AS CONTRIBUIÇÕES HABERMASIANAS PARA A PESQUISA-AÇÃO CRÍTICA EMANCIPADORA
Islene da Silva Vieira [1]
Universidade Federal do Espírito Santo
Mariangela Lima de Almeida[2]
Universidade Federal do Espírito Santo
Marcelo Dobrovoski [3]
Universidade Federal do Espírito Santo
Gabriel Franco de Oliveira Zambon [4]
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo
Este artigo tem como objetivo discutir as contribuições teóricas e ético-epistemológicas da obra de Jürgen Habermas, em especial a Teoria da Ação Comunicativa, para a fundação e o desenvolvimento da metodologia da Pesquisa-Ação Crítico-Emancipadora. O estudo enfatiza as relações entre os conceitos de racionalidade comunicativa, colaboração dialógica e emancipação na produção do conhecimento educacional. A partir de uma análise que articula o pensamento habermasiano com as formulações de Kemmis e Carr, argumenta-se que a Pesquisa-Ação Crítica transcende a mera aplicação técnica de procedimentos, configurando-se como uma práxis formativa, política e ética, orientada para a transformação social. Sustenta-se que o agir comunicativo oferece o fundamento filosófico para a superação da racionalidade instrumental dominante na educação e para a consolidação de práticas de inclusão escolar baseadas no reconhecimento intersubjetivo e no consenso ético. A análise se complementa com uma reflexão teórico-comparada sobre a inclusão e a colaboração em contextos educacionais de Brasil, Cabo Verde e Portugal, destacando como a ética discursiva pode orientar a construção de políticas e práticas pedagógicas inclusivas. Aponta que a ação comunicativa é necessária para uma ciência da educação comprometida com a autonomia, a justiça social e o reconhecimento da diversidade.
Palavras-chave: Pesquisa-ação crítica. Ação comunicativa. Emancipação. Colaboração. Inclusão escolar.
HABERMAS'S CONTRIBUTIONS TO CRITICAL EMANCIPATORY ACTION RESEARCH
Abstract
This article aims to discuss the theoretical and ethical-epistemological contributions of Jürgen Habermas's work, especially the Theory of Communicative Action, to the foundation and development of the methodology of Critical Emancipatory Action Research. The study emphasizes the relationships between the concepts of communicative rationality, dialogical collaboration, and emancipation in the production of educational knowledge. Based on an analysis that articulates Habermasian thought with the formulations of Kemmis and Carr, it argues that Critical Action Research transcends the mere technical application of procedures, configuring itself as a formative, political, and ethical praxis, oriented towards social transformation. It is argued that communicative action offers the philosophical foundation for overcoming the dominant instrumental rationality in education and for consolidating school inclusion practices based on intersubjective recognition and ethical consensus. The analysis is complemented by a theoretical-comparative reflection on inclusion and collaboration in educational contexts in Brazil, Cape Verde, and Portugal, highlighting how discursive ethics can guide the construction of inclusive pedagogical policies and practices. It points out that communicative action is necessary for a science of education committed to autonomy, social justice, and the recognition of diversity.
Keywords: Critical action research. Communicative action. Emancipation. Collaboration. School inclusion.
CONTRIBUCIONES DE HABERMAS A LA INVESTIGACIÓN-ACCIÓN EMANCIPADORA CRÍTICA
Resumen
Este artículo analiza las contribuciones teóricas y ético-epistemológicas de la obra de Jürgen Habermas, en especial la Teoría de la Acción Comunicativa, para la fundamentación y el desarrollo de la metodología de la Investigación-Acción Emancipadora Crítica. El estudio destaca las relaciones entre los conceptos de racionalidad comunicativa, colaboración dialógica y emancipación en la producción de conocimiento educativo. A partir de un análisis que articula el pensamiento habermasiano con las formulaciones de Kemmis y Carr, se argumenta que la Investigación-Acción Crítica trasciende la mera aplicación técnica de procedimientos, configurándose como una praxis formativa, política y ética, orientada a la transformación social. Se sostiene que la acción comunicativa ofrece el fundamento filosófico para superar la racionalidad instrumental dominante en la educación y para consolidar prácticas de inclusión escolar basadas en el reconocimiento intersubjetivo y el consenso ético. El análisis se complementa con una reflexión teórico-comparativa sobre la inclusión y la colaboración en contextos educativos de Brasil, Cabo Verde y Portugal, que destaca cómo la ética discursiva puede orientar la construcción de políticas y prácticas pedagógicas inclusivas. Se señala que la acción comunicativa es necesaria para una ciencia de la educación comprometida con la autonomía, la justicia social y el reconocimiento de la diversidad.
