INFOSFERA PÚBLICA E AGENTES SOCIAIS ALGORÍTMICOS

a ética social atravessada

Suely Figueiredo[1]

 Universidade Federal do Tocantins

suelyfigueiredo@uft.edu.br

Leonardo Ripoll [2]

 Universidade de São Paulo

leonardo_ripoll@hotmail.com

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Resumo

Analisamos como a esfera pública, conforme a definiu Habermas, foi alterada pela inauguração do mundo digital, a ponto de hoje ser mais bem caracterizada como uma “infosfera”. Discutimos como identificar um agente social a partir do entendimento habermasiano de agentes como sujeitos em um contexto comunicativo com capacidade de realizar o entendimento mútuo. Tendo esse contexto se estendido ao digital, fazemos uma reflexão sobre se outros mecanismos, como algoritmos e inteligências artificiais, podem assumir o papel de agentes. Resgatamos a visão do filósofo da informação Luciano Floridi, segundo a qual sistemas algorítmicos também são agentes, pois aceleram os fluxos informacionais entre indivíduos em uma velocidade em que a razão comunicativa tem dificuldade de processar. Avaliamos a proposta de Mendonça, Filgueiras e Almeida (2023), sobre algoritmos constituírem instituições. Para eles, algoritmos participam ativamente das ações e interações do cotidiano, embora se façam parecer artefatos tecnológicos, isentos, e não um produto intencional, programado convenientemente para o lucro. A infosfera pública surge ao se constatar que a vida já acontece em um contínuo entre esferas online e offline, e não há mecanismos sociais e econômicos que não estejam operando de forma interdependente entre o digital e o físico. A solução de regulamentação proposta por esses autores — e até mesmo a esperança de Floridi de que a autorregulação e as boas práticas seriam suficientes para direcionar eticamente a infosfera — ruíram e demonstraram que a estratégia instrumental daqueles que controlam os algoritmos impede a genuína ação comunicativa entre agentes. Apontamos como solução, a desprivatização do espaço digital.

Palavras-chave: Esfera pública. Infosfera. Agente social. Ética informacional.

PUBLIC INFO SPHERE AND ALGORITHMIC SOCIAL AGENTS

social ethics crossed

Abstract

We analyze how the public sphere, as defined by Habermas, has been altered by the inauguration of the digital world, to the point that today it is better characterized as an “infosphere.” We discuss how to identify a social agent based on Habermas's understanding of agents as subjects in a communicative context with the capacity for mutual understanding. Extending this context to the digital realm, we reflect on whether other mechanisms, such as algorithms and artificial intelligence, can assume the role of agents. We revisit the view of the information philosopher Luciano Floridi, according to whom algorithmic systems are also agents, as they accelerate informational flows between individuals at a speed that communicative reason has difficulty processing. We evaluate the proposal of Mendonça, Filgueiras, and Almeida (2023) regarding algorithms constituting institutions. For them, algorithms actively participate in everyday actions and interactions, although they present themselves as independent technological artifacts, and not an intentional product conveniently programmed for profit. The public infosphere emerges from the realization that life already happens in a continuum between online and offline spheres, and there are no social and economic mechanisms that are not operating interdependently between the digital and the physical. The regulatory solution proposed by these authors—and even Floridi's hope that self-regulation and good practices would be sufficient to ethically guide the infosphere—have collapsed and demonstrated that the instrumental strategy of those who control the algorithms prevents genuine communicative action between agents. We point to the deprivatization of digital space as a solution.

Keywords: Public sphere. Infosphere. Social agent. Informational ethics.

LA ESFERA PÚBLICA DE LA INFORMACIÓN Y LOS AGENTES SOCIALES ALGORÍTMICOS

Ética social en la intersección

Resumen

Analizamos cómo la esfera pública, tal como la definió Habermas, se ha transformado con la llegada del mundo digital, hasta el punto de que hoy se caracteriza mejor como una «infosfera». Discutimos cómo identificar a un agente social a partir de la concepción haberiana de los agentes como sujetos en un contexto comunicativo con capacidad de entendimiento mutuo. Al extender este contexto al ámbito digital, reflexionamos sobre si otros mecanismos, como los algoritmos y la inteligencia artificial, pueden asumir el rol de agentes. Retomamos la perspectiva del filósofo de la información Luciano Floridi, según quien los sistemas algorítmicos también son agentes, ya que aceleran los flujos de información entre individuos a una velocidad que la razón comunicativa tiene dificultades para procesar. Evaluamos la propuesta de Mendonça, Filgueiras y Almeida (2023) sobre los algoritmos como instituciones. Para ellos, los algoritmos participan activamente en las acciones e interacciones cotidianas, aunque se presentan como artefactos tecnológicos independientes y no como un producto intencional programado con fines de lucro. La infosfera pública surge de la constatación de que la vida ya transcurre en un continuo entre los ámbitos online y offline, y que no existen mecanismos sociales y económicos que no operen de forma interdependiente entre lo digital y lo físico. La solución regulatoria propuesta por estos autores —e incluso la esperanza de Floridi de que la autorregulación y las buenas prácticas bastaran para guiar éticamente la infosfera— ha fracasado, demostrando que la estrategia instrumental de quienes controlan los algoritmos impide una auténtica comunicación entre los agentes. Apuntamos a la desprivatización del espacio digital como solución.

Palabras clave: Esfera pública. Infosfera. Agente social. Ética de la información.

