DA PRIVAÇÃO AO RECONHECIMENTO

caminhos de emancipação na teoria crítica e na práxis socioeducativa

Martha Vanessa Lima do Nascimento Cardoso[1]

 Universidade Federal de Alagoas

 nesslimped@gmail.com

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Resumo

Esta pesquisa examina a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth, traçando sua genealogia filosófica para investigar como as privações afetiva, jurídica e social atuam como causas originárias de condutas antissociais e da violência estrutural, com foco na juventude em conflito com a lei. Através de um diálogo interdisciplinar com Winnicott, Ricoeur e Freire, argumenta-se que o reconhecimento intersubjetivo é um pilar ontológico para a formação da identidade, um parâmetro normativo para a justiça e um modelo para uma educação emancipatória. O estudo defende, por fim, a reestruturação humanizadora das políticas socioeducativas, articulando teoria crítica e ação social em prol de uma sociedade mais justa.

Palavras-chave: Privação. Reconhecimento. Educação. Emancipação. Socioeducação.

FROM DEPRIVATION TO RECOGNITION

paths to Emancipation in Critical Theory and Socio-Educational Praxis

Abstract

This research examines Axel Honneth's Theory of Recognition, tracing its philosophical genealogy to investigate how affective, legal, and social deprivations act as root causes of antisocial behavior and structural violence, focusing on youth in conflict with the law. Through an interdisciplinary dialogue with Winnicott, Ricoeur, and Freire, it argues that intersubjective recognition is an ontological pillar for identity formation, a normative parameter for justice, and a model for emancipatory education. Finally, the study advocates for the humanizing restructuring of socio-educational policies, articulating critical theory and social action in pursuit of a more just society.

Keywords: Deprivation. Recognition. Education. Emancipation. Socio-education.

DE LA PRIVACIÓN AL RECONOCIMIENTO

caminos hacia la emancipación en la teoría crítica y la praxis socioeducativa

Resumen

Esta investigación examina la Teoría del Reconocimiento de Axel Honneth, rastreando su genealogía filosófica para investigar cómo las privaciones afectivas, legales y sociales actúan como causas profundas del comportamiento antisocial y la violencia estructural, centrándose en la juventud en conflicto con la ley. Mediante un diálogo interdisciplinario con Winnicott, Ricoeur y Freire, se argumenta que el reconocimiento intersubjetivo es un pilar ontológico para la formación de la identidad, un parámetro normativo para la justicia y un modelo para la educación emancipadora. Finalmente, el estudio aboga por la reestructuración humanizadora de las políticas socioeducativas, articulando la teoría crítica y la acción social en pos de una sociedad más justa.

Palabras clave: Privación. Reconocimiento. Educación. Emancipación. Socioeducación.

1 INTRODUÇÃO

O reconhecimento intersubjetivo constitui-se como categoria analítica fundamental no âmbito das ciências humanas e sociais, apresentando raízes que remontam à filosofia clássica e ganhando densidade teórica particular no idealismo alemão, especialmente nas obras de Fichte e do jovem Hegel. Contudo, foi na contemporaneidade, através dos desenvolvimentos teóricos de Axel Honneth (2003, 2009), que este conceito alcançou sua plena maturidade como paradigma interpretativo dos conflitos sociais e das lutas por justiça.

O presente artigo tem como objetivo analisar as implicações teóricas e práticas da Teoria do Reconhecimento no campo da socioeducação, partindo do pressuposto de que as distintas formas de privação - afetiva, jurídica e social - configuram-se como matrizes geradoras de comportamentos antissociais e da violência estrutural que atinge particularmente jovens em situação de vulnerabilidade. Para tanto, estabelecemos um diálogo teórico-metodológico entre três eixos fundamentais, a saber:

a) a fundamentação filosófica do reconhecimento em Honneth (2009), articulada às suas três esferas (amor, direito e solidariedade);

b) a análise psicossocial da privação desenvolvida por Winnicott (2005) e suas consequências no desenvolvimento humano e,

c) a reflexão hermenêutica sobre justiça e perdão em Ricoeur (2006), complementada pela pedagogia crítica de Freire (2001).

A relevância deste estudo justifica-se pela atualidade do debate sobre políticas socioeducativas no contexto brasileiro, marcado por altos índices de violência juvenil e pela persistência de abordagens predominantemente punitivistas. Nossa hipótese central sustenta que a implementação de práticas socioeducativas fundamentadas no paradigma do reconhecimento, com vistas para a emancipação, pode proporcionar alternativas mais eficazes e humanizadoras aos modelos tradicionais de intervenção.

Metodologicamente, adotamos uma abordagem qualitativa de caráter teórico-conceitual, baseada em revisão bibliográfica sistemática das obras de referência e análise crítica de suas implicações para o campo da educação social. O artigo estrutura-se em três partes principais: primeiramente, examinamos os fundamentos filosóficos da teoria do reconhecimento; em seguida, analisamos suas conexões com os estudos sobre privação e desenvolvimento psíquico; finalmente, discutimos suas aplicações no âmbito das políticas públicas socioeducativas.

 

2 CONCEPÇÕES TEÓRICAS SOBRE O RECONHECIMENTO

Dentre as teorias que fundamentam e engajam as investigações na contemporaneidade, podemos destacar a compreensão do reconhecimento como uma condição essencial para a formação da consciência de si mesmo, concepção que remete a Fitchte. A compreensão de reconhecimento em Honneth e Taylor que ultrapassa a condição anterior e analisa o reconhecimento como uma possibilidade para que os sujeitos tenham consciência de sua liberdade, de sua autonomia e de sua racionalidade, ou mesmo o conceito de reconhecimento a partir de Habermas, como ação comunicativa como um modelo racional de interação e como forma de construir consenso no alcance do entendimento.

Contudo, devemos destacar que todas as concepções mencionadas devem ser devidamente analisadas, tendo-se, como premissa, o modelo de sociedade vigente, para que, desse modo, tenhamos a compreensão da forte interferência do capitalismo e do neoliberalismo, como sua variante, nas relações humanas, dando-se, assim, origem a conflitos sociais importantes e que são alvo de nossa preocupação por não ter compromisso com a democracia, com o estado democrático de direito, ou seja, com a justiça, com a igualdade e a com liberdade individual dos cidadãos[2].