Palabras clave: Investigación-acción crítica. Acción comunicativa. Emancipación. Colaboración. Inclusión escolar.
1 INTRODUÇÃO: O DESAFIO DA RACIONALIDADE NA PESQUISA EDUCACIONAL
A educação contemporânea encontra-se imersa em um complexo dilema: conciliar o direito fundamental e universal à aprendizagem com a necessidade imperativa de valorizar as diferenças e de desmantelar as desigualdades estruturais que persistem nos sistemas de ensino.
Nesse contexto, a pesquisa em educação é chamada a superar sua vocação meramente descritiva ou técnica e assumir um papel ativo na transformação das realidades sociais. É nesse vácuo metodológico e ético que a Pesquisa-Ação Crítica emerge, não apenas como um método de investigação, mas como um compromisso político-pedagógico.
Inspirada pelos trabalhos fundadores de Stephen Kemmis e Wilfred Carr (1986; 1988), e profundamente influenciada pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, essa abordagem postula que a pesquisa não pode ser dissociada da intervenção e da reflexão coletiva. A finalidade é clara: não apenas compreender a realidade educativa, mas atuar sobre ela em um processo cíclico de ação, observação e reflexão, visando a emancipação dos sujeitos envolvidos.
Simultaneamente, a Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas (1981; 1987; 2012) aponta um aporte filosófico para sustentar essa ambição crítica. Habermas, ao defender o entendimento mútuo como a forma originária da racionalidade humana, propõe um modelo de interação social orientado pelo discurso livre de coerções e pela busca de um consenso eticamente fundamentado. Esta perspectiva habermasiana promove uma ressignificação radical na pesquisa: o foco se desloca da observação distanciada para o diálogo intersubjetivo, da imposição técnica para o consenso argumentativo, e do controle instrumental para a colaboração emancipatória.
A confluência entre a Teoria da Ação Comunicativa e a Pesquisa-Ação Crítica não é acidental; ela é epistemológica. Ambas as matrizes teóricas partem da premissa de que o conhecimento válido é uma construção social, mediada pela linguagem, pela ética e pela historicidade dos participantes. Ao ancorar a Pesquisa-Ação na racionalidade comunicativa, Habermas fornece os critérios de validade para que o processo de investigação se configure como um espaço autêntico de formação, de democracia prática e de libertação.
No campo específico da Educação, essa interlocução adquire particular relevância na discussão sobre a inclusão escolar. Entendida como princípio político, ético e pedagógico, a inclusão exige que as instituições de ensino abandonem a lógica da integração meramente técnica (a presença do aluno) e incorporem a diversidade como elemento fundante da convivência e da aprendizagem. Ancorada na racionalidade comunicativa, a Pesquisa-Ação Crítica contribui, portanto, para o fortalecimento de práticas pedagógicas que reconhecem todos os sujeitos envolvidos como produtores de conhecimento e agentes transformadores.
Este artigo se propõe a analisar as contribuições habermasianas para a Pesquisa-Ação Crítica, desdobrando suas implicações nas dimensões epistemológicas, éticas e metodológicas. O texto está estruturado em cinco seções principais: (1) A presente Introdução; (2) O detalhamento dos fundamentos da Pesquisa-Ação Crítica e sua filiação à Teoria Crítica; (3) A análise aprofundada da Teoria da Ação Comunicativa e dos conceitos de racionalidade, consenso e emancipação; (4) Uma reflexão comparada sobre as práticas de inclusão e colaboração nos contextos educacionais de Brasil, Cabo Verde e Portugal, na perspectiva habermasiana; e (5) As Considerações Finais sobre as implicações dessa abordagem para a construção de uma ciência da educação crítica e emancipatória.