1 INTRODUÇÃO

Não há hoje quem não defenda a inclusão digital. Estabeleceu-se um estar-no-mundo-online tão volumoso e significativo, que lamentamos quando alguém não pode usufruir da cidadania digital. Um excluído digital dificulta seu acesso ao banco ou cartão, não pode pesquisar em ferramentas de busca de informações, não desfruta de um aplicativo que lhe facilite o deslocamento pela cidade, que lhe permita comprar algo que não encontra localmente, que possa avisar pessoas de algum imprevisto. Fica limitado para agendar consultas, acessar a rede pública, obter informações, fazer reclamações, e para se entreter com audiovisuais os mais variados possíveis.

Mas a inclusão digital exige vigilância. Como podemos estabelecer uma cidadania online se não temos acesso aos processos de criação desse ambiente virtual, nem a quem o administra? Algo acontece com a cidadania digital que chama a nossa atenção. Se partirmos do ideal de esfera pública que serviu de modelo aos projetos democráticos do século 19 e 20, percebemos que estamos nos afastando, ao invés de nos aproximando, dele.

A esfera pública parece ter sido engolida por uma infosfera que a altera em natureza e funcionamento. Uma realidade algorítmica tem se imposto a nós e nos deixado entre o maravilhamento e o pânico.  Pretendemos, aqui, aprofundar essa questão.

Dedicamos a parte inicial desta pesquisa à análise das relações entre esfera pública e infosfera pública, tendo em vista a afinidade às demandas éticas da sociedade. Contando com pensadores contemporâneos consagrados, como Jürgen Habermas e Luciano Floridi, tentamos elaborar uma compreensão que melhor acomode nossas atuais tensões. 

A seguir, focamos na identificação de quem são os agentes sociais envolvidos, discutindo principalmente se a agência social se limita a grupos humanos ou também pode ser exercida por sistemas artificiais. Nos deparamos, então, com algoritmos se comportando como instituições, como sugerem Mendonça, Filgueiras e Almeida (2023) em recente pesquisa. 

A visita a esses teóricos nos traz alguma luz sobre o porquê de estarmos vivenciando esta crise ética, em que não conseguimos ter boa vontade com noções como empatia, cidadania e respeito ao próximo. Conceitos como liderança, responsabilidade social e política, direitos individuais e civis, têm sido ressignificados sob influências ideológicas.

Um dos graves problemas identificados está no fato de nossa vida online estar estabelecida em um ambiente privado, de nossos agentes sociais estarem perpassados por regras algorítmicas e nossas instituições estarem necessitando de revalorização e apreço.

 

2  DA ESFERA PÚBLICA À INFOSFERA PÚBLICA

Aprendemos com Habermas que esfera pública é o ambiente em que os agentes sociais transformam sua produção privada de conteúdos informacionais em conhecimento público. É o espaço de compartilhamento social no qual, a partir de ações, discussões, argumentos, influências e pressões, emergem as instituições sociais. Em Direito e democracia, Habermas (1994, p. 117) afirma que “a esfera pública constitui uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela, os fluxos de comunicação são filtrados e sintetizados de modo a se condensarem em opiniões públicas tematizadas”.

Ou seja, a esfera pública tem potencial democrático, mas também limitador. Só através da razão comunicativa, da racionalidade praticada em condições de igualdade capaz de assimilar os melhores argumentos e evitar a coerção, pode-se incrementar tal potencial democrático e contribuir para que agentes sociais administrem os sistemas de poder no interesse coletivo.

Em Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa, Habermas (2023) incorpora ao conceito de esfera pública novas tecnologias — tais como plataformização e digitalização — que alteram o modo de comunicação entre agentes e instituições de uma forma deliberativamente não-neutra, pondo em risco o potencial democrático da esfera pública. O filósofo alemão identifica um volume de manipulações de opiniões, discursos e vozes incomensurável, praticado através de regras algorítmicas, viralização e polarização em um ambiente de fragmentação informacional.

A noção de fragmentação informacional também habita a infosfera — um conceito demarcado por outro filósofo contemporâneo, responsável pela consolidação da filosofia da informação enquanto área de pesquisa das ciências humanas, o italiano Luciano Floridi. Para Floridi (2011, 2014), a infosfera é o grande ambiente constituído por toda informação disponível, com suas propriedades, interações, processos e agentes, tanto naturais quanto artificiais.

A perspectiva informacional de Floridi está associada ao entendimento de que o mundo vem passando por uma grande transformação na forma como se constitui enquanto sociedade e ambiente, principalmente a partir do desenvolvimento da computação na segunda metade do século 20. Essa mudança, que também afeta o indivíduo cognitivamente, demanda uma reorganização ontológica do conhecimento, alterando a forma como constituímos a esfera pública. Se tudo passa a ser visto de um ponto de vista informacional, a infosfera seria a melhor representação para entendermos as dinâmicas que compõem o ambiente em que estamos atualmente, inclusive a esfera pública.

Segundo Floridi (2010, 2014), o mundo vem há algumas décadas passando de uma fase industrial para uma fase informacional e a maior parte do PIB de diversos países já dependem de bens, produtos e serviços informacionais. Nesse sentido, a tecnologia é entendida não mais como ferramenta ou técnica, mas como força ambiental que cada vez mais afeta a nossa autoconcepção (identidade), as nossas interações (relações sociais), a nossa noção de realidade (metafísica) e nossas ações sobre a realidade.

