A TERCEIRA ONDA DE COLONIZAÇÃO SISTÊMICA
capitalismo de plataforma, algoritmos e a crise da razão pública
Daniel Valente Pedroso de Siqueira[1]
Universidade Federal do ABC
daniel.valente@ufabc.edu.br
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Resumo
Este trabalho propõe uma atualização crítica da tese habermasiana da colonização sistêmica do mundo da vida para compreender a intensificação da lógica sistêmica promovida pelo capitalismo de plataforma. Sustenta-se a hipótese de uma “terceira onda” de colonização sistêmica marcada pela plataformização algorítmica da vida social, pela manipulação automatizada das interações e pela extração contínua de dados. A partir da Teoria da Ação Comunicativa e de Uma Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública, analisam-se os impactos do processo de plataformização sobre a deliberação democrática, com atenção às formas de injustiça epistêmica, desinformação e exclusão algorítmica. Por fim, descrevem-se caminhos normativos para a reconstrução da esfera pública.
Palavras-chave: Habermas. Esfera pública. Capitalismo de plataforma. Colonização sistêmica. Justiça epistêmica.
THE THIRD WAVE OF SYSTEMIC COLONIZATION
Platform capitalism, algorithms, and the crisis of public reason
Abstract
This paper proposes a critical update of Habermas's thesis of the systemic colonization of the lifeworld to understand the intensification of systemic logic promoted by platform capitalism. It argues for a "third wave" of systemic colonization marked by the algorithmic platformization of social life, the automated manipulation of interactions, and the continuous extraction of data. Based on the Theory of Communicative Action and A New Structural Transformation of the Public Sphere, the impacts of the platformization process on democratic deliberation are analyzed, paying attention to forms of epistemic injustice, disinformation, and algorithmic exclusion. Finally, normative paths for the reconstruction of the public sphere are described.
Keywords: Habermas. Public sphere. Platform capitalism. Systemic colonization. Epistemic justice.
LA TERCERA OLA DE COLONIZACIÓN SISTÉMICA
Capitalismo de plataformas, algoritmos y la crisis de la razón pública
Resumen
Este artículo propone una actualización crítica de la tesis de Habermas sobre la colonización sistémica del mundo de la vida para comprender la intensificación de la lógica sistémica promovida por el capitalismo de plataformas. Argumenta a favor de una «tercera ola» de colonización sistémica marcada por la plataformización algorítmica de la vida social, la manipulación automatizada de las interacciones y la extracción continua de datos. Basándose en la Teoría de la Acción Comunicativa y en Una Nueva Transformación Estructural de la Esfera Pública, se analizan los impactos del proceso de plataformización en la deliberación democrática, prestando atención a las formas de injusticia epistémica, desinformación y exclusión algorítmica. Finalmente, se describen vías normativas para la reconstrucción de la esfera pública.
Palabras clave: Habermas. Esfera pública. Capitalismo de plataformas. Colonización sistémica. Justicia epistémica.
1 INTRODUÇÃO
A teoria crítica da sociedade de Jürgen Habermas oferece com a tese da colonização sistêmica do mundo da vida um modelo sólido para diagnosticar distúrbios sociais. A colonização descreve como os imperativos sistêmicos (orientados pelos medium dinheiro e poder) interferem de modo destrutivo sobre o âmbito cultural, onde ocorrem a formação da identidade, o desenvolvimento da solidariedade e no qual são elaboradas orientações normativas.
O artigo observa que o capitalismo de plataforma (Srnicek, 2017[2]), representa um novo modelo de sistema capitalista e analisa a constituição da esfera pública circunscrita a ele. O diagnóstico crítico desenhado aponta para uma terceira onda de colonização sistêmica. Para tanto, será descrito como as plataformas digitais tornaram-se centros de acumulação de capital que moldam tanto a economia, a administração quanto a vida social. Os processos comunicativos são transformados, convertendo as interações sociais em dados algorítmicos que moldam a formação da opinião pública conforme lógicas de engajamento e rentabilidade.
Se, inicialmente, as plataformas atuavam como intermediárias entre usuários e provedores de serviços, com o avanço do “capitalismo financeiro[3]” ocorre uma expansão das Big Techs[4], promovendo às plataformas desempenharem poder sobre a economia e a sociedade.
A esfera pública e o capitalismo são temas constantes a Habermas. Para exemplificar, trinta anos após a publicação de Mudança Estrutural da Esfera Pública (1990[1962]), Habermas elabora um novo diagnóstico histórico-social (empregando um aparato teórico mais sofisticado em comparação ao da obra de 1962). A reflexão de 1962 é desdobrada em Facticidade e Validade (1992), obra na qual apresenta uma teoria discursiva do direito e da democracia. Trinta anos após a publicação desta obra, e frente as transformações políticas, culturais e tecnológicas, Habermas retoma a obra de 1962 e publica Uma Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública e a Política Deliberativa (2022a). Se destaca, nestes três momentos, como a esfera pública se reconfigura sob pressão dos imperativos sistêmicos e das tecnologias da informação – e o que isso significa para o potencial emancipatório da democracia deliberativa, visto que “a teoria democracia e a crítica do capitalismo andam juntas” (Habermas, 2022a, p. 99). Neste ponto, desenha-se o fio de Ariadne que guia o presente artigo.
Embora a esfera pública desempenhe funções variadas nas sociedades capitalistas (e as bases para sua compreensão encontram-se estabelecidas na obra de 1962), no “capitalismo de plataforma” a esfera pública passa a ser compreendida como a instância de “salvaguarda da existência da comunidade democrática” (Habermas, 2022a, p. 28). Essa formulação adquire especial relevância diante das inovações tecnológicas que incidem sobre os processos de comunicação pública (e quais perturbações e deformações são geradas). Dedicar atenção sobre como funcionam as atuais esferas públicas parece ecoar no diagnóstico crítico[5] de que o grau de democratização de uma sociedade seja mensurado pela qualidade de sua comunicação pública (quanto mais livre, inclusiva e reflexiva, maior o processo deliberativo e o potencial democrático). Ao adotar um recorte epistêmico centrado nas esferas públicas, as mídias digitais se destacam como eixos estruturantes da realidade interacional que as constituem.
As mídias sociais digitais alteraram profunda e radicalmente os modos de interação social e isso ocorreu a partir do momento em que foi introduzido um regime comunicativo em que a visibilidade, a conexão e o engajamento passam a ser mediados por infraestruturas digitais privadas. Elas não representam apenas uma extensão tecnológica da comunicação, mas um modo inédito de colonização, em que interações, identidades e processos de reconhecimento são redefinidos por arquiteturas algorítmicas orientadas ao lucro e poder das plataformas. O debate não é recente e encontra interlocutores. Castells (2009) observa como a sociabilidade em rede substitui os antigos vínculos territoriais por fluxos comunicacionais globais, nos quais tempo e espaço se comprimem. Dijck (2013), por seu turno, destaca que a transformação descrita por Castells não é neutra e ocorre sob a lógica da “cultura da conectividade” na qual algoritmos e métricas de popularidade moldam as formas de reconhecimento e pertencimento. Zuboff (2019), por sua vez, demonstra como cada interação convertida em dado gera um regime de vigilância, fazendo com que a comunicação cotidiana se torne recurso econômico e instrumento de previsão comportamento. Fraser (2022) destaca as alterações que as mídias sociais geram sobre as interações sociais e acrescenta que o capitalismo contemporâneo não apenas mercantiliza a comunicação, mas a reorganiza estruturalmente, subordinando práticas de socialização às lógicas de acumulação de plataformas.