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA-AÇÃO CRÍTICA: DA TÉCNICA À EMANCIPAÇÃO SOCIAL
A Pesquisa-Ação traça sua origem a partir das formulações pioneiras de Kurt Lewin (1946), que propôs um modelo cíclico de investigação voltado à resolução coletiva de problemas. O ciclo ação → observação → reflexão de Lewin estabeleceu a base processual para a metodologia. Contudo, essa versão inicial, muitas vezes denominada pesquisa-ação técnica ou pragmática, era predominantemente orientada pela eficiência e pela solução imediata de problemas organizacionais, permanecendo ligada a uma lógica instrumental de intervenção.
A transformação da pesquisa-ação em Pesquisa-Ação Crítica ocorre nas décadas de 1970 e 1980, a partir dos trabalhos de Stephen Kemmis e Wilfred Carr, que buscaram adotar a metodologia de um robusto fundamento filosófico e político. Essa mudança foi diretamente influenciada pela Teoria Crítica da Escola, e em particular pelo pensamento de Habermas, que denunciava a hegemonia da racionalidade técnica sobre as relações sociais.
Carr e Kemmis (1988) redefiniram a pesquisa-ação como um processo de investigação social autorreflexiva, conduzido por grupos de praticantes com o propósito de aprimorar a racionalidade, a justiça e a coerência de suas próprias práticas. Nessa concepção, o pesquisador acadêmico não é o observador externo neutro, mas um participante-colaborador que atua em diálogo com os sujeitos da prática educativa. O conhecimento produzido, portanto, é resultado de um processo coletivo de reflexão crítica, com um diálogo constante entre teoria e prática configurando-se como práxis.
A principal ruptura da pesquisa-ação crítica em relação às abordagens tradicionais reside no seu fundamento ético-epistemológico. É aqui que o conceito habermasiano de racionalidade comunicativa se torna central. Para Habermas, a validade das ações sociais deve ser aferida não pelo sucesso instrumental, mas pela possibilidade de justificação argumentativa, livre de coerções. Carr e Kemmis (1986) absorvem essa premissa e a aplicam ao contexto da pesquisa:
A racionalidade intrínseca à pesquisa-ação crítica é a racionalidade omunicativa. Ela se funda na capacidade dos sujeitos de questionar criticamente as premissas sociais e históricas que moldam suas práticas, buscando superá-las por meio da autorreflexão coletiva e da ação transformadora (Carr; Kemmis, 1986, p. 119, tradução nossa).
Essa dimensão ética é o que, fundamentalmente, distingue a pesquisa-ação crítica das vertentes que enfatizam apenas a eficiência e o controle. Enquanto o interesse técnico (Habermas, 1968) orienta a pesquisa para o controle de variáveis e a eficácia, a perspectiva crítica defende a autonomia e a emancipação como fins irredutíveis da investigação. A investigação crítica, ao problematizar as condições históricas e sociais que implícitas na prática educativa, transforma o conhecimento, pois ele deixa de ser um instrumento de dominação, ou de reprodução ideológica, para se converter em um meio de libertação e de formação ética.
O processo de investigação, assim, é indissociável da comunicação. A validade das afirmações e dos planos de ação deve se fundar no melhor argumento, e não na hierarquia ou na força institucional. Essa exigência ética do discurso tem implicações diretas para a metodologia: o pesquisador é responsável por criar os contextos dialógicos que garantam a igualdade de participação, o consenso argumentativo, a escuta ativa e o reconhecimento mútuo entre todos os envolvidos. O processo investigativo é, em sua essência, um espaço de aprendizagem intersubjetiva.
De acordo com Franco (2016), a pesquisa-ação crítica não é uma metodologia única, mas uma “família de práticas investigativas” que se articulam em torno da tríade teoria, ação e reflexão, gerando um conhecimento intrinsecamente situado e socialmente relevante. A autora ressalta o caráter ético da abordagem, afirmando que “a pesquisa-ação é um exercício ético de fala e de escuta, em que cada sujeito é reconhecido como parte da construção do saber” (Franco, 2016, p. 45). Nesse sentido, a pesquisa-ação transforma-se no modo de compreender a ciência e a prática educativa. O pesquisador se desloca do papel de observador para o de mediador dialógico, e o conhecimento deixa de ser algo sobre o outro para ser algo construído com o outro.