Esse ambiente não diz respeito somente aos seres humanos e aos outros organismos vivos, mas também às máquinas, criações tecnológicas e artefatos em geral, sejam eles físicos ou digitais, uma vez que não habitamos mais (subjetivamente e socialmente) o planeta somente em seu plano material: o desenvolvimento de um ciberespaço como extensão da atividade cognitiva humana, ao mesmo tempo em que possui um modus operandi próprio, vem sendo analisado por pensadores como Pierre Lévy (2010) desde a década de 1990. 

Para Floridi (2014), a infosfera, a exemplo da biosfera, é o espaço em que grande parte da vida social, política e cultural acontece. Abrange toda realidade informacional, digital e não digital; inclusos, para além de agentes humanos, algoritmos, redes, bancos de dados, inteligência artificial, entre outros elementos componentes. É a intersubjetividade estendida à interconectividade.

A ideia de uma “infosfera pública” une, portanto, a cidadania digital à esfera pública. Para Floridi (2015), a vida já acontece em uma perspectiva onlife, em um contínuo entre esferas online e offline, uma vez que atualmente seria improvável verificar mecanismos sociais e econômicos que não estejam operando de forma interligada e interdependente entre os ambientes digital e físico. Por meio de um Manifesto Onlife assinado por integrantes do European Commission’s Directorate-General for Communications Networks, Content and Technology (DG Connect), Floridi (2015) destaca que as tecnologias de informação e comunicação já causaram ao menos quatro grandes transformações: a fusão entre o que é real e o que é virtual; a fusão entre humano, máquina e natureza; a mudança de escassez para a abundância de informação; e a mudança da primazia de relações binárias e ações individuais e unitárias para a primazia de interações, processos e redes.

A infosfera pública, assim como a esfera pública, embora constituída por agentes, instituições e suas diversificadas dinâmicas, não reflete uma estrutura plebiscitária, nem se baliza pela busca do consenso absoluto. A infosfera pública é a resultante de uma dinâmica social complexa de fluxos informacionais que geram ordenamentos, tais como valores, cultura, leis, instituições e um sistema democrático, às vezes de forma espontânea, às vezes conduzidas por detentores de poderes — ordenamentos esses que buscam atender, da forma mais harmônica possível, as expectativas dos cidadãos ou, pelo menos, da maioria.

Quando analisou a mudança estrutural da esfera pública, Habermas (2014) investigou, em 1962, a formação da sociedade burguesa pelos movimentos sócio-históricos que constituíram a esfera pública no século 20. Na obra supracitada de 2023, o filósofo não encontra movimentos similares, mas microesferas fechadas em si mesmas que, dada a estrutura midiática que se estabeleceu, dificultam a prática da ação comunicativa, pois agem majoritariamente por engajamentos afetivos e vieses ideológicos, e, com isso, criam obstáculos para que a experiência democrática e deliberativa sustente o debate público e a formação de um ambiente inclusivo, humanitário e racional.

Da perspectiva adotada por Floridi (2015), os processos de plataformização, digitalização e fragmentação social, entre outros, são inerentes à vida online, e hoje não é possível uma cidadania plena sem submissão a tais estruturas digitais. Não há cidadão que escape à dataficação imposta pela inclusão digital, o que contribui para que a noção de infosfera pública pareça mais adequada a qualificar nossa situação existencial e social.

A infosfera pública, para deixar claro, não se limita ao espaço virtual que integramos. Diz respeito também a todas as interações com objetos, seres vivos, processos e sistemas ao redor, pois tais interações são compreendidas como fluxos informacionais do ecossistema mais amplo a que pertencemos chamado Terra, quiçá Universo.

Torna-se relevante, nesta proposta, analisar quem são e como agem os agentes sociais. Tanto a esfera pública habermasiana quanto a infosfera de Floridi discorrem sobre a natureza dos agentes sociais que as constituem: enquanto para o primeiro só sujeitos ou associações muito específicas, com habilidades comunicacionais racionais, podem exercer a agência; para o segundo, qualquer ente informacional — humano, sistema, instituição, inteligência artificial etc. — que atue de alguma forma na modelagem social, pode ser considerado agente. 

Passamos, então, a examinar o que é necessário para exercer a agência social e quais características podemos atribuir aos agentes.

 

3  AGENTES DA INFOSFERA PÚBLICA

A teoria da ação comunicativa de Habermas reserva a capacidade de agir em prol do debate público, de buscar entendimento via argumentos racionais, a sujeitos em interação social; mas estende essa capacidade a coletividades organizadas — como partidos políticos, associações, ONGs, sistemas judiciários e meios de comunicação de massa — desde que estas coletividades, que podemos chamar de instituições, não capitulem a critérios instrumentais tais como exercícios de controle ou foco em resultados. O ambiente que abarca a coletividade propiciará uma experiência democrática, capaz de dialogar com todos e garantir justiça social, na medida em que priorizar, como base das deliberações legítimas, a razão pública, o conhecimento seguro e a confiança nos processos. 

Porém, não é isso que vem caracterizando a infosfera pública construída sobre estruturas e redes digitais não-públicas. Habermas (2023) aponta para os perigos da colonização da esfera pública por interesses políticos e econômicos de grupos privados, que exercem papéis antes exclusivos de instituições públicas, e chega a considerar que a plataformização inaugura uma espécie de esfera semipública, principalmente por mediar a comunicação de fluxos informacionais a partir de regras próprias, esquivando-se de regulamentações e restrições de sistemas públicos e utilizando-se das gigantescas possibilidades de ação de algoritmos para aumentar a riqueza, os privilégios e o poder de poucos.

