LINGUAGEM, DISCURSO E CIDADANIA
a construção e a reconstrução de normas democráticas
Clóvis Ricardo Montenegro[1]
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
clovismlima@gmail.com
Sheron da Silva Bezi[2]
Universidade Luterana do Brasil
Email: sheronbesi@rede.ulbra.br
Elisângela dos Santos Faustino Röder[3]
Freie Universität Berlin
lisafaustino@gmail.com
Fernanda Carrato Werneck Evangelista[4]
Escola dos Sonhos
fecarrato@gmail.com
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Resumo
A linguagem perpassa a construção do indivíduo assim como qualquer forma de vida social. Não é possível pensar uma comunidade, um país sem vislumbrar cidadãos que o componha e nem uma dinâmica de convivência respeitando a individualidade e as estruturas comuns sem a clareza dos deveres e direitos de cada um. Este artigo tem como objetivo refletir sobre a interligação da linguagem como elemento fundamental para pensar a cidadania e o acesso à justiça. Para tanto, conta-se com uma revisão bibliográfica sobre obras que reflitam os conceitos destes termos e aquelas que já se dedicaram a pensar a relação da linguagem no mundo do direito assim como ela no exercício da cidadania. O que o artigo evidencia é a importância da construção, diversificação e garantia de espaços onde as potencialidades da linguagem possam ser desenvolvidas e exercitadas, considerando que o usufruto de local e seguridade para se expressar, para acessar mecanismos de entendimentos dos códigos utilizados na comunicação com os outros integrantes já é a base que viabiliza o exercício da cidadania e que compartilha em diversos níveis o mesmo solo onde se ergue os objetivos da esfera jurídica. Por fim, por ser a cidadania e o direito componentes vitais na arquitetura das sociedades modernas e estas construídas a partir da linguagem, carregam assim seu caráter vivo, dinâmico e relacional.
Palavras-chaves: Linguagem. Direito. Cidadania.
LANGUAGE, DISCOURSE AND CITIZENSHIP
the construction and reconstruction of democratic norms
Abstract
Language permeates the construction of the individual as well as any form of social life. It is impossible to think of a community, a country, without envisioning the citizens who compose it, nor a dynamic of coexistence respecting individuality and common structures without clarity regarding the duties and rights of each person. This article aims to reflect on the interconnection of language as a fundamental element for thinking about citizenship and access to justice. To this end, it relies on a bibliographic review of works that reflect the concepts of these terms and those that have already dedicated themselves to thinking about the relationship of language in the world of law as well as its role in the exercise of citizenship. What the article highlights is the importance of building, diversifying, and guaranteeing spaces where the potential of language can be developed and exercised, considering that the enjoyment of a safe and secure place to express oneself, to access mechanisms for understanding the codes used in communication with other members, is already the basis that enables the exercise of citizenship and that shares, at various levels, the same ground where the objectives of the legal sphere are built. Finally, because citizenship and law are vital components in the architecture of modern societies, and these are built from language, they thus carry its living, dynamic, and relational character.
Keywords: Language. Law. Citizenship.
LENGUAJE, DISCURSO Y CIUDADANÍA
construcción y reconstrucción de normas democráticas
Resumen
El lenguaje impregna la construcción del individuo y toda forma de vida social. Es imposible concebir una comunidad, un país, sin imaginar a sus ciudadanos, ni una dinámica de convivencia que respete la individualidad y las estructuras comunes sin claridad respecto a los deberes y derechos de cada persona. Este artículo busca reflexionar sobre la interconexión del lenguaje como elemento fundamental para pensar la ciudadanía y el acceso a la justicia. Para ello, se basa en una revisión bibliográfica de obras que abordan estos conceptos y que ya se han dedicado a analizar la relación del lenguaje en el ámbito jurídico, así como su papel en el ejercicio de la ciudadanía. El artículo destaca la importancia de construir, diversificar y garantizar espacios donde se pueda desarrollar y ejercer el potencial del lenguaje, considerando que el disfrute de un lugar seguro para expresarse y acceder a mecanismos para comprender los códigos utilizados en la comunicación con otros miembros constituye la base que posibilita el ejercicio de la ciudadanía y que comparte, en diversos niveles, el mismo terreno donde se fundamentan los objetivos del ámbito jurídico. Finalmente, dado que la ciudadanía y el derecho son componentes vitales en la arquitectura de las sociedades modernas, y estos se construyen a partir del lenguaje, poseen, por lo tanto, un carácter vivo, dinámico y relacional.
