EUTANÁSIA

entre autonomia, dignidade e valor intrínseco da vida

Mariana do Nascimento[1]

Universidade Estadual de Londrina

 mariana.albiazzetti.psico@gmail.com

Dorival Assi Junior[2]

Universidade Estadual de Londrina

  dorivalassijr.1992@uel.br

Pamela Pereira Prestupa[3]

Universidade Estadual de Londrina

 pamelaprestupa@gmail.com

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Resumo

O trabalho analisa a eutanásia como um dilema ético contemporâneo que atravessa os campos jurídico, filosófico, médico e social, colocando em tensão três conceitos fundamentais: autonomia, dignidade e valor intrínseco da vida. O objetivo é examinar criticamente os critérios normativos que fundamentam decisões sobre o fim da vida, com base nas contribuições teóricas de Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Nicholas Agar. Dworkin propõe uma fundamentação liberal da eutanásia fundamentada na soberania individual e na dignidade subjetiva. Em contraste, Nicholas Agar apresenta uma abordagem ética biocêntrica, na qual o valor intrínseco da vida não é fixo ou absoluto, mas derivado da capacidade dos seres vivos de satisfazerem suas biopreferências em um ecossistema integrado. Por fim, Habermas oferece um critério procedimental para enfrentar os desafios do pluralismo moral, de modo a vincular a legitimidade de decisões bioéticas à deliberação pública. A metodologia adotada é teórico-interpretativa, com a aplicação das concepções dos autores ao instituto da eutanásia.  O estudo busca compreender como diferentes concepções de autonomia, dignidade e valor da vida podem justificar ou limitar o direito à antecipação da morte em sociedades democráticas.

Palavras-chave: Eutanásia. Ética. Autonomia.

EUTHANASIA

between Autonomy, Dignity, and the Intrinsic Value of Life

Abstract

This paper analyzes euthanasia as a contemporary ethical dilemma that spans the legal, philosophical, medical, and social fields, placing three fundamental concepts in tension: autonomy, dignity, and the intrinsic value of life. The objective is to critically examine the normative criteria that underpin decisions about the end of life, based on the theoretical contributions of Ronald Dworkin, Jürgen Habermas, and Nicholas Agar. Dworkin proposes a liberal foundation for euthanasia based on individual sovereignty and subjective dignity. In contrast, Nicholas Agar presents a biocentric ethical approach, in which the intrinsic value of life is not fixed or absolute, but derived from the capacity of living beings to satisfy their biopreferences in an integrated ecosystem. Finally, Habermas offers a procedural criterion to address the challenges of moral pluralism, in order to link the legitimacy of bioethical decisions to public deliberation. The methodology adopted is theoretical-interpretative, applying the authors' conceptions to the institution of euthanasia. The study seeks to understand how different conceptions of autonomy, dignity, and the value of life can justify or limit the right to the anticipation of death in democratic societies.

Keywords: Euthanasia. Ethics. Autonomy.

 

EUTANASIA

entre la autonomía, la dignidad y el valor intrínseco de la vida

Resumen

Este artículo analiza la eutanasia como un dilema ético contemporáneo que abarca los ámbitos jurídico, filosófico, médico y social, poniendo en tensión tres conceptos fundamentales: la autonomía, la dignidad y el valor intrínseco de la vida. El objetivo es examinar críticamente los criterios normativos que sustentan las decisiones sobre el final de la vida, a partir de las contribuciones teóricas de Ronald Dworkin, Jürgen Habermas y Nicholas Agar. Dworkin propone una fundamentación liberal de la eutanasia basada en la soberanía individual y la dignidad subjetiva. En contraste, Nicholas Agar presenta un enfoque ético biocéntrico, en el que el valor intrínseco de la vida no es fijo ni absoluto, sino que se deriva de la capacidad de los seres vivos para satisfacer sus biopreferencias en un ecosistema integrado. Finalmente, Habermas ofrece un criterio procedimental para abordar los desafíos del pluralismo moral, con el fin de vincular la legitimidad de las decisiones bioéticas a la deliberación pública. La metodología adoptada es teórico-interpretativa y aplica las concepciones de los autores a la institución de la eutanasia. El estudio busca comprender cómo las diferentes concepciones de autonomía, dignidad y valor de la vida pueden justificar o limitar el derecho a la anticipación de la muerte en las sociedades democráticas.