Complementando essa visão, Almeida (2019) argumenta que a pesquisa-ação crítica, ao fomentar a aprendizagem comunicativa, potencializa a produção de saberes pedagógicos críticos. A autora estabelece a conexão direta entre a ética comunicativa e os resultados da pesquisa, destacando que “quando as ações são conduzidas pelo agir comunicativo, há busca por entendimentos mútuos, que podem evoluir para acordos normativos pela via de uma intersubjetividade partilhada” (Almeida, 2019, p. 78).
Essa intersubjetividade partilhada é o elemento que confere legitimidade e sustentabilidade às transformações propostas pela pesquisa. A colaboração assume na pesquisa-ação crítica um estatuto epistemológico e político. Não é uma simples divisão funcional de tarefas (cooperação), mas um processo dialógico de reconhecimento recíproco. Os participantes são coautores na definição dos problemas, na análise das práticas e na proposição das soluções. Gamboa (2018) alerta para a necessidade de uma "vigilância epistemológica" constante, que assegure a coerência entre os princípios democráticos da pesquisa e os seus modos de produção, prevenindo a reintrodução de práticas hierárquicas e tecnicistas, justamente aquelas que a racionalidade comunicativa busca superar.
Dessa forma, a Pesquisa-Ação Crítica se estrutura em torno de três eixos interdependentes: a Emancipação (meta ética e política), a Comunicação (meio de construção do entendimento) e a Colaboração (princípio metodológico). Esses eixos, como será explorado a seguir, fundamentam-se na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas.
3 A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA: O FUNDAMENTO EPISTEMOLÓGICO PARA A COLABORAÇÃO
A Teoria da Ação Comunicativa, desenvolvida por Jürgen Habermas em seus dois volumes publicados em 1981, representa um esforço de reconstrução da racionalidade moderna. Habermas se propõe a deslocar o centro da razão do domínio puramente instrumental para o domínio comunicativo, criticando a racionalidade técnica que orienta o sistema social para o controle e a eficiência em detrimento da liberdade e do entendimento mútuo.
3.1 AÇÃO COMUNICATIVA VERSUS AÇÃO ESTRATÉGICA
O núcleo da Teoria da Ação Comunicativa reside na distinção fundamental entre o agir comunicativo e o agir estratégico (ou instrumental). A Ação Estratégica é orientada pelo êxito individual, na qual os sujeitos agem visando alcançar seus objetivos particulares, utilizando o outro como meio. Nessa perspectiva a racionalidade é potencializada e técnica, apresentando-se quando um professor aplica uma técnica pedagógica sem questionar seus fins, visando apenas o cumprimento de uma meta burocrática e estratégica.
Compreendemos que a Ação Comunicativa é orientada pelo entendimento mútuo, onde os participantes coordenam suas ações por meio da argumentação, buscando o consenso. Nessa concepção, o objetivo não é o êxito individual, mas a construção coletiva de um sentido válido e aceitável para todos. Habermas (1987) sustenta que a ação comunicativa é a forma mais originária e menos distorcida da interação social. Essa distinção possui implicações profundas para a pesquisa-ação crítica, pois ela rejeita o modelo estratégico (em que o pesquisador "aplica" o método ao campo para obter resultados) e abraça o modelo comunicativo, onde a validade do conhecimento é aferida pela busca intersubjetiva e pelo reconhecimento recíproco. Conforme afirma o próprio Habermas: “a razão se realiza apenas na intersubjetividade do entendimento linguístico” (Habermas, 1981, p. 15). Portanto, para Habermas, o ato de conhecer é, por natureza, um ato de comunicação e de reconhecimento.
3.2. RACIONALIDADE COMUNICATIVA E ÉTICA DO DISCURSO
A racionalidade comunicativa se manifesta na capacidade de os sujeitos levantarem e avaliarem pretensões de validade, aquelas que sustentam a afirmação de que um enunciado é verdadeiro (mundo objetivo), normativamente correto (mundo social) ou que expressa sinceridade (mundo subjetivo). Em um contexto de pesquisa-ação crítica, os participantes, ao dialogarem sobre suas práticas levantam pretensões de verdade, quando afirmam que algo funciona ou não (e por que); levantam pretensões de correção, quando julgam se uma norma ou prática pedagógica é justa e adequada para todos e levantam pretensões de sinceridade, quando expressam autenticamente seus sentimentos, dúvidas e intenções.
