INTERAÇÃO SOCIAL ENTRE HABERMAS E MOUFFE

 críticas e contra-críticas à democracia deliberativa

André Guimarães Borges Brandão [1]

Universidade Federal Fluminense

andreborgesbrandao86@gmail.com

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Resumo

Pretende-se com o presente ensaio filosófico investigar o quanto um novo conceito de interação social pode emergir da discussão entre Chantal Mouffe e Jürgen Habermas acerca da suposta ênfase no consenso da concepção deliberativa de democracia do filósofo alemão. Depois de apresentar as críticas oferecidas pela concepção agonística de democracia de parte dos textos da autora, levanta-se, de maneira reconstrutiva, as contracríticas dispostas na segunda parte de Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. Por fim, após complementar as contracríticas, se tem em vista apontar para um conceito de interação social como práxis comunicativa sem sujeitos cognoscentes portadores de interesse como reconstrução da própria teoria habermasiana.

Palavras-Chave: Interação social. Consenso. Conflito.

SOCIAL INTERACTION BETWEEN HABERMAS AND MOUFFE

Critiques and Counter-critiques of Deliberative Democracy

Abstract

This philosophical essay aims to investigate how a new concept of social interaction can emerge from the discussion between Chantal Mouffe and Jürgen Habermas regarding the supposed emphasis on consensus in the German philosopher's deliberative conception of democracy. After presenting the critiques offered by the agonistic conception of democracy in some of the author's texts, the counter-critiques presented in the second part of *A New Structural Transformation of the Public Sphere and Deliberative Politics* are reconstructively raised. Finally, after complementing the counter-critiques, the aim is to point towards a concept of social interaction as communicative praxis without knowing subjects bearing interests, as a reconstruction of Habermas's own theory.

Keywords: Social interaction. Consensus. Conflict.

INTERACCIÓN SOCIAL ENTRE HABERMAS Y MOUFFE

Críticas y contracríticas a la democracia deliberativa

Resumen

Este ensayo filosófico busca investigar cómo un nuevo concepto de interacción social puede surgir del debate entre Chantal Mouffe y Jürgen Habermas respecto al supuesto énfasis en el consenso en la concepción deliberativa de la democracia del filósofo alemán. Tras presentar las críticas a la concepción agonística de la democracia en algunos textos de los autores, se replantean de forma reconstructiva las contracríticas presentadas en la segunda parte de *Una nueva transformación estructural de la esfera pública y la política deliberativa*. Finalmente, complementando las contracríticas, se propone un concepto de interacción social como praxis comunicativa sin sujetos conocidos con intereses particulares, a modo de reconstrucción de la propia teoría de Habermas.

Palabras clave: Interacción social. Consenso. Conflicto.

1 INTRODUÇÃO

Perceber hoje a interação social movida pela construção de elos de confiança via solidariedade não é óbvio, trivial ou tarefa fácil[2]. Com a quarta Revolução Industrial e a formação de redes virtuais a forjar mais conexões do que relações, o individualismo se exacerbou e a aposta na formação de uma opinião pública crítica na esfera política pública de uma sociedade democrática capaz de regular a si mesma, parece não fazer mais sentido[3]. É que aquilo que se apresenta são pessoas cada vez mais envolvidas com interesses próprios e a política com interesses particulares fechados em estruturas, sistemas, bolhas, crenças, algoritmos.

De dentro da bolha o que parece ser é, tal como na caverna descrita por Platão, e portanto, as sombras prevalecem como realidade. O filósofo morrerá ao final, pois, através do diálogo não poderá modificar os preconceitos dos outros escravizados que permaneceram no interior da caverna. A força de confirmação dos próprios desejos, sentimentos, interesses seus ou do grupo a que pertence, hoje intensificada pelas bolhas de algoritmos, aniquila qualquer possibilidade de validade social das condutas já enraizadas. O compromisso com a validade dos comportamentos está de imediato ligado a própria facticidade da tradição, do costume, do hábito, da bolha, de si mesmo, e não da discussão provocada por aquele que saiu e retornou. De qualquer forma, poderíamos nos perguntar: mas porque então aquele que se libertou da caverna retorna? Se os seres humanos são esses com espírito de imediaticidade, tomados pela embriaguês da facticidade, acostumados e afeitos aos grilhões e deuses, por que retornar depois de livre e tentar convencer seus companheiros diante do risco da morte? O que Platão quer nos dizer com sua alegoria?

Ora, no que pese as várias interpretações que recebeu ao longo da história, uma coisa é certa, enfatiza-se na alegoria platônica a relação do aprendizado humano através da linguagem. Dessa forma, nos deixa a refletir, aqui no século XXI, se não seria mais fácil o escravizado liberto, ao invés de tentar convencer os outros do que contemplou, lutar para que os libertassem das amarras ou as rompesse por ele mesmo para que pudessem experimentar a luz do sol de forma imediata, haja vista o diálogo não ter mais força de transformação da realidade social.

Vale lembrar que, na mesma obra, A República, logo no início do primeiro livro, consta o personagem Sócrates dialogando com o sofista Trasímaco sobre o conceito de justiça.[4] Ao defender certo realismo político, o sofista se detinha à facticidade da predominância do mais forte sobre o mais fraco, desconsiderando as próprias contradições performativas que negavam sua própria asserção. Sócrates não perdeu a oportunidade de furar a bolha factual de Trasímaco, demonstrando que para falar do que ocorre é preciso ter em vista a produção de sentido, de conceito e, portanto, sua validade universal.

Pois bem, muito tempo se passou, o pensamento atravessou importantes transformações, mas um dos grandes desafios para emancipação ou aumento de liberdade da sociedade continua a ser o déficit normativo presente no realismo político. Claro que agora não é como na Grécia Antiga, mas a leitura factual colocada por Platão no discurso do sofista, lembra, de longe, concepções empíricas de política, poder, direito e razão, que percebem a relação social da mesma maneira que o neoliberalismo, ou seja, como disputa de interesses e território, correlação de forças ou afetos. Por pensar a interação social de forma coerente com o neoliberalismo, o realismo político não só carece de projetos para emancipação, como dialoga e alimenta a nova roupagem do capitalismo após a queda do muro de Berlim.

Apesar da heterogeneidade da discussão, podemos dizer que a tradição de pensamento moderno que começa ainda no Renascimento com Maquiavel, passa por Espinosa, Marx, Weber e Carl Schmitt já no século XX, influenciou concepções conflitivas da interação social dispostas a negar no século XXI possibilidades normativas advindas da força de entendimento presente no uso da linguagem. Me refiro, por hora, a concepção agonística de democracia de Chantal Mouffe, bem como sua crítica à ênfase dada ao consenso por concepções procedimentais e deliberativas de democracia. É evidente, como veremos, que entender a interação social como disputa por território na postura de guerrilheiro combina mais com o cenário beligerante, conflitivo, adversarial traçado por Mouffe, onde o político aparece como, essencialmente, antagonismo e a política como possibilidade de transformação em agon, do que com os potenciais emancipatórios advindos do aprendizado via troca de razões (diá-logos). A leitura do político em geral tendo em vista o que ele é, começa a descrição pelo conflito e desconsidera as intuições advindas das ponderações de Durkheim sobre a solidariedade enquanto fato social regular, sendo a luta de classes patologia. De antemão, é importante considerar diante do paradigma da linguagem, que o político não apenas se refere ao que é, essencialmente, mas também ao que pode ou deve ser. As idealizações esticam e, portanto, movimentam a realidade na tensão entre facticidade e validade, não se reduzindo a ideologia ou mesmo à certo idealismo[5]. Veremos que a confiança, e não o conflito propriamente dito, aparece na base das relações sociais. É esse ponto que o filósofo alemão, Jürgen Habermas, defensor de uma concepção deliberativa de democracia e alvo das críticas de Chantal Mouffe, pretende enfatizar quando afirma que a regra na sociedade é a presença da ação comunicativa, sendo a ação estratégica exceção. Sua aposta está em apresentar uma teoria crítica da sociedade a levantar patologias sociais que obstaculizam a emancipação, propondo saídas menos derrotistas que as oferecidas pela primeira geração de Frankfurt, pelos pós-modernos em geral, mas sobretudo, por todos aqueles que perdem de vista a ambiguidade própria da política e do direito na modernidade. O que se tem em vista é demonstrar o quanto concepções realistas de política e de direito levam a concepções empiristas de poder que dialogam de perto com o discurso defendido pelo próprio neoliberalismo.