Retomando a noção habermasiana de que agentes sociais são sujeitos que, de forma intencional, influenciam atitudes, normas e valores, é possível questionar — dado que a estrutura comunicativa se estendeu a um espaço virtual onde todas as relações são mediadas pela dataficação – se algoritmos e inteligências artificiais (IAs) também podem assumir o papel de agentes sociais. 

Agentes sociais são todos aqueles que participam do amplo, complexo e dinâmico discurso racional que dá sentido à organização de uma sociedade; agentes são comunicadores, influenciadores e consolidadores das opiniões e vontades coletivas; atores que afetam e são afetados através de mensagens, relações e comportamentos públicos. A partir dessa noção, Floridi (2025) reconhece como agente social não só o sujeito comunicativo, organismo informacional (denominada pelo autor de inforg), mas qualquer subsistema que possa processar informação, alterar o contexto e agir de forma autônoma e interativa. Logo, para Floridi, sistemas algorítmicos também são agentes. O filósofo italiano compara agente social a agente informacional e defende que, dentro da infosfera, ele corresponde a todo aquele capaz de provocar efeitos públicos, aquele cuja ação, interação e comunicação impactam um número significativo de indivíduos.

Isso porque o estar-no-mundo-online permitiu a interação quase imediata entre pessoas, independentemente da distância, e são redes, plataformas, bancos de dados e inteligências artificiais que administram os fluxos informacionais — além de que boa parte das decisões sobre como segmentar o público, e que informação entregar e qual desviar para cada segmento, é realizada por algoritmos. 

E ainda, em prejuízo da prática da melhor argumentação, algoritmos realizam essa tarefa a uma velocidade que a razão comunicativa tem dificuldade de processar. Floridi (2011, 2025) também reconhece que, embora algoritmos não tenham intencionalidade nem capacidade reflexiva, agem de forma autônoma, alteram significativamente o ambiente, oferecem soluções de processamento que levaríamos muito tempo para realizar e aceleram as dinâmicas sociais para além de nossas capacidades cognitivas, a ponto de produzir o embaçamento de conceitos como privacidade, direitos, liberdade, responsabilidade, censura, entre muitos outros tão caros à convivência democrática.

Ao examinar alguns critérios na identificação de agentes, Floridi (2025) constata que as capacidades de agir sem intervenção humana contínua, de perceber o ambiente de alguma forma, de reagir a ele e de reconfigurar sua própria ação a partir de um retorno ambiental, de um feedback informacional, justificam a admissão de agentes artificiais. Esse argumento nos parece muito pertinente, e se afina à percepção de Habermas (2023) de que as plataformas digitais não são apenas meios comunicacionalmente neutros, pois suas características estruturais condicionam a esfera pública ao manipular alcance e atenção.

Frente a isso, é preciso trazer para o domínio público a gestão sobre as estruturas algorítmicas que permitem a vida online. Comparando à vida offline, é como se países, cidades, ruas e esquinas tivessem um dono, e todos fôssemos obrigados a usar o espaço segundo a conveniência e regras de tal dono. Não é à toa que novas teorias econômico-sociais como tecnofeudalismo, capitalismo de vigilância e colonialismo de dados encontram aderência na percepção atual do mundo.

Como o propósito deste artigo é argumentar a favor da suplantação do modelo de esfera pública pelo de infosfera pública, explorar a emergência e configuração de agentes artificiais parece uma tarefa que pode ser enriquecida com a pesquisa Algorithmic institutionalism: the changing rules of social and political life, de Mendonça, Filgueiras e Almeida (2023). O texto traz à discussão a hipótese de que algoritmos assumiram funções institucionais e passaram a exercer papéis de agência social de forma rápida, ubíqua e quase invisível, rivalizando com as subjetividades humanas sobre os encaminhamentos rumo à sociedade que queremos. Tal hipótese merece mais comentários.

 

 

 

4  ALGORITMOS COMO INSTITUIÇÃO SOCIAL

Iniciemos pelo entendimento de Habermas sobre instituições sociais serem, antes de tudo, meios que permitem que a comunicação e a racionalidade conduzam a organização de uma sociedade. Habermas (1994) categoriza as instituições em dois tipos: as formais do mundo da vida (como valores, tradições e crenças), que genuinamente nascem da convivência social; e as sistêmicas (a exemplo de órgãos da administração pública, do judiciário, escolas, mercado etc.), que advêm de um interesse estratégico, de uma articulação instrumental. A diferença fundamental entre elas é que, enquanto as instituições do mundo da vida emergem através de uma ação comunicativa, favorecendo a argumentação e o entendimento, as sistêmicas priorizam uma razão instrumental que visa resultados, eficiência, lucro, controle, produtividade etc.

Habermas (2023) também identifica instituições híbridas, que buscam resultados, ao mesmo tempo favorecem o debate e o bem-estar públicos. Para ele, as plataformas digitais, assim como tribunais, órgãos da imprensa e universidades, são instituições híbridas pois operam nas duas categorias e, por isso, se mantêm sob a constante ameaça — praticada, criticada e reincidente — da lógica instrumental das instituições sistêmicas invadir a comunicação social, contaminando com a racionalidade de mercado, de controle e de engajamento, as práticas comunicativas do entendimento mútuo e da deliberação coletiva.  