A Ética do Discurso, que complementa a teoria da ação comunicativa, estabelece as regras formais para que o consenso alcançado seja genuinamente racional. O consenso não é mera negociação ou compromisso instrumental, mas o resultado de um discurso argumentativo livre de coerções, onde o único fator de convencimento aceito é a força do melhor argumento. É a partir desse princípio que a colaboração na pesquisa-ação crítica se eleva de uma técnica de grupo para um imperativo ético.
3.3 O CONHECIMENTO E O INTERESSE EMANCIPATÓRIO
A centralidade da emancipação na pesquisa-ação crítica deriva diretamente da obra anterior de Habermas, Conhecimento e Interesse (1968). Nela, Habermas identifica três interesses humanos fundamentais que orientam a produção científica: o interesse técnico apresentado-se de forma orientada para o controle do meio ambiente (ciências empírico-analíticas); o interesse prático orientado para o entendimento mútuo e a comunicação (ciências histórico-hermenêuticas) e o interesse emancipatório quando orientado para a libertação da dominação e da coerção, por meio da autorreflexão (ciências críticas). A Pesquisa-Ação Crítica se filia inequivocamente ao interesse emancipatório. Seu objetivo não é apenas descrever ou interpretar as práticas (interesse prático), nem controlá-las (interesse técnico), mas sim emancipar os sujeitos de formas de dominação ideológica, social e cultural que obscurecem a racionalidade das suas ações. Portanto, a emancipação na pesquisa-ação crítica é um objetivo duplo: político e epistemológico, pois trata-se de libertar a prática e, simultaneamente, libertar o conhecimento de sua função instrumental.
3.4 O MUNDO DA VIDA E A COLABORAÇÃO
O conceito de Mundo da Vida, fundamental na teoria da ação cominicativa, refere-se aos múltiplos significados, saberes e práticas compartilhadas que sustentam a comunicação cotidiana e a convivência social. Habermas o contrasta com o Sistema (economia e Estado), que opera sob lógicas funcionais de poder (dinheiro e burocracia). A patologia social moderna, segundo o filósofo, é a colonização do mundo da vida pelo sistema.
Na educação, essa colonização ocorre quando a lógica sistêmica (metas de desempenho, avaliações padronizadas, currículo burocrático) substitui o diálogo pedagógico e a reflexão crítica. O compromisso ético da pesquisa-ação crítica é, portanto, resistir à colonização, restaurando a comunicação não distorcida como base da aprendizagem e da produção de conhecimento.
A colaboração na pesquisa-ação critiva, à luz da teoria da ação comunicativa, é a materialização desse esforço. Colaborar é criar espaços discursivos (círculos de estudo, grupos de reflexão) que permitam a emergência do entendimento mútuo. Carr e Kemmis (1988), ao sintetizarem a natureza da pesquisa-ação crítica, destacam que “a pesquisa-ação é um processo social participativo conduzido por grupos de pessoas que desejam melhorar os aspectos de sua prática social por meio da reflexão sistemática e coletiva” (Carr; Kemmis, 1988, p. 42).
Assim, a colaboração é a própria expressão da ação comunicativa em prática, transformando o pesquisador no mediador argumentativo e os participantes em sujeitos coautores, numa relação horizontal de confiança e reciprocidade. Esta prática coaduna-se com a pedagogia libertadora de Paulo Freire (1996), que também concebe o diálogo como a via para a conscientização e a libertação coletiva, reforçando a ideia de que a emancipação é um ato comunicativo.
4 A INCLUSÃO ESCOLAR EM CONTEXTOS COMPARADOS: UM DIÁLOGO COM O SUL GLOBAL E A EUROPA
A adoção da Pesquisa-Ação Crítica, ancorada na racionalidade comunicativa, ganha particular urgência no campo da Educação Inclusiva. A inclusão, conforme estabelecido por documentos internacionais como a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), não se limita à integração física, mas exige a transformação cultural, curricular e institucional. Como postula Ainscow (2009), a inclusão é um movimento de aprendizagem ética que requer a explicitação e o alinhamento das práticas escolares com valores de justiça social.
