A IDEIA DE UNIVERSIDADE E O DÉFICIT DELIBERATIVO DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA
Charles Feldhaus[1]
Universidade Estadual de Londrina
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Resumo
Este estudo pretende retomar a discussão sobre a ideia de universidade que Habermas realizou em Diagnósticos do tempo e Teoria e Práxis, apresentando as dificuldades que universidade enfrentava quando da redação do texto escrito em comemoração do aniversário de 600 anos da Universidade de Heidelberg na Alemanha e atualizar a discussão levando em consideração as dificuldades que a universidade enfrenta no cenário atual do surgimento das novas tecnologias baseadas em algoritmos e redes sociais na internet como o crescimento das informações imprecisas ou incorretas, as populares fake news, o crescimento do negacionismo científico e a ascensão da extrema direita no cenário político brasileiro e internacional. Esse cenário afeta e diz respeito ao papel da universidade na sociedade, uma vez que as universidades ainda são os principais centros de produção de conhecimento científico e qualquer ataque ao conhecimento científico é direta ou indiretamente um ataque a estas instituições e, além disso, o papel da universidade, desde de sua fundação, foi propiciar algum tipo de aprimoramento e esclarecimento das pessoas da sociedade e por isso elas novamente não podem isentar se assumir algum tipo de protagonismo no cenário atual. Um protagonismo que não deve ser confundido com a adoção de uma posição político partidária, mas como uma guardadora das condições deliberativas do próprio espaço da esfera pública política assim como da não política, dado que a democracia e a difusão do conhecimento não se harmonizam com censura e falta de critério para estabelecer o que é veraz ou inveraz.
Palavras-chave: Universidade. Crise. Negacionismo. Novas mídias digitais. Fake news.
THE IDEA OF THE UNIVERSITY AND THE DELIBERATIVE DEFICIT OF CONTEMPORARY DEMOCRACY
Abstract
This study aims to revisit the discussion on the idea of the university that Habermas carried out in *Diagnosis of the Times* and *Theory and Praxis*, presenting the difficulties that the university faced when writing the text commemorating the 600th anniversary of the University of Heidelberg in Germany, and to update the discussion taking into account the difficulties that the university faces in the current scenario of the emergence of new technologies based on algorithms and social networks on the internet, such as the growth of inaccurate or incorrect information, the popular fake news, the growth of scientific denialism, and the rise of the far right in the Brazilian and international political scene. This scenario affects and concerns the role of the university in society, since universities are still the main centers of scientific knowledge production, and any attack on scientific knowledge is directly or indirectly an attack on these institutions. Furthermore, the role of the university, since its foundation, has been to provide some kind of improvement and enlightenment for people in society, and therefore they cannot exempt themselves from assuming some kind of leading role in the current scenario. A leading role that should not be confused with adopting a partisan political position, but rather as a guardian of the deliberative conditions of the very space of the political public sphere as well as the non-political sphere, given that democracy and the dissemination of knowledge are not compatible with censorship and a lack of criteria for establishing what is true or false.
Keywords: University. Crisis. Denialism. New digital media. Fake news.
LA IDEA DE LA UNIVERSIDAD Y EL DÉFICIT DELIBERATIVO DE LA DEMOCRACIA CONTEMPORÁNEA
Resumen
Este estudio busca retomar la discusión sobre la idea de universidad que Habermas desarrolló en *Diagnóstico de los tiempos* y *Teoría y praxis*, presentando las dificultades que enfrentó la universidad al escribir el texto conmemorativo del 600 aniversario de la Universidad de Heidelberg en Alemania, y actualizando dicha discusión considerando las dificultades que enfrenta la universidad en el escenario actual del surgimiento de nuevas tecnologías basadas en algoritmos y redes sociales en internet, tales como el crecimiento de información inexacta o incorrecta, la proliferación de noticias falsas, el auge del negacionismo científico y el ascenso de la extrema derecha en la escena política brasileña e internacional. Este escenario afecta y atañe al papel de la universidad en la sociedad, ya que las universidades siguen siendo los principales centros de producción de conocimiento científico, y cualquier ataque al conocimiento científico constituye, directa o indirectamente, un ataque a estas instituciones. Además, desde su fundación, la universidad ha tenido como función contribuir al progreso y la formación de la sociedad, por lo que no puede eludir su responsabilidad de asumir un papel de liderazgo en el contexto actual. Este liderazgo no debe confundirse con la adopción de una postura política partidista, sino con la protección de las condiciones deliberativas tanto en la esfera pública política como en la no política, dado que la democracia y la difusión del conocimiento son incompatibles con la censura y la ausencia de criterios para discernir la verdad de la falsedad.