O presente ensaio filosófico toma a direção de, primeiro, apresentar brevemente a proposta de democracia agonística de Mouffe e suas críticas à Habermas como “filósofo do consenso”, tendo em vista alguns de seus escritos, tais como: Sobre o Político, Por um Modelo Agonístico de Democracia e Democracia, Cidadania e a questão do pluralismo, para em seguida desenvolver a contra-crítica apresentada pelo autor alemão em Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública e Política Deliberativa, a fim de articulá-la com a reconstrução dos próprios conceitos habermasianos e propor uma interação social como práxis comunicativa sem sujeitos em contraposição a disputa adversarial de interesses.

 

2 DEMOCRACIA AGONÍSTICA

Após a queda do muro de Berlim em 1989 e o colapso do comunismo, a sociedade pulveriza-se ainda mais em diferentes cosmovisões irreconciliáveis entre si. O fato do pluralismo marcado pelos conflitos já presentes desde as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, recrudesce e ganha novo contorno em sociedades cada vez mais complexas[6], fazendo caducar a possibilidade de mobilização social advinda da expectativa depositada na construção de discursos e consensos. A política, mais precisamente, “o político”, para seguir a distinção conceitual proposta por Chantal Mouffe, não é mais a arte do diálogo, nem a manifestação da liberdade ou da autonomia, talvez nunca tenha sido. Muito menos o político tem como objetivo o consenso. Em verdade, é a expressão mesma do conflito social propriamente dito, antagonismo impossível de eliminar. A divisão empírica “nós-eles” não é absorvida por nenhuma teoria, muito menos pelo liberalismo que exige universalidade e neutralidade. Nesse contexto, teorias do conflito social voltam a se credenciar ou a influenciar posturas que se colocam como capazes de fornecer legitimidade para democracia, afinal, desde Maquiavel, o político passa a se caracterizar como poder e o poder como dominação. O consenso não passa de quimera a desviar o foco do reconhecimento das diferenças para uma sociedade idealizada num ambiente pós-político.[7] A visão de uma sociedade em harmonia em que a violência é estancada pelo diálogo não passa de uma compreensão inocente do processo político.

Estou convencida de que imaginar o objetivo da política democrática em termos de consenso e reconciliação não é somente um equívoco conceitual, mas também algo que envolve diversos riscos políticos. O anseio por um mundo no qual a dicotomia nós/eles estaria superada está baseado em falsas premissas, e aqueles que compartilham essa visão certamente não compreendem a verdadeira tarefa que a política democrática tem diante de si. Na verdade, a recusa em enxergar o antagonismo não é nova. Durante muito tempo a teoria democrática imbuiu-se da crença de que a bondade interior e a inocência original do ser humano eram condições necessárias para assegurar a viabilidade da democracia. Uma visão idealizada da sociabilidade humana, como algo induzido essencialmente pela empatia e pela reciprocidade, foi o que forneceu, no geral, as bases do moderno pensamento político democrático. A violência e a animosidade são consideradas um fenômeno arcaico que será eliminado graças ao avanço do diálogo e ao estabelecimento, por meio de um contrato social, de uma relação transparente entre indivíduos racionais.[8]

Percebe-se que a crítica caminha no sentido de apontar para uma má compreensão da sociabilidade humana que leva a aposta na razão, seja no formato de contrato social, seja a partir de um ponto de vista dialogal, para eliminar os conflitos. A justificativa da democracia pensada nesses termos não faz sentido diante da realidade que se apresenta. Guardadas as devidas proporções, sem entrar, por ora, no conteúdo propriamente dito da crítica de Mouffe e levando em conta o recorte dirigido ao que chama de liberalismo[9], seu posicionamento parece trazer à tona outro diagnóstico, feito dez anos antes por Lyotard. Vale recordar os apontamento feitos pelo autor francês resgatando as transformações do final do século XIX para apontar o que chama de condição pós-moderna.

Simplificando ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde seus atores (functeurs), os grandes heróis, os grandes perigos, os grande périplos e os grandes objetivos.(...) Não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis, e a propriedade destas por nós formadas não são necessariamente comunicáveis.[10]

Pouco mais a frente de seu livro A Condição Pós-moderna, o filósofo francês afasta a possibilidade da construção de consensos via discurso para lidar com os problemas sociais e, embora não levante argumentos mais pormenorizados, afirma a diversidade da linguagem como justificativa.

Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a legitimidade? O critério de operatividade é tecnológico; ele não é pertinente para se julgar o verdadeiro e o justo. Seria pelo consenso, obtido por discussão, como pensa Habermas? Isto violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem.[11]

Pois bem, percebemos que a crítica de Lyotard faz menção a Habermas cultivando a mesma desconfiança da razão que paira sobre aqueles que pretendem perceber a interação social como luta de interesses.[12]

Chantal Mouffe, no que pese as diferenças, também acha o conflito característica fundamental de nossos tempos, sendo o consenso parte de uma visão idílica de sociedade harmônica que deve ser extirpada do horizonte, sob pena da não compreensão da tarefa mesma da democracia.

Na verdade, em sua democracia agonística, Mouffe entende que a essência do político é um antagonismo indissolúvel. Portanto, o consenso é impossível e até indesejável. No máximo, pode-se pensar num “consenso conflitivo”. A política é encarada a partir da lógica adversarial, que aparece para a autora belga como mais promissora e realista do que a ênfase dada ao consenso segundo concepções deliberativas de democracia. O pluralismo agonístico pretende retomar o valor do político, do conflito, das paixões, deixado de lado por certa vertente deliberativa do liberalismo que, da mesma forma que o republicanismo de Hannah Arendt, entende o político como liberdade.

Alguns teóricos, como Hannah Arendt, encaram o político como um espaço de liberdade e de discussão pública, enquanto outros o consideram um espaço de poder, de conflito e de antagonismo. Minha compreensão do político faz parte, evidentemente, da segunda perspectiva.[13]

 

Ao conferir valor ao dissenso mais do que ao consenso, Mouffe pretende ressaltar que as relações de poder dão o tom nas esferas públicas e que a divergência não pode ser resolvida pela deliberação ou discussão racional. Acordos são possíveis, mas “deveriam ser vistos como reveses temporários numa confrontação em curso”. Parte-se do conceito de “nós” e “eles” de Carl Schmitt, o qual não pode ser superado, mas neutralizado na transformação do inimigo em adversário. “No campo da política, isto pressupõe que o ‘outro’ não seja visto como um inimigo a ser destruído, mas como um ‘adversário’, isto é, alguém com cujas ideias iremos lutar”. A perspectiva da luta adversarial é fundamental para Mouffe. “Um adversário é um inimigo legítimo, um inimigo com que temos em comum uma adesão partilhada aos princípios éticos-políticos da democracia”.[14]

A ideia é reabilitar a esfera pública democrática, mas sem confundir política com moralidade. Mobilizar paixões e valorizar dissensos é reconhecer formas de exclusão e relações de poder. O político não é o espaço de liberdade no exercício da autonomia, mas o lugar do antagonismo e do poder. Na verdade, a autora belga apresenta um conceito do político enquanto poder e poder enquanto dominação. Seria, portanto, o lugar onde uns se submetem a hegemonia de outros[15]. Qualquer identidade moral pré-constituída ou qualquer expulsão da substância mesma do político deve ser descartada.

Considerando-se que qualquer ordem política é a expressão de uma hegemonia, de um padrão específico de relações de poder, a prática política não pode ser entendida simplesmente representando os interesses de identidades pré-constituídas, mas como constituindo essas próprias identidades em um terreno precário e sempre vulnerável.(...)

Se aceitarmos, contudo, que as relações de poder são constitutivas do social, então a questão principal para a política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder mais compatíveis com valores democráticos.[16]

Dessa forma, sua filiação ao pós-marxismo realista se evidencia e as fichas, quando pensamos na maneira de lidar com a sociabilidade humana, são depositadas na construção de novas formas empíricas de poder focadas no conflito social[17]

Retomando o realismo de Schmitt, a autora afirma não ser possível eliminar o nós-eles, tal como pretende o liberalismo, seja agregativo ou deliberativo. É que “o ‘eles’ representa a condição de possibilidade do ‘nós’, ‘sua exterioridade constitutiva’, isso quer dizer que a constituição de um ‘nós’ específico depende sempre do tipo de ‘eles’ do qual o ‘nós’ se diferencia”[18]. Então, seria mais vantajoso transformar o “eles” num adversário, uma vez que só é  possível domesticar a hostilidade e lidar com os conflitos tendo em vista aquilo que são. A ideia da política como poder e do poder como dominação está presente, embora, no fim das contas, Mouffe recorra a princípios ético-políticos e a deliberação.