Sem pretender esgotar o debate, o artigo reconhece a ambivalência do “capitalismo de plataforma”. Se, por um lado, é inegável que as tecnologias digitais romperam com as restrições impostas pelas mídias de massa tradicionais (jornais impressos, televisão e rádio), favorecendo a inclusão, a descentralização e a mobilização política, por outro lado, essas as mesmas tecnologias fomentaram a fragmentação da esfera pública, o isolamento social, a manipulação algorítmica, a disseminação de desinformação (fake news), o controle performático do engajamento e uma participação pública subordinada aos “imperativos dos likes[6]”.
A tese da colonização sistêmica do mundo da vida é retomada, sem que seja desconsiderada a contribuição de sua análise mais recente (Habermas, 2022a). Seria imprudente tomar como equivalentes os diagnósticos de 1981 e 2022, e inapropriado desconsiderar um maior pessimismo no diagnóstico mais recente, visto que a “grande promessa emancipatória é hoje abafada [...] pelos ruídos selvagens em câmaras de eco fragmentadas e que giram em torno de si mesmas” (Habermas, 2022a, p. 61). De qualquer modo, respeitando os distintos momentos, e as transformações sociais ocorridas, propõe-se que a reflexão crítica sobre essa ambivalência viabilize sustentar a hipótese de que há uma terceira onda de colonização e que, mesmo assim, seja possível pensar em propostas normativas a partir do diagnóstico realizado.
2 A PLATAFORMIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA
A “plataformização da esfera pública” representa muito mais do que uma mera migração tecnológica do debate para o ambiente digital. Trata-se de uma profunda transformação estrutural que ameaça os fundamentos da ação comunicativa. Sob o domínio das plataformas, a infraestrutura do mundo da vida é progressivamente colonizada por uma racionalidade instrumental e sistêmica. Nesse novo paradigma, o critério de validade deixa de ser a força do melhor argumento e passa a ser a métrica de engajamento, convertendo a comunicação em uma espécie de commodity, transformando e o espaço discursivo em um mercado de atenção administrado por algoritmos. É precisamente esta subordinação da esfera pública aos imperativos de rentabilidade e controle (que fragmenta o debate, refeudaliza a visibilidade e esvazia a deliberação de seu potencial democrático) que constitui o cerne do problema aqui investigado: a corrosão das bases comunicativas da legitimidade política.
Com a plataformização da esfera pública, os cidadãos são transformados em produtores e difusores de conteúdos. Anteriormente, o diagnóstico apresentado na Teoria da Ação Comunicativa alertava sobre a eminência dos cidadãos se transformarem em clientes do Estado e consumidores do mercado, mas, atualmente, com a conversão[7] de cidadãos em produtores e difusores ocorre uma transformação estrutural do horizonte de sentido no qual as práticas são orientadas. As mídias sociais não apenas ampliam a capacidade de propagar conteúdos, como convertem cidadãos em replicadores de conteúdos consumíveis, reorganizando sua ação comunicativa segundo a lógica do engajamento algorítmico. Atualmente, ao ocorrerem em espaços mediados por empresas privadas, regidas por lógicas próprias, as interações sociais são marcadas novas disposições. A extração de dados e de valor é constante e marca uma mudança sobre o mundo social, ao estabelecer que os consumidores também sejam clientes, produtores e divulgadores ao mesmo. Isso, por conseguinte, impacta como se constitui a esfera pública. Ao ser atravessada pelas mídias sociais, o caráter de dinamismo da esfera pública se intensifica, mas por critérios sistêmicos: algoritmos, fluxos informacionais e métricas de engajamento reconfiguram, em tempo real, quais temas, vozes e narrativas ganham visibilidade. A esfera pública deixa de ser apenas um espaço relativamente estável de deliberação para se converter em uma “realidade dinâmica”, marcada pela volatilidade discursiva, aceleração da circulação de conteúdos e pela permanente possibilidade de recomposição dos consensos sociais.
A constante recomposição dos consensos sociais resulta em circuitos comunicativos isolados, e mesmo quando demandas ou manifestações surgem, estas seguem dinâmicas pré-concebidas de mobilização e, não obstante, se mantêm por breve tempo em evidência (sendo seguidas por outras demandas e outras manifestações, subsequentemente). Os novos operadores da esfera pública (nas mídias sociais) encontram-se “por trás” desta regulação: “empresas que obedecem aos imperativos de valorização do capital e estão entre as corporações ‘mais valiosas’ em todo o mundo em termos de seu valor de mercado” (Habermas, 2022a, p. 68[8]).
Neste âmbito, o aprofundamento da análise crítica sobre o capitalismo de plataforma identifica um aprofundamento das tendências de despolitização com a manifestação de um modelo comportamental performático engajador[9] orientado por uma lógica da singularização e da espetacularização da opinião, onde “celebridades de internet[10]” se alçam como interlocutores desprovidos de conhecimento consistente. A manifestação e surgimento desses novos “atores sociais” coincide com um maior aprofundamento da gerência das plataformas sobre a esfera social – daí a hipótese de que nos encontramos sob uma terceira onda de colonização sistêmica. A lógica do capitalismo de plataforma se orienta por critérios estratégico-instrumentais e é impulsionada por infraestruturas digitais e algoritmos que mediam a comunicação cotidiana. Essa nova colonização incide diretamente sobre os circuitos comunicativos de formação da opinião e da vontade, moldando-os conforme lógicas próprias e, inclusive, intensificando a tese da reificação do mundo da vida, pois, como afirma Habermas, a imposição do complexo da racionalidade cognitiva-instrumental se dá “à custa da racionalidade prática ao reificar as relações comunicativas da vida” (Habermas, 1981, p. 486).
3 COLONIZAÇÃO SISTÊMICA DO MUNDO DA VIDA: RACIONALIDADE INSTRUMENTAL E ESFERA DA AÇÃO SOCIAL
A tese da colonização sistêmica do mundo da vida se baseia na distinção analítica entre mundo da vida (esfera da reprodução simbólica e do entendimento mútuo) e sistema (esfera da produção material, mediada pelo dinheiro e poder) e ocorre quando os subsistemas funcionais extrapolam seus limites funcionais e invadem domínios mediados por práticas comunicativas.