Palabras clave: Eutanasia. Ética. Autonomía.

1 INTRODUÇÃO

A eutanásia configura um dos dilemas éticos das sociedades contemporâneas, exigindo reflexão filosófica, jurídica e política sobre os limites da autonomia individual, o valor da vida humana e o papel do Estado na regulação da vontade individual. Em sociedades democráticas marcadas pelo pluralismo moral e religioso, a construção de critérios normativos que legitimem ou restrinjam essa prática demanda mais do que respostas técnicas ou jurídicas: exige fundamentos éticos consistentes e compartilháveis.

Nesse contexto, este trabalho propõe examinar três abordagens filosóficas que, quando aplicadas ao contexto da eutanásia, oferecem caminhos distintos (e eventualmente complementares) para enfrentar os impasses éticos em torno do direito à antecipação da morte. Ronald Dworkin defende a centralidade da autonomia e da dignidade subjetiva como critérios morais para legitimar a eutanásia, mesmo diante de incapacidade cognitiva. Nicholas Agar, por sua vez, apresenta uma concepção biocêntrica do valor intrínseco da vida, que desloca o foco exclusivamente humano e propõe critérios baseados na realização das biopreferências dos organismos, evitando tanto a sacralização da vida quanto sua redução a mero instrumento da vontade ou valor individual, especialmente em contextos onde decisões sobre a antecipação da morte podem se apoiar em juízos externos sobre vidas tidas como "menos valiosas".

Por fim, Jürgen Habermas, oferece uma crítica procedimental, sustentando que apenas decisões moralmente justificáveis sob condições discursivas equitativas podem ser consideradas legítimas em sociedades democráticas.

Para discutir a eutanásia, três conceitos vão ser fundamentais ao longo do trabalho: autonomia, dignidade e valor intrínseco da vida, os quais também recebem diferentes interpretações por diferentes autores e correntes ao longo da história.

Nesse sentido, partimos dos seguintes questionamentos: é possível sustentar a legitimidade moral da eutanásia com base apenas na autonomia individual? O que significa dizer que a vida possui um valor intrínseco? E valor instrumental? É possível relativizar o valor intrínseco da vida? De que modo as concepções formuladas por Dworkin, Agar e Habermas se aplicam à problemática da eutanásia?

 

2 DWORKIN E A AUTONOMIA

A posição liberal de Ronald Dworkin é notada na disposição da sua idéia de autonomia e em como isso se aplica às decisões sobre a morte assistida. Pode-se considerar que a autonomia de um sujeito é a capacidade e o exercício de decidir por si próprio sobre si mesmo sobre a própria vida. No caso do suicídio assistido, é fácil saber que uma pessoa está ciente do que deseja e está solicitando ou declarando, quando está consciente, expressa claramente seu desejo, apresenta estar em seu estado normal e sua fala é coerente. Porém, no caso específico da eutanásia, isso não ocorre, pois quem decide pela vida do paciente são os outros (a equipe médica e a família). Este é um problema apresentado por Dworkin (2019, p. 269) em Domínio da Vida: como defender a autonomia de quem já não pode mais exercê-la?

Para isso, inicialmente, é preciso que a família e amigos próximos do paciente estejam em consonância sobre os desejos dessa pessoa. É preciso se perguntar o que essa pessoa decidiria se pudesse argumentar a seu favor? Muito importante é que sejam considerados a sua personalidade e o que era mais importante para ela em geral na vida. Dworkin (2019, p. 271) traz dois exemplos diferentes em sua obra para explicar que a autonomia da pessoa é relevante e resolutiva nesse processo. O primeiro deles é o caso de Nancy Cruzan, cujo desejo foi expresso anteriormente para amigos e família, no sentido de que não gostaria de ser mantida viva nas condições em que acabara sendo colocada; e outro caso é o da sra. Wanglie, uma senhora que estava no mesmo tipo de situação, mas dessa vez nunca houve nenhum diálogo no qual seus desejos tivessem sido expressos. No caso de Nancy, foi crucial para o dilema, no sentido de executar ou não a eutanásia, que os pais, esposo e amigos conhecessem bem a jovem que lhes era próxima e que soubessem que, em sua essência, Nancy não gostaria de ser mantida viva apenas por aparelhos. Além disso, ela já havia dito isso clara e expressamente para uma amiga que recordou e testemunhou a favor dos pais de Nancy no curso do processo judicial[4]. No caso de Wanglie, também foi de extrema importância que a filha conhecesse bem a mãe e os desejos dela. Apesar de não diretamente com relação ao assunto, em sua essência lembrava-se da mãe como uma pessoa que lutava até o fim todas as batalhas e, então, deduziu a partir da personalidade da mãe que ela considerava aquela uma batalha que devesse lutar até o fim.

