contribuições para se pensar a biblioteca pública no Brasil
Renato Lopes Vieira[1]
Universidade Federal Fluminense
Elisabete Gonçalves de Souza[2]
Universidade Federal Fluminense
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Resumo
Apresenta a definição de biblioteca pública predominante na literatura das áreas de Biblioteconomia e Ciência da Informação no Brasil, a qual destaca seu caráter jurídico e campo de atuação, sendo descrita como: instituição pública que desempenha sua função como equipamento informacional, cuja responsabilidade é o atendimento de toda a coletividade, com igualdade e sem distinções. Destaca a centralidade da biblioteca pública na garantia do acesso à informação e à cultura, sobretudo, para as classes populares. Toma como referência a noção de biblioteca popular, proposta concebida sob a influência dos movimentos de cultura e educação popular dos anos 1960, para pensar a biblioteca pública de caráter popular como uma biblioteca orgânica às classes populares. A categoria gramsciana nacional-popular é utilizada como aporte teórico para a análise deste movimento. As categorias, intelectual orgânico e intelectual nacional-popular, são utilizadas na análise do papel do bibliotecário em sua função de direção na biblioteca pública de caráter popular, entendida como mecanismo de promoção de transformações sociais pela perspectiva dos subalternos. Toma-se como hipótese que o caráter popular da biblioteca pública pode ser conferido a partir de uma atuação fundamentada na ideia de uma biblioteca pública que seja reflexo e expresse as necessidades das classes populares.
Palavras-chave: Biblioteca pública. Biblioteca pública de caráter popular. Nacional-popular em Gramsci.
THE NATIONAL-POPULAR IN GRAMSCI
contributions to thinking about the public library in Brazil
Abstract
This paper presents the predominant definition of a public library in the literature of Library Science and Information Science in Brazil, which highlights its legal character and field of action, being described as: a public institution that performs its function as an informational facility, whose responsibility is to serve the entire community, equally and without distinction. It emphasizes the centrality of the public library in guaranteeing access to information and culture, especially for the popular classes. It takes as a reference the notion of the popular library, a proposal conceived under the influence of the popular culture and education movements of the 1960s, to think about the public library of a popular character as a library organic to the popular classes. The Gramscian category of national-popular is used as a theoretical contribution to the analysis of this movement. The categories, organic intellectual and national-popular intellectual, are used in the analysis of the librarian's role in their management function in a public library of a popular character, understood as a mechanism for promoting social transformations from the perspective of the subaltern. It is hypothesized that the popular character of the public library can be conferred from an action based on the idea of a public library that reflects and expresses the needs of the popular classes.
Keywords: Public library. Public library of a popular character. National-popular in Gramsci.
LO NACIONAL-POPULAR EN GRAMSCI
contribuciones al pensamiento sobre la biblioteca pública en Brasil
Resumen
Este artículo presenta la definición predominante de biblioteca pública en la literatura de Biblioteconomía y Documentación en Brasil, destacando su carácter jurídico y su ámbito de actuación. Se describe como una institución pública que cumple su función como centro de información, cuya responsabilidad es servir a toda la comunidad, por igual y sin distinción. Se enfatiza la centralidad de la biblioteca pública para garantizar el acceso a la información y la cultura, especialmente para las clases populares. Se toma como referencia la noción de biblioteca popular, propuesta concebida bajo la influencia de los movimientos de cultura y educación popular de la década de 1960, para pensar la biblioteca pública de carácter popular como una biblioteca orgánica a las clases populares. La categoría gramsciana de lo nacional-popular se utiliza como una contribución teórica al análisis de este movimiento. Las categorías de intelectual orgánico e intelectual nacional-popular se utilizan en el análisis del rol del bibliotecario en su función de gestión dentro de una biblioteca pública de carácter popular, entendida como un mecanismo para promover transformaciones sociales desde la perspectiva de los subalternos. Se plantea la hipótesis de que el carácter popular de la biblioteca pública se deriva de una acción basada en la idea de una biblioteca pública que refleje y exprese las necesidades de las clases populares.
Palabras clave: Biblioteca pública. Biblioteca pública de carácter popular. Nacional-popular en Gramsci.