Habermas analisa que nas sociedades capitalistas avançadas os subsistemas funcionais, originalmente encarregados da produção material, extrapolam seus limites funcionais e invadem domínios que eram mediados por práticas comunicativas e consensuais. Esse transbordamento, ou invasão, é denominado como “colonização sistêmica do mundo da vida” (Habermas, 1988, p. 523), uma expressão, no entanto, que não se limita a um uso metafórico, pois descreve o processo de usurpação funcional da competência comunicativa na qual os códigos sistêmicos de controle instrumental substituem formas comunicativas de entendimento mútuo, reconfigurando a coordenação social segundo uma lógica externa, deslinguistificada e estranha à sua origem intersubjetiva. A colonização manifesta-se como um processo de reorganização social institucional e subjetiva da vida social quando práticas sociais, estruturas de personalidade e contextos interativos passam a ser moldados por imperativos sistêmicos, convertendo objetivos de vida e valores culturais em meios subordinados a fins funcionalmente definidos. A linguagem, enquanto medium originário da integração social, é desfigurada pela interferência dos códigos do dinheiro e do poder, os quais substituem o consenso discursivo por mecanismos estratégicos e funcionais de coordenação – Habermas detalha quatro formas[11] pelas quais a colonização sistêmica do mundo da vida se manifesta e nas quais as estruturas de significação e legitimidade do mundo da vida sofrem esvaziamento progressivo – o que leva à reificação das interações sociais e à desintegração do sentido compartilhado por atores sociais.
Ainda que se intensifique à medida em que o mundo da vida perde mais e mais a capacidade de regular as esferas sociais, o processo de colonização não é homogêneo nem absoluto, podendo ser descrito como a transformação das relações sociais em mercadorias (a monetarização) e como a administração da vida cotidiana por meio de controles formais (a burocratização)[12]. Estes processos, ao se autonomizarem, impõem às interações sociais formas de coordenação despersonalizadas e exteriorizadas, o que provoca rompimentos dos vínculos normativos e simbólicos que antes a regulavam, “afetam a estrutura simbólica do mundo da vida de tal modo que deformam o uso da linguagem” (Habermas, 1988, p. 534) e geram patologias sociais [soziale Pathologien[13]].
A colonização configura-se como elo analítico entre o processo de racionalização cultural e a emergência de formas sistêmicas de dominação estrutural. Um paradoxo da modernidade no qual a racionalidade, ao passar por um duplo processo de racionalização cultural e modernização social, liberou potenciais cognitivos da cultura moderna que tornaram possível o surgimento da colonização sistêmica do mundo da vida que “escapa ao controle normativo dos participantes” (Habermas, 1988, p. 516) e “abriu caminho para a desintegração dos seus fundamentos comunicativos” (Rehg, 1997, p. 173). A colonização não representa apenas uma perda de normatividade social; ela expressa, sobretudo, o esvaziamento da possibilidade de compreensão recíproca nos contextos de vida ordinária. Essa reconfiguração impacta diretamente a constituição da subjetividade e da sociabilidade, pois atinge os processos de socialização primária e secundária que moldam a personalidade e a identidade coletiva. Albrecht Wellmer destaca que “os imperativos sistêmicos passam a instrumentalizar o mundo da vida e ameaçam sua destruição” (Wellmer, 1991, p. 56). A colonização, portanto, deve ser compreendida como o momento em que as formas funcionais da sociedade – dinheiro, poder, organizações – começam a se reproduzir autonomamente, alheias à práxis comunicativa, e impõem uma lógica própria e meios deslinguistificados ao mundo da vida.
Por outro lado, a tese da colonização não é uma crítica nostálgica às sociedades tradicionais pré-capitalistas, mas, como descreve McCarthy (1991, p. 168), “uma crítica que não apenas descreve disfunções sistêmicas, mas que também revela a ausência de mediações comunicativas que possam garantir processos de autodeterminação democrática”. Com a tese é possível não apenas diagnosticar formas de dominação invisibilizadas pela racionalidade sistêmica, mas recuperar a base normativa para a crítica social, proporcionando ancorar a crítica numa gramática intersubjetiva do entendimento, resistente às formas reificadas de coordenação social[14]. Com a digitalização e a plataformização da comunicação, é urgente a atualização dessa categoria diagnóstica. As novas tecnologias da informação efetuam uma captura algorítmica da comunicação e da subjetividade, operando diretamente sobre a linguagem e reorganizando os circuitos de produção de sentido que “produzem um deslocamento estrutural nas condições da formação discursiva da opinião e da vontade” (Habermas, 2022a, p. 60). Isso não se restringe à instrumentalização econômica, mas reconfigura os processos de formação do entendimento mútuo, a produção epistêmica e a memória coletiva. Enquanto o dinheiro e o poder reificam relações externas, os algoritmos colonizam a estrutura íntima da interação[15] – daí a hipótese de uma terceira forma de colonização sistêmica: distinta, embora articulada, as outras duas.
4 PLATAFORMIZAÇÃO, ALGORITMOS E INJUSTIÇA EPISTÊMICA: A TERCEIRA COLONIZAÇÃO SISTÊMICA
A terceira colonização sistêmica manifesta-se na reorganização da esfera pública mediada pelas plataformas digitais, deslocando o eixo normativo da deliberação para uma lógica de maximização do engajamento e da rentabilidade. Esse deslocamento compromete os fundamentos discursivos da autodeterminação democrática, convergindo o debate público a uma desinformação em larga escala, a algoritmização da opinião pública e estimulando o surgimento de bolhas comunicativas – em outras palavras, longe de promover a racionalização comunicativa e a universalização dos interesses, o espaço público digital frequentemente promove dinâmicas fragmentadas, polarizadas ou desagregadas, nas surgem circuitos autorreferenciais de comunicação estruturados por lógicas algorítmicas.
Zuboff (2019) argumenta que o capitalismo de plataforma se baseia na extração massiva de dados comportamentais (convertidos em ativos preditivos e comercializados) e possui uma lógica estrutural que se opõe à transparência comunicativa e à autodeterminação (daí ele também ser compreendido como de vigilância). Segundo a autora, trata-se de uma nova forma de acumulação, alicerçada não apenas no controle dos meios de produção ou circulação, mas na captura e predição da conduta humana que promove “a substituição do contrato e do consentimento pela captura furtiva de experiências pessoais se torna a base de uma nova ordem econômica” (Zuboff, 2019, p. 11). O diagnóstico de Habermas vai na mesma direção, ainda que para ele a definição de capitalismo de plataforma seja mais interessante, visto que “a promessa emancipatória da internet – de uma comunicação mais inclusiva, igualitária e participativa – é abafada pelos ruídos selvagens em câmaras de eco fragmentadas e que giram em torno de si mesmas” (Habermas, 2022a, p. 61). A fragmentação e o isolamento comunicativo corroem as condições para a existência de um espaço público comum e onde ocorre a injustiça epistêmica.
O conceito, desenvolvido por Fricker (2017) e aprofundado por Medina (2013), refere-se às formas de exclusão, silenciamento ou distorção da agência cognitiva de determinados grupos sociais. No ambiente digital, as injustiças adquirem novas formas mediadas por dispositivos algorítmicos. A “injustiça epistêmica meta-reflexiva” (Medina, 2013, p. 96) ganha uma dimensão estrutural quando os sistemas de filtragem e recomendação determinam quais vozes serão amplificadas e quais serão silenciadas. As plataformas digitais, contrariamente ao que alegam as corporações que as detêm em suas narrativas institucionais, não são espaços neutros ou horizontais de troca comunicativa. Pelo contrário, elas modulam ativamente o acesso, a visibilidade e a ressonância das expressões públicas, com base em critérios alheios ao controle dos próprios usuários. Fraser (2013, p. 19), alerta para o risco de que o espaço comunicativo seja estruturalmente distorcido por assimetrias de poder e desigualdades socioeconômicas, pois “as condições materiais de participação comunicativa são parte constitutiva da justiça democrática” – a plataformização da comunicação é uma reconfiguração estrutural da esfera pública, que intensifica os mecanismos de colonização do mundo da vida.