 

3 CRÍTICAS À HABERMAS

As críticas aos “filósofos do consenso” tem como alvos, principalmente, o filósofo americano John Rawls e o filósofo alemão ainda vivo Jürgen Habermas[19]. Entretanto, o foco do presente trabalho está num recorte específico das críticas direcionadas ao pensador alemão. Vale ressaltar, que não temos em vista esgotar os argumentos levantados por Mouffe, mas reconstruir parte de seus questionamentos a fim de preparar terreno para apresentar e desenvolver as contra-críticas habermasianas. Nesse sentido, a crítica da cientista política belga tem em vista que certa tendência deliberativa dentro do liberalismo enfatiza o consenso de tal maneira a desidratar o conflito e a desconsiderar diferenças. Em verdade, acredita que uma visão de sociedade harmônica e pós-política estaria por trás das ideias habermasiana voltadas ao consenso (“zeitgeist pós-político”). Dentre as críticas endereçadas, talvez seja importante destacar de início, a ideia de que, segundo Mouffe, o poder some da esfera pública habermasiana, bem como não faz sentido a diferenciação entre ética e moral, sobretudo diante da decadência da política nos últimos tempos. É uma distinção que só tem lugar no ambiente da democracia liberal. Enfim, para Mouffe, na perspectiva habermasiana, o conflito perde espaço para o consenso e as paixões e o auto-interesse perdem espaço para a força do entendimento. Voltaremos à essas questões mais tarde. Vejamos agora as críticas levantadas em seu importante ensaio intitulado Por um Modelo Agonístico de Democracia.

Inicialmente, Mouffe aponta a democracia deliberativa como uma abordagem estritamente procedimental da democracia, o que acaba por eliminar as posições que não podem ser aceitas pelo procedimento adotado[20]. Os pressupostos ideais da comunicação são tidos por Habermas como empíricos e exigem que algumas questões ou posições sejam postas de lado no debate público racional. “São os constrangimentos procedimentais da situação ideal de fala que eliminarão as posições que não podem ser aceitas pelos participantes do ‘discurso’ moral.”[21] Assim, o procedimento cobra um preço ao garantir o próprio caráter racional das questões decididas. A partir daí, na leitura de Mouffe, questões morais e políticas são tratadas da mesma forma e questões éticas são deixadas de lado em nome de um interesse geral voltado à formação de um poder comunicativo. O procedimento discursivo apoiado na troca de argumentos e contra-argumentos é apontado como “o mais adequado para o alcance da formação racional da vontade de onde o interesse geral surgirá”.[22] Portanto, lançar mão da situação ideal de fala exige que os interesses particulares sejam deixados de lado em nome razão. Ora, isso soa como problemático e improvável para Mouffe.

Habermas e seus seguidores não negam que haja obstáculos para a realização do discurso ideal, mas os mesmos são entendidos como tendo natureza empírica.Tais obstáculos devem-se ao fato de que é improvável dado as limitações práticas e empíricas da vida social, que possamos deixar de lado completamente todos os nossos interesses particulares a ponto de que nossos interesses venham a coincidir com nossos “si mesmos” [self] racional universal.[23]

A legitimidade surge da ideia dos interesses generalizados aceitos por todos como condições racionais e razoáveis dado o fato do pluralismo[24]. Dessa forma, a validade das normas na modernidade passa a exigir dos indivíduos uma postura moral que reduz a abrangência existencial e política da vida humana.

Depois de apontadas importantes diferenças entre as teorias de Rawls e Habermas, a distinção entre ética e moral aparece como parte comum da estratégia do procedimentalismo que pretende se manter neutro frente o pluralismo de valores. Uma forte separação entre o Bem e o Justo vai “relegar o pluralismo para um domínio não público, isolando a política de suas consequências”.

Ressalte-se ai que o domínio da política, mesmo quando questões básicas como justiça ou princípios fundamentais estão envolvidos - não é um terreno neutro que poderia ser isolado do pluralismo de valores ou em que soluções racionais e universais poderiam ser formuladas.[25]

Dessa forma, Habermas aceita que questões existenciais devem ficar de fora da prática do debate público racional, fechando a porta para contestação[26].

Num segundo momento, aludindo que tanto Rawls quanto Habermas tentam conciliar a liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos, ou seja, a participação democrática e os direitos individuais, sem êxito, uma vez que o filósofo americano prioriza o segundo aspecto e Habermas o primeiro, Mouffe avança sua crítica sobre a própria relação entre democracia e liberalismo. Dessa forma, “o que querem é negar o caráter paradoxal da democracia moderna e a tensão fundamental entre a lógica da democracia e a lógica do liberalismo.” Tanto uma característica como a outra são próprias de democracias liberais que pretendem exatamente articulá-las. Essa tensão entre democracia e liberalismo não pode ter “uma solução racional final”. Em verdade, a defesa do consenso nesses autores está relacionada com a garantia do futuro das instituições liberal-democráticas.[27]

Além disso, Mouffe pretende ponderar a existência de entendimentos diferentes da razão que vem pela adesão e não pelo consentimento. Nesse ponto, segue Michael Oakeshott, acreditando que o privilégio da razão deixa de lado o “papel crucial desempenhado por paixões e afetos na garantia da fidelidade a valores democráticos.”[28] É que a autora belga está mais preocupada com as “condições de existência do sujeito democrático” do que com as instituições propriamente ditas. Para ela, a construção de argumentos em instituições liberais-democráticas “não contribui para a criação de cidadãos na democracia”.[29] Para perceber as condições para existência do sujeito democrático é preciso “colocar ênfase nos tipos de práticas e não nas formas de argumentação”.[30] Procedimentos não podem ser neutros, pois necessariamente relacionados a formas de vida a que se subscreve por adesão. É que muitas vezes os princípios são aceitos tendo em vista a identificação e não o consenso racional.

Pretendendo levar a sério os ensinamentos de Wittgenstein, Mouffe afirma que o “sonho de um consenso racional” acarreta a fantasia de que poderíamos escapar de nossa forma de vida humana[31]. É a criação de um conjunto de práticas que pode levar a fidelidade com a democracia. As formas de vida são as condições para a comunicação e não o contrário. O privilégio dado ao “ponto de vista moral” não se sustenta.[32]

Por fim, num terceiro momento do supracidado ensaio, afirma-se que o poder é eliminado da esfera pública na abordagem deliberativa e, assim, a política é reduzida à ética. É que toda objetividade social é constituída por atos de poder que, por sua vez, constituem identidades.[33] A conexão entre poder, legitimidade e ordem hegemônica é renegada quando um tipo racional de argumentação exclui o poder e funda a legitimidade na racionalidade pura.[34]

Dessa forma, Mouffe pretende respeitar o antagonismo do político e estabelecer relações nós-eles ou outras relações de poder compatíveis com a democracia. A ideia é iluminar o que se pretendia esconder quando da ênfase no consenso por parte da forma como a democracia deliberativa lida com o fato do pluralismo.