Palabras clave: Universidad. Crisis. Negacionismo. Nuevos medios digitales. Noticias falsas.
1 INTRODUÇÃO
Conforme o dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano, o termo crise tem origem na Grécia Antiga, em particular, uma origem médica (na medicina hipocrática) e era empregado para indicar alguma “transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o curso num sentido favorável ou não” (Abbagnano, 2007, p. 259). Em sua obra A crise de legitimidade no capitalismo tardio, Habermas (2002, p. 11-19) trata do conceito científico-social de crise e nessa oportunidade se refere ao uso do termo “crise” no contexto médico, exatamente o contexto que Abbagnano recorre para apresentar sua definição do termo. Habermas, todavia, define no contexto médico “crise” como “a fase de uma doença na qual se decidiu ou não se os poderes da autocura do organismo eram suficientes para recobrar a saúde” (Habermas, 2002, p. 11) e acrescenta que se poderia associar a ideia de crise “a ideia de uma força objetiva, que priva um sujeito de alguma parte de sua soberania normal” (Habermas, 2002, p. 12). Contudo, como a abordagem teórico crítica se concentra não na saúde do indivíduo, mas (metaforicamente falando) na saúde de um corpo social, a definição de crise nas ciências sociais se refere a teoria da crise do sistemas sociais e nesse contexto ele (Habermas, 2002, p. 13) define crise como algo que surge quando: “a estrutura de um sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessários para a contínua existência do sistema”. Como ele esclarece no mesmo trecho mais adiante, as crises de um sistema social são “distúrbios persistentes” à integração de um sistema social. Mesmo que a universidade não possa ser incluída como um dos subsistemas (econômico, cultural e político) discutidos no desenrolar do mesmo capítulo, hoje se costuma dizer com frequência que a universidade está em crise, que mudanças são necessárias para enfrentar essa crise, que o modelo atual é ultrapassado entre outras coisas.
Neste estudo recorro a alguns textos em que Habermas se devota a alguns aspectos da suposta crise da universidade´para desenvolver algumas reflexões com base no modelo discursivo sobre o tema da crise da universidade. Na parte inicial vou apontar de maneira geral como Habermas trata da crise da universidade na obra Teoria e prática no contexto da Alemanha dos anos 1960 e 1970. Nesta obra ela trata da universidade em dois capítulos: Sobre a transformação social da vida acadêmica e Democratização da universidade - politização da ciência?. No primeiro texto o foco é a discussão sobre a necessidade de reformas na universidade considerando a mudança na vida acadêmica nas universidades alemãs em relação ao modelo clássico de universidade do idealismo alemão; no segundo texto o foco é a autonomia da universidade e a autonomia da ciência diante da pressão pela democratização do ambiente universitário; na parte seguinte serão feita breves considerações sobre o texto que Habermas enquanto professor universitário na Universidade de Heidelberg e instituição essa que na ocasião estava completando 600 anos de existência tal como desenvolvidas em A ideia de universidade - processos de aprendizagem. Neste texto o foco é a discussão sobre a ideia clássica de universidade desenvolvida por pensadores alemães como Alexander von Humboldt, Friedrich Schleiermacher, Friedrich Schelling, Karl Jaspers, entre outros e se a ideia ainda se mantém dado do contexto histórico da época de reformas na estrutura universitária, na relação entre pesquisa e ensino, do crescimento da especificação funcional dentro das ciências e na ênfase no aproveitamento dos resultados da pesquisa científica em produtos interessante ao mercado. Por fim, realizo considerações baseadas mais em minhas vivências pessoais a respeito da crise da universidade atual e faço alguns apontamentos sobre isso.
2 A AUTONOMIA DA UNIVERSIDADE E DA CIÊNCIA EM DISCUSSÃO
Em Sobre a transformação social da formação acadêmica e Democratização da universidade - politização da ciência?, ambos capítulos de Teoria e Práxis - Estudos de filosofia social, Habermas se devota, no primeiro texto, à transformação da ideia de formação universitária desde o idealismo alemão até o começo da segunda metade do século passado na Alemanha; de um lado pensadores com uma postura mais romântica defendem o retorno à ideia de universidade como um novo humanismo, como uma nova retomada do pensamento clássico e do ideal de humanidade num sentido mais elevado em contraposição ao tipo de universidade que começa a desenvolver com o progresso científico e os padrões de cientificidade do positivismo lógico, por exemplo e, de outro lado, aqueles que defendem que a universidade precisa ser renovada com uma orientação ao mercado de trabalho e com base apenas no conhecimento técnico e científico moderno; nesse debate também entram os conservadores culturais da época que preocupados, que aparentemente preocupados com o nível intelectual dos ingressantes das universidades da época defendiam um tipo de retomada do ideal de universidade clássico da universitas litterarum em que os novos estudantes universitários dos primeiros semestres dos cursos de graduação precisam ser alocados em repúblicas estudantis a fim de ser inseridos de forma qualificada na comunidade acadêmica. No segundo texto, Habermas se devota ao debate sobre a democratização da universidade e consiste numa resposta de Habermas às objeções à conferência dos reitores das universidades da Alemanha Ocidental em 28 de maio de 1969, em que ele busca responder o que significa autonomia da universidade e autonomia da ciência no debate a respeito da democratização das universidades alemãs e que significa a “politização” da ciência no debate sobre a democratização da universidade. Habermas (p. 570) sustenta que o cenário da relação entre universidade e as instâncias estatais se modificou significativamente e por isso
As decisões sobre a estrutura e a organização da universidade, decisões sobre o volume dos investimentos únicos e os gastos correntes, decisões principalmente sobre a alocação dos recursos para a pesquisa possuem hoje um peso político imediato.