Palabras clave: Lenguaje. Derecho. Ciudadanía.
1 INTRODUÇÃO
A linguagem é uma dimensão constitutiva da vida social e, no campo jurídico, assume papel central não apenas como meio de comunicação, mas também como instrumento de poder e de legitimação das normas. O Direito, ao organizar-se por meio da linguagem, deveria possibilitar a compreensão das normas por todos os cidadãos, de modo a efetivar a cidadania e a promover o acesso democrático à justiça. Contudo, o que se observa no contexto brasileiro é a persistência de uma prática discursiva marcada pelo uso excessivo de linguagem prolixa, caracterizada por termos técnicos, fórmulas ritualísticas e expressões herméticas que distanciam o cidadão comum da linguagem jurídica.
É amplamente reconhecido que o Direito carrega em suas origens a marca de uma escrita rebuscada e prolixa, fortemente influenciada pela tradição romano-germânica e pela concepção de que se trata de um campo destinado a lidar com questões de elevada complexidade. Nesse sentido, há autores que defendem a manutenção dessa linguagem técnica e rígida, argumentando que, assim como em outras áreas do saber, cada ciência desenvolve um vocabulário próprio que deve ser interpretado e compreendido por aqueles que detêm o devido conhecimento especializado. “A linguagem técnica tem de ser exata. Ela não pode ser ambígua nem conotativa. O jargão jurídico é opaco para o leigo, mas não para o profissional”. (Borba, 2003 apud Lages, 2012, p. 173).
Em tese, tal argumentação poderia merecer guarida se a linguagem utilizada nas instituições judiciais não incidisse diretamente sobre direitos fundamentais do cidadão, comprometendo, assim, o acesso pleno à cidadania. É notório que o indivíduo deve ter ciência dos efeitos que determinada decisão judicial projeta sobre sua vida, bem como compreender minimamente o funcionamento da justiça. Sem esse acesso integral, isto é, sem o entendimento claro da linguagem empregada, o próprio Direito, em sua essência, acaba por negar a cidadania em sua totalidade.
Entretanto, o distanciamento ocasionado pela linguagem jurídica rebuscada vai além da criação de rupturas e barreiras entre a população e os seus direitos. Esse movimento funciona, também, como mecanismo de controle e de poder, uma vez que estabelece quem detém o domínio do discurso jurídico e, consequentemente, o acesso ao saber e à justiça, essa exclusão simbólica e material afeta sobretudo os grupos historicamente marginalizados, como negros, pobres e periféricos.
Ao passo da construção e reconstrução das normas democráticas, a teoria do agir comunicativo, formulada por Jürgen Habermas, estabelece a linguagem como eixo fundamental para a construção de consensos e para a legitimação democrática das normas. Nessa concepção, o Direito exerce papel central de mediação, traduzindo a racionalidade estratégica presente nas esferas política e econômica em uma racionalidade comunicativa voltada ao entendimento mútuo. Assim, a cidadania não se restringe à formalidade jurídica, mas é continuamente reconstruída pelo discurso, pelo diálogo e pela participação ativa dos cidadãos na esfera pública.
Essa perspectiva crítica evidencia que o exercício pleno da cidadania depende da abertura das instituições jurídicas e políticas ao diálogo inclusivo, rompendo com práticas elitistas e excludentes. Autores como Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos reforçam a necessidade de uma pedagogia emancipatória e de uma ecologia dos saberes que dêem voz aos sujeitos historicamente silenciados. A reconstrução racional da cidadania, nesse sentido, não é apenas teórica, mas prática: ela se concretiza na linguagem acessível, na deliberação pública e na solidariedade social, elementos indispensáveis para uma democracia substantiva e para um Direito verdadeiramente comprometido com a emancipação humana.