Sabendo disso, compreendemos que os impactos do capitalismo neoliberal globalizado, consolidado no Brasil desde a década de 1990, são devastadores e que, desde aquela época, alteram as relações econômicas, afetando, sobretudo, as áreas da educação e do trabalho ao minimizar as responsabilidades do Estado por meio das concessões públicas, das privatizações e dos fortes investimentos no setor privado, em detrimento do desenvolvimento de ações governamentais em larga escala para o atendimento da população, por meio dos órgãos públicos.

Entendemos que o capitalismo possui raízes sociais mais aprofundadas, estando intrinsicamente ligado à colonização e, portanto, submetendo e subvertendo violentamente e, durante toda a história até os dias atuais, aqueles indivíduos e grupos que mais necessitam, isto é, reduzindo a maioria da população a papéis sociais secundários, a marginalização e a invisibilização.

Nesse sentido, entende-se que o direito à educação, à escola pública, à qualidade do ensino gratuito ofertado para a população e com todas as consequências que isso acarreta, não será instaurado pelos poderes atualmente dominantes. Ao contrário, a globalização neoliberal impõe princípios totalmente contraditórios à garantia de acesso a esse direito.

Com isso, compreende-se que o direito à educação de qualidade, tal como está assegurado na lei maior, apenas poderá ser efetivado por meio de lutas, sendo que essas lutas só serão capazes de gerar resultados significativos se fizerem parte de um movimento maior de lutas por uma sociedade e por um mundo solidário, igualitário, justo e, de fato, livre dos processos de dominação e de exclusão social, historicamente, constituídos.

Acerca disso, Frigotto (2010) pontua que as mutações sociais advindas do rastro do capitalismo neoliberal demonstram a urgência das lutas coletivas por meio dos resistentes e atuantes movimentos sociais que arduamente pleiteiam por democracia. Para o autor, a importância dos movimentos sociais está na responsabilidade pelo nascimento do pensamento crítico que advém da conscientização do status quo e como ele pode ser desafiado, assim sendo, alterado pelo engajamento político dos indivíduos, contribuindo-se, sobretudo, para o fortalecimento de uma sociedade plural e, portanto, mais justa.

Em sua tese, Honneth (2009) defende que as mudanças sociais podem ser explicadas por meio da dinâmica do desrespeito aos referidos padrões socialmente estabelecidos, influenciando diretamente no surgimento dos conflitos sociais. Para o autor, quando o sujeito social se sente desrespeitado e obtém consciência do não-reconhecimento ou do não prestígio na sociedade, inicia-se, então, uma luta intersubjetiva por reconhecimento para o alcance de uma vida digna que permita aos cidadãos viverem com autonomia, respeito, segurança e com a garantia do acesso às necessidades básicas.

Reforçando a sua tese, inspirado em Hegel e no pragmatismo de Georg Mead, Honneth (2009) defende que a identidade do indivíduo constitui-se de maneira intersubjetiva, ou seja, por meio do reconhecimento do outro e de si mesmo e, para isso, argumenta que o reconhecimento é uma condição fundamental para o estabelecimento de uma vida social, na qual se almeja a autorrealização humana e a justiça social.

Nessa perspectiva, Honneth (2009) reinterpreta os conflitos sociais não apenas como disputas materiais, como em Marx, mas como lutas morais por reconhecimento, em que a injustiça social é experimentada por meio do desrespeito, gerando sentimentos de humilhação, de vergonha e/ou de indignação nos sujeitos, mas que motivam a resistência, ou seja, a luta por reconhecimento.

Assim posto e valendo-nos das concepções de Winnicott (2012) sobre a primeira infância, assim como dos pressupostos de Honneth (2009), os quais sustentam que o amor, o direito e a solidariedade são dimensões do reconhecimento intersubjetivo, sendo imprescindíveis para o desenvolvimento moral do indivíduo, conduziremos suas contribuições para o campo da socioeducação por compreender que os referidos achados proporcionam-nos uma reflexão sensível e bastante pertinente acerca das peculiaridades que permeiam esse universo e que sem incertezas são afetados pelo conflito de interesses do estado das coisas.

 

3 RAÍZES DA VIOLÊNCIA: PERSPECTIVAS A PARTIR DE WINNICOTT

É fato que uma vida de privações pode levar os jovens e adultos a delinquirem. Referimo-nos à privação de uma situação econômica, sociocultural e psíquica dignas, mas, sobretudo, consideramos a privação de afeto, a privação de proteção e a privação de cuidados básicos, ou seja, essenciais dentro de seus próprios lares, vivendo-se, assim, sob um paradigma de extrema vulnerabilidade social em todos os aspectos.

De acordo com os estudos de Winnicott (2005), a tendência antissocial é compreendida como uma resposta à experiência da privação, quando a criança, em busca de um ambiente que lhe ofereça cuidados adequados, pode desenvolver comportamentos antissociais. Com isso, entendemos que a tendência antissocial dos adolescentes e jovens é vista como uma tentativa de obter satisfação e reconhecimento, mesmo que de forma inadequada.

Em face do exposto e para a devida compreensão acerca do reconhecimento em Honneth (2009), como categoria de análise que pretendemos abordar neste estudo, faz-se necessário, incialmente, o entendimento acerca dos termos: privação e deprivação, de acordo com os pressupostos metodológicos de Winnicott (2005).

Subsidiados a partir do autor supramencionado, compreendemos, por privação, a ausência de cuidados maternos, no Período de Dependência Absoluta do indivíduo, ou seja, quando a criança busca naturalmente estabelecer as relações com as figuras parentais nos cinco primeiros meses de vida, porém, não obtém êxito, ocasionando, por consequência disso, o desencadeamento de patologias graves no campo da saúde mental [3].