O Marco Civil da Internet, sancionado no Brasil, em 2014, é um exemplo normativo interessante de como a questão pode ser combatida. Resultado de amplo debate público, estabeleceu princípios fundamentais como a neutralidade da rede, privacidade e liberdade de expressão[16]. Apesar de representar um avanço normativo significativo, os mecanismos de desinformação digital se intensificaram e o Marco Civil enfrenta desafios relevantes quanto à sua efetiva aplicação e atualização. Como observa Falcão (2021, p. 87), “a ausência de mecanismos claros de responsabilização algorítmica e de transparência nas plataformas torna o Marco Civil uma base insuficiente para o enfrentamento das novas formas de exclusão digital e manipulação de dados”. Isso ficou evidente durante as eleições presidenciais de 2018 no Brasil, marcadas pelo uso intensivo de disparos automatizados de mensagens, pela disseminação de fake news e mobilização de afetos negativos com base em conteúdos manipulados. Estudos[17] apontaram a ausência de mecanismos eficazes de fiscalização contra o uso abusivo das redes sociais[18].
Esse fenômeno, no entanto, não é exclusivo do Brasil. Nas eleições norte-americanos de 2015, investigações conduzidas pelo Senado dos EUA e por instituições independentes, como o Digital Forensic Research Lab[19], revelaram uma campanha coordenada de desinformação conduzida por agentes russos, com o objetivo de enfraquecer a candidatura de Hillary Clinton e fomentar a polarização política. O uso de dados pessoais obtidos ilegalmente pela Cambridge Analytica[20] para o microdirecionamento de mensagens políticas – frequentemente baseadas no medo, no ressentimento e em teorias conspiratórias – expos a vulnerabilidade estrutural da democracia estadunidense frente à lógica extrativista e psicopolítica das Big Techs, como demonstra Zuboff (2019)[21].
Na União Europeia, os impactos da desinformação digital também se fazem presentes. A Alemanha, em particular, testemunha o crescimento da extrema direita, com a ascensão do partido AfD[22], cujo discurso xenófobo e antidemocrático encontrou nas redes sociais um canal privilegiado de disseminação. Apesar de legislações como o GDPR[23] e a NetzDG[24] buscarem impor limites normativos à atuação das plataformas, o volume de conteúdos manipulados evidencia a insuficiência das regulações atuais frente à sofisticação destes mecanismos.
A pandemia de COVID-19 oferece um exemplo ainda mais trágico e global da dimensão epistêmica da colonização digital. As redes sociais tornaram-se terreno fértil para a disseminação de desinformações sanitárias – desde a negação da existência do vírus até campanhas de boicote à vacinação. O movimento antivacina (Antivax), iniciado nos EUA, mas que amplificado por influenciadores e grupos extremistas, espalhou-se rapidamente por outros países, promovendo desconfiança nas instituições de saúde e atrasou os esforços de imunização. A Organização Mundial de Saúde (OMS, 2021), cunhou o termo “infodemia” para designar o excesso de informações, muitas vezes falsas, que dificulta o acesso a fontes confiáveis e à orientação baseada em evidências. Essa infodemia não foi uma anomalia momentânea, mas um sintoma estrutural da plataformização da esfera pública. Algoritmos priorizaram conteúdos conspiratórios por sua alta capacidade de engajamento, e as plataformas lucraram com a viralização de desinformações potencialmente letais. Zuboff (2019) analisa que o capitalismo de vigilância não apenas coleta dados, mas molda condutas, emoções e decisões, transformando o comportamento humano em matéria-prima preditiva. Durante a pandemia essa lógica atuou como um vetor de destruição ao sabotar a resposta pública à crise sanitária.
Os exemplos aqui apresentados visam reforçar o argumento de que a colonização digital do mundo da vida opera por meio de uma devastação epistêmica transnacional, comprometendo os pressupostos discursivos da democracia. Quando a comunicação pública para de ser orientada por pretensões de validade (como verdade, correção normativa e veracidade) e é submetida à lógica do engajamento, da monetarização e da maximização de cliques, isso resulta em um espaço público vulnerável a manipulações, radicalizações e desinformação sistêmica, que incide diretamente sobre os processos de formação da opinião e da vontade política.
Para além dos exemplos normativos apresentados anteriormente, um, mais recente ainda, merece figurar nesta discussão. Trata-se de um exemplo de orientação normativa que enfrenta a colonização digital, e foi apresentado publicamente em 2025: a alteração legislativa promovida na Dinamarca, em julho. Essa alteração concedeu aos cidadãos dinamarqueses direitos autorais sobre a representação de seus corpos e rostos, em resposta ao uso indevido de tecnologias como inteligência artificial e deepfakes. Em entrevista ao The Guardian[25], o ministro da Cultura dinamarquês declarou que: “Estamos protegendo o direito fundamental à integridade da identidade pessoal, mesmo no mundo digital” (The Guardian, 2025a). O caso representa uma inovação significativa no reconhecimento dos direitos epistêmicos e informacionais, e um caminho possível para a regulação democrática da inteligência artificial. Tanto o exemplo brasileiro quanto o dinamarquês – assim como o Digital Services Act[26] da União Europeia e o Algorithmic Accountability Act[27] dos EUA – reforçam a tese de que o enfrentamento da “nova” colonização sistêmica exige respostas normativas e institucionais que articulem justiça cognitiva, transparência algorítmica, responsabilização corporativa e inclusão epistêmica.
5 EFEITOS EPISTÊMICOS E ECOLÓGICOS DA “NOVA” COLONIZAÇÃO SISTÊMICA
A colonização engendra efeitos profundos e duradouros tanto na constituição epistêmica das subjetividades quanto nas condições ecológicas de reprodução social. A lógica algorítmica das plataformas digitais impõe uma hierarquia entre saberes, experiências e formas de expressão, no qual a visibilidade torna-se um recurso escasso, regulado por critérios opacos de ranqueamento e distribuição de conteúdos digitais. Como argumenta Medina (2013), em contextos de injustiça epistêmica, determinados grupos sociais são sistematicamente silenciados, desacreditados ou excluídos dos circuitos de produção de sentido. As plataformas acentuam esse processo ao automatizar a marginalização de vozes dissidentes e favorecer conteúdos que reforçam estereótipos dominantes. A reificação digital da experiência, descrita por Zuboff (2019), não apenas mercantiliza dados pessoais, mas transforma a própria subjetividade em matéria-prima de previsibilidade comportamental. Trata-se de uma forma sofisticada de expropriação cognitiva, na qual as estruturas da atenção, da memória e do reconhecimento são moldadas segundo lógicas comerciais de engajamento e monetização. A colonização epistêmica manifesta-se na obsolescência da razão pública e no enfraquecimento das capacidades reflexivas, e, consequentemente, deliberativas, dos atores sociais.