2 LINGUAGEM, SOCIALIZAÇÃO E INTEGRAÇÃO SOCIAL
Do ponto de vista da linguagem como denominador comum da reflexão, resgatamos o entendimento de Severo (2013) para quem a linguagem é uma faculdade humana desenvolvida e concretizada a partir dos códigos linguísticos, os quais em comunhão com outras propriedades humanas vão desencadear e organizar o pensamento. Paralelamente a estas estruturas estão os pares que em convívio desenvolvem os diversos entendimentos e as concepções sobre o mundo que os cercam, possibilitando a construção de estruturas complexas que dão base a nossa organização como sociedade e os subsistemas que a sustentam ou que mantém viva e em constante processo de renovação.
Em seus estudos de Habermas (1989) faz um intenso estudo e detalha a interligação destas instâncias linguagem, socialização e integração social considerando o primeiro como ponto central. A partir desta empreitada, ele reúne diferentes perspectivas para pensar a dinâmica da sociedade moderna considerando seu processo ao longo dos séculos sem perder de vista a atuação do indivíduo e dos diferentes grupos formados por este.
Habermas (1989) desenvolve suas análises sobre a sociedade e seus desafios a partir da filosofia, permeando-as no âmbito da linguagem, ligando a processos cognitivos como aprendizagem, compreensão, interpretação, e também a psicologia social, aspectos políticos, entre outros. Com estas intersecções ele estabelece que a linguagem desempenha 3 funções: “a) função da reprodução cultural ou presentificação das tradições; b) a função da integração social; c) a função da socialização da interpretação cultural das necessidades.” (p.41). Percebe-se ao longo das reflexões do filósofo que a linguagem ocupa um lugar estruturante no indivíduo e na sociedade.
A linguagem como partícipe do processo socializador se estabelece dentro do próprio mecanismo de aprendizagem dos códigos que tornam a sua efetivação possível. Este processo ocorre sobre uma via de mão-dupla, onde o sujeito que adquire a língua torna-se atuante sobre ela e as bases onde se dá este processo que, por sua vez, é o espaço da própria socialização, na interação com o outro. O indivíduo desde a tenra idade passa a contactar, perceber, interagir e compreender o seu meio com e a partir da linguagem, é com este instrumento que irá absorver, repassar, renovar os valores, as práticas, as percepções de mundo que o rodeiam.
Em suas dimensões mais amplas, os processos de socialização envolvem ser individual (todo um espectro de experiências, posicionamentos, saberes, estruturas emocionais, capacidades cognitivas); suas interações, comunicações e atividades no meio social em que vive (relações familiares, escolares, interações com outras crianças, meios de comunicação de massa, religião etc.); bem como as distinções sociais que podem se manifestar em todas essas relações (sua pertença racial, de gênero, de estratificação social etc.). (Grigorowitschs, 2008, p.37)
A socialização é a aproximação de alguém que está dissociado, ou seja, está apartado daquilo que é considerado a referência central ou um ponto de convergência de um determinado espaço. A entrada de um indivíduo novo em qualquer esfera onde outros já se encontram, seja o recém-nascido ou qualquer pessoa que adentra a um novo círculo de convivência, passa pela socialização. Isso não incorre em dizer fundir-se ao meio, porque na mesma proporção que o sujeito se socializa, que é reconhecido como membro pelos os outros indivíduos conflui a sua individualidade na composição e na dinamização deste espaço referencial de convivência. “Na medida que sujeito que cresce através do processo de socialização e incorpora inicialmente aquilo que as pessoas de referência esperam dele, passando em seguida a integrar e a generalizar, através da abstração, as expectativas múltiplas, inclusive as contraditórias, surge um centro interior de auto-comando do comportamento, imputável individualmente.” (Habermas, 1989, p.186).
A integração social neste âmbito só é completa quando o sujeito sente-se ativo no seu processo de aquisição dos valores e normativas do grupo ao qual pertence, assim como se vê partícipe da manutenção, revisão e elaboração deste arcabouço comunitário. A integração social neste âmbito está diretamente relacionada à linguagem no que tange seu caráter interdependente da relação entre os indivíduos, estes com o mundo da vida e com o que interpretam dela. A integração não é uma condição estática, ou seja, uma vez integrado para sempre integrado, assim como a linguagem se realiza e se atualiza no encontro sejam entre os sujeitos ou com as estruturas criadas por ela mesma, a integração social também é movimento contínuo que produz, reproduz, renova a formas de atuação e pertencimento do cidadão ao meio que está inserido.