Neste sentido, Winnicott (2005) aponta que uma das características de quem sofreu privação é a ausência de esperança e a impossibilidade de organizar um plano futuro, algumas consequências passam despercebidas, particularmente, as psicológicas, contudo, podendo gerar reações destrutivas e desestruturantes no decorrer das mais diferentes fases da vida desses sujeitos.

 Honneth (2009) corporifica o pensamento de Winnicott ao afirmar que o reconhecimento configura-se como a base para uma relação social saudável, sinalizando que as experiências de desrespeito como as negligências sofridas durante a vida, os episódios de humilhação e as demais formas de violência humana podem causar danos severos à autoestima e à autoconfiança dos indivíduos, portanto, a maneira como somos vistos e/ou tratados pelos outros configura-se como essencial para o desenvolvimento de uma vida psíquica e social equilibrada.

Com isso, Honneth (2009) afirma que o desrespeito pode causar danos profundos à subjetividade dos indivíduos, pois, quando uma pessoa é sistematicamente ignorada, desvalorizada ou tratada com indiferença, a sua capacidade de reconhecer-se como um ser digno e válido é profundamente comprometida. Para o autor, isso se deve porque o autorreconhecimento depende, em grande parte, do reconhecimento intersubjetivo, ou seja, da validação que recebemos dos outros nas diferentes esferas: afetiva, jurídica e social.

A deprivação, é um tipo de privação que ocorre no Período de Dependência Relativa[4] e refere-se à perda de algo importante que já fez parte do âmago da vida da criança e em sua forma mais íntima, como o cuidado materno que lhe foi extraído de maneira súbita, após ter sido estabelecido em um ambiente considerado por Winnicott (2005) como suficientemente bom, podendo originar, nos indivíduos, ainda crianças, ou posteriormente, quando jovens, comportamentos antissociais.

Cabe ressaltar que a tendência antissocial é uma falha de caráter que corresponde a um aspecto normal do desenvolvimento e que está associado à deprivação, não se configurando como um distúrbio, mas, conforme Winnicott, (2005), como uma forma de rebeldia/desobediência que tem, como consequência, o protesto como tentativa do jovem de estabelecer uma reinvindicação.

Sob tal aspecto, entende-se que, tanto a tendência antissocial quanto a delinquência, possuem as mesmas raízes da violência, embora que esta última seja caracterizada pela criminalidade[5]. Na delinquência, o sujeito já possui certa identificação com a conduta antissocial e, dessa forma, passa a se acostumar com os ganhos, ilícitos advindos de ações que são reprovadas perante a sociedade, o que torna ainda mais difícil a promoção de uma mudança efetiva no estilo de vida dos indivíduos infratores, por meio do trabalho de ressocialização.

No entanto, o autor alerta que, mesmo a criança tendo recebido o afeto e o carinho necessários, no período que corresponde a primeira infância, poderá vir a sentir-se tão isolada e privada quanto a criança que não os recebeu. Diante disso, verifica-se que a privação não está somente relacionada à ausência da mãe, mas com o não estabelecimento do contato adequado para que essa relação seja integralmente constituída e solidificada.

A partir da abordagem winnicottiana, quanto ao desenvolvimento saudável da personalidade, consideramos que, com o estabelecimento do vínculo apropriado nas relações mãe-bebê e a função da mãe suficientemente boa, o desenvolvimento da criança ocorrerá de forma saudável. Porém, caso sucedam-se falhas ambientais ao pleno estabelecimento dessa relação de intimidade entre ambos, durante esse processo, há a possibilidade de graves consequências[6].

 

2.1 O CONTEXTO DA REJEIÇÃO: FILHOS SÃO INVISIBILIZADOS PORQUE TÊM PAIS QUE TAMBÉM O SÃO

Em suas observações, Winnicott (2005) assinala como um fator de bastante relevância para a causa da tendência antissocial, o período de separação entre mãe e filho, independentemente dos motivos, entretanto, considerando-se o decurso de seis meses do afastamento entre os dois na fase que corresponde à infância.

Tais estudos emergem as raízes da violência de forma muito benevolente ao afirmar que, à medida que uma criança sofre de privação, há também uma mãe que padece de alguma patologia capaz de influenciar diretamente e duramente no desenvolvimento dos seus próprios filhos.

São casos que, segundo o autor, necessitam de aprofundamento e que devem ser observados com bastante compreensão, dando-se a assistência ambiental adequada às suas especificidades, pois se entende que esses jovens estão imersos em um contexto que ora são abandonados e ora abandonam.

Todavia, ainda de acordo com os referidos pressupostos de Winnicott (2005), o jovem que comete atos infracionais, não tem plena consciência de seus atos, as motivações para tais práticas censuráveis estão visceralmente ligadas às sensações de perda, de privação e de roubo.

Diante disso, temos ainda que os atos antissociais podem ser compreendidos como sinais inconscientes de esperança para que o indivíduo venha a redescobrir a experiência que lhe era boa, anteriormente à perda sofrida (abandono dos pais). Nesse sentido, entende-se que a agressividade é quase sempre essa dramatização da realidade interior quando é ruim demais para ser tolerada como tal.

Compreende-se então que, de forma subjetiva, o infrator busca reencontrar bons pais por meio de episódios recorrentes de roubo e/ou agressão e o ódio/frustração ambiental despertará reações diferentes (controláveis ou não) conforme o montante de tensão que exista na fantasia inconsciente do indivíduo.

Nessa direção e, sabendo que a violência urbana é um fenômeno social que, nos últimos anos, vem apresentando um crescimento considerável, estando os jovens entre as principais vítimas e os principais infratores, faz-se necessária a compreensão de que a criminalidade juvenil é constituída de diferentes fatores, carecendo, portanto, de análises acentuadas que considerem, principalmente, os processos de formação desses sujeitos vulneráveis.

Para Winnicott (2005), a agressividade é saudável, quando está sob o controle do indivíduo, e comum à condição humana, assim como o desenvolvimento emocional normal, possui em si, naturalmente, a tendência antissocial.