Em ambos os casos foi de extrema importância que a autonomia das pacientes tenham sido levadas em consideração, tanto para decidir pela realização da eutanásia (no caso e com base na vontade de Nancy Cruzan), quanto que a eutanásia não fosse realizada, uma opção tomada justamente por interpretar que lutar atá o fim fosse o desejo da paciente, mesmo que ligada a aparelhos e mantida viva apenas por eles, inconsciente. Ambas decisões foram tomadas com base em ideais hipotéticos o mais próximos possível dos desejos das pacientes e considerando o poder de realizar esses desejos como um exercício de sua autonomia. Por óbvio, facilitaria muito se cada pessoa pudesse expressar antecipadamente suas vontades, assim não haveria necessidade de recorrer tanto para as hipóteses e interpretações de vontades, o que pode não ser um caminho tão certeiro, podendo levar a erros. É o caso das pessoas que optam por registrar seus desejos em Diretivas Antecipadas da Vontade, que podem ser dispostas em Testamentos Vitais ou outros tipos de documentos (Dadalto, 2020, p. 122).

Essas afirmativas registradas antecipadamente sobre a vontade própria são expressões da autonomia do ser humano que, em seu estado lúcido, decide e delibera sobre o que deseja para si. A autonomia, ponto chave nestas situações, é o conceito que representa a capacidade do indivíduo de tomar decisões sobre sua própria vida, com base em suas convicções e valores. Para Dworkin (2019, p. 271), o ser humano tem direito de viver de acordo com seu próprio plano de vida e de morrer conforme esse mesmo plano, considerando suas próprias convicções, seus valores e escolhas pessoais, desde que isso não viole os direitos dos outros. Esse posicionamento liberal traz conforto se pensarmos de modo individual, pois o indivíduo teria liberdade máxima para deliberar sobre si mesmo, sobre a própria morte e sobre seus processos para morrer. Nesse sentido, a concepção dworkiniana de autonomia está diretamente ligada ao conceito de dignidade humana, que é tido como um valor moral fundamental que sustenta os direitos e a igualdade humana. A dignidade é um pressuposto ético que dá um certo sentido ao ideal de igualdade, ou seja, a ideia de que todas as pessoas deveriam ser tratadas com o mesmo respeito como seres autônomos, independente de qualquer outra coisa.

Um dos princípios no qual a dignidade humana se baseia é o valor intrínseco da vida humana. Dworkin (2019, p. 275) destaca que tanto as pessoas que defendem a eutanásia, quanto as que se posicionam contra ela, assim como acontece no caso do aborto, consideram a vida como sagrada e valiosa, mas os valores que a tornam sagrada são diferentes nos dois casos. Para Dworkin (2019, p. 343), o princípio da autonomia deve ser respeitado mesmo em questões relacionadas ao fim da vida, pois é a expressão mais profunda da dignidade humana, tendo ligação com o princípio da sacralidade da vida. Essa ideia de sacralidade da vida, presente sobretudo em tradições religiosas, sustenta que a vida possui valor intrínseco e inalienável, independentemente das condições de sofrimento ou desejo do indivíduo.

Essa perspectiva fundamenta muitas das críticas às práticas de eutanásia e suicídio assistido, mas, para Dworkin (2019, p. 276), isso pode ser justamente um valor favorável à prática da morte assistida. O conceito de dignidade, que é outro marcador nessa discussão, é amplamente discutido desde Kant. Ele remete ao valor intrínseco do ser humano, que não pode ser tratado como meio, mas sempre como fim em si mesmo (Michelini, 2010, p. 42 - 43). Para Dworkin, viver de forma digna significa ter respeitados os valores e convicções que cada indivíduo atribui à própria vida e morte. Os princípios da beneficência e não-maleficência, centrais no principialismo bioético, indicam que a ação médica deve buscar sempre o benefício do paciente e evitar causar-lhe danos (Salvadori; Menegazzi, 2017). No contexto da eutanásia, tais princípios entram em tensão: seria mais benéfico prolongar a vida a qualquer custo ou permitir uma morte sem mais sofrimento?