Uma diferença importante em relação ao modelo da democracia deliberativa é que, para o “pluralismo agonístico”, a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do publico, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol de desígnios democráticos.[35]

Estamos diante de um pluralismo de valores que constrói no máximo um consenso conflituoso em que diversas são as interpretações dos princípios e das concepções de cidadania, de bem comum e de direitos humanos. Só quando se admitir que consensos são resultados temporário de uma hegemonia provisória, “as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos democráticos e o antagonismo transformado em agonismo”.[36] Nesse sentido,  consenso é uma estabilização de poder que “sempre acarreta alguma forma de exclusão”. “Ideias de que o poder poderia ser dissolvido por meio de um debate racional e de que a legitimidade poderia ser baseada na racionalidade pura são ilusões que podem colocar em risco as instituições democráticas”.[37] Enfim, toda deliberação implica uma decisão que exclui outras possibilidades, não sendo possível estabelecer consenso sem exclusão. Segundo Mouffe, abrir caminho para o dissenso é vital para perceber a ilusão de uma democracia perfeitamente bem-sucedida. Reconhecer os limites, as fronteiras, as formas de exclusão e a natureza hegemônica das relações sociais é mais importante e urgente que “disfarcá-los sob o véu da racionalidade e da moralidade.”[38]

 

4 CONTRA-CRÍTICAS HABERMASIANAS

Para levantar os principais argumentos habermasianos é importante ressaltar, preliminarmente, que já levanta críticas ao déficit normativo de ideias que levam à concepções empíricas de democracia desde Facticidade e Validade em 1992.[39] Também se sabe que em 1996, com A Inclusão do Outro, mais precisamente no capítulo 09, apresenta um terceiro modelo de democracia a se distanciar dos problemas conceituais enfrentados tanto pelo liberalismo quanto pelo republicanismo.[40] Dessa forma, no opus habermasiano, a década de 90 é marcada pela tentativa de colocar a democracia deliberativa entre realismo político e normativismo abstrato. Ou seja, numa ótica habermasiana, não se trata de reconstruir os conceitos relacionados à democracia numa perspectiva empírica, notadamente, a política, o estado, o direito e a  razão, mas também não é o caso de perder o contato com a realidade tal como ela se apresenta. Aqui precisamos entender a relação entre real e ideal numa perspectiva pós-metafísica a fim de situar a teoria do autor alemão. Teremos oportunidade no próximo tópico de elaborar de maneira geral algumas dessas questões. Contudo, para levar a sério as críticas de Chantal Mouffe, primeiro é importante partir da manifestação mais clara do filósofo alemão se referindo às críticas recebidas.

A opção metodológica do presente trabalho pretende se concentrar, ao menos de maneira específica, na reconstrução dos principais argumentos erguidos em Uma Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública e a Política Deliberativa, livro publicado em 2022. Na verdade, o recorte recairá sobre a segunda parte do livro dedicada a melhor esclarecer o conceito de política deliberativa, objeto de reiteradas objeções ao longo do tempo. Essa segunda parte se constitui de uma entrevista e um prefácio escrito para um volume de entrevistas sobre o mesmo tema.[41] Essa opção tem por base a própria intenção do autor alemão que, uma vez provocado por objeções expressamente atribuídas à Mouffe, responde esclarecendo seus conceitos muitas das vezes mal interpretados, bem como retoma sua crítica ao conceito empírico de poder. Então, por mais que algumas discussões já tenham sido levantadas ao longo da obra, bem como inexista um debate formal e direto entre os dois autores ainda vivos, evidencia-se no livro de 2022 a disposição do pensador alemão em dirigir contra-argumentos à Mouffe e outros defensores de concepções agonísticas de democracia.

No início da entrevista, ao ser questionado sobre seu conceito de situação ideal de fala, Habermas esclarece se tratar de pressupostos pragmáticos do discurso inevitáveis para todos aqueles que argumentam enquanto participantes de discursos práticos. Portanto, são pressupostos assumidos aqui e agora, em situações reais de fala, na facticidade. A fim de problematizar o discurso tomamos como referência esses pressupostos. Dessa forma, a situação ideal de fala movimenta na prática tanto os significados compartilhados quanto as expectativas recíprocas de comportamento. “Na época, usei a expressão para o feixe de pressupostos pragmáticos que sempre precisamos faticamente assumir quando entramos em uma argumentação sobre a validade de enunciados”.[42]

Portanto, é importante perceber que a situação ideal de fala se apresenta em uma situação real de fala quando de uma postura contrafactual. Mesmo que a situação ideal não se cumpra na facticidade, ainda assim serviu de referência para a validade daquilo que se apresentou na situação real. É nesse sentido que poderíamos dizer que a situação ideal de fala enquanto pressupostos comunicativos contidos nos atos de fala assume caráter empírico e normativo fundamental para a democracia, entre realismo político e normativismo abstrato.

Na sequência da entrevista, ao ser indagado sobre possível exagero da ênfase dada a força do entendimento na deliberação e o movimento das preferências diante disso, Habermas, primeiro, adverte que “quem argumenta contesta” e, depois, destaca o potencial epistêmico contido no aprendizado via discurso, onde, mais do que esclarecer as preferências ou mesmo o conflito, se pretende possibilitar sua revisão ou alteração à luz das melhores razões, diferente do que ocorre nos compromissos quando as preferências iniciais se mantêm hígidas.

É nisso que consiste a perspicácia da política deliberativa: que podemos melhorar nossas convicções em disputas políticas e nos aproximar da solução correta dos problemas. Isso pressupõe é claro que o processo político tem uma dimensão epistêmica...O esclarecimento das preferências é, naturalmente, o primeiro passo em todos os discursos políticos; por outros lado os discursos justificam a expectativa de que no curso da deliberação os participantes revisem suas preferências e também as alterem à luz das melhores razões. (...) Os discursos têm uma dimensão epistêmica porque dão espaço à força transformadora de preferências exercida pelos argumentos, ao passo em que os compromissos (...) deixam intocadas  as preferências existentes.[43]

Ainda nesse ponto, Habermas admite fazer parte dessa força epistêmica uma orientação ao consenso como possibilidade do discurso, mas, vale lembrar, isso não significa alcançar consenso político.

Por outro lado, é claro que essa orientação ao consenso - pressuposto pela compreensão epistêmica dos discursos - não significa que os participantes possam ter a expectativa irrealista de chegar efetivamente a um consenso sobre questões políticas.

Quando o entrevistador cita expressamente o nome de Mouffe, o autor alemão critica as teorias que começam pela definição do político sem levar em conta que seu surgimento se dá junto do estado de direito, onde as próprias sociedades decidem com força vinculativa e o consenso de fundo sobre princípios constitucionais se difundiu na sociedade.

Teorias que começam com um conceito do político são insuficientes - independentemente de defenderem um conceito agonístico de luta política, um conceito sistêmico de poder controlado administrativamente ou um conceito comunicativo de poder gerado interativamente. No curso da evolução social do Estado, o poder político surgiu co-originariamente com o direito sancionado pelo Estado. Como resultado, as sociedades adquiriram a capacidade reflexiva de influenciar intencionalmente suas próprias condições de existência através de decisões coletivamente vinculativas. (...) o papel da religião como fonte de legitimação acabou sendo substituído pelas constituições produzidas democraticamente. O consenso de fundo sobre os princípios constitucionais, que, desde então, se difundiu na população, se diferencia da legitimação fundamentada na religião pelo fato de ter sido, em geral,  produzido pela via democrática, ou seja, também pela troca deliberativa de argumentos. É claro que esse consenso de fundo precisa ser renovado por cada geração, caso contrário as democracias não durariam. Mas o núcleo não antagônico desse consenso de fundo não significa de modo algum que a Constituição organiza o processo democrático como um evento continuamente orientado para o consenso. É preciso partir das diferentes funções que a comunicação política deve cumprir, em arenas diferentes e de maneiras diferentes, com suas contribuições para um processo democrático que é filtrado deliberativamente como um todo.[44]

Assim, tais teorias prescindem da relação discursiva entre direito, política e moral. A longa citação permite perceber que toda teoria política deveria ter em conta que direito e poder político, a partir da nova configuração advinda do Estado Moderno e de sociedades complexas, coincidem de um ponto de vista genético. É dessa forma que um estado de direito é composto por Constituições erguidas sob consensos de fundo. Contudo, isso não é o mesmo que afirmar ser o processo democrático conduzido ao consenso. É preciso ter em vista diferentes funções da comunicação política em diferentes espaços. Níveis de exigência racional vão se modificando desde discursos legalmente institucionalizados em tribunais e parlamentos até debates de atores políticos, vozes da sociedade civil e comunicação midiática.[45] De toda sorte que, a orientação do consenso apenas é necessária nas deliberações de instituições jurídicas que decidem de maneira vinculante. Toda essa prática atravessada por diferentes níveis de racionalidade contribui para “gerar opiniões públicas concorrentes sobre temas relevantes para as decisões”.[46]

Mais à frente, reagindo a outra questão proposta, após dizer ser autoevidente que os autointeresses fazem parte da deliberação, Habermas é enfático: “Certamente, nenhuma coletividade democrática pode funcionar se os cidadãos, como cidadãos políticos e colegisladores, perseguirem apenas seu próprio interesse.”[47] É que os interesses só podem ser avaliados da perspectiva do mundo da vida uns dos outros. A assunção de papéis sociais ou perspectivas é necessária para avaliar um conflito do ponto de vista da justiça.[48]

Por fim, diante dos últimos questionamentos, levando em conta o que nos importa na presente investigação, o pensador alemão diferencia princípios racionais de valores contestáveis para defender a existência de boas razões para sustentar a pretensão de universalidade ou a validade universal dos direitos humanos como fundamento de um Estado Constitucional Democrático. A prioridade do justo sobre o bem é aqui defendida a partir da releitura da razão prática kantiana em razão comunicativa. Contudo, Habermas adverte que isso é bem diferente de querer espalhar democracia liberal pelo mundo.[49]

Além da entrevista, consta no final do livro um prefácio, cujo título já revela sua relevância para a investigação proposta: O que quer dizer “democracia deliberativa”? Objeções e mal-entendidos. Trata-se de um texto em resposta às críticas dirigidas à democracia deliberativa. O autor abre o prefácio feito para uma coleção de entrevistas colocando em contraste as democracia modernas e antigas a partir exatamente da relação direito e política.