Para o autor, a agressão apresenta dois significados, visto que constitui uma reação direta ou indireta à frustração e, por outro lado, é uma fonte de energia do indivíduo, uma reação natural que não necessariamente tem a intenção de lesionar alguém. Do ponto de vista social, a agressão coexiste com o amor e cumpre o papel de trazer a atenção, o cuidado e o afeto para si.

Nessa direção e corroborando com o pensamento de Winnicott (2005), notamos a proximidade dos pressupostos de Honneth (2009) acerca do reconhecimento como necessidade para a obtenção do respeito nas relações intersubjetivas, principalmente, no que tange às situações de conflitos que permeiam o cotidiano das juventudes em cumprimento de medidas socioeducativas, por vezes, envolvidas numa esfera de constante negação dos direitos fundamentais.

De acordo com a teoria honethiana, o reconhecimento dos indivíduos é capaz de romper com os ciclos de exclusão e criar condições para a construção de trajetórias de vida mais justas. Diante disso, e por se tratar de uma questão de bastante complexidade da contemporaneidade, além de delicada e extremamente grave, os atos infracionais[7] cometidos por indivíduos jovens levantam preocupações importantes no que se referem às causas subjacentes, às implicações legais e às devidas estratégias do poder público para a prevenção da violência.

 

3 PERCURSOS DO RECONHECIMENTO

Outra contribuição bastante significativa para pauta emergente do reconhecimento dos jovens em conflito com a lei encontra-se nos pressupostos de Ricouer (2006, 2007) que traz, em sua base, teóricos clássicos como Aristóteles e Kant, como também se ancora na contemporaneidade de Honneth (2009). Em seus estudos, o autor faz referência a inter-relação entre os conceitos de vingança, justiça e reconhecimento recíproco, concorrendo, assim, para as nossas reflexões.

De acordo com os estudos de Ricoeur (2007), a memória é viva, é subjetiva e atualiza o passado no presente, enquanto a história é crítica, é seletiva e, por ser objetiva, apresenta um passado no qual o reconhecimento desse passado como presente não é imediato. Nesse contexto, observamos que a história, a memória e o esquecimento são percebidos como formas de produção de sentido e experiência temporal que se altera por meio das narrativas e as especificidades desses três elementos, que são percebidas como parte de um processo de significação da vida.

Na perspectiva apresentada por Ricouer, a memória define-se pelo menos numa primeira instância como a luta contra o esquecimento e este último representando a vulnerabilidade da memória. Diante disso, compreendemos que, a partir das narrativas construímos o nosso processo de identidade humana, da mesma forma como podemos pensar a história a partir daquilo que somos capazes de narrar.

Para Platão, o conhecimento é um processo de rememoração, alertando-nos ainda acerca da impossibilidade de tudo narrar e/ou resgatar toda a memória. Já para Aristóteles, a memória é o que acontece no passado e o ser humano apesar de compartilhar com outros animais esse aspecto, apenas ele tem a sensação do tempo, de reconhecer o passado, de entender o presente e de ter esperança no futuro. Nessa direção, Ricouer ainda analisa a memória sob a perspectiva de Bergson enquanto capacidade de reconhecimento do ser.

 

3.1 CONCEITO DE JUSTIÇA COMO VIOLÊNCIA

Acerca do conceito de justiça, Ricouer (2006) salienta que esta possui um enraizamento primitivo na violência, mais precisamente, na vingança como violência. Esclarecendo que quando a justiça é aplicada de modo individual ou em benefício próprio, o seu objetivo está em suplantar a vingança, o que acaba suscitando o sentimento de injustiça nos sujeitos.

De acordo com esse pensamento e levando-se em consideração a regra geral da justiça que assevera que ninguém está autorizado a fazê-la com suas próprias mãos, o autor afirma que, ao invés de represálias imediatistas que tem, como princípio, retribuir um mal com outro mal, faz-se necessário saber resguardar uma distância entre os fatos ocorridos e o exercício da justiça. “É, em benefício de tal distância que se faz necessária uma terceira parte, entre o ofensor e sua vítima, entre crime e castigo” (Ricoeur, 2008b, p. 252).

Em conformidade com o autor, a importância de uma distância entre a justiça legada e a represália apressada, uma distância entre a imposição de um primeiro sofrimento pelo ofensor e a imposição de um sofrimento adicional pela aplicação de uma punição, como consequência do monopólio do uso da violência legítima e sem a devida reflexão acerca da sua aplicabilidade.

Nessa direção, consideramos que, a cada vez que o juiz impõe uma sentença como castigo e o Estado priva o sujeito do seu direito de ir e vir, temos uma resposta à violência inicial praticada pelo agressor, por meio de uma violência legalizada. Em outros termos, com o agir da lei que, em determinadas situações, não pondera as ações dos indivíduos, a violência não poderá ser efetivamente erradicada, porém, a punição permanecerá. Conforme o autor dar-se-á sob o domínio do espírito da vingança que o espírito de justiça tinha, como projeto primeiro, suplantar.

Diante disso, Ricouer (2006) assinala que a separação que posiciona, de um lado, a vítima e, de outro, o culpado, não contribui para a questão do reconhecimento e concorre para a manutenção da privação e para as diversas formas de humilhação, incluindo-se a violência física no contexto da socioeducação. Neste sentindo, o autor sublinha que, enquanto sociedade, somos confrontados a todo tempo, com a falta de alternativas viáveis a perda de liberdade.

Contudo, cabe a reflexão acerca da existência de possibilidades para o alcance do reconhecimento positivo por meio do diálogo, com vistas ao reestabelecimento do respeito, e não apenas da justiça que se volta para mera interrupção da ofensa, da violência ou da restituição de algum bem material e/ou moral. De acordo com Ricouer (2006), as relações sociais estão se tornando cada vez mais complexificadas, o que dificulta, sobremaneira, o exercício do perdão como um caminho para a quebra do círculo da violência e da injustiça.