Em outras palavras, Habermas abre espaço para a compreensão de algoritmos como instituição ao admitir que a estrutura digital que utilizamos — de plataformas, redes e regras algorítmicas — prioriza discursos, filtra informações, manipula conhecimentos e modela opiniões com facilidade e rapidez surpreendentes. Em nossa visão, atuam como agentes sociais institucionalizados. 

A proposta de Mendonça, Filgueiras e Almeida (2023) sobre algoritmos serem compreendidos como instituições, corrobora a visão híbrida de Habermas. A definição de algoritmo, inspirada em Turing e adotada de uma forma geral pela informática, é de um conjunto de regras e procedimentos lógicos que, em definidas etapas, levam à solução de um problema. Os autores a comparam ao conceito de instituição de March e Olsen, sob a alegação de ser o que melhor condensa as perspectivas das definições encontradas em áreas das ciências humanas: “uma instituição é um conjunto de regras e práticas organizadas, incorporadas em estruturas de significados e recursos que são relativamente invariantes” (Mendonça; Figueiras; Almeida, 2023, local. 582).

Os elementos comuns entre as definições de algoritmo e instituição levaram os autores a análises que os fizeram concluir que, em muitos aspectos, é pertinente defender que algoritmos agem como instituições. Algoritmos vêm mudando a lógica da sociedade. A quantidade de informações que utilizamos para nossas decisões agigantou-se; a inteligência artificial, que é um tipo de sistema algorítmico, mais do que realizar pesquisas em bancos de dados inimagináveis, ainda é capaz de fazer curadoria, triagem e organização adequada dos dados, a partir de nossas demandas.

Algoritmos vêm definindo modelos organizacionais da sociedade (como gestão financeira, por exemplo) a partir de engajamento, polarização e influência, e não por critérios da racionalidade comunicacional, que muito mais interessariam à sociedade. Eles modificam padrões de comportamento, recomendam afetos, prazeres, entretenimentos, e participam de tomadas de decisões cotidianamente em nossas vidas.

Não nos insentemos, enquanto coletividade, de responsabilidade sobre essa realidade. Da perspectiva da filosofia da informação — cujo modelo metafísico defende que toda informação quer se propagar mais e cada vez mais rápido, e que somos agentes informacionais (inforgs) que compulsivamente captamos, processamos e descarregamos no mundo novas informações — a transferências de funções para o ambiente caracteriza nossa história. Não seria diferente agora que conseguimos elaborar um sistema que realiza tarefas cognitivas exaustivas para nós — como pesquisar em bancos de dados enormes, fazer operações com grandes números ou memorizar sequências de instruções. Há um lado muito vitorioso e promissor nesta capacidade institucional dos algoritmos, mas ela tem que estar a favor do entendimento, da justiça e da valorização igualitária de todos; e não ser regida por uma razão instrumental guiada por interesses que não os nossos.

Embora possamos perceber este aspecto desejável da agência algorítmica em termos de eficiência, rapidez e outras facilidades, Mendonça, Filgueiras e Almeida (2023) trazem considerações intrigantes a respeito. Eles nos mostram que a ação dos algoritmos em nossa sociedade tem sido a de alterar o enquadramento, organizar as opções e modelar uma nova apresentação da situação frente à qual decidiremos o que escolher, decidir e desejar. E fazem isso seguindo instruções, a princípio, definidas, mas autonomamente atualizadas pelo feedback informacional em forma de mapas probabilísticos de nosso próprio estar-no-mundo.

Essas regras podem rapidamente fazer com que o algoritmo dê respostas indesejáveis, incorretas e ofensivas, uma vez que modelam vieses coletivos, repletos de preconceitos, rancores e desejos obscuros — considerando as evidências de racismo, sexismo e outros vícios que os algoritmos têm revelado em sua ação, constatados por pesquisas como a de Tarcízio Silva (2024) e de Safiya Umoja Noble (2018).

Em uma palestra intitulada Algoritmos, instituições e democracia, Fernando Filgueiras traz o exemplo de um equívoco algorítmico na organização do atendimento de urgência de um ambulatório hospitalar, percebido pela própria equipe de avaliação do hospital. Eles constataram que a diferenciação, feita por uma IA, entre pacientes com mais ou menos urgência de atendimento apresentava uma distorção: as pessoas de maior poder aquisitivo eram majoritariamente atendidas com mais urgência do que as menos favorecidas. Na busca do motivo, a equipe detectou que um dos critérios da IA era o gasto anterior do paciente em consultas e medicamentos, o que influenciava erroneamente o caráter da urgência do paciente (Aula [...], 2024).

É preciso considerar também que os sistemas algorítmicos das big techs que controlam o espaço digital, na forma que foram programados e treinados, primam pela repercussão de situações de forte apelo emocional, explorando nossa tensão e atenção, em nome de um engajamento desejável pela plataforma ou rede a que pertence. Algoritmos criam regras trabalhistas paralelas às existentes sob a alegação de independência e empreendedorismo, e ainda gerenciam nossa vida social e amorosa a partir de critérios próprios.  