O ser humano, por sua capacidade de agir moralmente, possui um valor intrínseco e inalienável que chamamos de dignidade, ela é fundamentada na capacidade de raciocinar moralmente e na autonomia da pessoa humana, em sua liberdade de escolher agir de acordo com seus princípios morais. Segue disso, que a autonomia moral é um conceito central em que Kant caracteriza o ser humano, constituindo assim o fundamento da dignidade humana (Michelini, 2010, p. 42 e 43).

Esses princípios estão interligados entre si, e se completam um ao outro. Em Religião sem Deus, última obra de Dworkin (2019, p. 10), ele defende a liberdade religiosa e enfatiza que existem religiões ou crenças, e até mesmo não-crenças, que consideram que a vida seja sagrada independentemente da existência de um Deus criador. Salvadori e Menegazzi (2017), destacam que Dworkin exalta a singularidade da vida humana, que possui cada uma a sua história própria, cheia de experiências singulares e escolhas que vão lhe garantindo um valor único e insubstituível. Portanto, a vida humana, seja por criação divina ou evolutiva, tem seu valor intrínseco e isso transcende qualquer utilidade, seja ela pública ou não.

Uma diferenciação válida apresentada por Dworkin, é entre o valor instrumental e o valor intrínseco da vida, sendo que o primeiro se refere a algo que é valioso instrumentalmente, pela utilidade que tem e é isso que determina seu valor. No caso da vida, ela tem valor pela utilidade que possui diante de algo. Já no segundo valor, o valor intrínseco, este se refere a algo que tem valor em si mesmo. No aspecto de valor intrínseco como propriedade da vida humana, esta é vista como um processo de criação, essa criação pode ser natural ou cultural, e disso se segue que, desde a concepção até a morte, a vida que se desenvolve adquire um valor intrínseco único e independente de quaisquer variáveis. Nesse caso, a vida humana merece respeito e proteção, independentemente de suas capacidades ou contribuições para a sociedade, então a dignidade deve ser respeitada independente de outras questões como a utilidade, os interesses de uma pessoa ou como ela exerce sua autonomia (Salvadori e Menegazzi, 2017; Dworkin, 2019, p.101 e 102).

Nesse sentido, a posição de Dworkin se posiciona como compatível com o respeito ao valor intrínseco da vida, pois, para o autor, reconhecer o valor intrínseco da vida inclui respeitar a forma como cada indivíduo constrói o valor de sua própria existência, ou seja, respeitar sua dignidade e sua autonomia. E, dessa forma, a eutanásia, desde que de acordo com a vontade do indivíduo, não representaria uma vioação do valor intrínseco da vida, mas sim a sua concretização.

 

3 NICHOLAS AGAR E O VALOR INTRÍNSECO DA VIDA

A proposta de Dworkin, centrada na autonomia, é vinculada ao critério antropocêntrico de autonomia para definição de legitimidade moral. Esse critério, contudo, pode deixar lacunas em situações em que não é possível ao agente envolvido expressar a sua vontade. Outros autores, como Peter Singer (2011), já haviam questionado os limites do antropocentrismo, propondo a sensciência como critério para inclusão moral. Mas mesmo esse critério deixa de fora formas de vida que apresentam organização complexa, autorregulação e papel ecológico relevante, mas não possuem consciência ou sensciência. Seria possível conceber um valor para a vida que não dependa da consciência, sensciência ou da autonomia? Concebendo um valor intrínseco para a vida, em oposição ao valor meramente instrumental, seria possível legitimar a eutanásia?

Nicholas Agar é um filósofo, professor de Ética na Universidade de Waikato, Nova Zelândia. Nos últimos anos, seu trabalho tem se dedicado ao estudo das implicações éticas decorrentes dos avanços tecnológicos. Entre os temas que investiga, propõe a construção de uma ética ambiental que ultrapassa os limites do antropocentrismo. Com base na ética biocêntrica, ou ética centrada na vida, o autor pretende deslocar o indivíduo humano do centro do universo moral, por meio de uma visão de valor centrada na vida: “uma ética que reconhece algum grau de valor intrínseco em todos os seres vivos” (Agar, 2011, p. 172, tradução nossa). Essa abordagem, apesar de também incluir vidas não humanas na consideração moral, vai de encontro a autores como Peter Singer que, por exemplo, fundamenta a consideração moral na sensciência.