 

3.2 PERDÃO E RECONHECIMENTO

Para Ricouer (2006), o reconhecimento e o perdão encontram fundamento na justiça. Isto posto, inferimos a partir das ponderações do autor que, sem a justiça, ocorre a impossibilidade do reconhecimento. Ricouer pontua o perdão recíproco como uma alternativa de reconhecimento, que, simultaneamente, ultrapassa a justiça sem que, para isso, o seu mérito seja diminuído, tendo em vista que, de acordo com o seu entendimento, a justiça é fundamental para que haja perdão.

Entendendo a justiça e o perdão como um elo indissociável, há ainda que compreender que o perdão não exclui do indivíduo a sua responsabilidade pelo ato infracional praticado, mas a possibilidade de restabelecer as condições para o efetivo reconhecimento entre vítima e agressor por meio do perdão como dom, ou seja, quando vítima e agressor percebem o perdão de forma mútua.

Em consonância com as concepções do autor, o que se espera do amor é que este converta o inimigo em amigo, passando-se, assim, do plano da subjetividade para o plano da política e contribuindo-se para o avanço da história rumo a estados de paz. Embora haja o vislumbre do progresso da humanidade, Ricouer (2006) entende que os conflitos sociais sempre existirão e tendem a multiplicar-se à medida que a sociedade torna-se cada vez mais complexa.

De acordo com a sua percepção, tais experiências de reconhecimento que emergem do perdão são raras, tanto que este pode não ser concedido por ambas às partes, portanto, devem ser entendidas como momentos pontuais e circunstanciais do decorrer da história.

De forma poética expressa pelo autor, isso significa dizer que o perdão tem a ver com a memória, e não tem por objetivo apagá-la, mas a curar. Para Ricouer (2006), o perdão é um sentimento extremamente difícil, mas que dá futuro à memória. Trata-se, portanto, de uma possibilidade de uma experiência viva de reconhecimento.

Para Ricoeur, há algum tipo de felicidade em reconhecer e ser reconhecido e que se distingue integralmente da justiça, que tem, como preocupação primeira, a reparação de um dano causado ao outro e/ou o impedido da vingança, sem tornar-se capaz de reestabelecer uma relação intersubjetiva, e, impedindo-se, assim, que o círculo da violência se propague e se perpetue.

Diante disso, Ricoeur (2006) enfatiza que não se trata de introduzir o amor na esfera da justiça, mas que, por meio dessa dialética, torna-se possível lançar frutos nas relações humanas. Em nosso estudo, não podemos deixar de refletir acerca do contexto de violência que aniquila vidas jovens cotidianamente e, do mesmo modo, extermina famílias inteiras como forma de vingança. Neste sentido, inferimos a partir de Ricouer (2006) que a justiça aplicada de forma voraz é, de fato, uma vingança.

 

4 O RECONHECIMENTO EM HONNETH: CONTRIBUIÇÕES PARA A SOCIOEDUCAÇÃO

A teoria do reconhecimento desenvolvida Honneth (2009), fundamentada na tradição da Teoria Crítica que buscou, desde a década 20, analisar a sociedade moderna, as suas estruturas de poder, a cultura de massa e a alienação da classe trabalhadora, configura-se até os dias atuais como uma valiosa ferramenta de análise crítica das relações interpessoais e das dinâmicas que geram a exclusão social, afetando a identidade e o desenvolvimento dos indivíduos.

Honneth argumenta que o reconhecimento configura-se como uma condição essencial que precede todas as relações humanas e que a reificação como cerne da teoria crítica, auxilia de forma importante na explicação dos fenômenos sociais, nos quais estão presentes as diversas formas de desrespeito entre os indivíduos, apontando que os problemas sociais derivam da erosão do reconhecimento mútuo, reforçando a necessidade de uma ética intersubjetiva.

O autor reinterpreta a reificação, à luz de sua teoria do reconhecimento, propondo que a reificação não é apenas uma distorção das relações sociais sob o capitalismo, mas um processo de esquecimento de uma relação primordial de reconhecimento. Ao referir a reificação como esquecimento do reconhecimento, o autor aponta que a reificação é um modo de percepção e relação em que os indivíduos tratam os outros e a si mesmos como objetos, esquecendo-se que, antes desse processo social nocivo, havia uma relação de reconhecimento mútuo.

O conceito de reificação foi constituído, inicialmente, por Lukács (1923), na esteira dos estudos de Marx, que realiza, entre outras contribuições, uma releitura do fetichismo da mercadoria, em que as relações sociais são obscurecidas pela aparência de que mercadorias têm valor intrínseco, independente do trabalho humano. Ademais, enfatizando a crítica ao idealismo filosófico em defesa do materialismo histórico-dialético e da importância da consciência de classe para uma compreensão e transformação social por meio da consciência de classe revolucionária que desvelasse o caráter socialmente construído da realidade.

Em sua teoria, Lukács também dialoga com Max Weber e Georg Simmel e suas análises influenciam de forma decisiva a recepção marxista da teoria weberiana da racionalização como expressão ampliada da reificação, na qual o capitalismo transforma até mesmo a subjetividade em algo que pode ser mecanizado, interferindo, assim, violentamente na natureza do ser. Já, a partir dos contributos de Simmel, Lukács (1923) analisa como o dinheiro objetiva as relações humanas, tornando-as cada vez mais abstratas, triviais e impessoais.

Para Lukács, o conceito de reificação pode ser compreendido como a relação coisas-pessoas, ou seja, trata-se, portanto, da coisificação do ser humano, polido de sua capacidade de refletir e atuar no mundo, sendo submetido a um papel secundário na sociedade, perdendo, assim, a sua subjetividade.

Neste sentido, a reificação é tida como a submissão a qual o capitalismo impõe sobre os indivíduos que passam a relacionarem-se de maneira fria uns com os outros, comparando-os a mercadorias e concorrendo para a naturalização das relações objetificadas. A atitude reificada exige, portanto, a troca egocêntrica de benefícios e favores entre os sujeitos.

O desenvolvimento posterior do conceito de reificação é continuado por Dewey e Heidgger, autores da segunda versão de reificação formulada por Lukács, posteriormente, atualizada por Horkheimer, Adorno e Habermas, que identificaram fenômenos cada vez mais variados de reificação, aos quais as sociedades modernas encontravam-se submetidas.