Na visão habermasiana o Direito oferece, na contemporaneidade, a ambiência adequada para proporcionar a integração social nesta sociedade que já não usufrui estruturalmente dos antigos instrumentos para este fim ancorados sobre uma historicidade, ou seja, bases e experiências desenvolvidas em tempos passados. O depósito das fichas no sistema judiciário se dá pelo fato de que na atualidade não dispomos mais do sistema que validavam os saberes baseados na tradição e o direito é capaz de reunir da sua estrutura processos que conduzem a um nível de entendimento e equilibrem a coerção e liberdade.
3 DIREITO E CIDADANIA: A SOLIDARIEDADE COMO MEDIADOR
Na concepção de Habermas os desafios do desenvolvimento da sociedade esbarram na separação entre mercado-capital e mundo da vida, ou seja, não há mais uma relação direta na perspectivas do indivíduo da sua esfera trabalhador-consumidor, homem e cidadão atuante no mundo da vida (Martins, 2019). Onde outrora os mecanismos de ligação eram articulados pela religião, as tradições, os valores cultuados nas famílias, nas comunidades o que dava contorno das sociedades, agora é proposto pelo Estado de Direito.
Nesse contexto de crise social, bem como do capital, urge ao Estado passar a regular tanto as relações do capital, quanto também a relação entre o capital e os indivíduos. Estruturando juridicamente a relação consumidor-trabalhador para além dos ditames do Direito Civil, mas para dentro do escopo do Direito Público, tal qual, por exemplo, a instituição do Direito do Trabalho e Previdenciário. Ao passo que junto ao mercado se estruturaria as relações de Direito Comercial e de Processo Civil. (Martins, 2019, p.203).
É na instância do direito que Habermas deposita seus créditos na condução de uma sociedade, principalmente, no âmbito de integrador social. É na esfera do direito que há a consolidação ou é onde se reúnem as vias que constroem esta integração. Para tanto, tem-se os aspectos precedentes que precisam estar atuantes e assegurar o sentimento de pertença numa sociedade. Entre estas condições está o nível de participação que os indivíduos têm nas decisões sobre a elaboração e execução das normas. E neste sentido que a relação “direito e solidariedade” se torna fundamental, na visão de Habermas.
Segundo o filósofo as sociedades modernas também contam com o mercado e o poder administrativo como formas integradoras da sociedade, apesar de agirem “por trás das costas dos participantes”, por considerar que suas ações, mesmo que objetivas, nem sempre chegam ao nível de consciência dos integrantes de uma determinada sociedade (Habermas, 1997, p.61).
Pensar na solidariedade como essa força centrípeta que concatena diferentes esferas e se torna a principal esfera integradora do direito só é possível em decorrência de sua origem estar diretamente ligada ao “consenso de fundo prévio relativo a valores compartilhados intersubjetivamente pelos quais os atores se orientam” (Pinzani, 2009, apud Martins, 2019, p. 211). Esse posto, que a solidariedade assume junto a função do direito nas sociedades modernas, faz com que ela possa se posicionar como principal elemento de resistência e equilíbrio diante das forças vindas do mercado e do poder administrativo. E para Habermas, assim como as esferas especializadas que transmitem “os valores tradicionais e os conhecimentos culturais”, além de integrar e socializar os membros que adentram a sociedade baseando-se em solidariedade para se concretizarem, da:
(...) mesma fonte também teria de brotar uma formação política da vontade que exercesse influência sobre a demarcação de fronteiras e intercâmbio existente entre essas áreas da vida comunicativamente estruturadas, de um lado, e o Estado e economia, de outro (Habermas, 1987, p.112).
Esse direito que assume o papel integrador na atual sociedade precisa dos processos democráticos para legitimar o seu arcabouço jurídico o qual é capaz de interligar instâncias que validam suas leis de forma que seus integrantes se vejam partícipes do seu processo de criação. O sistema jurídico para Habermas (1997) não se segura somente com as garantias individuais e nem no reconhecimento de que todos são iguais perante as leis, “os participantes do processo de legislação” estão cientes de seu papel junto à comunidade jurídica” assim como sabem dos “princípios normativos da regulamentação de convivência”. Na condição assegurada aos membros de usufruírem de seus direitos de comunicação e participação política de forma “constitutiva” na esfera legislativa para fins de legitimações, eles saem da condição de “sujeitos jurídicos privados e isolados” e devem ser entendidos como “participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento (Habermas, 1997, p. 53).