Do ponto de vista ecológico, os efeitos da colonização digital são igualmente alarmantes. A infraestrutura material que sustenta o funcionamento das plataformas – como centros de dados, redes de transmissão, dispositivos inteligentes – consome quantidades colossais de energia, água potável e minerais raros. Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, 2023), os data centers globais consumiram cerca de 460 Terawatt-hora (TWh) em 2022, o equivalente ao consumo energético de todo o Reino Unido. Essa demanda cresceu para 500 TWh em 2024 – comparável ao consumo da França[28] – pressionando ecossistemas frágeis e comunidades vulneráveis, especialmente em função do resfriamento intensivo exigido pelos grandes servidores que mantém operantes as plataformas digitais.
O jornal The Guardian (2025b) revelou que empresas de tecnologia têm instalado data centers em regiões com acesso escasso à água, exacerbando conflitos ambientas e aprofundando desigualdades socioecológicas. Esse movimento sinaliza uma nova forma de extrativismo digital, em que os recursos naturais são apropriados para sustentar a acumulação informacional e o controle algorítmico global. Fraser (2022a) alerta que o capitalismo contemporâneo opera por meio de uma expropriação de fundos comuns. A convergência entre devastação epistêmica e degradação ambiental evidencia a colonização sistêmica como um fenômeno totalizante. Não se trata apenas de uma deformação nas formas simbólicas de dominação, mas de uma reorganização material das condições de vida, com implicações decisivas para a justiça cognitiva, ambiental e a sustentabilidade democrática. Os próprios conceitos de autonomia, liberdade e cidadania tornam-se instáveis diante de uma arquitetura informacional que captura o futuro antes mesmo que ele possa ser deliberado. A colonização, ao operar simultaneamente nos regimes de verdade e de produção, impõe um desafio radical às democracias: como reconstruir a esfera pública em um ambiente midiatizado, extrativista e volátil, sem sucumbir ao cinismo tecnocrático ou à nostalgia de formas comunicativas superadas?
6 CONCLUSÃO: elementos para uma crítica normativa e reconstrução democrática da esfera pública
Se a colonização algorítmica representa uma nova forma de esvaziamento das potencialidades comunicativas da sociedade civil, a resposta crítica deve ser a de uma reapropriação normativa da esfera pública. Essa reapropriação requer, simultaneamente, uma atualização do modelo habermasiano e sua articulação com críticas interseccionais, epistêmicas e ecológicas, capazes de responder aos desafios impostos pelas tecnologias digitais, atualmente orientadas por uma lógica extrativista e corporativa.
De acordo com Habermas, o potencial crítico da modernidade reside na capacidade da sociedade civil de resistir à colonização por meio de práticas comunicativas orientadas ao entendimento mútuo. A esfera pública constitui um espaço intersubjetivo de formação da opinião e da vontade coletivas, regulada pela força do melhor argumento e capaz de influenciar os processos decisórios institucionalizados (Habermas, 1988, p. 222; Habermas, 2022a, p. 94). Contudo, suas condições materiais foram profundamente transformadas, exigindo uma crítica normativa que articule: (1) a defesa de critérios procedimentais para a deliberação digital e (2) o enfrentamento das desigualdades epistêmicas que comprometem a simetria comunicativa.
6.1 DELIBERAÇÃO DIGITAL E RESPONSABILIDADE ALGORÍTMICA
A reconstrução democrática da esfera pública demanda, como passo inicial, a exigência de responsabilidade algorítmica (“accountability algorítmica”). Em lugar de aceitar a opacidade normativa das plataformas digitais, impõe-se a necessidade de submeter seus sistemas de curadoria e moderação a critérios comunicativos de justificabilidade, transparência e contestabilidade pública. Medina (2013) propõe deslocar o eixo normativo da eficiência para a responsabilidade epistêmica, entendida como a obrigação de justificar como e por que determinados discursos são promovidos ou supridos em ambientes digitais.
A “accountability algorítmica” tornou-se um conceito central nos debates sobre a crise da esfera pública no capitalismo digital. Diferentemente das formas tradicionais de poder, os algoritmos operam de maneira pouco clara, automatizada e em escala massiva, mediando o acesso à informação, moldando percepções e orientando comportamentos, muitas vezes sem que os sujeitos afetados tenham clareza ou até mesmo possibilidade efetiva de contestação. Como alerta Zuboff, “os sistemas algorítmicos operam como arquiteturas de escolha que, ao mesmo tempo em que afirmam oferecer liberdade, capturam e dirigem essa liberdade para fins comerciais” (Zuboff, 2019, p. 245). A assimetria informacional que sustenta esse modelo de governança algorítmica corrói os pressupostos deliberativos da esfera pública democrática, pois compromete a transparência, a contestabilidade e a formação autônoma da vontade. Para Julie E. Cohen, “a accountability algorítmica não pode ser meramente técnica: ela exige a reconstrução institucional das relações de poder entre empresas, usuários e Estado” (Cohen, 2019, p. 65). Sem dispositivos normativos que imponham deveres de explicabilidade e mecanismos públicos de fiscalização, os algoritmos permanecem como “formas automáticas de decisão que escapam à crítica pública e operam como zonas de irresponsabilidade sistêmica” (Citron & Pasquele, 2014, p. 10). Ainda que o conceito tenha se consolidado como eixo dos debates sobre justiça digital e regulação das plataformas, permanece altamente controverso. Não há consenso sobre sua definição, nem quanto aos critérios normativos e operacionais que lhe confeririam efetividade. Como observam Selbst et al. (2019, p. 58), trata-se de um “termo-guarda-chuva para uma variedade de preocupações normativas, muitas vezes conflitantes, que envolvem a transparência, a responsabilização e o controle sobre sistemas automatizados”. Essa polissemia evidencia uma disputa entre abordagens tecnocráticas e abordagens críticas, que a entendem como uma questão de redistribuição de poder e reconstrução institucional. Para Cohen (2019, p. 67), “não há accountability significativa sem confrontar os modos como o poder informacional está distribuído na sociedade. A accountability algorítmica não é apenas uma questão técnica; é uma questão política”.
Todavia, os próprios sistemas algorítmicos apresentam obstáculos materiais à realização de qualquer forma robusta de responsabilidade. Entre esses, destacam-se a opacidade estrutural dos modelos de inteligência artificial, a fragmentação das cadeias de responsabilidade e a ausência de normatização jurídica efetiva. Mireille Hildebrandt ressalta que “a accountability é distribuída por múltiplos agentes e camadas técnicas, o que enfraquece sua eficácia jurídica e pública” (Hildebrandt, 2015, p. 215). Nesse sentido, a accountability algorítmica deve ser compreendida não como uma solução pronta, mas como um campo de disputa normativa, institucional e epistemológica. Seu futuro dependerá das lutas sociais por uma democratização da infraestrutura digital – lutas que envolvem não apenas a transparência dos algoritmos, mas também a criação de mecanismos públicos de governança informacional. A deliberação digital precisa estar ancorada em instituições intermediárias que garantam pluralismo, inclusão e respeito mútuo – não só na representação, mas na estruturação dos próprios canais de comunicação que, como Habermas (2022a, p. 61) enfatiza, é atributo de uma esfera pública democrática que deve ser capaz de “articular todas as vozes relevantes” e sua fragmentação “por câmaras de ecos digitais” representa um risco existencial à formação da vontade coletiva.