Contudo, e apesar das contribuições filosóficas dos autores supracitados que auxiliam em novas percepções do reconhecimento, os estudos de Lukács (1923), de acordo com Honneth (2018), embora apresentem ensaios nos quais o referido autor compreende o sujeito na sua individualidade, capaz de produzir ação, é assujeitado ao estado das coisas e, assim sendo, não contempla a superação da manutenção do status quo.

Segundo Honneth (2018), ao mencionar, em seu texto, uma atitude ativa do indivíduo e pelo envolvimento existencial, o problema é tratado mais como uma forma de interação do que propriamente como uma atitude produtora, transformadora de mundo. Sob o ponto de vista de Honneth (2018), falta em Lukács, o princípio idealista que motiva a ação.

Ao observar tais lacunas que consideram essenciais nos referidos estudos, Honneth compreende que o conceito de reificação em Lukács não fornece subsídios para a compreensão dos processos normativos e sociais da atualidade, visto que, em sua tese, Lukács observa a atitude do indivíduo perante a reificação, apenas na posição contemplativa e de neutralidade.

Em Honneth (2018), os processos normativos referem-se a como as normas sociais e as instituições moldam as relações intersubjetivas e o desenvolvimento da identidade individual do ser, especialmente, no contexto da luta pelo reconhecimento. Com isso, a reconstrução normativa, como uma metodologia proposta por Honneth, pretende analisar como as intenções normativas de uma teoria da justiça são implementadas na teoria da sociedade, considerando a importância de valores e instituições na formação da identidade.

Com isso, o conceito de reificação para Honneth (2018) revela o seu potencial crítico pela capacidade de conter modos de dominação bastante peculiares, que não estão somente associados a fenômenos extremos de violência e de coerção, como nos casos de guerra e de genocídio, mas estando também vinculados a comportamentos cotidianos: no seio familiar, nas relações de amizades, no ambiente de trabalho, inclusive, aqueles mediados pelas redes sociais.

Acerca da atualidade dos estudos de Honneth (2018), Dayrell (2022) nos alerta que a participação política das juventudes periféricas não se limita aos partidos ou eleições; mas dá nos coletivos, nas ocupações de escolas e nas redes sociais, onde reinventam formas de fazer política, enquanto atitude que depende da criticidade que advém da reflexão, ou seja, por meio da conscientização política.

Como exemplo disso, Honneth (2018) aponta para as relações cotidianas, as quais os indivíduos, os grupos e as minorias, sofrem o racismo e a discriminação de todas as formas. Neste sentido, entendemos que o trabalho da teoria crítica para além da ontologia, mas também a partir dela, está em compreender as formas de dominação inscritas nas práticas sociais.

Em ambas as teses, a reificação na perspectiva de Lukács (1923) e a atualização do conceito em Honneth (2018), compreendemos que o papel crucial da teoria crítica está em desnaturalizar às formas reificadas de pensar, mostrando que a realidade social é construída pelo homem e, portanto, passível de ser também transformada por ele. As suas contribuições reafirmam, portanto, que não é apenas a revolução econômica, mas a transformação das condições culturais e institucionais que permitem o reestabelecimento da empatia e do respeito entre as pessoas.

Em face do exposto e de acordo com a perspectiva de Honneth (2009), o reconhecimento não é somente uma demanda moral, ou seja, relativa a um conjunto de regras e normas instituídas historicamente e que tem por objetivo orientar a vida em sociedade, ou a ética, como pensamento filosófico sobre a moral, e que se constitui da reflexão que antecede a ação, mas uma condição essencial para a construção da autoestima, da autoconfiança e do autorrespeito dos indivíduos.

De acordo com Honneth, a ausência de reconhecimento é capaz de gerar graves consequências nas esferas psíquicas e sociais dos indivíduos, contribuindo- para a marginalização, para a opressão e para a alienação desses sujeitos.

Para Honneth (2009), entender as lutas sociais como luta por reconhecimento configura-se como um parâmetro para compreender processos sociais conflitivos. Para o autor, interessam-lhe aqueles conflitos que se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal ou coletiva, capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou justamente desenvolvê-los num nível evolutivo superior. 

Expresso em outros termos, compreendemos a partir de Honneth (2009) que a luta em busca por reconhecimento traduz-se como a mola motriz necessária para a evolução social, do mesmo modo em que a ausência de reconhecimento dos sujeitos é o que, de fato, desencadeia os conflitos na sociedade. Neste sentido, o autor estabelece que a identidade dos indivíduos seja determinada por um processo intersubjetivo mediado pelo reconhecimento.

Para tanto, Honneth (2009) retomando e reformulando os aspectos da tradição hegeliana, bem como da teoria crítica, debruça-se sobre três esferas do reconhecimento recíproco, a saber: o amor, o direito e a solidariedade que correspondem a três esferas de socialização: a família, o Estado e a sociedade civil.

Nesta direção, e em nível primário, estaria o amor, que segundo o autor, desempenha um papel fundamental na esfera afetiva, isto é, quando o sujeito é aceito nas relações de maior proximidade, como nos núcleos familiares, nas relações com seus pares românticos e de amizade, que são estabelecidas mutuamente, contribuem para o desenvolvimento de sua autoconfiança, constituindo-se, assim, o alicerce necessário para o desenvolvimento da autonomia e da autorrealização.

Honneth (2009) argumenta que, por meio do amor, o sujeito adquire a capacidade de expressar as suas necessidades e sentimentos, sem medo da rejeição. Essa autoconfiança é o primeiro estágio da autorrealização, pois fornece a segurança emocional imprescindível para engajar-se em relações mais complexas de reconhecimento. Na perspectiva de Honneth (2009), percebemos que o amor não implica a fusão ou a submissão dos sujeitos uns para com aos outros, mas o que ele denomina de independência equilibrada, na qual os lados reconhecem as necessidades do outro, ao mesmo tempo em que mantém a sua individualidade.