Ou seja, a suposta necessidade de neutralidade política dos cientistas precisa ser pensada de maneira um pouco mais ponderada considerando que as universidades para seu funcionamento e para financiamento das pesquisas científicas são dependentes em grande parte de recursos de instituições de fomento públicas e, como consequência disso, Habermas entende que temos apenas duas alternativas: 1. as universidades assumem cada vez mais uma atitude despolitizada e decidem apenas de maneira administrativa dentro de sua estrutura institucional e por conseguinte ocorre um distanciamento entre o setor administrativo da instituição e aqueles que são afetados pelas suas decisões administrativas; ou, 2. as universidades se constituem enquanto uma unidade capaz de agir politicamente e representam dessa maneira “com conhecimento de causa suas pretensões legítimas” na esfera pública (Habermas, 2013, p. 570).
Habermas (2013, p. 571) entende que a posição da universidade também se alterou em relação à sociedade, de tal maneira que ela “não pode mais ser interpretada segundo o modelo de uma esfera pública liberal de uma irradiação difusa do saber de eruditos privados”. Habermas (2013, p. 571) sustenta que a universidade pode manter sua autonomia apenas se “ela se constituir como uma unidade capaz de agir politicamente”, ou seja, o ideal de neutralidade completa da universidade não pode mantido num cenário em que ela precisa lutar o tempo todo para obter os financiamentos que garantem tanto a sua existência enquanto instituição de ensino quanto os financiamentos que permitir o desenvolvimento dos mais diversos projetos de pesquisa que acontecem em seus campi. Razão pela qual Habermas (2013, p. 572) afirma que o processo de democratização da universidade na época era urgente porque as estruturas administrativas então existentes causavam o que ele chamou de “particularismo paralisante” nas instituições internas da instituição que tornavam as universidades incapazes de representar externamente de maneira convincente quais seriam os interesses da instituição. Claro que precisamos lembrar que Habermas está falando do cenário do final dos anos 1960, no máximo começo dos anos 1970, e muita coisa mudou nas estruturas de deliberação das universidades alemãs e ao redor do mundo nesses mais de cinquenta anos. Hoje as instituições de ensino superior possuem estruturas de tomada de decisão mais democráticas e mais dinâmicas, o que não significa também que nada possa ser feito para aprimorar ainda mais o sistema democrático dentro instituições tais como existem atualmente. Enfim, Habermas de uma forma ou de outra parece assumir que o modelo de gestão da universidade da época na Alemanha estava em crise e era preciso realizar reformas nas estruturas administrativas a fim de lidar com o novo papel da universidade como um agente político que tenha capacidade de representar de maneira convincente diante do público em geral e das instituições estatais os interesses da comunidade interna de professores, estudantes e pesquisadores e ele acredita que assim responde à primeira questão da conferência de reitores da Alemanha ocidental: “O que significa autonomia universitária?” (Habermas, 2013, 569 e 571) (grifo do autor), ou seja, autonomia universitária não significa pura e simplesmente seguir procedimentos administrativos e burocráticos sem levar em consideração à representatividade dos membros da comunidade universitária, em outras palavras, ser representativo aqui significa dar voz a todos os concernidos numa estrutura democrática de consulta em que professores, alunos e técnicos sejam considerados numa decisão em que vale a força do melhor argumento. A universidade precisava e provavelmente ainda deve precisar mais espaço para a racionalidade comunicativa e menos para os imperativos sistêmicos do mercado e da burocracia administrativa.