A democracia moderna se diferencia de suas antigas antecessoras essencialmente pelo fato de apresentar uma comunidade política constituída pelo direito moderno, que assegura aos cidadãos direitos subjetivos iguais.

Essa comunidade político-jurídica de sociedades complexas só se justifica por si mesma, segundo Habermas, quando o cidadão é pensado enquanto participante de um processo intersubjetivo de formação pública da opinião e da vontade[50], o que garante liberdade e igualdade ao mesmo tempo. A autonomia é aqui pensada de modo relacional uma vez que suas duas ascepções: privada e pública se entrelaçam de maneira discursiva. É que o cidadão é tido como destinatário das normas jurídicas que ele mesmo criou como participante do processo mencionado. Assim, o equilíbrio dos interesses em conflito no uso das liberdades subjetivas é acompanhado da solidariedade que se requer dos cidadãos em um Estado Democrático de Direito.

Ao contrário da imagem distorcida e amplamente difundida da política democrática, esta não deve se esgotar em um equilíbrio nu de interesses entre cidadãos e organizações privadas que decidem de maneira egoísta e privada; não pode se esgotar em compromissos desenfreados. Em vez disso, trata-se de equilibrar as liberdades subjetivas, desfrutadas pelos cidadãos sociais como benefícios de direitos formalmente iguais, com a solidariedade que os cidadãos políticos devem uns aos outros em seu papel como colegisladores.[51]

O espírito solidário do Estado Democrático de Direito não admite uma percepção autointeressada das liberdades subjetivas fora da “formação comum da opinião e da vontade na esfera pública política”.[52] É que “nas democracias territoriais em larga escala não há outro lugar em que esse processo de ponderação comum entre o interesse próprio e a orientação ao bem comum pode acontecer que não o da comunicação pública inclusiva.”[53]

Passando a tratar das objeções levantadas contra a democracia deliberativa, primeiro é necessário retomar o conceito de poder. Não é mais possível entender o político enquanto luta pelo poder, pois estaríamos dando um significado realista ao conceito de poder que não explica o funcionamento do procedimento próprio de um Estado Democrático de Direito. É que as democracias modernas exigem a “aceitação ampla das decisões da maioria” e,  uma vez que a legitimidade não mais depende de fontes metassociais, o conceito sociológico de poder carece do potencial normativo e epistêmico necessário.[54] Além disso,

Uma vez que o conceito empirista de poder corresponde ao conceito de liberdade de arbítrio e liberdade de ação, a dominação da maioria se expressaria no fato de que o governo garante à parcela predominante da população um espaço de ação privilegiado para a busca de suas preferências.[55]

Ora, não se trata, portanto, de privilegiar preferências vencedoras do pleito, mas de garantir a “expectativa por resultados racionalmente aceitáveis”. É que, “como cada decisão implica interromper um discurso, as minorias derrotadas também podem aceitar as decisões majoritárias na esperança do sucesso de seus argumentos em longo prazo, sem precisar abrir mão de suas próprias convicções.”[56]

Enfrentando uma segunda objeção à democracia deliberativa, Habermas desenvolve um pouco mais o coração de sua teoria: a aposta na força epistêmica da troca de razões (diá-logos). Segundo ele, as preferências só se justificam para sociedade à luz daquilo que é tido como válido para os participantes, pois mesmo as disputas políticas e os compromissos se dão no âmbito discursivo.

As preferências, contudo, só podem ser expressas subjetivamente como desejos ou, como pretensões subjetivas, só podem ser justificadas à luz de normas válidas. Em suma, quando se deixa claro a forma lógica das questões práticas e lembramos que a política tem a ver essencialmente com essas questões que são negociadas de pontos de vista moral, jurídico e ético-político que estão para além dos interesses egocêntricos, também se vê que as disputas políticas e públicas se movem no espaço de razões trocadas de maneira discursiva, quando vão além das questões e fato controversas.[57]

Em verdade, é preciso ter em mente a figura dos participantes do processo de produção de discursos, os quais “querem fazer uma contribuição epistêmica ao debate - isto é, fundamentada e criticável com razões[58]. Eles pretendem que suas opiniões e avaliações sejam tidas como corretas.[59] Não há espaço para a “expectativa ingênua de que nas discussões políticas - que, ao contrário da ‘conversa infinita’ dos filósofos estão sempre limitadas no tempo diante da pressão para tomar decisões - poderia ser alcançado o entendimento atual. É que, “todos os participantes sabem que na comunicação de massa da esfera pública controlada pela mídia só podem - e devem - ser geradas opiniões públicas concorrentes, no melhor dos casos”.[60]

Por fim, é importante sinalizar que o autor alemão finaliza o prefácio encomendado afirmando que certo realismo advindo da “imagem pluralista da aparente ‘vontade crua’ dos eleitores desconsidera a necessária integração entre interesses.

A suposta vantagem da abordagem pluralista, que, do ponto de vista individualista, considera o modo de formação da opinião e da vontade como uma questão privada do indivíduo, ignora, portanto, um aspecto essencial. Na verdade, ignora a tarefa específica do cidadão democrático, a saber, integrar seus interesses individuais, que cada um deles tem como pessoas privadas, com aquilo que é do interesse comum de todos os cidadãos.

É claro que nesse momento, por mais que se refira ao pleito eleitoral, o autor alemão está a abordar a tarefa primordial de toda democracia que se pretende com força epistêmica voltada ao aprendizado: a “integração pela cidadania”.[61]

 

5 CONTRIBUIÇÕES E COMPLEMENTOS ÀS CONTRA-CRÍTICAS

Após trazer os principais argumentos de ambos autores sobre importantes conceitos da democracia agonística e da democracia procedimental, discursiva e deliberativa, resta-nos desenvolver as contra-críticas de modo a preparar o terreno para enfatizar duas formas distintas de entender a interação social. Dessa forma, apresenta-se uma abordagem reconstrutiva dos próprios conceitos habermasianos. De um lado, Chantal Mouffe e seu realismo político percebem o movimento social a partir da disputa de interesses antagônicos que buscam prevalecer em esfera pública, por outro lado, as ideias habermasianas nos leva a cogitar uma práxis comunicativa sem sujeitos cognoscentes portadores de interesses, a qual é capaz de fundamentar uma troca discursiva em esfera pública tendente a justificar a pressuposição de racionalidade e correção das decisões num Estado Democrático de Direito. No entanto, antes de adentrar na discussão sobre a interação social e o quanto o realismo político a percebe em diálogo com o próprio neoliberalismo, é preciso destacar e firmar a discussão desenvolvida até então.

Deixando de lado, por hora, as críticas mais gerais feitas por Mouffe, para focar nos argumentos levantados em Por um Modelo Agonístico de Democracia, podemos dividi-los em: crítica ao foco excessivo no consenso, crítica à abordagem procedimental, crítica à relação da democracia e liberalismo, crítica à ausência do poder na esfera pública de modo a desconsiderar os limites e a natureza hegemônica das relações sociais.

Quanto ao consenso, Habermas destaca a incompreessão acerca de sua proposta. Deixa claro não se tratar de uma visão harmônica de sociedade, mas uma aposta na produção de discursos como forma de lidar com os conflitos sociais a partir do aprendizado da troca de razões (diá-logos). O consenso é apenas uma das possibilidades quando da problematização da ação comunicativa. Consensos existentes no mundo da vida são problematizados no momento em que o questionamento exige o levantamento de razões. A partir daí, os participantes se veem obrigados à levantar argumentos a partir de pretensões de validade. Enfim, Habermas alude consenso a partir da produção discursiva exatamente por conta da possibilidade de contestação, forma de legitimidade na modernidade. Não faz sentido lhe atribuir a alcunha de “filósofo do consenso” quando é a partir da tensão que se movimenta.