Para além disso, é igualmente necessário fomentar esferas públicas contra-hegemônicas, como propõe Nancy Fraser (1990), nas quais grupos socialmente marginalizados possam desenvolver linguagens, afetos e argumentos próprios antes de adentrar os espaços deliberativos dominantes. No contexto digital, isso implica fortalecer iniciativas como plataformas cooperativas, commons digitais, fóruns deliberativos descentralizados e infraestruturas comunicacionais orientadas ao bem comum. A regulação democrática da internet não deve apenas conter os abusos das Big Techs, mas também instruir formas alternativas de agência coletiva frente à colonização da infraestrutura comunicacional. Medidas como a exigência de divulgação dos critérios de moderação de conteúdo, a permissão para auditorias independentes – conforme previsto no Digital Services Act – e o fortalecimento de plataformas cooperativas[29] (como o Mastodan[30]) representam avanços importantes e demonstram que é possível redistribuir o controle sobre infraestruturas comunicacionais sem perder eficiência operacional.
6.2 REPARAÇÃO EPISTÊMICA E JUSTIÇA COGNITIVA
A segunda dimensão da reconstrução da esfera pública envolve o enfrentamento das injustiças epistêmicas que atravessam as dinâmicas comunicativas. De acordo com Medica (2013, p. 132), que os sujeitos epistêmicos habitam ecologias de credibilidade assimétricas, nas quais determinados modos de ver, falar e conhecer são sistematicamente marginalizados. O reconhecimento dessas assimetrias requer um projeto normativo que articule justiça deliberativa e justiça cognitiva, uma perspectiva interseccional sensível às desigualdades. O desafio consiste em reconstruir a racionalidade comunicativa sem recorrer a um universalismo abstrato, mas a partir das condições concretas de exclusão, silenciamento e opressão simbólica que afetam distintos grupos sociais. Fricker (2007) e Medina (2013) argumentam que a injustiça epistêmica não é apenas um déficit informacional, mas uma forma estruturada de dominação social.
Por outro lado, como Habermas (1992, p. 112) descreve, a legitimidade democrática depende da participação livre, igualitária e simétrica de todos os afetados nos processos discursivos. Atualizar esse princípio, para o contexto digital, implica reconhecer que a participação política dos atores sociais exige não apenas acesso à informação qualificada, mas também alfabetização midiática e digital, proteção contra manipulação algorítmica e possibilidade de contestação dos termos da interação. A justiça deliberativa precisa ser compreendida, também, como justiça informacional – isto é, o direito de participar da definição dos critérios de sentido e verdade que estruturam a comunicação pública. A regulação das plataformas digitais, sob essa ótica, constitui um imperativo democrático. A experiência brasileira com o Marco Civil da Internet, embora limitada em sua aplicação, revela o potencial de ações estatais baseadas em princípios de neutralidade de rede, privacidade e liberdade de expressão. A recente proposição de atualização do marco legal, diante das ameaças representadas pelas fake news, pelo discurso de ódio e da desinformação automatizada, exemplifica como a legislação pode ser mobilizada para conter abusos sistêmicos.
Além disso, a promulgação de leis como a dinamarquesa de 2025, estabelece um precedente jurídico relevante. Tal legislação consagra o princípio de que a integridade pessoal deve ser protegida contra apropriações tecnológicas abusivas, funcionando como um limite ético e jurídico à lógica extrativista do capitalismo digital. A promoção da justiça cognitiva exige, portanto, mais do que garantir o direito à fala. É preciso assegurar que todas as vozes sejam escutadas, reconhecidas e levadas a sério em sua autoridade epistêmica. Como enfatiza Medina (2013), isso implica transformar as estruturas sociais que produzem silenciamento, estigmatização e exclusão. No contexto digital, tal transformação passa por revisar os algoritmos de ranqueamento e distribuição de conteúdos, diversificar os espaços de visibilidade e fomentar iniciativas de educação crítica para o uso consciente das tecnologias de informação.
Finalmente, é imprescindível promover uma pluralização radical dos espaços públicos. A concentração midiática, a homogeneização dos discursos e a privatização das infraestruturas comunicacionais reduzem drasticamente o horizonte democrático. Alternativas comunitárias, mídias públicas fortalecidas e plataformas cooperativas podem ampliar a diversidade de perspectivas e estimular a experimentação democrática em novos moldes. Como argumenta Fraser (2992), uma esfera pública genuinamente democrática deve ser composta por uma multiplicidade de arenas, nas quais diferentes grupos possam articular suas demandas, modos de vida e visões de mundo, contribuindo significativamente na formação da vontade coletiva.
Essas estratégias, embora insuficientes por si mesmas para interromper a colonização digital, constituem esforços essenciais para proteger os frágeis espaços de racionalidade comunicativa e para manter viva a promessa de uma democracia inclusiva, reflexiva e ecologicamente responsável. A teoria crítica, ao reconhecer os novos desafios impostos pelo capitalismo de plataforma, deve renovar seu compromisso com a emancipação sem ceder ao cinismo tecnocrático nem à nostalgia institucional. A crítica é possível onde ainda há esperança.
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[1] Possui graduação em Bacharelado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2010), graduação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011) e mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2017). Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do ABC (2020-).
[2] O termo surge para dar conta da capacidade adaptativa do capitalismo atual. Para Srnicek (2017, p. 27), “sempre que uma crise o atinge, ele tende a se reestruturar”, mas diferentemente de outros modelos, ele se reestrutura desenvolvendo novas tecnologias para estabelecer novas formas de organização para novos mercados – criando novos tipos de trabalho e, surpreendentemente, formas distintas de explorá-los.
[3] Segundo Streeck (2018), o “capitalismo financeiro” surge quando as democracias capitalistas ocidentais passaram a experimentar uma dependência crescente do capital financeiro e dos fluxos de investimento privado, com o Estado cada vez mais pressionado pelas instituições financeiras, pelo endividamento público e por políticas de austeridade. Trata-se de um processo histórico em que o aparato estatal, as políticas fiscais e as instituições democráticas foram forçados a se subordinar às lógicas do mercado financeiro, limitando o espaço para regulação, redistribuição e intervenção social (Streeck, 2018, pp. 45-65).
[4] As Big Techs são um grupo de corporações digitais globais – como Alphabet/Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft – que concentram não apenas vastos recursos financeiros, mas sobretudo capacidades inéditas de coleta, processamento e exploração de dados em escala planetária.
[5] Habermas reconstrói os pressupostos normativos das práticas democráticas reais para diagnosticar seus déficits. Neste quesito, é essencial considerar uma ampla gama de indicadores, tais como: liberdades fundamentais, direitos de comunicação participação política, desenvolvimento humano, bem-estar social, saneamento, moradia, renda e escolaridade, que não apenas contribuem para o diagnóstico da operacionalização empírica da democracia, como oferecem base para uma teoria reconstrutiva. Como afirma Habermas, “uma teoria da democracia [...] não precisa se entender como teoria projetada normativamente. Em vez disso, sua tarefa consiste muito mais em reconstruir racionalmente tais princípios a partir do direito vigente das respectivas expectativas intuitivas e concepções de legitimidade dos cidadãos” (Habermas, 2022a, p. 35).