Mas, então, o que significa estar vivo? Agar utiliza uma concepção representacional do que significa estar vivo, em oposição a uma compreensão estritamente psicológica[5],  conferindo valor aos organismos simples e complexos que fazem parte da rede da vida. O autor não abandona totalmente o papel da psicologia popular, mas busca adequá-la às evidências científicas (Agar, 2011, p. 23). Em vez de perguntar se um ser pensa ou sente, passa-se a considerar se ele está vivo e como se insere na rede de relações ecológicas. Assim, o valor depende da estrutura e do funcionamento daquele organismo enquanto tal.

E como definir o valor intrínseco de algo? Apesar de a filosofia clássica partir da necessidade de definição de conceitos amplamente válidos, ou seja, conceitos que, uma vez definidos, possam ser aplicados de forma única e universal, Agar acredita que não exista uma única definição de valor da vida, já que essa análise passa por conceitos e questões morais, biológicos, bioéticos e assim por diante, que dependem do enquadramento em algum contexto (Agar, 2011, p. 13). Isso se dá, em parte, pelo fato de o autor se considerar não apenas um filósofo interessado na natureza, mas também um naturalista filosófico:

O fato de eu não ser apenas um filósofo interessado na natureza, mas também um naturalista filosófico, terá um impacto significativo na forma de conselho moral que oferecerei. A defesa do valor moral básico da natureza tem algumas implicações práticas imediatas (Agar, 2011, p. 13, tradução nossa).

E continua:

Naturalistas se opõem às soluções conceituais rápidas dos filósofos. Uma inspeção de nossos conceitos voltados para o mundo pode nos apontar a direção certa, mas por si só não nos dá verdades significativas sobre o mundo. Informações científicas — inacessíveis a partir da poltrona filosófica — são essenciais para a definição de conceitos centrais e para a formulação de princípios fundamentais. O mesmo deve ocorrer com a apreciação moral da natureza. O principal resultado prático substantivo deste livro deve ser uma reconceitualização das ciências da natureza (Agar, 2011, p. 14, tradução nossa).

O critério “ser humano” é considerado por muitos como critério de importância moral. Mas o que justifica isso? O autor propõe pensar no caso de um ser que não é humano, mas apresenta características humanas: consciência, racionalidade, capacidade de formulação de projetos e reconhecimento da importância de sua existência. Por outro lado, podemos também pensar em um embrião recém concebido (um dia de desenvolvimento após a fecundação): ele certamente é humano, mas não possui qualquer consciência de si mesmo ou capacidade de sofrer (Agar, 2001, p. 07). Assim, qual é de fato a propriedade humana que justifica a importância moral?

Na busca por responder a essa questão, alguns teóricos buscaram incluir também animais não humanos na esfera da consideração moral, justificando pela existência de uma mente e, eventualmente, consciência ou sensciência. “A má notícia é que os tipos de coisas que mais interessam aos ambientalistas parecem irremediavelmente não psicológicas. Isso as deixaria fora do alcance da moralidade?” (Agar, 2011, p. 17, tradução nossa).

Essa problematização aponta para um impasse ético mais amplo: se atrelarmos o valor moral apenas à presença de estados mentais, corremos o risco de excluir da consideração moral não só organismos não humanos (complexos ou simples, mas cuja existência é importante para a vida no geral), mas também formas humanas de vida que, em determinadas condições, não manifestam consciência, desejos ou sofrimento.

Se aceitarmos que o valor da vida não depende exclusivamente da vontade individual nem da capacidade de sentir, então a interrupção de uma vida (ainda que sem consciência) passa a exigir outro tipo de justificação. E isso se aplica no sentido de ação afirmativa e negativa: tanto no ato de encerrar quanto no ato de prolongar uma vida devem ser avaliados com base em critérios que ultrapassem a subjetividade individual. Agar (2011, p. 146 - 147) chama atenção, por exemplo, para o comportamento de auto sacrifício de abelhas operárias, que morrem ao picar invasores para proteger a colmeia, ou de aves como a pied stilt, que fingem estar feridas para atrair predadores para longe de seus ninhos. Intervir nesses comportamentos com o objetivo de “salvar” o indivíduo, como sugeririam abordagens individualistas, pode representar, uma violação das biopreferências daqueles indivíduos, afetando e modificando a maneira como essas vidas se organizam biologicamente em prol de finalidades coletivas ou ecológicas.