As pessoas, seja consciente, deliberada ou inadvertidamente, usam sistemas algorítmicos que influenciam a forma como trabalham, se comunicam, consomem, participam da esfera pública, constroem bens públicos, apreciam a cultura e estabelecem relações sociais. Por outro lado, a configuração política dos algoritmos traz consequências sociais ao criar novas formas de injustiça, de dilemas e de problemas (Mendonça; Filgueiras; Almeida, 2023, local. 2.828).

Essas instituições algorítmicas, embora sejam objetivamente sistêmicas e tenham sido criadas (pelo setor privado, vale registrar) para determinados fins, possuem características das instituições habermasianas formais do modo de vida, pois se mesclam invisíveis às ações e interações do cotidiano, influenciam nossas relações e decisões e se fazem parecer inofensivas, como se fossem apenas artefatos tecnológicos isentos. 

Na mesma medida em que algoritmos permitem a difusão e o embate de ideias quase de forma livre e instantânea, também enviesam a ação comunicativa com mensagens carregadas de intenções e postagens personalizadas a partir de informações específicas sobre os envolvidos, com uso de palavras adequadas, enfoques adaptados, informações ressaltadas e outras omitidas, além de abuso de desinformação — tudo isso operado por algoritmos que seguem orientações que, na maioria das vezes, desconhecemos.

As ações comunicativas, embora tenham a racionalidade por base, são perpassadas, na infosfera pública, por intensos fluxos informacionais de natureza emocional e volitiva, fluxos esses cada vez mais à mercê das estratégias disfarçadas dos algorítmicos de origem privada.

Porém, embora os objetivos estratégicos das big techs sejam bem sucedidos e venham sendo probabilisticamente administrados de modo satisfatório por seus controladores, sempre há espaço, dada a complexidade envolvida, para dinâmicas não previstas de interação humana. Por essas interações, podemos construir a consciência do quanto o ambiente digital, por ter se tornado um locus de interação social espontânea, não pode ser regido pela lógica instrumental, e merece uma gestão guiada por uma razão comunicativa que leve a uma sociedade mais justa e igualitária.

 

5  SOBRE ÉTICA NA INFOSFERA

A ética é o que importa quando tratamos de justiça, igualdade, esfera pública ou infosfera pública. O esforço teórico que aprimora a organização social está ontológica e epistemologicamente comprometido com a dimensão ética da humanidade sob todos os aspectos. Habermas amadurece o debate filosófico sobre ética se afastando de predicativos de virtudes e se aproximando de uma ética racionalizada, discursiva, que conduz a comunicação para o entendimento, para o amparo mútuo, tratando implicitamente valores de uma convivência social harmoniosa e articulada como fundamentais.

Na obra supracitada de 2023, sustenta que a infraestrutura digital deve ser reformada de modo a preservar o caráter deliberativo da comunicação pública. Mas deixa claro que a reforma a que se refere é uma regulação, a ser implementada pelas instituições vigentes, que transforme o ambiente virtual em um espaço sob a vigência das leis e das diretrizes democráticas estabelecidas. Habermas propõe submeter legalmente as big techs a critérios de mais transparência e responsabilidade — mesmo tendo vivenciado a submissão dos meios de comunicação de massa anteriores à Internet (como rádio e televisão) à regulamentação similar e testemunhado a impotência de tal solução frente ao poder e à arrogância dos grandes conglomerados midiáticos de então. A história está repleta de casos em que meios de comunicação de massa ignoraram ou manipularam as regras para favorecer interesses que trouxeram irreparáveis prejuízos sociais e humanos.

Floridi traz outra perspectiva à questão de como compreender o mundo digital e como torná-lo mais afinado à ética social, mas propõe algo muito parecido como solução. Para Floridi (2011, 2015), já que o entendimento sobre o mundo parte de um princípio informacional, faz-se necessária uma reconfiguração ontológica; inclusive, para conseguir abordar adequadamente conceitos pertinentes à dimensão ética que estão sendo ressignificados devido às novas formas de ações frente à responsabilidade, liberdade e privacidade.

De acordo com o pensador italiano, nós apreendemos a realidade através de conceitos e semantização, ou seja, criando sentidos para explicar e agir. Quando a realidade muda muito rápida e drasticamente, como acontece na atualidade, a apreensão conceitual da realidade pode não acompanhar essa transformação. Nesse sentido é que ele propõe uma reconfiguração ontológica ou redesign hermenêutico, em que a dimensão ética deve também levar em conta paradigmas próprios deste novo ambiente.

Para a pesquisadora sênior do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), Maria Nélida Gonzalez de Gomez (2022), a ética informacional surge como uma macroética que se distingue das éticas clássicas, centradas no ser humano e no produtor da ação, para abranger perspectivas éticas ambientais, ecológicas e holísticas, centradas no receptor da ação. Nessa proposta, o biocentrismo daria lugar a um “ontocentrismo” que coloca a noção de existência para além do entendimento restrito à vida humana. Em um princípio de igualdade ontológica, qualquer instância de informação, ou de ser, possui um direito mínimo de existência, que pode ser avaliado moralmente e eticamente conforme sua contribuição ou dano ao bem-estar e ao crescimento sistêmico da infosfera. Entre os assuntos entendidos como fenômenos ambientais estão, por exemplo, desinformação, direitos autorais, inteligência artificial, liberdade de expressão e cibersegurança.