[6] Expressão que sintetiza uma crítica central ao capitalismo de plataforma ao associar a lógica do imperativo sistêmico, tal como formulado por Habermas, à dinâmica concreta das redes sociais. Nesta atualização, a colonização ocorre quando a ação comunicativa, orientada para o entendimento mútuo, é subordinada a uma racionalidade instrumental voltada para a métrica de engajamento (likes, shares, comentários). A experiência humana, transformada em dados comportamentais para prever e modelar a conduta, tem no “like” uma unidade central na sua operacionalidade. O “imperativo” refere-se à pressão algorítmica internalizada pelos usuários para moldar seu discurso, sua imagem e convicções em função da busca por validação quantificada.
[7] De acordo com Habermas, transformações institucionais podem converter práticas discursivas em práticas funcionais voltadas ao consumo. No capitalismo de plataforma, essa conversão desloca a interação de sua base comunicativa, orientada ao entendimento, para uma forma colonizada, orientada pela mercantilização da atenção.
[8] Cabe aqui compreender por “mais valiosas” não apenas o valor de mercado de tais empresas, mas, também, seu valor político. Um exemplo disto ocorre em novembro de 2024, quando o presidente do EUA, Donald J. Trump anunciou que Elon Musk chefiaria o Departamento de Eficiência Governamental dos EUA (DOGE). Com o anuncio, Trump destacou como pretendia desmantelar a burocracia do governo, reduzir o excesso de regulamentações, cortar gastos desnecessários e reestruturar as agências federais.
[9] A expressão descreve a forma de subjetivação típica das mídias sociais, em que a identidade é constantemente exposta e atualizada diante de um público imaginado, orientada menos à comunicação recíproca e mais à maximização de visibilidade e engajamento. Lash (1983) afirma que a sociedade contemporânea estimula a autorreferencialidade e a busca incessante por reconhecimento externo, discussão próxima da concebida por Honneth (2003) sobre como o reconhecimento social se fundamenta em estruturas normativas de reconhecimento. De uma perspectiva habermasiana, a expressão indica que a ação comunicativa é colonizada pela lógica sistêmica da atenção e da mercantilização de dados, e o sentido da interação se converte em performance calculada para obter “curtidas”. O comportamento performático engajador é uma personalidade narcisista que designa um padrão de subjetividade no qual o valor do reconhecimento se dá pela capacidade de gerar interações mensuráveis.
[10] Os termos “celebridades de internet” ou “influenciadores digitais” referem-se aos novos atores sociais de impacto (de audiência e monetização). Ele é condizente com o que ocorre à formação da personalidade com o processo de colonização sistêmica, no qual a subjetividade, a experiência autêntica e as relações interpessoais são convertidas em conteúdo administrável e capitalizável com a invasão de critérios sistêmicos sobre o âmbito da reprodução cultural – o que, transposto a presente questão, submete a comunicação a lógicas algorítmicas e de mercado.
[11] As quatro formas são: “[...] 1) Se as formas de vida tradicionais se decompuseram a tal ponto que os componentes estruturais do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade) se diferenciaram amplamente; 2) Se as relações de intercâmbio entre os subsistemas e o mundo da vida são reguladas por meio de papéis diferenciados (para a ocupação nos locais organizados de trabalho e para a demanda das economias privadas, para a relação do cliente com as burocracias públicas e para a participação formal no processo de legitimação); 3) Se as abstrações reais, mediante as quais a força de trabalho dos ocupados se torna disponível e os votos dos cidadãos dotados de direitos eleitorais se tornam mobilizáveis, podem ser aceitas pelos concernidos em troca de compensações conforme o sistema; 4) Se essas reparações são financiadas a partir dos incrementos do crescimento capitalista, de acordo com o padrão assumido pelo Estado de bem-estar social, canalizando-as para aqueles papéis em que as esperanças na autorrealização e autodeterminação, privatizadas e subtraídas do mundo do trabalho e da esfera pública, são primariamente depositadas, isto é, os papéis de consumidor e cliente” (Habermas, 1988, pp. 522-523).
[12] Segundo Christina W. Andrews (2011, p. 142) a colonização utiliza os medias dinheiro e poder para interferir nos mecanismos de socialização e, com isso, deformar as bases normativas da solidariedade social .
[13] Habermas apresenta os termos soziale Pathologien, Psychopathologien, Persönlichkeitspathologien e Pathologien para descrever os bloqueios na reprodução simbólica do mundo da vida. A manifestações destes distúrbios surgidos com esses bloqueios são apresentados em uma multiplicidade adequada aos distintos âmbitos de suas manifestações. Aos propósitos deste artigo, o conceito de patologia social é mais adequado, pois este refere-se ao âmbito cultural (perda de sentido) e ao âmbito social (quando são manifestos sintomas de anomia).
[14] Exemplos da colonização: a mercantilização de esferas como a saúde e a educação, subordinando suas finalidades normativas a critérios de eficiência econômica; e a burocratização administrativa de políticas sociais, que transforma cidadãos em objetos de gestão estatal. Em ambos os casos, há um deslocamento da racionalidade comunicativa, substituída por formas impessoais de controle e regulação funcional.
[15] Nancy Fraser (2013) observa que vive-se hoje uma “transmutação sistêmica” da esfera pública, na qual a lógica mercantil invade e redefine os próprios parâmetros do discurso político legítimo.
[16] A Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, foi instituída como a “Constituição da Internet Brasileira”. A lei ancora a liberdade de expressão online nos princípios constitucionais, protegendo os usuários contra violações por parte de particulares e do Estado, além de estabelecer garantias processuais para a remoção de conteúdo.
[17] Entre os estudos que documentaram e analisaram estes fenômenos, destacam-se os produzidos por um conjunto de instituições. O “Laboratório de Mídia e Esfera Pública” (EMeLP) da UFMG, investigou a disseminação de desinformação em larga escala. A “Escola de Direito” da FGV (FGV Direito Rio) publicou relatórios sobre a regulação das eleições e a atuação da Justiça Eleitoral frente às campanhas nas redes. Por fim, o “Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio” (ITS Rio) desenvolveu pesquisas e promoveu debates focados no impacto da tecnologia na democracia, analisando o uso de aplicativos de mensagens e a publicidade política durante o pleito.
[18] Em 2022, embora o debate público tenha evoluído e parte da sociedade civil se mobilizado contra a desinformação, as estratégias de manipulação se adaptaram e ampliaram seu alcance. A desinformação passou a operar não apenas pela falsificação de conteúdos, mas também por meio da sobrecarga de ruído informacional, dificultando a construção de narrativas democráticas coesas e propositivas. A despolitização generalizada, somada à espetacularização de conflitos e escândalos, corroeu ainda mais os padrões comunicativos da esfera pública.
[19] Para uma análise detalhada das operações de desinformação conduzidas pela Internet Research Agency (IRA) russa, incluindo a campanha “#BotSpot” que documentou táticas de astroturfing e o uso coordenado de bots e trolls, ver: Howard, et al. (2018). The IRA, Social Media and Political Polarization in the United States, 2012-2018. Adicionalmente, as investigações oficiais foram consolidados no relatório do Senado Americano: United States. (2020). Senate Select Committee on Inteligence. Report on Russian Active Measures Campaigns and Interference in the 2016 U.S. Election.