O autor apresenta outro dilema, no qual comparamos duas opções: a morte de cinco aves takahe, em risco de extinção, ou de cinco aves pied stilt, abundantes na natureza. Ambas apresentam graus semelhantes de sofisticação representacional e sofrimento individual semelhante. Apesar disso, o impacto moral da decisão não pode ser mensurado apenas pela quantidade de vidas perdidas, mas deve ser ponderado pelo efeito mais amplo sobre os interesses individuais de outros membros da espécie (Agar, 2011, p. 148 - 149).

No contexto dos debates sobre eutanásia, isso levanta diversas questões: uma vida sem consciência ainda pode ter valor intrínseco? Reconhecer o valor intrínseco da vida representa uma proibição de antecipar o seu fim? A decisão sobre o fim da vida poderia considerar não apenas o sofrimento e a vontade individual, mas também a complexidade e a dignidade própria de estar vivo? Como construir critérios éticos que respeitem a vida em sua pluralidade de formas?

Apesar de Nicholas Agar não discutir diretamente sobre a eutanásia, a sua proposta de uma ética centrada na vida pode contribuir para reorientar o debate. Nesse contexto, o valor intrínseco é tido como algo que depende da capacidade do ser vivo de realizar suas biopreferências dentro de um ecossistema integrado, ou seja, de manifestar comportamentos e processos biológicos orientados à autoconservação, à reprodução e à integração ecológica da vida, em oposição ao valor intrínseco como algo fixo e absoluto.

Nesse quadro, a eutanásia não poderia ser legitimada pura e simplesmente pela autonomia individual, mas tampouco pode ser negada com base em uma idolatria intocável da vida. A interrupção de uma vida pode, em certos casos, não representar uma violação, mas sim um reconhecimento de que aquela existência perdeu sua condição básica de realização vital, sendo incapaz de satisfazer qualquer biopreferência relevante. Por outro lado, a vida não deixa de ter importância apenas porque perdeu funções mentais ou utilitárias; ela continua a expressar, em algum grau, a complexidade biológica que sustenta o tecido da vida como um todo.

Assim, a ética de Agar não conduz nem a uma defesa incondicional da vida a qualquer custo, nem a uma abertura irrestrita à morte voluntária. O valor da vida deve considerar a complexidade da organização biológica, o papel ecológico desempenhado pelo ser vivo e as “preferências implícitas dos organismos individuais” (2011, p. 145).

Desse modo, a eutanásia não pode ser legitimada exclusivamente pela autonomia individual, mas tampouco pode ser negada com base em um valor absoluto, intocável e isolado da vida. Fica, então, a pergunta que talvez possa ser guiada pelo procedimento habermasiano: como decidir quando a interrupção da vida é eticamente justificável e com base em quais critérios?

 

4 AUTONOMIA E DELIBERAÇÃO EM HABERMAS

Para analisar a eutanásia a partir da filosifia habermasiana se exige compreender a ideia de liberdade para o autor e como a mesma é trabalhada na esfera pública para a formação de entendimentos racionalmento motivados.

 Antes de adentrar aos temas propriamente ditos é preciso situar o leitor, Jürgen Habermas (1929) é um filósofo alemão e que teve boa parte de sua formação teórica no Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt. O autor foi sucessor de Theodor Adorno (1903-1969) no Instituto e guarda estreita relação em seus referenciais teóricos com os autores da teoria crítica frankfurtiana.

A teoria da sociedade e do direito de Habermas tem forte influência de Max Weber (1864-1920), Niklas Luhmann (1927-1998) e Immanuel Kant (1724-1804).

Estabelecidos estes pressupostos, trabalhar a ideia de liberdade exige a compreensão do que é necessário para o exercício da liberdade, ou seja, a autonomia. Habermas nos lembra que “a autonomia é, antes, uma conquista precária de existências finitas, que só conseguem “se fortalecer” quando conscientes de sua vulnerabilidade física e de sua dependência social” (Habermas, 2004, p. 48).