A segunda pergunta é: “O que significa a autonomia da ciência?” (Habermas, 2013, p. 569) (grifo do autor) e o problema de pano de fundo dessa questão é a questão da independência da pesquisa científica, ou seja, como a dimensão política afeta a qualidade da pesquisa científica e Habermas já começa recusando o que ele denomina de “modelo de quarentena da ciência” (Habermas, 2013, p. 574) que busca isolar a pesquisa científica de qualquer tipo de relação com a dimensão política e as preocupações políticas como estratégia para garantir “as condições do progresso científico”. Habermas responde à segunda pergunta sobre a autonomia da ciência criticando o que chama de “purismo”, algo semelhante à visão positivista lógico da completa separação entre entre enunciados normativos e enunciados descritivos e sua exigência que questões morais e éticas (dado que compreendem enunciados políticos e éticos como não científicos e semelhantes a enunciados estéticos de puro gosto) sejam deixadas de lado quando estamos tratando das questões científicas, porém, essa demanda por purismo normativo nas ciências ignora que algumas “discussões metateóricas” (Habermas, 2013, p. 574) relacionadas aos alcance de certas abordagens metodológicas, certas estratégias de pesquisa “tornam explícitas pré-decisões” que não são neutras em relação à escolha dos padrões adotados na pesquisa científica. Habermas defende uma “autoreflexão das ciências” em que as “implicações sociais” da pesquisa científica podem ser identificadas e trazidas à deliberação racional no espaço da esfera pública e sustenta que “a autonomia da ciência só pode ser garantida se todos os participantes no processo de ensino e pesquisa também participarem na autoreflexão das ciências” (Habermas, 2013, p. 575). Nesse processo de inclusão de todos os concernidos no processo de construção do conhecimento científico deve ser deliberado sobre a função social da ciência e sobre a responsabilidade política dos pesquisadores em relação às consequências e efeitos colaterais da pesquisa científica que estão desenvolvendo.
3 A CRISE NA IDEIA DE UNIVERSIDADE CLÁSSICA
Habermas escreveu este texto A ideia de universidade - processos de aprendizagem publicado no livro Diagnósticos do tempo - seis ensaios para ser apresentado como texto numa aula que lecionou no Teatro Municipal de Heidelberg em 1986 como parte de um conjunto de conferências que a Universidade de Heidelberg (onde Habermas iniciou suas atividades como docente em sua carreira estava organizando em comemoração ao aniversário de 600 anos da instituição (Habermas, 2005, pp. 73). Habermas (2005, p. 80) afirma que, na medida em que ainda persistir o nexo entre universidade e mundo da vida, “não se pode dizer que a ideia de universidade esteja completamente morta”, mas que ele precisa “separar o núcleo da ideia de universidade de suas simplificações” (Habermas, 2005, p. 81).
Muitos dos reformadores e defensores do ideal clássico humanista da universidade atribuem um papel central à filosofia no restabelecimento da ideia de universidade, todavia, a filosofia não ocupa na sociedade atual o mesmo papel que ocupava em outros momentos da história da humanidade, particularmente aqueles em que a ideia de universidade do idealismo e em suas reformulações posteriores foi apresentada. Além disso, Habermas (2005, p. 84) aponta que atualmente “a filosofia se transformou numa disciplina isolada que atrai o interesse esotérico de especialistas” e não algo que poderia ocupar o papel de criar uma unidade entre os campos do saber em relação à “tradição cultural, à socialização e à integração” (Habermas, 2005, p. 83). Habermas ainda não emprega aqui o termo pluralismo de cosmovisões ou pluralismo de visões de mundo ou de concepções abrangentes ou de vida boa como empregará mais tarde, por exemplo, no debate com John Rawls sobre o Liberalismo Político, contudo, acredito que algo semelhante deve estar operando como pano de fundo de sua crítica à possibilidade de a filosofia ocupar um papel unificador tão robusto e conseguir dar sentido à ideia de universidade nos mesmos termos que imaginaram os clássicos do pensamento alemão e os reformadores da universidade. Não por acaso ele suscita uma questão intrigante mais adiante no mesmo texto, quando ele (Habermas, 2005, p. 94) indaga se não já é chegado o momento de reconhecer que a instituição (universidade) “pode muito bem passar sem a ideia de si mesma”? Particularmente, depois de considerar a discussão sobre a ideia de universidade acontece num contexto em que o governo busca impor reformas às instituições universitárias. Muitas dessas reformas orientadas pelos imperativos sistêmicos do mercado e formuladas em termos dos imperativos sistêmicos da burocracia estatal. Contudo, o objetivo aqui não é esgotar as considerações de Habermas nos textos até aqui desenvolvidos, mas antes apenas trazer suas considerações mais próximo à reflexão sobre o cenário atual e é o que tentarei fazer de maneira muito sucinta até o final do texto.