Neste âmbito a ideia de cidadania reúne os requisitos necessários para possibilitar uma ambiência solidária e garantir aos participantes a condição mínima para trilhar o caminho “orientado pelo entendimento”.
Tocante à cidadania, ela pode ser entendida como o conjunto de direitos e deveres que permitem o cidadão participar ativamente da vida política, econômica e social do Estado, constituindo um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. Para além de um status jurídico, ela representa uma prática social e histórica em constante disputa e construção (Marshall, 1967).
Nesse prisma, o Direito como norma jurídica e a cidadania são indissociáveis na construção de uma sociedade democrática, interpretando o Direito um papel de instrumentador jurídico que torna a cidadania efetiva, enquanto a cidadania percorre um caminho para alimentar e orientar o desenvolvimento jurídico, por meio da participação do cidadão a política e a obtenção de direitos.
O jurista Dalmo Abreu de Dallari (1994),destaca a importância da participação ativa dos cidadãos na construção de uma sociedade justa e democrática. Para ele, a cidadania vai além do mero exercício do voto, abrangendo a luta constante pela efetivação dos direitos fundamentais.
A cidadania e o Direito é uma via de mão-dupla, que se interligam entre si, sem os preceitos jurídicos a cidadania perde a sua força norteadora e sem a cidadania o Direito perde sua essência democrática. É através desta interação que se constrói uma sociedade justa e igualitária. Contudo, o exercício pleno da cidadania ainda encontra inúmeros obstáculos no dia a dia das pessoas, entre eles a própria linguagem que envolve a instância na qual Habermas apostas suas fichas como força integradora: o Direito.
A linguagem do Direito, por exemplo, se coloca como entrave de forma silenciosa e perversa. No cotidiano forense e institucional, a linguagem jurídica apresentada é engodada de tecnicismo e robustez. No entanto, esta forma de apresentação comunicativa seja ela escrita ou verbal distancia drasticamente a população em geral do seu efetivo direito. O uso excessivo do chamado “juridiquês” suas expressões em latim, termos técnicos e palavras em desuso na atualidade criam barreiras simbólicas e concretas entre o cidadão e seu direito, especialmente aos grupos marginalizados. Neste sentido, a participação necessária para que o Direito exerça sua força de integração acaba por ser enfraquecido, considerando que os indivíduos, ao invés de se sentirem partícipes da construção e execução das normas, vejam-se apartados por aquilo que deveria os igualar.
Para Silvio Almeida (2019) o acesso à cidadania deve envolver não apenas o reconhecimento legal de direitos, mas também condições concretas para que esses direitos sejam exercidos, o que passa, necessariamente, pelo acesso aos instrumentos que garantam a participação ativa na condução da sociedade em que vivem. Isso incorre no acesso a direitos básicos como ao pré-natal, à alimentação, educação, saúde, arte, etc. Resgatar a ideia de solidariedade como a principal aliada do sistema judiciário na realização do seu papel de integrador, passa necessariamente pelo exercício dos princípios básicos de cidadania dentro de uma estrutura democrática, ou seja, para que se possa conviver numa sociedade onde os indivíduos compartilham valores comuns e intersubjetividades, tem-se que se desfrutar desta ambiência onde os participantes percebam “que “a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos”” (Habermas, 1997, p.52, grifo do autor).
4 AGIR COMUNICATIVO, DISCURSO E RECONSTRUÇÃO RACIONAL DA CIDADANIA
A concepção de sociedade formulada por Jürgen Habermas parte da tentativa de integrar três noções fundamentais: linguagem, racionalidade e ação. Quando combinadas de maneira adequada, essas premissas visam à elaboração de um projeto de caráter emancipatório. Essa integração representa o núcleo da Teoria da Ação Comunicativa. Na concepção de Habermas, a Teoria da Ação Comunicativa parte do princípio de que o entendimento mútuo deve ser o fim último das interações linguísticas. Essa busca se concretiza por meio da validação de argumentos que sustentem acordos ou objetivos comuns.
