição por formas de governança autoritária, como monarquias absolutistas ou corporações-Estado governadas por um "CEO-monarca". A ideologia NRx defende a aceitação de hierarquias humanas como "naturais" e promove a "saída" (exit) das elites tecnológicas e financeiras de um sistema democrático que elas veem como um obstáculo ao progresso e à acumulação de capital. As plataformas digitais são o vetor perfeito para a disseminação e internalização desta ideologia. Através de seus algoritmos de recomendação, elas criam "bolhas de filtro" e "câmaras de eco" que funcionam como incubadoras ideológicas. Um usuário com uma leve inclinação antissistema ou libertária pode ser gradualmente conduzido por um funil de radicalização, sendo exposto a um fluxo contínuo de conteúdo NRx, que é enquadrado não como uma ideologia, mas como uma forma de "racionalidade fria" ou "verdade inconveniente" que a sociedade progressista ("A Catedral", no jargão de Yarvin) tenta suprimir.
Mais profundamente, a governamentalidade algorítmica não apenas divulga a ideologia NRx; ela a performa. O próprio funcionamento de uma plataforma como o X (ex-Twitter), YouTube ou o Facebook é um modelo em miniatura da sociedade que o Iluminismo Sombrio almeja: um sistema opaco, governado por uma elite técnica invisível (os engenheiros e executivos do Vale do Silício), que otimiza resultados e modula o comportamento de bilhões de pessoas sem qualquer forma de deliberação democrática ou consentimento informado. A experiência do usuário é fluida, personalizada e eficiente, precisamente porque é antidemocrática. Nesse processo, a psicopolítica digital constrói uma subjetividade que aprende a preferir a servidão voluntária. O sujeito neoliberal, como descrito por Han, já se autoexplora acreditando estar se realizando. O ambiente algorítmico leva isso a um novo patamar. Ao ser constantemente gratificado com conteúdo personalizado, entretenimento sob demanda e micro-recompensas afetivas (curtidas, notificações), o usuário é treinado para valorizar a gratificação passiva do consumo em detrimento da agência ativa da cidadania. A democracia passa a ser percebida como ineficiente, caótica e "barulhenta", enquanto a ordem tecnocrática do algoritmo é limpa, eficiente e prazerosa. A psicopolítica, portanto, não impõe a ideologia NRx pela força; ela faz com que os indivíduos desejem uma ordem NRx, condicionando-os a preferir a eficiência autoritária à "balbúrdia" da liberdade. A subserviência ao algoritmo torna-se o modelo para a subserviência política.
O próprio Iluminismo Sombrio se impõe enquanto hiperstição. Seus principais proponentes e beneficiários, os bilionários da indústria tecnológica, estão ativamente utilizando seu vasto capital para construir a realidade material prevista por sua cosmologia escatológica. Seus projetos grandiosos representam a fase de engenharia da hiperstição NRx, transformando a ficção em concreto, aço, algoritmos e código genético.
Elon Musk personifica a vertente eugenista e “extraterrestre” do NRx. Suas declarações sobre o "colapso da civilização" devido às baixas taxas de natalidade e a necessidade de "pessoas inteligentes" terem mais filhos ecoam o "natalismo" e a eugenia liberal que ganharam força em certos círculos do Vale do Silício. Sua própria prole, concebida com múltiplas parceiras e com o auxílio de tecnologias de triagem de embriões para selecionar características como QI, materializa essa filosofia. Esses ideais estão alinhados com o pacote de crenças conhecido como "TESCREAL" (Transumanismo, Extropianismo, Singularitarianismo, Cosmismo, Racionalismo, Altruísmo Eficaz e Longotermismo), que críticos argumentam ter raízes diretas na eugenia do século XX. A colonização de Marte, promovida pela SpaceX, é explicitamente enquadrada como uma estratégia de "saída" e "backup" para a humanidade, uma arca de Noé tecnológica para uma elite selecionada escapar de um planeta em crise (Reveal News, 2025; Sherman, 2025). Jeff Bezos, por sua vez, projeta uma visão de "zoneamento" da humanidade. A filosofia da Blue Origin prevê a transferência de toda a indústria pesada e poluente para o espaço, deixando a Terra "zoneada para uso residencial e da indústria leve" (Bezos apud in Whalen, 2019). Sua ambição de uma civilização espacial com "um trilhão de humanos" para produzir "mil Mozarts e mil Einsteins" (Bezos apud in Marx, 2019) revela uma visão profundamente hierárquica e colonial. Ela propõe uma divisão espacial entre uma elite criativa vivendo em colônias espaciais utópicas (os "cilindros de O'Neill") e o restante da população em uma Terra "preservada", mas funcionalmente subordinada. A promessa de futuros gênios ignora os milhões de talentos que já existem, mas que são sistematicamente suprimidos pela mesma lógica de exploração e desigualdade da qual a fortuna de Bezos é o principal produto.