Agir de maneira livre, portanto, exige compreender que existem duas ordens de limitações aos sujeitos que convivem em sociedade. O limite imposto pela própria natureza e o limite moral estabelecido a partir da razão comunicativa. De maneira objetiva, a razão comunicativa para Habermas é aquela que surge a partir do entendimento estabelecido socialmente e derivado de um ato dialógico de troca de atos de fala ilocucionários.

A teoria crítica define-se por sua finalidade emancipatória. Ou seja, enquanto a teoria clássica busca descrever como as coisas são, a teoria crítica busca “[...] analisar o funcionamento concreto delas à luz de uma emancipação ao mesmo tempo concretamente possível e bloqueada pelas relações sociais vigentes” (Nobre, 2004, p. 22).

Entender o que é compreendido como um potencial emancipatório em Habermas é crucial para o entendimento da formação da limitação moral. Para ele, a capacidade de participação de forma consciente e livre para formação de uma razão comunicativa. A “[...] ética do discurso não oferece orientações substanciais, mas um procedimento rico em pressupostos que deve garantir a imparcialidade na formação do juízo” (Habermas, 2023, p. 202).

A construção moral do sujeito passa por um nível individual e por um nível coletivo. No âmbito individual ela é graduada a partir da conscientização da importância social destas ações. O autor divide os níveis de compreensão do sujeito pela teoria construtivista de Lawrence Kohlberg (1927-1987) em pré-convencional, convencional e pós-convencional (Habermas, 2023, 203-206).

No primeiro nível, a atitude é orientada por desejos pessoais, seja para afastar uma punição ou para alcançar determinada finalidade. O segundo nível é orientado pelas expectativas de um grupo, pelo reconhecimento do grupo ou pela manutenção da ordem. O último nível é alcançado com a consciência da existência de princípios universais que devem ser seguidos. Como agentes racionais, devemos compreender a necessidade de respeito recíproco aos valores divergentes na sociedade e na proteção de bens jurídicos basilares, como a vida e a liberdade.

A construção moral em âmbito coletivo depende do reconhecimento da existência de regras de comunicação que se impõe para a formação de consensos racionalmente motivados e que guiem para um entendimento. Esta formação de consensos depende da proposição de pretensões que serão submetidas ao contraditório, amparados por critérios racionais.

Nesse sentido, “a elaboração argumentativa das pretensões de validade estará submetida ao contraditório, passando por filtros internos (própria análise racional do falante) e externos (exercício da análise de contradições performativas) do diálogo” (Assi Junior; Bannwart Junior; Ferreira Neto, 2024, p. 107). Além dos filtros internos e externos, há, ainda, a submissão a um princípio de universalização (“U”), a fim de que se verifique a afetação/privação de terceiros em função da pretensão de validade. É na troca,  “[...] na argumentação, [que] pretensões de validade, pelas quais os agentes se orientam sem questionamento na práxis comunicativa cotidiana, são expressamente tematizadas e problematizadas” (Habermas, 2023, p. 207).

Entender a prática da eutanásia na visão de Habermas dependerá, portanto, da compreensão da autonomia do sujeito e da esfera pública, pois, como já destacado, a teoria habermasiana não oferece orientações substaciais, mas de procedimento para a formação racional da vontade e das discussões públicas. Para ele, “apenas na esfera pública de uma comunidade linguística é que o ser natural se transforma ao mesmo tempo em indivíduo e em pessoa dotada de razão” (Habermas, 2004, p. 49).

A definição de uma aceitabilidade dependerá, de acordo com a teoria habermasiana, da autonomia do sujeito e da aceitação do direito de tal procedimento. O direito se valerá das discussões da esfera pública para tomar posição frente a este assunto.

Outro campo de debate é a formação de um Estado de direito de orientação pós-metafísica. O que exige o reconhecimento de conteúdos cognitivos provenientes de discursos religiosos e, por outro lado, das limitações da razão.

Invariavelmente, a discussão de morte e vida recai em algum aspecto do campo da religião. E um entendimento global do tema, exige enfrentá-los. O Estado, embora reconheça a importância da religião, também deve guiar-se por uma linguagem universal. A linguagem secular. E, a partir disso, submeter as pretensões de validade religiosas ao escrutínio do debate público e do princípio de universalização. Submeter a este princípio, exige a transposição da linguagem religiosa em secular e, a isso, Habermas chama de cláusula de tradução institucional.