Mouffe afirma que um modelo procedimental baseado na situação ideal de fala acaba por eliminar diferenças ou posições que não são aceitas pelos participantes de discursos morais uma vez  que a legitimidade advém de interesses generalizáveis que podem ser aceitos por todos. Dessa forma, a distinção entre ética e moral seria própria de uma cultura liberal que quer se manter neutra frente ao pluralismo. Pois bem, Habermas começa por rechaçar a interpretação dada à situação ideal de fala, dizendo se tratar de pressupostos pragmáticos do discurso admitidos por todos aqueles tidos como participantes de discursos práticos. São inevitáveis, pois pressupostos da própria comunicação. Aquele que se utiliza de argumentos no discurso não pode negar esses pressupostos, pois lhes serviram de referência aqui e agora, portanto na imanência do uso da linguagem. A situação ideal de fala se dá em situações reais de fala, de modo a mobilizar a utilização idêntica de significados e o compartilhamento de expectativas de ação. Negar esses pressupostos é cair em contradição performativa, uma vez que aparecem na própria performance que visa negá-los. Nesse sentido, o ideal mobiliza e estica o real, sobretudo quando este é visto como sentido e não como Ser, num ambiente pós-metafísico de mundos entrelaçados[62]. Somente com a postura contra-factual e crítica é possível enfrentar os problemas que se tornaram planetários e exigem uma legitimidade que vá além dos contextos.[63] Dessa forma, somente os interesses generalizáveis podem figurar como fundamentação do Estado Democrático de Direito, pois universalizáveis, mas isso não quer dizer que os demais interesses não fazem parte do processo intersubjetivo de formação da opinião e da vontade. O fato do pluralismo é enfrentado deixando espaço para o cumprimento das normas para além dos interesses mais imediatos. Um cumprimento moral da norma, portanto. Todavia, isso não os desconsidera, haja vista o autointeresse aparecer em discursos práticos diversos da moral que se abrem diante de um princípio da democracia como formulação do princípio do discurso[64]. Portanto, não se trata de assumir uma perspectiva moral que reduza as outras, mas de entender a relação discursiva entre direito, moral e política no Estado Democrático de Direito de sociedades complexas, onde a aceitabilidade racional aparece ao lado da aceitação concreta. Assim, o procedimento encarna a prioridade do justo sobre o bem, mas até certo ponto, pois a moral aparece como um discurso prático entre outros e como ponto de vista no procedimento.[65] Enfim, moral não é uma figura deôntica a modelar o direito e a política a partir de uma regra a priori da razão prática pura[66]. Ademais, é importante destacar que sendo a razão falível quanto ao estabelecimento da fundação do conhecimento, se torna natural assumir um procedimento a garantir aquilo que é tido por justo segundo a expectativa de sociedades que regulam a si mesmas de forma vinculante a partir da presunção de racionalidade das decisões. Razão procedimental, nesse sentido, é aquela que admite não poder mais fundamentar o conhecimento, bem como, pelos mesmos motivos, não servir de referência universal a priori para ação.

Na crítica à relação entre liberalismo e democracia, Mouffe afirma ser a própria democracia liberal a mais interessada em separar ética da moral para conciliar a liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos. Na verdade, tal distinção e conciliação só faria sentido à democracia liberal. Aqui precisamos limpar terreno e rediscutir alguns conceitos habermasianos. Uma teoria da evolução social calcada num aprendizado ontogenético e filogenético[67], que tem em vista o potencial normativo e epistêmico da troca de razões, não admite a linearidade do darwinismo social, mas reconstrói o aprendizado dialógico de paradigmas. Passado, presente e futuro se misturam na linguagem e se entrelaçam nos discursos que descrevem fatos, expressam sentimentos e buscam regular comportamentos. Dessa forma, a sociedade aprende quando ultrapassa a imediaticidade, mas sem se desfazer do aprendizado. É assim que podemos continuar valorando progressos. Por exemplo, é possível levantar na esfera pública as melhores razões para defender que democracia é melhor que ditadura ou liberdade é melhor que escravidão. Além disso, ainda quanto ao aprendizado social, é preciso refletir sobre a ambiguidade da modernidade, a qual, certamente, nos legou diversos problemas, mas abriu expectativas que até hoje produzem seus efeitos, sendo melhor considerá-la como projeto inacabado, pois a emancipação da natureza se concretizou, mas emancipação dos homens frente a outros homens e suas estruturas, não.

Então, para Habermas, uma coisa é nos situarmos numa democracia liberal que pretende conciliar estado de direito e soberania popular, outra coisa é uma concepção liberal de democracia. Habermas não é um liberal. Sua democracia radical ultrapassa em muito os anseios e o formato da democracia liberal. Aliás, para Habermas, democracia é condição de sociabilidade em sociedades complexas e não um regime político. Portanto, a conformação entre liberalismo e democracia tem dois sentidos. Por um lado, trata-se do arrranjo atual do Estado Democrático de Direito, mas, por outro lado, está sujeita à crítica realizada pela própria democracia deliberativa, terceiro modelo de democracia a superar liberalismo e republicanismo. Isso não quer dizer que não se deva rechaçar, aderir, criticar diversos aprendizados que nos foram legados, mas o ímpeto precisa ser dialógico. Na tradição liberal moderna, por exemplo, temos o aprendizado do estado de direito e dos direitos subjetivos, fundamental para perceber a autonomia privada e sua relação de cooriginariedade com a autonomia pública.

Resta refletir um pouco mais sobre a última crítica de Mouffe: a ausência do poder na esfera pública. A teoria da circulação de poder, presente no capítulo quatro de Facticidade e Validade[68], traz uma outra leitura do conceito, a fim de escapar de uma concepção sociológica que se consolidou ao longo do tempo, mas que perde de vista potenciais normativos necessários à luta pela emancipação. É que Habermas, retomando Hannah Arendt em Sobre à Violência, traz a ideia de que poder não é posse, domínio, portanto não se trata de potencial repressivo, mas comunicativo. Dessa forma, a partir das sociedades complexas modernas e da autonomização dos sistemas do mundo da vida, de onde brotaram, é importante ter em vista que o poder circula da periferia ao centro.

Um poder comunicativo que surge das interações comunicativas do mundo da vida é o núcleo normativo da democracia que permite o enfrentamento discursivo das desigualdades. Na circulação discursiva do poder comunicativo que veremos na sequência, o conflito é tratado como oportunidade de aprendizado via troca de razões. Habermas insere uma teoria do aprendizado social em que aposta na capacidade de revisão, ampliação, reflexão dos interesses a partir daquilo que pode ser tido como aceito por todos diante da possibilidade de contestação, portanto capaz de requerer legitimidade. O conflito é processado de modo a gerar aprendizado reflexivo de uma sociedade capaz de regular a si mesma através do direito positivo. Enfim, a democracia moderna canaliza discursivamente conflitos tematizados e problematizados na esfera pública em nome da legitimidade da política e do direito, sendo a  circulação do poder comunicativo a maneira pela qual podemos pensar a socialização a partir da coordenação da ação pela argumentação.

Pois bem, o poder comunicativo é sintetizado, organizado pelo poder social, que é o que circula na sociedade civil e que, portanto, organiza o poder comunicativo advindo das interações de modo a influenciar o poder administrativo. O poder social, portanto, é o elo entre sociedade civil e estado. Vale lembrar que o  conceito de sociedade em Habermas se dá em dois níveis, desde Teoria da Ação Comunicativa. Perpassa sistema e mundo da vida. A sociedade é pensada como também constituída de sistemas sociais que podem vir a colonizar o espaço público. O poder social, portanto, é constituído de organizações diversas. Inclusive, é a partir desse poder que a economia exerce pressão no poder administrativo.