A seguir, a análise comparada entre Brasil, Cabo Verde e Portugal demonstra como os fundamentos habermasianos da colaboração e da comunicação livre de coerções oferecem uma lente crítica para a superação dos desafios em diferentes contextos sociopolíticos.
4.1 BRASIL: DESAFIOS NA CULTURA ESCOLAR E A NECESSIDADE DE DIÁLOGO
No Brasil, o arcabouço legal da inclusão é robusto, ancorado na Constituição Federal, no Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) e, notavelmente, na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI – Lei nº 13.146/2015). Esses instrumentos normativos exigem a eliminação de barreiras em todas as dimensões, desde as arquitetônicas até as atitudinais.
No entanto, a prática revela uma persistente resistência. Melo e Mafezoni (2019) apontam que, apesar dos avanços legais, muitos alunos continuam “à margem do processo de ensino-aprendizagem, sendo-lhes negado o direito de aprender”. O desafio brasileiro não é mais apenas legal, mas cultural e pedagógico. A persistência de culturas escolares excludentes demonstra uma falha na transição da lógica instrumental para a lógica comunicativa.
É neste contexto que a pesquisa-ação critiva, guiada por Habermas, se torna uma ferramenta essencial de formação docente e de transformação institucional. Experiências como as descritas por Almeida (2019) e Franco (2016) demonstram o potencial da Pesquisa-Ação para criar comunidades de aprendizagem argumentativa. O diálogo entre professores, alunos e pesquisadores, quando livre de coerções hierárquicas, permite que as práticas sejam desnaturalizadas e que o discurso do “para todos” se materialize em ações concretas de acolhimento e reconhecimento da diferença. A racionalidade comunicativa atua como um catalisador para a superação do paradigma assistencialista, promovendo uma pedagogia emancipatória.
4.2 CABO VERDE: LÍNGUA, IDENTIDADE E EMANCIPAÇÃO COMUNICATIVA
Cabo Verde, embora apresente um contexto político-educacional emergente, tem demonstrado um compromisso crescente com a inclusão, formalizado em documentos como o Decreto-Lei nº 9/2024, que estrutura o atendimento pedagógico individualizado (PEI). A singularidade cabo-verdiana reside na sua riqueza cultural e linguística.
Pesquisas locais (Raiva; Mota; Santos, 2023; Barreto, 2024) destacam a importância da valorização da língua cabo-verdiana como instrumento de inclusão e de identidade. Nesse contexto, a língua materna é vista como um elemento de emancipação cultural e pedagógica, reforçando a ideia de que a diversidade linguística não é obstáculo, mas recurso.
A teoria da ação comunicativa de Habermas oferece um referencial poderoso para este debate. O reconhecimento intersubjetivo é fundamental para a inclusão. Quando a língua ou a cultura de um grupo é silenciada ou subordinada, a comunicação é distorcida. O princípio da comunicação livre de coerções exige que o discurso de todos, incluindo a manifestação em língua materna, seja valorizado no processo de construção do conhecimento.
A pesquisa-ação crítica, ainda em estágio inicial em Cabo Verde, especialmente nas iniciativas da Universidade de Cabo Verde e da Universidade de Santiago, pode fortalecer essa via. Ao promover círculos argumentativos entre pesquisadores, professores e comunidades que valorizam a oralidade e a cultura local, o agir comunicativo se torna o princípio para a construção de políticas inclusivas que sejam culturalmente relevantes e socialmente legitimadas.
4.3 PORTUGAL: INCLUSÃO ESTRUTURAL E AUTONOMIA DISCURSIVA
Em Portugal, o marco da inclusão é o Decreto-Lei nº 54/2018, considerado um dos mais avançados na Europa. A legislação redefine a política educacional ao instituir o regime jurídico da educação inclusiva, afirmando que a diversidade é um valor. A maior transformação conceitual do DL 54/2018 é a afirmação de que as barreiras à aprendizagem não se localizam no aluno, mas nas práticas pedagógicas e nos contextos institucionais (Rodrigues, 2019).