Não se pode exigir um ônus argumentativo superior aos cidadãos religiosos e, para isso, é preciso criar meios de transposição do discurso através das instituições do aparato estatal e social.

Saber, ao final, se a eutanásia é aceitável, depende, para Habermas, dos consensos formados a partir do assunto pelas instâncias democráticas. Para ele, “o procedimento democrático deve sua força geradora de legitimação a dois componentes – por um lado, à participação política equitativa dos cidadãos” (Habermas, 2025, p. 201) e,  “ [...] por outro lado, à dimensão epistêmica das formas de discussão que justificam a suposição de resultados racionalmente aceitáveis” (Habermas, 2025, p. 201).

 

 

 

5 CONCLUSÃO

A análise dos aspectos éticos e morais da eutanásia e do suicídio assistido mostram a complexidade do tema e a diversidade de argumentos que atravessam a filosofia, a medicina, o direito e a religião. Longe de ser uma questão meramente técnica ou jurídica, trata-se de um dilema profundamente humano, que envolve a relação entre a vida, a morte e o sentido da vida e a dignidade.

Nessa discussão, especialmente são os conceitos de valor intrínseco da vida, autonomia e dignidade, que encontram divergência em seu entendimento mesmo entre aqueles que propagam a defesa e ponderação de tais valores.

Ronald Dworkin defende que a autonomia deve ser o fundamento central na deliberação sobre o fim da vida. Decidir sobre a própria morte, em situações de sofrimento irreversível, não significa desprezo pela vida, mas a tentativa de vivê-la e finalizá-la de acordo com os valores que dão coerência à biografia de cada indivíduo. O autor também não deixa de reconhecer o valor intrínseco da vida, mas ao contrário: para ele, esse valor está ligado à maneira como cada pessoa atribui sentido à sua existência. A vida tem valor intrínseco não por ser biologicamente contínua, mas por representar uma narrativa significativa construída ao longo do tempo. Nesse sentido, respeitar a autonomia de alguém que decide interromper a própria vida é, para Dworkin, uma forma de honrar a dignidade inerente ao ser humano.

No entanto, essa valorização da autonomia pode recair no risco de invisibilizar vidas cuja vontade não pôde ser expressa, ou de reduzir o valor da vida a um mero instrumento da escolha individual. Nesse ponto, a ética biocêntrica de Nicholas Agar propõe um conceito distinto ao valor da vida: o valor intrínseco da vida não deriva da consciência ou da racionalidade, mas da capacidade de um organismo realizar suas biopreferências em um ecossistema integrado, que inclui orientações à autoconservação e à integração ecológica. Por meio desse conceito do autor, entendemos que, nessa perspectiva, a interrupção da vida em certos casos pode representar reconhecimento da falência irreversível da capacidade de viver de forma minimamente integrada e significativa, reconhecendo-se a legitimidade da eutanásia. Por outro lado, o mesmo critério impede que a vida seja descartada com base em juízos externos de utilidade, pois o valor vital repousa em uma estrutura orgânica complexa, que não é meramente redutível à consciência.

Por fim, Jürgen Habermas oferece um procedimento para lidar com esses conflitos morais num contexto democrático: decisões sobre o fim da vida devem ser construídas publicamente por meio da deliberação entre iguais, orientada por pretensões de validade e pelo princípio de universalização. A autonomia, nesse sentido, não é um atributo dado, mas sim construída no interior de uma comunidade, onde os indivíduos se tornam sujeitos racionais justamente por participarem de processos de argumentação e validação mútua.

 

REFERÊNCIAS

AGAR, Nicholas. Life’s intrinsic value: science, ethics and nature. New York: Columbia University Press, 2001.

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[1] Graduanda em Filosofia

[2] Mestre em Direito

[3] Doutoranda em Filosofia

[4] No caso, a família precisou entrar com apelação para o Supremo Tribunal dos EUA, pedindo pela execução da eutanásia, pois a condição da filha era indigna de acordo com os seus desejos.

[5] Assim define o autor como visão psicológico: “Usarei o termo “visão psicológica” para identificar o conjunto de teorias, racionalistas e hedonistas, que utilizam alguma coleção de noções da psicologia do senso comum para esboçar os limites do valor intrínseco” (Agar, 2011, p. 16).

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