4 A CRISE DA UNIVERSIDADE NO CONTEXTO ATUAL
Não raramente se costuma ouvir que a economia está em crise, apenas as razões da crise é que podem ser diversas conforme a posição política ou ideológica de quem profere o enunciado. Se costuma ouvir que os valores e os costumes estão em crise, provavelmente querendo dizer com isso que pode estar reduzindo o número de pessoas que compartilham os seus valores e costumes, o que é pouco informativo a respeito se estar em crise nesse seria algo desejável ou não e não vou aprofundar nisso aqui. Ou ainda se costuma ouvir que a ciência está em crise ou alguma parte específica ou campo científico, o que também em si não é bom ou ruim, dado que isso pode significar apenas que um novo paradigma científico no campo em questão está se estabelecendo no momento e substituindo o paradigma atual. Mas no que diz respeito ao ponto principal da reflexão atual, se costuma ouvir que a universidade está em crise e aqui as razões e motivos da crise podem ser diversas ou até mesmo nem sempre muito claras. Já faz algum tempo que se houve o comentário que a universidade é uma instituição que já existe a muitos séculos (alguns datam sua origem na idade média entre os séculos XII e XIII da era atual) e que, apesar de existir a tanto tempo, ainda pratica os mesmos métodos de ensino, aprendizagem e pesquisa estabelecidos em sua origem e por isso estaria desconsiderando as mudanças e os progressos que aconteceram desde então. Há também quem diga que a universidade está em crise por causa da redução drástica do número de estudantes em alguns cursos de graduação e pós-graduação ao redor do mundo e que ela está formando mão de obra sem garantia de mercado de trabalho para seus egressos, uma vez que o mercado de trabalho se tornou mais dinâmico e o modelo de ensino universitário não está preparado para esta nova realidade.
Considero, primeiramente, que o primeiro sentido de crise da universidade, que não deixa ter alguma relação com o segundo sentido, é mais uma caricatura da universidade do que um problema de fato e o fato de países, que tiveram um entusiasmo muito grande com o emprego de novas tecnologias como tablets e outros mecanismos eletrônicos estarem retornando ao modelo tradicional de ensino aprendizagem, é preciso muita cautela na crítica a um processo de ensino-aprendizagem e pesquisa que tem dado resultados significativos a muito tempo. O que dá qualidade ao que é feito como ensino e aprendizado e as pesquisas em universidades é o engajamento significativo com o material estudado nas disciplinas e projetos de pesquisa e não o fato de ser presencial ou virtual, com uso de novas tecnologias ou com uso apenas de papel, caneta, quadro negro e giz. Também é preciso considerar as especificidades das áreas de estudo e pesquisa dentro das universidades. As disciplinas da área médica, da área biológica, da física, da química e outras áreas do gênero precisam empregar muitas vezes artefatos tecnológicos complexos e avançados e nesses campos a maneira como a universidade faz pesquisa tem mudado muito um pouco, não porque a universidade em si precisa mudar, porque esses cursos ainda mantém em grande medida as aulas tradicionais, apenas além das aulas tradicionais possuem aulas em laboratórios de pesquisa avançada e artefatos tecnológicos como aceleradores de partículas, microscópios de última geração, entre outros. Mas em áreas como as ciências humanas os métodos de ensino aprendizagem e pesquisa tem mudado muito menos. Claro que hoje podemos acessar uma obra completa de Immanuel Kant no software ou num site na internet e saber com rapidez quantas vezes e em que obras Kant empregou um determinado conceito do seu pensamento e o mesmo vale para uma gama enorme de outros pensadores, mas isso apenas agiliza algo que anteriormente era mais moroso e lento de ser feito comparando passagens em que o pensador empregava o conceito para tentar resolver um problema interpretativo. Hoje também podemos acessar na internet uma grande variedade de vídeos e outros materiais, cuja qualidade é bastante variável, em alguns casos de qualidade bastante ruim e não aconselhável de ser assistido e em outros casos de excelente qualidade e por isso recomendável de ser assistidos. Os próprios professores universitários realizam eventos, criam canais especializados em entrevistas e temas filosoficamente relevantes e o mesmo é válido para as demais áreas do conhecimento humano.
Considero, em segundo lugar, que a redução do número de estudantes em universidades em números absolutos não é uma informação precisa, dado que provavelmente hoje existem mais pessoas realizando cursos de nível superior, porém, existe hoje uma grande oferta de cursos de nível superior em universidades apenas on line ou prioritariamente na modalidade virtual e por causa dos baixos custos de matrícula e mensalidades muitas pessoas estão optando por realizar cursos à distância e deixando até mesmo de se candidatar às vagas gratuitas de universidades públicas (federais, estaduais e municipais). O que se for considerado apenas a questão da realização do curso para muitas famílias pode parecer um bom negócio, embora dependendo da qualidade do curso realizado este pode bem não ser o caso.