Floridi (2021) argumenta que as questões éticas relacionadas à web, como privacidade, propriedade intelectual e mesmo desinformação, até o ano de 2004 eram debatidas majoritariamente no círculo acadêmico. A partir do início do Facebook e do que ele chama de “comercialização da web” é que esses assuntos tomam conta do debate público, o que faz com que iniciativas de autorregulação da Internet surjam. Nessa época, as práticas de “soft law”, como o papel desempenhado pelo Conselho da Europa, e “soft ethics” (conhecidas em português como “boas práticas”) foram sendo adotadas pela indústria digital e funcionaram de maneira satisfatória em certos contextos. 

Para Floridi, as soft ethics trazem vantagens em cenários que ainda estão se formando ou que mudam rapidamente, uma vez que a legislação “dura” (hard law) geralmente precisa de mais tempo e terreno para ser devidamente discutida e formada. Além disso, usada para autorregulação, as soft ethics podem antecipar cenários, prever problemas e deixar empresas e instituições preparadas, além de contribuir para os modelos legais que estão em processo de constituição.

Em 2014, a autorregulação, segundo Floridi (2021), atingiu sua “maioridade” em iniciativas promissoras, a exemplo do conselho consultivo que o Google montou com acadêmicos para debater sobre a pauta do “direito ao esquecimento”. Nos anos e ações seguintes, no entanto, a tentativa de autorregulação da Internet falha, principalmente a partir de episódios que expuseram os riscos dos caminhos tomados pelas big techs, como o caso da Cambridge Analytica.

A autorregulação, uma proposta que parecia viável no início da Internet, torna-se um discurso de aparências. A partir de então, a regulação do ciberespaço torna-se um assunto da hard law e iniciativas de legislação tomam conta do cenário, a exemplo da General Data Protection Regulation (GDPR), Digital Markets Act, Digital Services Act, e a AI Act. Para Floridi (2021), as soft ethics continuam válidas e importantes para as empresas atuarem com compromisso social e ambiental, mas a ideia de autorregulação do ambiente digital não é mais possível e o atual contexto do fenômeno da desinformação seria um exemplo disso.

Ainda que por um viés mais sistêmico e cognitivo, a ética da infosfera proposta por Floridi também abarca uma preocupação ambiental que garanta a qualidade dos fluxos informacionais e do desenvolvimento do conhecimento, considerando todos os agentes envolvidos na manutenção dessa esfera, sejam seres humanos ou não. Essa perspectiva se mostra particularmente relevante diante dos primeiros desafios que surgem com a expansão da inteligência artificial.

Tais objetivos, portanto, dependem de um combate efetivo às estruturas produtoras de desinformação e da regulação de tecnologias e ambientes que se instauram a partir do digital. No contexto brasileiro, a regulação das plataformas digitais, após muita pressão social e debate político, mas também sofrendo uma massiva campanha contrária pelas big techs, encontra dificuldades imensas em se concretizar.

Mendonça, Filgueiras e Almeida (2023, local. 2420) chegam a diagnosticar que a manutenção de um estado democrático vai depender de medidas de transparência e regulamentação dos algoritmos. “Não há como voltar a um mundo pré-algorítmico. No entanto, da mesma forma que outras instituições foram democratizadas ao longo do tempo, acreditamos que as democracias agora exigem — e dependem — da democratização dos algoritmos”.

De uma perspectiva histórica, as instituições, principalmente as sistêmicas, direta ou indiretamente tiveram a autorização da esfera pública para se estabelecerem. Algum consentimento social é sempre necessário para que uma instituição assuma e cumpra uma função. Mas isso não aconteceu com os algoritmos. Em momento algum delegamos nossa representação a sistemas algorítmicos. O que há de representação sobre nós nesses sistemas é sempre produto de seu funcionamento e não causa. Algoritmos não foram inaugurados por demandas éticas como igualdade, liberdade e pluralismo, nem como sistema de justiça e responsabilidade.

Algoritmos são estratégias de sistemas privados que não se intimidam em erodir a democracia, desde que seus objetivos de lucros e poder estejam obtendo sucesso. As regras que executam não atendem a expectativas da infosfera pública, não se alteram pelo aprimoramento de relações democráticas, nem têm qualquer transparência sobre quando, como ou porque ocorrem. Algoritmos se atualizam longe de nossos olhos e, com certeza, não por critérios de interesse social. Eis um grande perigo para as conquistas sociais dos últimos séculos.

 

6  CONSIDERAÇÕES PERTINENTES

Ao analisarmos a expansão da esfera pública em infosfera pública, a configuração de agentes sociais artificiais com papéis cada vez mais abrangentes e desempenhos que fogem ao controle, e a possibilidade de sistemas algorítmicos estarem se transformando em instituições, concordamos com os autores aqui citados que a dimensão ética presente nos mecanismos de implantação e aperfeiçoamento de sociedades mais igualitárias, justas e livres, não participaram da inauguração de sistemas algorítmicos — os quais em pouco mais de dez anos foram monopolizados por big techs, programados para interesses privados e para escapar das malhas regulatórias dos poderes executivo, legislativo e judiciário estabelecidos dos países em que dominam a estrutura digital.

Sem controle público, todas as benesses que o mundo digital nos traz diminuem, em vez de aumentar, a autonomia crítica dos cidadãos. Haja vista as recentes eleições em países como Estados Unidos e Brasil, entre muitos, onde fake news, deepfakes, invasão de privacidade, violação a direitos autorais e desinformação de todo tipo caracterizaram abundantemente os pleitos. Ou os desserviços à saúde pública e à educação com a viralização de pseudociências, de orientações que trazem risco à vida, de revisionismo histórico sem base nenhuma, de desprestígio da educação, disseminando a ideia de que pessoas sem qualificação nenhuma podem produzir o conhecimento que interessa à coletividade e no qual devemos depositar nossa confiança.