Ainda na esfera do amor, Honneth também vincula a carência de reconhecimento amoroso às patologias sociais. Neste sentido, a privação de afeto ou as experiências do desamor, como nos casos de abandono, de rejeição e/ou de violência doméstica que permeiam a vida dos jovens, pode levar a falhas importantes na autoconfiança do indivíduo, resultando em casos de depressão, sentimentos de repulsa, na aversão de si mesmo ou de incapacidade de estabelecer relações sociais saudáveis.

Desse modo, compreendemos que o amor não é apenas uma esfera privada do reconhecimento, mas uma condição para que exista a justiça social, portanto, para Honneth (2009), a ausência do amor mina as bases da participação democrática e nos alerta para os riscos da comercialização do afeto, que pode corroer a autenticidade do reconhecimento amoroso.

Na teoria de Honneth (2009), o amor é a raiz emocional do reconhecimento, sem a qual as outras formas de reconhecimento como, o direito e a solidariedade, não podem florescer. Em outras palavras, o amor não é apenas um sentimento privado, mas uma estrutura moral que sustenta a possibilidade de uma vida digna. Suas análises oferecem, portanto, uma ponte entre a psicanálise, a filosofia política e a crítica social, mostrando como a justiça principia no afeto.

A segunda forma do reconhecimento recíproco, apontada por Honneth (2009) é o direito, na esfera jurídica, o qual está situado entre o amor e a solidariedade e que é efetivado por meio do reconhecimento legal na prática institucional garantindo aos indivíduos o status de pessoas autônomas e portadoras de direitos, gerando dessa forma o sentimento de autorrespeito e de solidariedade.

Mediante o contexto apresentado, compreende-se que, quando o sistema jurídico trata os indivíduos de forma igual, eles internalizam que são merecedores de direitos. Já, a negação dos direitos ou as lacunas nas leis, que gera sentimentos de humilhação e injustiça, podem motivar os sujeitos a lutarem por reconhecimento por meio dos movimentos sociais para a ampliação ou elaboração de novas leis.

E a solidariedade, como terceira forma de reconhecimento recíproco, elencado por Honneth (2009), na esfera social e cultural, seria obtido por meio das relações de convivência em comunidade que envolvem a estima social e a valorização da individualidade dos sujeitos, fomentando o sentimento de autoestima nos indivíduos e o que implica diretamente a gratuidade da ação.

Honneth (2009), a solidariedade não se reduz a um sentimento moral e abstrato, mas como uma forma de reconhecimento recíproco, que permite aos indivíduos enxergarem-se como igualmente dignos em suas diferenças, contribuindo, assim, para uma ordem social cooperativa. Na esfera da solidariedade, os sujeitos são reconhecidos por suas habilidades, traços culturais ou contribuições laborais, desde que alinhados a um horizonte compartilhado de valores. Diferente da igualdade formal do direito, na solidariedade, a diferença é valorizada. Em outros termos, em uma sociedade plural, a solidariedade exigiria que grupos marginalizados fossem estimados em suas particularidades e não apenas tolerados.

Para que isso ocorra, Honneth (2009) enfatiza que a solidariedade depende de uma relação simétrica: não se trata de caridade ou compaixão vertical, mas de um respeito ativo pelas capacidades alheias. Isso, segundo o autor, exige instituições sociais que promovam a valorização mútua, como políticas públicas de reconhecimento cultural ou de valorização do trabalho.

Com isso, Honneth (2009) aponta as esferas específicas do direito e da solidariedade, estes em níveis secundários, precedidos do amor, seriam plenamente capazes de desafiar a condição posta pelo sistema social econômico vigente que coisifica as relações humanas, que visa puramente o lucro e a acumulação de riquezas, gerando desse modo, as modificações sociais necessárias e urgentes para o alcance de uma transformação social de grandes proporções.

Já em relação às formas de desrespeito às esferas apresentadas; o desrespeito ao amor estaria, segundo Honneth, expresso na negligência afetiva e materializado na falta de cuidados das relações parentais com a criança pequena, nos episódios de violência física, mencionados anteriormente, que impossibilitam o indivíduo de dispor de seu próprio corpo; na tortura física e psicológica ou na violência não consentida, como, por exemplo, nos maus tratos corporais sofridos pelos jovens durante a infância. Com isso, entendemos que o desrespeito na esfera do amor pode debilitar a confiança básica no mundo e nas pessoas que o rodeia.

O desrespeito à esfera jurídica seria expresso na denegação destes, ou seja, na exclusão total dos direitos fundamentais dos indivíduos ou na precariedade de seu acesso, bem como com degradações e ofensas que afetam a honra e a dignidade do ser humano.

Por sua vez, o desrespeito à demanda por estima social que expressa-se nas mais diferentes práticas de humilhação capazes de produzir, no indivíduo, sentimentos de vergonha social, fazendo com que este já não desfrute de seu valor na sociedade e não se sinta pertencente a um determinado grupo, que a partir de um determinado momento, fato ou condição específica, passa a rejeitá-lo.

Compreendemos ainda, partir dos estudos de Honneth (2009), que as formas de desrespeito que incluem a humilhação e os processos de exclusão social podem corroer o autorrespeito, fazendo com que os sujeitos não se sintam dignos de dispor de seus direitos e que as violências praticadas, seja nas formas, física ou simbólica, podem destruir autoestima dos indivíduos, levando-os a sentimentos de inferioridade, de impotência e de desesperança em relação ao futuro.

Para Honneth (2009), as práticas de desrespeito e/ou não reconhecimento mencionadas estão ancoradas nas mais diversas experiências afetivas, as quais os sujeitos marginalizados são submetidos, sendo, portanto, capazes de suscitar uma articulação coletiva na luta por reconhecimento intersubjetivo, quando estes obtêm consciência dessa condição da opressão que lhes é imposta.