1 INTRODUÇÃO
As bibliotecas, de um modo geral, são espaços que desde os primórdios cumprem funções informacionais e culturais sabidamente importantes ao desenvolvimento da sociedade. A classificação delas varia a depender da função social que desempenham, “do tipo de leitor para o qual direciona seus serviços e o nível de especialização de seu acervo” (Biblioteca Nacional, 2010, p.17). São tipos de biblioteca as bibliotecas nacionais, as universitárias, as públicas, as escolares, as especiais e as especializadas (Biblioteca Nacional, 2010). Para o que pretendemos com este estudo, abordamos a noção biblioteca pública em sua acepção tradicional, apontando o caráter liberal que historicamente esteve nela enraizado, promovendo a ideia de uma biblioteca pública de caráter popular, preocupada com o atendimento das demandas informacionais e culturais das classes subalternizadas.
Almeida Júnior (1997) propõe a noção bibliotecas alternativas para definir equipamentos informacionais que
[...] têm como proposta alterar o entendimento de bibliotecas públicas tradicionais. Sua concepção pressupõe o emprego de informações que possam fazer frente àquelas veiculadas pela grande mídia, àquelas carregadas de interesses diferentes e antagônicos aos da comunidade. As bibliotecas alternativas são espaços de resistência informacional. (Almeida Júnior, 2020, p.82).
Em uma leitura a partir da proposta de Almeida Júnior (2020), entendemos a biblioteca pública de caráter popular como uma biblioteca alternativa, atuando em uma perspectiva social “[...] tanto pela amplitude de seu campo de ação quanto pela diversificação de seus usuários” (Suaiden, 1995, p. 20).
Tradicionalmente, na literatura da Biblioteconomia e Ciência da Informação (BCI), a Biblioteca Pública (BP) é conceituada a partir de algumas características particulares, como: sua gestão e financiamento são de responsabilidade pública; o seu público potencial é diverso e indistinto; e tem a função de atender as necessidades informacionais de comunidades locais em realidades específicas (Machado; Suaiden, 2015).
A Federação Internacional de Associações de Bibliotecários e Bibliotecas (IFLA, 2012, p.1-2) define que:
A biblioteca pública é uma instituição criada, mantida e financiada pela comunidade, seja por meio do governo local, regional ou nacional, seja por meio de outra forma de organização da comunidade. Ela proporciona acesso ao conhecimento, à informação, à educação permanente e a obras da imaginação por meio de uma variedade de recursos e serviços, e se coloca à disposição, de modo igualitário, a todos os membros da comunidade, independente de raça, nacionalidade, idade, gênero, religião, língua, dificuldade física, condição econômica e social e nível de escolaridade.
O Manifesto da IFLA-UNESCO para a Biblioteca Pública estabelece que a biblioteca pública é
[...] centro local de informação, disponibilizando todo tipo de conhecimento e informação aos seus usuários. Ela é um componente essencial das sociedades do conhecimento, adaptando-se continuamente a novos meios de comunicação para cumprir sua função de fornecer acesso universal a informações e permitir que todas as pessoas possam fazer uso significativo da informação. Ela fornece um espaço de acesso público para a produção de conhecimento, compartilhamento e troca de informações e cultura, como também a promoção do engajamento cívico. (IFLA-UNESCO, 2022).
A análise das definições acima, elaboradas por pesquisadores e instituições da área, evidenciam uma convergência de ideias a respeito da biblioteca pública (BP): ela é pensada como uma instituição pública, financiada pelo governo (federal, estadual ou municipal), como um equipamento informacional cuja responsabilidade é o atendimento de toda a coletividade, com igualdade e sem distinções. Essas definições vão ao encontro dos estudos de Suaiden (1995) e de Machado e Suaiden (2015) e são respaldadas pela análise de Souza (2020), que critica a visão funcionalista que alguns gestores públicos têm da BP, minimizando sua função social. “No Brasil, essa visão funcionalista ainda prevalece e se expressa na maioria das políticas públicas para a área em detrimento de debates sobre a dimensão social, política e cultural que cerca a instituição” (Souza, 2020, p. 359).