É no poder administrativo que o poder comunicativo é canalizado e institucionalizado. Este poder é o Estado e suas instituições. A ideia de Habermas é transformar o poder comunicativo em poder administrativo, institucionalizando-o. Dessa forma, consegue abrir espaço para o fluxo comunicativo liberado nas sociedades complexas. Aproveita do fato do direito moderno ter surgido junto do Estado para pensar no trânsito do poder comunicativo via esfera pública informal, formal ou mesmo subalterna.[69] Reconstruindo Bernard Peters, Habermas pensa uma organização social e um movimento social da periferia ao centro e de volta, abrindo a possibilidade de emancipação com a criação de barreiras de proteção quando da transformação do poder comunicativo em poder administrativo.[70]

Agora que as contra-críticas de Habermas ao modelo agonístico de democracia que se vale de um conceito empírico de poder estão melhor elaboradas e reconstruídas, talvez possamos refletir sobre o conceito de interação social que se abre como horizonte de análise e afastar qualquer construção que pretenda perceber a socialização como um espaço de conflito de interesses entendidos como grandezas individuais ou coletivas. Não se trata de uma categoria sociológica apenas, mas de um conceito reconstruído a partir daquilo que compulsa da própria teoria habermasiana. A fim de fortalecer uma abordagem discursiva e procedimental do direito e da democracia contra o neoliberalismo de olhar factual, apresenta-se brevemente, como conclusão, alguns pontos que serão aprofundados em tese posterior sobre o conceito de interação social tendo em vista a teoria da circulação do poder e a ambivalência do direito.[71]

 

6 INTERAÇÃO SOCIAL COMO PRÁXIS COMUNICATIVA

Importante sinalizar de antemão, para além de ser parte de uma tese em construção, que o presente trabalho foca no próprio movimento da obra do autor alemão na pretensão de ultrapassar o paradigma moderno da subjetividade a fim de situar sua teoria num paradigma da linguagem, sobretudo da linguagem do ponto de vista pragmático. Dessa forma, a subjetividade é produto do encontro, da intersubjetividade. Mas não se trata de qualquer intersubjetividade, mas de uma intersubjetividade vista sob o enfoque do participante e, portanto, em segunda pessoa[72]. A relação intersubjetiva que interessa a Habermas aqui não é entre sujeitos cognoscentes portadores de interesses, mas entre participantes de um processo discursivo de formação da opinião e da vontade. Em verdade, um participante de uma práxis comunicativa está enredado numa interação social que aprende por troca de razões. O olhar diálógico para a interação social levanta criticas à filosofia do sujeito e da consciência que podem ser reconstruídas desde Conhecimento e Interesse[73]. Vale ressaltar, que a ideia desse artigo não é esgotar a discussão em torno do tema, muito menos colocar uma interpretação acabada, mas apenas apresentar alguns pontos que parecem relevantes para a pesquisa em andamento.

Ainda em 1968, Habermas substitui o conceito kantiano de interesse puro da razão por interesse emancipatório, a fim de melhor entender como que todo conhecimento vem acompanhado de interesses sem perder de vista a possibilidade de levantar o interesse de todos. Podemos aduzir daí que Habermas já está preocupado em descolar o conceito de interesse de uma estrutura transcendental de um sujeito que seria portador desses interesses. É que essa estrutura transcendental não pode entender de maneira imanente a interação social, uma vez que as condições de possibilidade ainda vem de um exercício prático da razão realizado pelo sujeito, o que prende o conceito de autonomia desenvolvido mais tarde na ideia de autonomia da vontade diante da coexistência de arbítrios[74]. Tanto é verdade que, depois de processada a critica, em Teoria da Ação Comunicativa no ano de 1981, o autor alemão a incrementa já numa outra postura, pois sequer fala mais de interesses como horizonte de orientação da ação. A linguagem nessa altura já se coloca de maneira clara como chave de leitura de sua ética discursiva, mais tarde, condensada numa teoria discursiva aprimorada ao longo dos anos.

A alusão ao conceito de interesse emancipatório e, posteriormente, à emancipação que deixa de se sustentar em interesses, é um movimento sintomático na obra, bem como nos permite pensar que a interação social - e não a integração social que Habermas tanto fala em sua teoria - é apresentada pela via da solidariedade. É que não estamos diante de interesses que se chocam e se arranjam a fim de fazer valer suas próprias visões de mundo, mas da possibilidade comunicativa advinda da força ilocucionária do entendimento. Dessa forma, a confiança permanece como condutora das relações sociais, sobretudo das relações sociais legítimas, e a razão comunicativa permanece enquanto regra, sendo a razão estratégica exceção nas relações sociais. Podemos com Durkheim dizer que o conflito social não é a regra, mas a patologia que se apresenta diante de certo diagnóstico e tratamento. Habermas está pensando no desenvolvimento social que se apresenta em paralelo ao desenvolvimento individual, mas que não se reduz a ele desde quando fala em neurose e ideologia para caracterizar distorções da linguagem. Assim, traz um aprendizado que ocorre do ponto de vista ontogenético (indivíduo), mas que é atravessado por outro aprendizado, o filogenético (sociedade). Uma teoria crítica da sociedade que pretende partir do paradigma da linguagem deve não se reduzir ao que Kohlberg apresentou em sua psicologia moral, mas ir além, reconstruí-la em termos procedimentais e discursivos retirando o que há de melhor.

 Assim, a política, o direito e a democracia não se reduzem à luta de interesses, a uma disputa de território, à correlação de forças ou a confluência de afetos, mas são conceitos que podem ser reconstruidos discursivamente de maneira a justificar a pretensão de legitimidade do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a interação social aparece diante de discursos práticos diversos, os quais não excluem os interesses, paixões, sentimentos, mas os olham a partir da legitimidade de um procedimento aceito por todos participantes de uma sociedade que pretende se autolegislar. A autolegislação e autonomia também desgrudam dos sujeitos cognoscentes portadores de interesses, investigadas agora do ponto de vista relacional, portanto dialógico.

Uma interação social como práxis comunicativa sem sujeitos capazes de conhecer e de ter interesses emancipatórios, portanto enquanto participantes de esferas públicas com a expectativa na troca de razões capaz de coordenar ações, permite olhar a relação estado e sociedade civil a partir do aprendizado advindo do conflito que é manejado discursivamente e procedimentalmente na formação de discursos práticos diversos. A racionalidade e as pretensões de validade erguidas não são capacidades de sujeitos, mas vistas como imbricadas num processo que reconstrói a autonomia da ótica do aprendizado social. Uma autonomia relacional, reconfigurada com base nos cidadãos participantes, critica ao sujeito portador da verdade, da razão, do direito, dos interesses. A interação social à essa altura pode se dirigir à emancipação quando enfrenta os conflitos pedagogicamente. Vale lembrar, que as estruturas da personalidade constituem um dos elementos do mundo da vida. Portanto, não se trata de excluir a subjetividade, mas de renovar seu entendimento a fim de percebê-la como advinda da interação de uma sociedade capaz de refletir a si mesma na tensão entre facticidade e validade e não se reduzir à leituras factuais que deixam de lado a existência dos consensos no mundo da vida e a importância da possibilidade de consensos produzidos a partir de discursos práticos.

Esse novo conceito de interação - que é coerente com a reconstrução da teoria habermasiana - possibilita melhor perceber a solidariedade diante de uma razão comunicativa conectada à força do entendimento. Dessa forma, preserva a formação de laços de confiança na formação discursiva da opinião e da vontade. É assim que consegue afugentar certo realismo político que vê a política enquanto poder e o poder enquanto dominação, reduzindo os potenciais de liberdade a propostas contra-hegemônicas. Ora, essa micro-física do poder reduz as relações sócio-políticas à luta de interesses e ideias, o que é prato cheio para o discurso neoliberal. É que o olhar factual serve ao neoliberalismo na medida em que carece dos potenciais normativos a alimentar qualquer possibilidade de progresso, de emancipação. Entender o poder enquanto dominação a partir da perspectiva realista do político como ele é, por vezes, não dialoga com aquilo que pode ou mesmo deve ser. O neoliberalismo também percebe e aposta em relações sociais como luta por posições, onde o mais forte faz prevalecer seus interesses. Para os neoliberais, é importante que a política enquanto diálogo perca sua influência em nome da correlação de forças. Assim,a mobilização dos indivíduos tidos como empreendedores de si mesmos fica mais facilitada. Os sujeitos estariam numa disputa em torno do sucesso o que reflete na política. No máximo, formam-se blocos de interesses quando estes se juntam, mas que também buscam, no máximo, realizar o interesse comum. A convergência de interesses em torno da matéria denota sua legitimidade. É por isso que, para se afastar do neoliberalismo, o interesse de todos não pode ser pensado como bem comum, caso queira servir de base para a legitimidade. É preciso garantir uma sociedade que regule a si mesma a partir daquilo que pode ir além dos interesses. A generalização de interesses, é importante que se afirme, não parte de uma sobreposição, mas da tentativa de assunção de papeis sociais dos participantes de discursos práticos[75]. A disputa e o confronto quando não articuladas com aprendizado social, tendem a blindar a possibilidade de revisão, articulação, e reflexão dos interesses. Escutar a exatamente renunciar exercer poder sobre o outro.