            A partir disso, observamos, então, o papel primordial da teoria crítica em dar substância concreta às diversas formas de mobilizações sociais de modo a evitar que ela seja articulada aos interesses dominantes em detrimento da busca pela emancipação social dos indivíduos. Com isso, observamos que quando aplicada à socioeducação, um campo que se dedica à formação humana integral, considerando os aspectos culturais e sociais da educação, a teoria do reconhecimento de Honneth ganha contornos transformadores, pois ela oferece um arcabouço teórico capaz de orientar práticas pedagógicas mais inclusivas e dialógicas.

No âmbito da socioeducação, o reconhecimento significa compreender o contexto de vida dos estudantes, seus saberes, suas trajetórias e culturas apreendidas, bem como ter sensibilidade para acolher suas narrativas e estimular sua participação efetiva no processo de construção do conhecimento. Tais contribuições reforçam cada vez mais a compreensão de que educar é, sobretudo, reconhecer a existência do outro.

Em face do exposto, e a partir dos contributos de Honneth (2009), cabe ainda destacar a importância da dimensão ética da práxis educativa em Freire (1996), que reside na elevação moral e intelectual dos sujeitos sociais que encontram condições de conquistar o domínio de si mesmos, de adotar decisões livres, conscientes e responsáveis, de articular situações particulares aos interesses coletivos, de valorizar suas convicções internas sem adesismos externos e formais à ordem social econômica e política.

Freire (1996) afirma que a educação dialógica e problematizadora articulada à luta ética são capazes de originar a denúncia às ações desrespeitosas, aos juízos preconceituosos e aos valores persecutórios que acionam os bloqueios que privam a liberdade para o alcance da construção de alternativas de libertação dos sujeitos. Com isso, compreendemos que o sentido de bem-estar social é garantido por intermédio do apelo popular que se manifesta por meio das mobilizações das grandes massas para uma mudança significativa em nível de transformação da condição imposta aos indivíduos por meio da opressão.

Valendo-nos dos pressupostos aqui expostos, compreendemos, em nosso estudo, que os julgamentos acerca das condutas que fogem às regras normatizadas devem, sobretudo, considerar a relação de proximidade existente entre a origem dos conflitos sociais e as experiências que geram desrespeito nos sujeitos, que, envoltos pelo modelo social vigente, vivenciam cotidianamente duras realidades. De acordo com Chaves (2013) o crime é produto da desorganização social em todos os níveis, porém, suas particularidades se expressam com infrações circunstanciais.

Diante disso, cabe a compreensão de que os sujeitos ao mesmo tempo em que cometem atos de infracionais, também são vítimas dos fatores sociais, culturais, históricos e econômicos, em que os direitos basilares como a saúde, a educação, a alimentação, a segurança, a habitação, o saneamento básico, o trabalho, a cultura, o lazer, a assistência social e outros são constantemente violados/negados àqueles que mais necessitam.

Com isso, compreendendo-se então que, em espaços em que o convívio social é marcado, sobretudo, por uma desigualdade abissal cada vez mais aprofundada pelos vícios, pela exploração, pela desestrutura familiar, pela negação de direitos elementares, questões consideradas emergentes e que são formas cruéis de violência contra o ser humano, acabam induzindo as juventudes periféricas a sobreviverem na criminalidade e de forma cada vez mais precoce.

 

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, exploramos o reconhecimento como um conceito fundamental para compreender as dinâmicas de exclusão social, de violência, e, sobretudo de resistência no contexto da socioeducação. A partir das contribuições de  Honneth, Winnicott e Ricoeur, evidenciamos que a privação afetiva, jurídica e social está na raiz de muitos conflitos que atingem jovens em situação de vulnerabilidade.

Nessa direção, a Teoria do Reconhecimento evidenciou que: o amor, o direito e a solidariedade são pilares essenciais para a formação de indivíduos autônomos e integrados socialmente; a falta de reconhecimento dos indivíduos gera sentimentos de humilhação, revolta e desesperança, que podem se manifestar em comportamentos antissociais durante as mais diferentes fases da vida; a justiça punitiva, quando desvinculada de processos primordiais de escuta ativa e reparação, tende a perpetuar ciclos de violência.

Além disso, os estudos de Winnicott reforçaram que os traumas causados na primeira infância deixam marcas profundas, muitas vezes irreversíveis, quando não há intervenções adequadas capazes de trabalhar os sentimentos mais profundos dos sujeitos. Já Ricoeur nos alertou que a justiça deve ser um ato de reconstrução permanente, não de vingança, e que o perdão — embora difícil — pode ser um caminho possível para romper com a espiral de agressividade.

No campo da educação e socioeducação, fica claro que políticas públicas meramente repressivas falham, pois ignoram as causas estruturais da marginalização. Como propõe  Freire, uma pedagogia emancipatória deve priorizar o diálogo, a autonomia, o protagonismo, a conscientização e a valorização das subjetividades dos sujeitos. Isso significa: escutar as histórias dos jovens em conflito com a lei, entendendo suas trajetórias; garantir acesso a direitos básicos como forma de reparação social, além de, promover espaços de participação onde esses jovens possam se reconhecer como sujeitos de transformação.

Por fim, este artigo reforça a necessidade de repensar as políticas públicas sob uma perspectiva restaurativa, para uma sociedade menos violenta. Nesse sentido, é preciso reconhecer a humanidade daqueles que foram historicamente excluídos. Isso exige mudanças estruturais, mas também empatia e compromisso ético de todos — Estado, educadores e sociedade, compreendendo-se que a luta por reconhecimento não é apenas uma demanda individual; é um imperativo coletivo para a construção de um mundo mais justo.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Doutora e Mestra em Educação

[2] Capitalismo neoliberal.

[3] Psicoses e o Autismo Infantil Precoce.

[4] Segunda etapa do desenvolvimento humano que vai dos seis meses aos três anos de idade.

[5] Em seus estudos Winnicott (1983) não utiliza a categoria – Delinquência; mas, a categoria – Antissocial.

[6] Referentes às tendências antissociais e à delinquência.

[7] É a conduta descrita como crime ou contravenção penal, quando praticada por criança ou por adolescente (Brasil, 1990, art. 103).

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