Faço esse tipo de comentários, porque caminhando aqui com Habermas, mas também para além de Habermas, compreendo como ele que, para enfrentar a pretensa crise da universidade é preciso pensar a vida universitária se situando também extramuros e não apenas da pretensa posição privilegiada nas cátedras universitárias. Diz Habermas: “se quisermos injetar nova vida na ideia de universidade, temos que nos situar extra muros” (Habermas, 2005, p. 81, grifo do autor). Se pretendemos conceder uma nova vida à ideia de universidade (aquela mesmo que clássicos buscavam reabilitar de alguma forma) é preciso adotar um ponto de vista externo à universidade. Embora isso não seja exatamente uma tarefa fácil, quando aquele que escreve esse estudo é um professor universitário a mais de quinze anos depois de haver estudado por mais de uma década desde a graduação até o doutorado noutra universidade, e por isso dificilmente aquele que escreve pode ser considerado como alguém extramuros da universidade. Talvez isso possa ser considerado até mesmo impossível, mas busquemos avançar na reflexão de qualquer maneira e acredito que aqui uma das primeiras questões relacionadas com o papel da universidade na atualidade seria: para quê a educação universitária deve ser dirigida? Desde de que me lembro da minha presença na Universidade Federal de Santa Catarina como estudante de graduação, recordo da dicotomia entre educação voltada ao mercado de trabalho e educação voltada à formação do ser humano de maneira plena. Essa questão insiste em permanecer nas discussões entre professores, estudantes, políticos e demais interessados na temática. Ou seja, essa questão não diz respeito apenas ao que está dentro dos muros da universidade, mas afeta também aqueles que estão fora dos seus muros (embora os campi geralmente não tenham muros). Há quem diga (intra muros e extra muros) que a universidade precisa se modificar, precisa se adaptar aos novos tempos, às novas tecnologias. Há quem diga (intra muros e extra muros) a sociedade, e a tecnologia avançou muito desde o estabelecimento das primeiras universidades na europa e nada mais natural do que a instituição se adequar aos novos tempos. O ensino universitário não deve focar mais apenas na formação de uma elite de pesquisadores, mas deve produzir profissionais que sejam capazes de atender às novas demandas da sociedade. Entretanto, confesso que algo me incomoda na pretensa dicotomia entre formar profissionais exclusivamente para o mercado de trabalho e formar as pessoas num sentido mais amplo, formar cidadãos e cidadãs como às vezes se costuma falar, formar seres humanos num sentido mais amplo, o que não exclui o mercado de trabalho, mas inclui também formar pessoas capazes de apreciar, desfrutar níveis mais elevados da cultura, da arte e também capazes de um senso crítico diante das estruturas e instituições sociais existentes. Talvez esta última capacidade seja aquela que mais incomoda certos setores da sociedade mais preocupados apenas com a formação de profissionais para o mercado de trabalho. Acredito que, particularmente, algumas pessoas deste ponto de vista entendam que formar um senso crítico e reflexivo consiste em ultrapassar um limite que a universidade não deveria superar no processo de formação, a saber, a neutralidade política. O que pode significar que algumas pessoas que se opõem a uma concepção mais ampla do papel formativo da universidade suponham que a neutralidade pode ser considerada como sinônimo de passividade ou indiferença diante dos problemas das instituições sociais de um país. Uma pessoa politicamente neutra é alguém que nem identifica, nem se manifesta a respeito dos problemas da sociedade, mas apenas foca na resolução daqueles problemas técnicos que foi preparada para identificar e resolver com base em sua especialidade.
Não obstante, existe mais de uma maneira de conceber o papel da formação da universidade, inclusive se pode pensar em maneiras que partem do ponto de vista que acredita que exista necessariamente uma oposição entre educação profissional e educação voltada a uma formação mais plena do ser humano. Se poderia pensar inclusive na educação universitária em que a formação adequada para vida, o que inclui também a preparação para o trabalho, inclui como componente indispensável uma ampla formação em diferentes áreas do saber humano, inclusive uma formação que inclua uma ampla gama de conhecimentos das humanidades entendidas como ciências humanas como filosofia, sociologia, história, geografia, e artes.