A formulação habermasiana oferece uma interpretação própria da modernidade, dois conceitos assumem papel central, inspirados nas análises sociológicas de Max Weber (1864-1920), Talcott Parsons (1902-1979) e Niklas Luhmann (1927-1998): “mundo da vida” e “sistemas sociais”. O “mundo da vida” abrange o conjunto das experiências e práticas sociais cotidianas, no qual a racionalidade comunicativa busca promover consensos por meio da troca de discursos. Já os “sistemas sociais” correspondem às estruturas econômicas e políticas, orientadas por uma racionalidade estratégica voltada à maximização de resultados. (Ferreira; Ribeiro 2014, p. 66).
Na Teoria da Ação Comunicativa, o Direito ocupa uma função central como mediador entre duas formas distintas de racionalidade: a comunicativa, ligada ao mundo da vida, e a instrumental, predominante nos sistemas sociais. Ele atua como tradutor, convertendo a linguagem estratégica utilizada nas esferas política e econômica em uma linguagem orientada ao entendimento mútuo. Esse papel revela a importância do Direito na harmonização da tensão existente entre validade e facticidade. Sob essa perspectiva, Habermas sustenta que, por meio do diálogo, os indivíduos são capazes de produzir racionalidade, demonstrando confiança na competência discursiva das pessoas e em sua capacidade de contribuir para o aprimoramento do projeto social. (Ibidem p. 67)
A cidadania, enquanto expressão dos direitos e deveres fundamentais atribuídos a todos os membros de uma coletividade política, tem sido objeto de contínua reconstrução ao longo da história. Na contemporaneidade, para essa reconstrução é imprescindível uma análise crítica sobre as formas de comunicação presentes no espaço público e jurídico. É nesse contexto que o conceito de agir comunicativo ganha centralidade, ao propor uma racionalidade comunicativa voltada ao entendimento mútuo, à inclusão e à legitimação democrática das normas e não à dominação ou ao interesse estratégico. O agir comunicativo fundamenta a legitimidade democrática: normas só são válidas se puderem encontrar aceitação por todos os afetados, num processo discursivo livre e inclusivo (Habermas, 1989). Aplicado ao Direito, isso significa que as instituições jurídicas devem estar abertas ao diálogo, serem acessíveis e transparentes para que a cidadania se realize plenamente.
Em sua teoria do discurso, Habermas propõe que a validade das normas jurídicas deve derivar do consenso obtido por meio de processos de deliberação pública, nos quais todos os afetados possam participar em igualdade de condições. Essa concepção fundamenta uma reconstrução racional da cidadania, baseada não apenas na titularidade formal de direitos, mas em sua efetivação no espaço público por meio da participação crítica e argumentativa dos cidadãos. O Direito, nesse contexto, deixa de ser mera ferramenta de controle e passa a ser um meio de mediação simbólica e racional entre indivíduos que buscam a justiça e o reconhecimento recíproco. Neste âmbito a linguagem é um dos principais meios de interação e dinamização dos discursos. A importância de uma vida cidadã desde a tenra idade esbarra nas possibilidades das potencialidades desta capacidade humana que é a linguagem.
A reconstrução da cidadania, portanto, exige a superação deste aspectos básicos até as práticas jurídicas e políticas baseadas em lógicas estratégicas e instrumentalizadas, que frequentemente marginalizam grupos vulneráveis e reproduzem desigualdades sociais. O agir comunicativo exige uma abertura institucional para o diálogo intercultural, o pluralismo e a escuta ativa dos sujeitos historicamente silenciados, como salientam autores como Boaventura de Sousa Santos, ao propor uma sociologia das ausências (Santos, apud Merladet, 2024) e uma ecologia dos saberes (Santos, apud Oliveira; Borges, 2018).
No campo do Direito, essa perspectiva implica pensar a atuação jurídica como um processo dialógico, em que o operador do Direito não apenas aplica normas, mas também participa da sua interpretação em conjunto com os cidadãos, promovendo empoderamento jurídico e educação emancipadora, como sugere Paulo Freire (1987) em sua pedagogia crítica aplicada ao acesso à justiça.
A cidadania, assim, deixa de ser um conceito estático e passa a ser entendida como processo: ela é continuamente (re)construída através da prática democrática do discurso. A racionalidade comunicativa, nesse sentido, é o elemento que confere legitimidade aos processos normativos, reforçando a confiança nas instituições e promovendo a coesão social em sociedades complexas e plurais.