A solução vislumbrada tanto por Habermas e Floridi, quanto por Mendonça, Filgueiras e Almeida, transitam em torno da regulamentação — seja de plataformas, IAs ou redes — e sugerem a implementação de normas sobre uso de dados, proibições de conteúdos desinformacionais e inibição do charlatanismo. No entanto, a primeira fragilidade dessa solução reside em considerar que o apego à razão, ou seja, o argumento racional e lógico, terá mais poder ou causará mais influência de que o discurso que reforça questões emocionais de pessoas vulneráveis — que passam privações, que sofrem discriminação, que têm problemas financeiros e afetivos, e que, muitas vez, não têm efetivamente direitos, sequer, tempo livre —, o que dificulta qualquer deliberação sobre tal regulamentação ou, no mínimo, atrapalha sua aplicabilidade, caso ela venha a se estabelecer.

Uma segunda fragilidade é que a acumulação de riqueza das big techs colocam seus proprietários no topo da hierarquia capitalista. Como se pode constatar em todas as democracias, as empresas que mais geram riquezas, costumam influenciar de forma direta as normas legais sobre o que interessa (e o que não interessa) à manutenção de seu esquema lucrativo. As guerras estadunidenses em países que detêm petróleo, a divisão de substâncias psicoativas em legais e ilegais, as regras de posse de terras, as regras financeiras de cobrança e desapropriação — todas essas regulamentações frequentemente atendem interesses de grandes proprietários de riqueza e não da comunidade a elas submetidas. As que atenderiam à maioria, como leis trabalhistas e direitos do consumidor, vivem sob ataque contínuo.

Com as grandes empresas digitais, vem ocorrendo algo ainda mais grave. Dado o poder que acumularam por controlarem praticamente todas as transações informacionais do mundo online, elas agem como governos, buscando redefinir o que é privacidade, liberdade de expressão, ou o que deve ou não o cidadão usar, em quem deve ou não acreditar.

Para agravar este cenário, a Associação Brasileira de Internet (Abranet) publicou, em 7 de abril de 2025, que, segundo a empresa de cibersegurança F5, o tráfego de bots superou o acesso humano à Internet. Os dados são de um estudo que analisou 207 bilhões de transações online e em APIs e constatou que mais de 50% das solicitações globais na Internet são automatizadas. A pesquisa, publicada no relatório Advanced persistent bots report 2025, aponta a explosão das IAs como causa principal, e, como impactos, destaca o aumento no número de respostas algorítmicas erradas ou sem sentido e uma distorção no treinamento das próprias IAs, prejudicado por um looping de dados que não correspondem a perfis humanos (Abranet, 2025).

A esperança de Floridi de que a autorregulação e as boas práticas seriam suficientes para direcionar eticamente a infosfera para o interesse social ruiu e demonstrou que a estratégia instrumental dos que controlam os algoritmos impede a genuína ação comunicativa entre agentes. Aponta-se como solução a desprivatização do ciberespaço.

 

REFERÊNCIAS

ABRANET. Bots são mais de 50% das transações online e chamadas de APIs no tráfego Internet. Portal Abranet, 07 abr. 2025. Disponível em: https://www.abranet.org.br/publicacoes/noticias/5505. Acesso em: 20 out. 2025.

AULA inaugural: Algoritmos, instituições e democracia. [S. l.]: PUC, 10 abr. 2024. 1 vídeo (95 min). Publicado pelo canal Ciências Sociais PUC Minas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uz-tqeLlGVw. Acesso em: 10 out. 2025.

FLORIDI, L. (ed.). The onlife manifesto: being human in a hyperconnected era. Oxford: Springer, 2015.

FLORIDI, L. A ética da inteligência artificial: princípios, desafios e oportunidades. Curitiba: PUCPRESS, 2025.

FLORIDI, L. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.

FLORIDI, L. The 4th revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.

FLORIDI, L. The end of an era: from self-regulation to hard law for the digital industry. Philosophy & Technology, [s. l.], n. 34, p. 619-622, 10 Nov. 2021.

FLORIDI, L. The philosophy of information. Oxford: Oxford University Press, 2011.

GONZALEZ DE GOMEZ, M. N. Jogos morais do século XXI: ética da informação de Luciano Floridi. In: SALDANHA, G.; CASTRO, P. C.; PIMENTA, R. M. (org.). Ciência da Informação: sociedade, crítica e inovação. Rio de Janeiro: Ibict, 2022. p. 323-348.

HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. v. 1.

HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.

HABERMAS, J. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. São Paulo: Unesp, 2023.

LÉVY, P. Cibercultura. 3. ed. São Paulo: 34, 2010.

MENDONÇA, R.; FILGUEIRAS, F.; ALMEIDA, V. Algorithmic institutionalism: the changing rules of social and political life. Oxford: Oxford Press, 2023.

NOBLE, S. U. Algorithms of oppression: how search engines reinforce racism. New York: New York University Press, 2018.

SILVA, T. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Sesc, 2024.

 



[1] Doutora em Filosofia

[2] Doutorando em Ciências da Comunicação

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