Como também acredito que a dicotomia tradicional, já superada pela Lei de diretrizes e bases da educação brasileira, entre ensino técnico versus ensino com humanidades é uma falsa dicotomia, o ensino de qualidade acarreta um desenvolvimento da pessoa humana tanto na sua dimensão técnica (na profissão escolhida pelo estudante ou pela estudante) quanto na dimensão mais ampla que inclui valores humanitários e valores de moralidade política. Um médico que presta um atendimento de qualidade não é bom apenas e exclusivamente do ponto de vista técnico, até mesmo porque prestar um atendimento humanizado e tomar as complexas decisões que muitas vezes um profissional da saúde precisa tomar exige uma ampla formação humanitária e de moralidade política, além de uma sólida formação técnica e esse raciocínio é válido para várias outras áreas de atuação profissional. Esse raciocínio é válido para um fisioterapeuta, um advogado, um engenheiro civil, um administrador de empresas entre outras tantas profissões. Como também é válido que algum tipo de formação técnica é indispensável aos profissionais das áreas de humanidades, um bom profissional de filosofia, também precisa em vários momentos do exercício profissional lidar com questões técnicas como a organização de um congresso (se é professor universitário), como a gestão de uma escola (no caso de ser eleito como diretor de um colégio) e assim por diante.
Talvez se pudesse defender nas linha de raciocínio esboçada por Habermas nos textos que foram apresentados acima que existe uma falsa premissa na disputa entre os conservadores e os reformadores no que diz respeito às universidades alemãs da época, de um lado, aqueles que entendiam que a universidade não precisa de nenhum tipo de modificação e de outro lado, aqueles que entendiam que ela precisava ser completamente renovada. Talvez se pudesse pensar que atualmente existe um tipo similar de falsa premissa. De uma lado, aqueles que defendem que a universidade precisa ser completamente modificada e completamente subjugada aos imperativos sistêmicos do mercado e como consequência disso cursos tradicionais, como os cursos de humanidades (em que poderia incluir filosofia, sociologia, história, geografia entre outros) precisam ou ser fechados ou ser substituídos por versões baratas na modalidade à distância ou ao menos híbrida e, por outro lado, aqueles que acreditam que nada precisa ser modificado e que a universidade precisa permanecer tal e como sempre existiu faz séculos. Talvez se pudesse afirmar que a modalidade meramente à distância ou híbrida das disciplinas de humanidades seria uma verdadeira alternativa viável pela redução drástica na qualidade dessas modalidades de ensino, mas acredito que essa avaliação é mais complexa do que isso e o ensino à distância e o presencial podem ocupar um papel complementar e não necessariamente concorrente. Qualquer aprendizado de humanidades, desde que respeite critérios mínimos de qualidade no material escolhido e na formação dos professores e tutores, pode ter efeito positivos, mas costuma ser mais eficiente com estudantes que possuem maiores habilidades de aprendizagem sem intervenção mais robusta de docentes quando na modalidade à distância ou virtual, mas o problema é que grande parte de ensino à distância ou virtual investe pouco no material didático e humano disponibilizado e no corpo de docentes e tutores, além de atender na grande maioria dos casos estudantes que possuem um déficit de aprendizagem prévio nos níveis anteriores do ensino e por isso correm mais o risco de conduzir a uma aprendizagem de menor qualidade.
5 A CRISE DA UNIVERSIDADE E NOVAS MÍDIAS DIGITAIS
Outro aspecto da sociedade contemporânea que afeta significativamente às universidades são as novas tecnologias e as novas mídias sociais que promovem a distribuição de informações inverídicas ou ao menos imprecisas (as populares fake news) que promovem o negacionismo científico e acusações ideológicas contra as universidades, principalmente as universidades públicas. Habermas se devota ao efeitos negativos das novas mídias digitais ao caráter deliberativo da esfera pública em sua obra Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa, apontando como as novas tecnologias transformam todos os seres humanos em potenciais autores e por isso capazes de expressar suas opiniões no espaço pública, também transformam-se em mecanismo de transmissão de fake news ou informações imprecisas entre os usuários, dado que essas novas tecnologias carecem de todo trabalho editorial das mídias tradicionais que funcionam como filtros comumente existente no trabalho de preparação das notícias nas mídias tradicionais. No caso das novas mídias digitais esse filtro não existe e, além disso, maneira como a programação tem sido realizada tem o efeito negativo na produção das crenças dos usuários, uma vez que se considera que os algoritmos direcionam o conteúdo apresentado nas redes sociais com base no uso anterior do usuário das redes sociais e das mídias digitais, o que na prática funciona como um mecanismo de reforço das crenças e opiniões que as pessoas já possuem antes do uso das mídias digitais, o que produz o efeito da câmara de eco e causa a polarização política que costumamos presenciar atualmente. Apenas para citar um exemplo, hoje é possível perceber que alguns país estão evitando enviar seus filhos a prestar o vestibular de universidades públicas com base na informação inverídica de que professores de universidades públicas realizam algum tipo de doutrinação ideológica dos estudantes e por isso enviam seus filhos para realizar o vestibular em universidades particulares. Dessa maneira a universidade (especialmente as universidades públicas´) são atacadas aqui ao menos de dois modos: 1. como instituições que promovem o incremento do conhecimento científico são atacadas como instituições que promovem um tipo de saber que seria carente de credibilidade; 2. como instituições que promovem um manipulação da mente dos estudantes que recebem em prol de um ideologia política defendida pelos seus membros.