Enquanto Musk e Bezos planejam a secessão extraterrestre, outros, como Peter Thiel e Mark Zuckerberg, constroem a infraestrutura para a secessão terrestre. Thiel, uma figura central no financiamento do NRx e influenciado pelo manifesto "The Sovereign Individual", obteve cidadania neozelandesa após passar apenas 12 dias no país e planejou a construção de um luxuoso complexo com características de bunker em uma área remota e de beleza natural protegida (O’Connell, 2018). Mark Zuckerberg está construindo um complexo de US$ 270 milhões e 1.400 acres no Havaí, que inclui um bunker subterrâneo de 5.000 pés quadrados com porta resistente a explosões, fontes próprias de energia e alimentos, e um sistema de segurança extremo, em meio a controvérsias sobre a apropriação de terras indígenas. Essas estruturas não são meras residências de luxo; são infraestruturas de "saída", materializações da crença de que a elite tecnológica pode e deve se isolar do destino das massas em caso de colapso social, ambiental ou político.
Esses projetos não são apenas reativos, uma resposta ao medo do apocalipse. Eles são proativamente construtivos, representando a fase de engenharia da hiperstição. Ao alocar capital em escala de trilhões de dólares na construção de foguetes, bunkers e tecnologias de aprimoramento humano, esses bilionários fabricam ativamente as condições materiais para o futuro que sua ideologia descreve. A crença na inevitabilidade do colapso e da secessão da elite leva à construção da infraestrutura para o colapso e a secessão. Esse desvio massivo de recursos, que poderiam ser aplicados na solução de problemas coletivos, acelera a própria decadência da qual eles pretendem escapar. O resultado é um loop de feedback positivo devastador: a ficção da "saída" justifica a construção da infraestrutura de saída, cuja existência torna a "saída" uma opção mais viável e a permanência menos atraente, reforçando a ficção original. A hiperstição se completa quando a arca é construída, tornando o dilúvio uma conclusão lógica e desejada.
O modus operandi hipersticional se revela como um processo completo de engenharia da realidade, que se desenrola em etapas distintas, mas interligadas. A era da pós-verdade atua como o catalisador inicial, dissolvendo o consenso sobre a realidade e criando um vácuo epistemológico. Nesse vácuo, a hiperstição emerge como um método viável para a fabricação de novas realidades, onde ficções mobilizam agência e produzem efeitos materiais.
A infraestrutura para essa fabricação é fornecida pela Governamentalidade Algorítmica e pela Psicopolítica, mecanismos de poder monopolizados pelas Big Techs. Esse Leviatã Digital não apenas permite a disseminação viral de ficções ideológicas, como a do Iluminismo Sombrio, mas também molda ativamente as subjetividades para que se tornem receptivas e subservientes a elas, preferindo a eficiência autoritária à deliberação democrática.
Finalmente, a fase de materialização ocorre através dos projetos grandiosos dos bilionários da tecnologia, não apenas como sintomas de uma ideologia, mas sua própria construção em concreto, aço e código. Eles transformam a teoria-ficção NRx em fatos consumados, criando um loop de feedback que acelera a própria crise da qual pretendem se salvar. O modus operandi hipersticional é, portanto, o processo integral que conduz da ideia à sua encarnação material, projetando um novo mundo para e por uma elite tecnológica que se autodesignou como a herdeira soberana de um planeta em colapso que, em larga medida, eles próprios são os responsáveis.
REFERÊNCIAS
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