Essa concepção está em plena ressonância com a racionalidade comunicativa. Ela desloca o foco do déficit individual (lógica instrumental de classificação) para as condições de interação social e cultural (lógica comunicativa de reconhecimento). A escola é, assim, convocada a criar ambientes dialógicos que favoreçam o reconhecimento mútuo e a construção cooperativa do saber.
A Investigação-Ação em Portugal, amplamente utilizada na formação e inovação pedagógica (Rodrigues, 2021; Sousa, 2020), atua como um dos principais veículos para a implementação do DL 54/2018. A ênfase na autonomia discursiva e na escuta ativa, princípios habermasianos, permite que a investigação-ação promova práticas colaborativas efetivas entre professores, mediadores e famílias. O processo investigativo não é apenas um meio de adaptação curricular, mas uma ferramenta de democratização das relações educativas, onde o melhor argumento, sustentado pela razão e pela justiça, define a trajetória pedagógica.
4.4 SÍNTESE COMPARATIVA: A AÇÃO COMUNICATIVA COMO PONTE
A análise comparada demonstra que, apesar das especificidades históricas e culturais, os países envolvidos nessa investigação, Brasil, Cabo Verde e Portugal, compartilham o desafio de converter a política legal de inclusão em uma prática ética e comunicativa.
Em todos os contextos, a pesquisa-ação crítica, ancorada na teoria da ação comunicativa, atua como um princípio metodológico capaz de mediar a distância entre a política e a prática. A ação comunicativa oferece uma linguagem universal para pensar a inclusão como uma prática discursiva, onde as diferenças não são silenciadas, mas ativamente reconhecidas como constitutivas do processo de construção do conhecimento e da cidadania. O compromisso ético-político busca transformar o princípio do “direito à educação” em uma pedagogia da escuta e da participação, sustentada pela reflexão crítica e pela colaboração dialógica entre todos os sujeitos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O AGIR COMUNICATIVO COMO POSSIBILIDADE EMANCIPATÓRIA
As reflexões desenvolvidas ao longo deste artigo confirmam que a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas não é apenas um referencial teórico aplicável à Pesquisa-Ação Crítica Emancipadora, mas seu próprio fundamento filosófico, ético e epistemológico. Ao quastionar a racionalidade técnica e recolocar a racionalidade comunicativa no centro da vida social. Habermas resgata a centralidade da linguagem, da ética e da intersubjetividade na construção do conhecimento social. A Pesquisa-Ação Crítica, inspirada em Carr e Kemmis, realiza esse projeto ao transformar a investigação em um espaço de práxis política e formativa, onde a ação e a reflexão se entrelaçam para reconstruir a experiência compartilhada, orientada por valores democráticos. O conhecimento, nesse paradigma, deixa de ser mera representação do real e torna-se um processo de transformação compartilhada.
A análise comparada entre Brasil, Cabo Verde e Portugal evidencia a importância da pesquisa-ação crítica em diferentes realidades, pois os desafios da inclusão escolar, seja a superação de culturas excludentes no Brasil, a valorização linguística em Cabo Verde, ou a transformação estrutural em Portugal, exigem que o foco seja deslocado da adaptação técnica para a transformação ética e cultural das relações educativas.
A contribuição habermasiana reside, precisamente, na possibilidade de repensar a educação como um espaço público de argumentação e aprendizagem democrática. É na relação dialógica, na escuta ativa, no argumento justificado e no reconhecimento mútuo, que a inclusão adquire seu sentido mais profundo e se concretiza como práxis emancipatória. O diálogo entre Habermas e a pesquisa-ação crítica mostra, de modo inquestionável, que a transformação educativa depende da transformação comunicativa, mudar a maneira de falar e de ouvir é inerentemente mudar a maneira de conhecer e de agir.
A Pesquisa-Ação Crítica Emancipadora, ao se assumir como expressão concreta da racionalidade comunicativa no campo educacional, articula de forma indissociável teoria e prática, ética e política, diálogo e emancipação. Ela se configura como o caminho metodológico e filosófico mais promissor para a construção de uma ciência da educação que seja, em sua essência, crítica, inclusiva e humanizadora. A emancipação, neste contexto, não é um objetivo final distante, mas um processo cotidiano de construção do entendimento, um agir comunicativo que se realiza no encontro com o outro e na busca compartilhada por justiça, solidariedade e sentido.
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