O problema do primeiro ataque é que se baseia numa recusa dos métodos de experimentação científica e verificabilidade em prol de uma identidade tribal eivada de ideologias altamente nocivas às sociedades em que elas persistem. Com isso, quero dizer que a ideologia em si não é algo negativo, desde que ela permaneça vinculada à crenças inclusivas e respeitosas aos direitos básicos de todas as pessoas da sociedade, inclusive as pessoas que não compartilham nossas crenças e ideologias e fazem parte de outros grupos sociais diferentes daquele que se defende. Num raciocínio tribal muitas vezes precisam provar sua pertença a um grupo através do cumprimento de certas regras de fidelidade ao próprio grupo, o problema quando essas exigências de prova de fidelidade supera em importância e valor os critérios de verificabilidade e experimentação científica, tão importante a busca cooperativa da verdade no espaço público da sociedade. A participação em grupos é parte da interação humana, contudo, essa pertença não pode se colocar acima de tudo e de todos, inclusive da vida, da saúde e dos direitos fundamentais de outros membros da sociedade, principalmente os que não pertencem ao meu grupo social próximo e tribal.
O problema do segundo é que pura e simplesmente falso, porque a universidade é por natureza um lugar pluralista e diverso, em que pessoas dos mais diferentes espectros políticos convivem no mesmo espaço físico e interagem em relativa harmonia sob o interesse comum da promoção do incremento do conhecimento humano em várias áreas e, além disso, a filiação política ou partidária em momento algum serve de parâmetro na avaliação dos estudantes da universidade e nenhum estudante de universidades públicas é penalizado por compartilhar ou deixar de compartilhar qualquer visão ideológica do ponto de vista político. Enfim, uma boa educação universitária caminha de mãos dadas com uma esfera pública política com caráter deliberativo e inclusivo, razão pela qual é de suma importância que a universidade atual trabalhe em parceria com a sociedade no combate às notícias falsas ou inverídicas que se estabelecem principalmente através do uso das novas mídias digitais e na realização deste trabalho é preciso pensar a educação como um processo que contempla não apenas a dimensão técnica e profissional do ensino universitário, mas também a dimensão das ciências humanas (da filosofia, da sociologia, da história, da geografia, entre outras), porque o melhor remédio contra a desinformação e a sua proliferação nas novas mídias digitais é a informação correta, a veracidade nas proposições e um compromisso forte com um ensino de qualidade, baseado nas melhores evidências empíricas, mas também baseado numa formação geral que inclui acesso às obras de artes, ao pensamento dos clássicos da história da filosofia, da sociologia, da literatura, e de outras área.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi possível observar, com base em alguns estudos de Habermas sobre a ideia de universidade e certos debates que aconteceram a respeito da necessidade da reforma da universidade, a ideia de universidade não pode ser aplicada sem uma análise de suas simplificações aos debates a respeito do tema e que a suposta politização da universidade não é intrinsecamente errônea como alguns costumam sustentar, uma vez que essas instituições de ensino superior precisam agir como um ator político que representa os interesses de professores, alunos e técnicos na luta pela manutenção das condições financeiras, administrativas, entre outros que são necessários para o desenvolvimento da pesquisa de base nas universidades e do ensino superior de qualidade. A politização da universidade também não acarreta, como se costuma sustentar uma contaminação da ciência com imperativos externos à pesquisa científica, considerando que o progresso científico sempre precisa vir acompanhado por uma perspectiva reflexiva a respeito dos caminhos da ciência e da técnica no que diz respeito às implicações éticas e políticas das novas descobertas e invenções. Além disso, qualquer que seja a reforma da universidade que algum dia se possa imaginar é preciso considerar que o conflito entre uma educação voltada ao mercado e uma educação voltada às humanidades é também uma simplificação. O que é preciso é uma melhor formação técnica nos aspectos relacionados ao exercício da profissão escolhida no curso de graduação ou pós-graduação escolhido com uma boa formação humanitária e não uma coisa a despeito da outra. Uma boa educação universitária reúne uma boa educação profissional com uma boa educação humanitária.
REFERÊNCIAS
HABERMAS, J. A crise de legitimidade no capitalismo tardio. Tradução de Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2002.
HABERMAS, J. Diagnósticos do tempo: seis ensaios. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.
HABERMAS, J. Teoria e prática. Estudos de filosofia social. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
HABERMAS, J. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. Tradução de Denílson Luís Werle. São Paulo: Editora da Unesp, 2023.