A articulação entre agir comunicativo, discurso e cidadania permite vislumbrar um Direito voltado à emancipação, não apenas à regulação. A cidadania se fortalece quando os indivíduos podem se expressar livremente, participar das decisões que os afetam e encontrar no Direito um canal legítimo de transformação social. A proposta habermasiana, nesse sentido, não é apenas teórica, mas oferece um caminho concreto para repensar a prática jurídica, tornando-a mais democrática, inclusiva e racional.
[...] ‘Não são os centavos, são nossos direitos’. Porque, como todos os outros movimentos do mundo, ao lado de reivindicações concretas, que logo se ampliaram para educação, saúde, condições de vida, o fundamental foi – e é – a defesa da dignidade de cada um. Ou seja, o direito humano fundamental de ser respeitado como ser humano e como cidadão. (Castells, 2013, p. 144).
Castells, ao analisar os movimentos sociais contemporâneos, traz uma afirmação próxima da concepção habermasiana de que a legitimidade democrática só pode ser alcançada quando normas e decisões derivam de processos de deliberação inclusivos, pautados pelo entendimento mútuo. A leitura de Castells evidencia que os movimentos sociais operam como práticas discursivas de reconstrução da cidadania, pois traduzem experiências de exclusão em reivindicações de reconhecimento e participação. Assim, a cidadania se afirma não apenas na titularidade formal de direitos, mas na experiência comunicativa e coletiva de sujeitos que demandam respeito, inclusão e emancipação.
Dessa forma, observa-se que a proposta habermasiana de agir comunicativo encontra eco na necessidade urgente de repensar a linguagem utilizada no campo jurídico. Enquanto o “juridiquês” permanecer como barreira simbólica e prática, a cidadania não se concretizará em sua plenitude, pois grande parte da população continuará alijada da compreensão de seus próprios direitos.
A erradicação da linguagem prolixa e a adoção de uma comunicação acessível, clara e inclusiva não representam apenas uma questão de estilo, mas uma exigência democrática.
Nesse sentido, tornar a linguagem jurídica inteligível à sociedade significa aproximar o Direito de sua verdadeira função: servir como instrumento de emancipação e de justiça social. A acessibilidade linguística é, portanto, condição essencial para a efetivação da cidadania, pois somente quando todos compreendem o alcance de seus direitos e deveres é que se constrói uma democracia sólida, participativa e comprometida com a igualdade. A reconstrução racional da cidadania passa, necessariamente, pela democratização da linguagem.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso teórico desenvolvido permitiu evidenciar que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas um elemento constitutivo do próprio exercício da cidadania.
A análise demonstrou que, historicamente, o Direito esteve vinculado ao poder econômico e político, funcionando como mecanismo de controle e exclusão da maioria dos sujeitos da sociedade, com ênfase na linguagem jurídica rebuscada e excludente, que consolidou e consolida barreiras que afastam o cidadão comum do pleno acesso à justiça e à compreensão efetiva das normas que regem sua vida.
Contudo, ao assumir sua função emancipatória, o Direito pode se colocar como mediador entre poder administrativo do estado e o mercado, contribuindo para a efetivação de uma cidadania inclusiva e participativa. Isso implica não apenas adotar uma linguagem acessível e transparente, mas também reinterpretar e democratizar as normas já existentes, permitindo que elas sejam efetivamente compreendidas e aplicadas pela coletividade. O afastamento do “juridiquês” não é apenas uma questão de estilo, mas de substância: trata-se de tornar o ordenamento jurídico um patrimônio comum, e não um privilégio de especialistas.
A reconstrução racional da cidadania, inspirada no agir comunicativo habermasiano impõe uma redefinição da prática jurídica. O Direito deve transcender sua dimensão meramente normativa para consolidar-se como prática social voltada à promoção da igualdade, da justiça e da dignidade.
Nesse sentido, a democratização da linguagem e das normas jurídicas se apresenta como condição indispensável para que os cidadãos possam não apenas reivindicar direitos, mas também participar ativamente da construção de uma ordem jurídica mais justa. Somente nesse horizonte será possível transformar a linguagem em ponte e não em barreira para a consolidação de uma democracia substantiva, plural e efetiva.
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