[20] O escândalo envolvendo a empresa britânica Cambridge Analytica veio à tona em 2018, quando o jornal The Guardian e o The New York Times revelaram que a empresa havia coletado e explorado dados pessoais de aproximadamente 87 milhões de usuários do Facebook sem seu consentimento, por meio de um aplicativo de questionário de personalidade. Esses dados foram utilizados para construir perfis psicográficos e microdirecionar campanhas políticas durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016 e o referendo do Brexit no Reino Unido. As revelações basearam-se no testemunho de Christopher Wylie, um ex-funcionário que denunciou as práticas da empresa. Para mais, cf. Caldwalladr & Graham-Harrison, 2018, Wylie, 2020 e United Kingdom, 2019.
[21] Já nas eleições de 2020, apesar de um maior rigor institucional, a desinformação continuou a operar com intensidade. As narrativas de fraude eleitoral, alimentadas pelo então presidente Donald Trump, e disseminadas em larga escala pelas redes sociais, culminaram na tentativa de insurreição no Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Este episódio representa uma expressão extrema da falência da esfera pública deliberativa, pois quando a política é inteiramente subsumida à lógica da viralização e da mobilização afetiva, a deliberação cede lugar à guerra de narrativas e ao colapso da confiança institucional.
[22] O Alternative für Deutschland (AfD), fundado em 2013, inicialmente como um partido eurocético, rapidamente migrou para uma plataforma de extrema-direita, nacionalista e anti-imigração. Seu crescimento eleitoral, que o tornou o principal partido de oposição no Bundestag (parlamento alemão), está intrinsicamente ligado a uma estratégia de comunicação agressiva e eficaz nas redes sociais. A legenda é frequentemente acusa de empregar retórica xenófoba, teorias conspiratórias e desinformação para mobilizar seu eleitorado, sendo monitorada pelo serviço de proteção à constituição alemão [Verfassungsschutz] em alguns dos seus estados federais (Ard, 2018).
[23] O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR), regulamento (EU) 2016/679 é a legislação mais abrangente do mundo sobre privacidade de dados, entrando em vigor em maio de 2018. Ele confere aos cidadãos da EU maior controle sobre seus dados pessoais e impõe obrigações rigorosas às organizações que os coletam e processam. Embora seu foco principal não seja o combate direto à desinformação, o GDPR atua de forma indireta ao limitar a coleta e o uso indiscriminado de dados pessoais para o microdirecionamento de anúncios políticos, uma das táticas centrais para a disseminação de conteúdo manipulado (European Union, 2016).
[24] A Lei de Aplicação da Lei em Redes Sociais (Netzwerkdurchsetzungsgesetz – NetzDG) entrou em vigor na Alemanha em 2018. Exige que plataformas de mídia social com mais de dois milhões de usuários na Alemanha removam conteúdos ilegais (como discurso de ódio, incitação à violência e fake news difamatórias) em até 24 horas após denúncia, sob pena de multas que podem chegar a 50 milhões de euros. A lei é uma resposta direta à proliferação de discursos de ódio online, mas é alvo de críticas tanto por suposta censura quanto por sua insuficiência em conter a escala e a complexidade das campanhas de desinformação (Germany, 2017, p. 3352).
[25] Engel-Schmidt, ministro da cultura da Dinamarca, declarou que “seres humanos podem ser colocados em uma copiadora digital e usados de forma indevida para todo tipo de coisa – e eu não estou disposto a aceitar isso”. Tal declaração foi apresentada ao público após o país Dinamarca, por meio de seu congresso, propor uma mudança na legislação de direitos autorais para garantir que as pessoas sejam, por lei, donas de sua própria imagem. As plataformas que não seguirem as regras poderão receber multas pesadas e enfrentar medidas de suspenção de seu exercício. A diferença desta nova regulamentação dinamarquesa para outras é que a proteção não se limita às obras criativas originais registradas em algum tipo de suporte físico, mas às próprias pessoas.
[26] O Digital Services Act (DAS) – Regulamento (EU) 2022/2065 é um marco regulatório abrangente da União Europeia, que entrou em plena vigência em 2024. Ele estabelece um conjunto de obrigações progressivas para os prestadores de serviços digitais, especialmente as grandes plataformas online, com o objetivo de criar um espaço digital mais seguro e transparente. Suas principais inovações incluem a transparência algorítmica (obrigando as plataformas a divulgar o funcionamento de seus sistemas de recomendação), a responsabilização corporativa (com a criação de um sistema de avaliação e mitigação de riscos sistêmicos) e a inclusão epistêmica (por meio de auditorias independentes e do acesso a dados por pesquisadores credenciados), articulando-se diretamente com os princípios defendidos no presente artigo. Para mais, cf.: European Union, 2022.
[27]O Algorithmic Accountability Act é uma proposta de legislação federal dos EUA que, em suas várias versões (a original de 2019 e a reintroduzida em 2022), busca exigir que grandes empresas realizem avaliações de impacto sobre os sistemas automatizados que utilizam. O projeto de lei focaria na avaliação de riscos relacionados a questões como justiça, discriminação, privacidade e segurança. É importante notar que, ao contrário do DSA europeu, o Algorithmic Accountbaility Act ainda não foi aprovado pelo Congresso norte-americano, o que evidencia os desafios políticos para a implementação de uma regulação robusta nessa esfera e realça a importância de observar sua trajetória legislativa como parte do debate em curso. Para mais, cf.: United States, 2022.
[28] Dentro da emergência do consumo desenfreado de recursos naturais, é importante destacar que projetos, como a Natick da Microsoft, exploram alternativas sustentáveis para a manutenção de seus data centers. Todavia, essas práticas têm se apresentado como insuficientes e acabam marginalizadas perante o modelo extrativista dominante.
[29] As plataformas cooperativas são uma alternativa às grandes corporações digitais. Estruturadas por princípios de autogestão, governança distribuída e propriedade coletiva dos meios de infraestrutura digital que possibilitam “utilizar os recursos das tecnologias de rede para criar modelos mais justos de organização do trabalho e da informação, que não dependam da extração predatória de dados ou da vigilância em larga escala” (Schols, 2016, p. 13). Elas buscam articular uma normatividade digital distinta daquela que rege o capitalismo de plataforma, conectando-se, assim, a debates mais amplos sobre justiça social e organização democrática da esfera pública.
[30] O Mastodon é uma rede social de código aberto organizada em instâncias federadas, cujos servidores independentes seguem regras próprias e permitem uma forma de moderação mais sensível às especificidades comunitárias, no qual “o funcionamento técnico do protocolo ActivityPub condiciona uma lógica descentralizada de poder, em que cada instância é responsável por sua governança e accountability local” (Tréguer, 2022, p. 41). A proposta se aproxima da crítica de Fraser (2022b, p. 17), segundo a qual “a reestruturação do espaço público precisa passar pelo enfrentamento das formas de dominação estrutural embutidas nas infraestruturas de comunicação” e da compreensão de que “a formação discursiva da vontade pública depende de condições institucionais que garantam simetria e reciprocidade nos fluxos comunicacionais” (Habermas, 2022b, p. 89).