A mudança de paradigma da subjetividade para linguagem e das discussões em torno do Ser para reflexão sobre a produção de sentidos, não permite deixar de considerar a política enquanto liberdade, autonomia, poder comunicativo que atravessa a sociedade e suas instituições da periferia ao centro, da esfera pública informal para a esfera pública formal, do mundo da vida para o sistema. A confiança materializada no uso da linguagem faz com que o escravizado liberto retorne para diálogo a fim de dar continuidade ao processo de aprendizado social.

REFERÊNCIAS

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[1] Doutorando em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF)

[2] Segundo Giddens, “A confiança é o elo fundamental da vida social; é o meio pelo qual as pessoas reduzem a complexidade da vida cotidiana e se engajam em relações sociais com os outros e com sistemas abstratos”. GIDDENS, Anthony. As consquências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p.39.

[3] Cf. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

[4] PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA. 2000. Livro VII.

[5] Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.

[6] Conceito de fato do pluralismo talvez tenha sido melhor discriminado por John Rawls

[7] A Mouffe chama de Zeitgeist pós-político. MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015, p.07.

[8] IBDEM, P.02/03.

[9] IBDEM, P.12.

[10] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. XVI.

[11] IBDEM, p. XVII.

[12] Chantal Mouffe chama de “luta de ideias” em sua perspectiva adversarial. Cf. MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 16, 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2015. Acesso em: 19 out. 2025.

[13] MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015, p.09

[14] MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. In: Política & Sociedade, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 16, 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index. php/politica/article/view/2015. Acesso em: 19 out. 2025. A “luta de ideias” aqui lembra a guerra de posição em Gramsci. Aliás, o conceito de consenso e hegemonia do filósofo italiano parecem estar de fundo na teoria.

[15] Cf. LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios, 2015.

[16] MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. In: Revista de Sociologia e Política, Florianópolis, n 25, p. 19.

[17] Vale lembrar que não desconsidera-se a importância do conflito social. Cf. SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito, In: Simmel, Evaristo de Moraes Filho (org.). São Paulo: Ática, 1983, p. 122–134.

[18] MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015, p.17.

[19] “Tanto Habermas quanto Rawls acreditam que se pode encontrar o conteúdo idealizado da racionalidade prática na democracia liberal. MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. In: Revista de Sociologia e Política, Florianópolis, n 25, p.13.

[20] IBDEM, p. 14.

[21] IBDEM, p. 14.

[22] IBDEM, p. 15.

[23] IBDEM, p. 14.

[24] Cf. RAWLS, John. Liberalismo Político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. XVII. É onde o conceito de fato do pluralismo razoável aparece com mais destaque. Na página 57 do mesmo livro o filósofo americano desenvolve seus conceitos de racional e razoável.

[25] MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. In: Revista de Sociologia e Política, Florianópolis, n 25, p.16.

[26] IBDEM, p. 16.

[27] IBDEM, p.17.

[28] IBDEM, p.17.

[29] IBDEM, p.18.

[30] IBDEM, p.18.

[31] IBDEM, p.18.

[32] IBDEM, p.19.

[33] IBDEM, p.19.

[34] IBDEM, p.20.

[35] IBDEM, p.21.

[36] IBDEM, p.21.

[37] IBDEM, p.21.

[38] IBDEM, p.22.

[39] HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade (v. II). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012. Capítulo VII. Se formos pensar às críticas ao positivismo decorrentes de certo empirismo metodológico, as críticas estão presentes na obra habermasiana desde 1968 (HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: UNESP, 2014).

[40] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: UNESP, 2018, Capítulo 09

[41]  HABERMAS, Jurgen. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: UNESP, 2023, p. 26.

[42] IBDEM, p. 83.

[43] IBDEM, p. 86/87.

[44] IBDEM, p. 90/91.

[45] IBDEM, p. 91/92.

[46] IBDEM, p. 92.

[47] IBDEM, p. 94.

[48] IBDEM, p. 97.

[49]  IBDEM, p. 94/95.

[50] IBDEM, p. 102.

[51] IBDEM, p. 107/108.

[52] IBDEM, p. 107.

[53] IBDEM, p. 108.

[54] IBDEM, p. 109.

[55] IBDEM, p. 110.

[56] IBDEM, p. 111.

[57] IBDEM, p. 112/113

[58] IBDEM, p. 113.

[59] IBDEM, p. 112.

[60] IBDEM, p. 113.

[61] IBDEM, p. 118.

[62] A realidade para Habermas se entrelaça em três mundos: mundo subjetivo, mundo objetivo e mundo intersubjetivo ou  social. Não está a falar da realidade mesma das coisas, pois se trata de um ambiente pós-metafísico, mas há uma objetividade advinda desse entrelaçamento. Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria da ação comunicativa. v. 1. Tradução de Luiz Repa e Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2023, p.108-113.

[63] Apesar dos problemas serem locais a solução é planetária. Gilvan Hansen reflete sobre a globalização a partir da dimensão humana no capítulo 01 e 05 de sua tese desenvolvida para professor titular do departamento de direito privado da Universidade Federal Fluminense. Cf. HANSEN, Gilvan Luiz. Uma perpsctiva discursiva do fenômeno humano, da política e do direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2022. 231p. (Tese para professor titular)

[64] HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade (v. I). Tradução Flávio Beno Siebeneicher. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 154.

[65] Tanto Rawls quanto Habermas pensam um moral point view.

[66] Habermas mudou seu posicionamento quanto a isso. A transformação da formulação e do posicionamento dos princípios do discurso e da universalização ao longo da década de 90 é sintomática. Para melhor entende-la vale conferir outro artigo científico publicado em 2022. BRANDÃO, André Guimarães Borges Brandão. O Princípio de Universalização na teoria discursiva de Jürgen Habermas: entre direito e moral. In: Logeion: Filosofia da Informação, v. 9, p. 11-35, 2022.

[67] Vale lembrar que o alemão segue Kohlberg até certo ponto, pois critica sua postura naturalista e linear que desconsidera os atravessamentos de uma teoria da sociedade, do direito, do Estado numa perspectiva discursiva e procedimental. Nesse sentido, ainda acrescenta um novo estágio à teoria. Cf. HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, capítulos três e quatro.

[68] HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade (v. I). Tradução Flávio Beno Siebeneicher. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, capítulo 04.

[69] Habermas não inclui o termo “subalterna” em sua teoria, mas, tendo em vista as críticas realizadas por Nancy Fraser, pretendeu dar um caráter cada vez mais inclusivo à categoria social desenvolvida ao longo do tempo e melhor explicitada em 2022 com Uma nova mudança estrutural da esfera pública e política deliberativa.

[70] A esfera pública se coloca na mediação entre periferia e centro.

[71] Me refiro a doutorado em andamento pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ), sob orientação do professor Doutor Cândido Francisco Duarte dos Santos e Silva.

[72] Por mais que existam aspectos intersubjetivos em autores da modernidade é preciso prestar atenção na forma como Habermas pensa operacionalizar a intersubjetividade de maneira procedimental e discursiva. Em kant, por exemplo, por mais que possamos pensar sua obra como um grande argumento que contém em seu bojo o uso público da razão, bem como a institucionalidade, é patente a leitura do conceito de autonomia a partir da capacidade de razão prática dos sujeitos em relação.

[73] HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: UNESP,  2014.

[74] Cf. Releitura habermasiana do imperativo categórico kantiano em DUTRA, Delamar Volpato. Kant e Habermas: a reformulação discursiva da moral kantiana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

[75] Aqui é importante apenas mencionar a discussão entre Habermas e Rawls, por um lado, e a reconstrução que se pretende fazer a partir de Herbert Mead, por outro lado. A crítica ao consenso sobreposto rawslsiano que se dá frente à aposta numa generalização de interesses a partir da linguagem pragmática, coloca um conceito de consenso diferente, pois presente no mundo da vida como pano de fundo de convicções que nos apoiamos para interagir, mas também como possibilidade aberta na produção de discursos quando da problematização da ação comunicava. Cf. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002, capítulos 02 e 03. Além disso, a generalização de interesse que Habermas pretende realizar a partir de Mead, leva em conta...

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