A ausência de uma política pública para as bibliotecas públicas que dê conta de promover o acesso ao livro e à leitura para todas as classes sociais é ainda uma contradição e expõe a desigualdade social que marca a vida das classes subalternizadas, sobretudo a classe trabalhadora, que é composta majoritariamente pelos indivíduos com menor poder aquisitivo e que, consequentemente, é a mais afetada pelas limitações de acesso aos equipamentos de cultura e informação. Este fato nos move a uma crítica desta instituição em sua acepção tradicional. Seu compromisso com a igualdade de acesso à informação e à cultura é ponto principal de nossa crítica em relação à sua função na sociedade: do nosso ponto de vista, para uma contribuição efetiva no combate às desigualdades sociais, a biblioteca pública precisa garantir que o acesso à informação e à cultura ocorra com equidade, pensando sobretudo a perspectiva das classes populares, o atendimento de suas demandas informacionais para que, assim, possam se inserir na dinâmica social com protagonismo, de forma justa e equitativa.
A preocupação com uma política pública que coloque a BP como um equipamento de educação e cultura das classes populares é uma discussão cuja origem data dos anos de 1970. Segundo Rabello (1987), no final dos anos de 1970, surge um movimento de crítica, influenciado pelos movimentos de cultura e educação popular dos anos 1960, direcionado ao distanciamento da biblioteca pública em relação às classes populares. Esse movimento deu origem à noção biblioteca popular e trazia a proposta de “[...] um trabalho com as classes menos favorecidas, para os quais toda a estrutura da Biblioteca Pública, desde o prédio até a forma como são oferecidos os serviços, funcionam como barreiras culturais.” (Freitas Neta, 2015, p. 11). Nota-se que há um descrédito na função social, política e cultural da BP, expresso pela crítica ao arranjo burocrático de seus serviços e à incapacidade de atender às demandas das classes populares.
Em nossa análise tomamos como referência a noção de biblioteca popular, em sua “posição crítico-democrática” (Freire, 1989), para pensar a biblioteca pública de caráter popular como uma biblioteca pública em um movimento constante de aproximação com as classes populares. Com este intuito, trazemos como aporte teórico a categoria gramsciana nacional-popular/ popular-nacional, proposta por Antonio Gramsci, no contexto de sua análise acerca do Risorgimento Italiano[3], sobre a urgência do desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular, da mobilização de um movimento intelectual de emancipação cultural e política das classes populares. Liguori e Voza (2017) esclarecem que
“Popular-nacional” é, pois, o caráter falho e faltante da cultura e da literatura italianas em razão do distanciamento entre intelectuais tradicionais e massas populares que marcou a história da Itália. A literatura italiana é para Gramsci, em grande parte, fruto de uma notável incapacidade dos intelectuais de se fazerem portadores das instâncias populares e de um estranhamento deles em relação a elas (Liguori; Voza, 2017, p. 563).
Gramsci atribui aos intelectuais, sobretudo ao intelectual nacional-popular, a responsabilidade da aproximação às classes populares para a mobilização do desenvolvimento de um espírito nacional popular e do pertencimento de classe.
É neste sentido que pensamos o bibliotecário como intelectual orgânico e / ou nacional-popular, pelo potencial que este profissional pode assumir, no desempenho de suas capacidades técnica e dirigente, na condução da biblioteca pública de caráter popular pensada também como potencial aparelho hegemônico das classes subalternizadas, como mecanismo de promoção de transformações sociais.
A noção de intelectual orgânico em Gramsci define o “[...] indivíduo no qual se desenvolveu, por meio da educação e da cultura, capacidade técnica e dirigente de mobilização de massas, por consenso espontâneo, na direção do fortalecimento da classe social da qual é parte” (Vieira, 2025, p.65). Conforme reforça Reis (2020, p.123), intelectual orgânico é um tipo de intelectual que se caracteriza por desempenhar “[...] atividades organicamente ligadas a uma determinada classe social. Atividades essas que podem ser tanto de cunho filosófico e científico, quanto puramente técnico”.
Gramsci (2024) ilustra sua conceituação de intelectual orgânico utilizando como exemplo a figura do empresário, destacando que este
[...] cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de uma nova lei etc. [...] o empresário representa uma elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade gerencial e técnica (isto é, intelectual): ele deve ter uma certa capacidade técnica, não apenas na esfera circunscrita de sua atividade e iniciativa, mas também em outras esferas, pelo menos naquelas mais próximas da produção econômica (Gramsci, 2024, p.1623, Q 12).
Esta ideia, em Gramsci, é pensada em contraposição à noção de intelectual tradicional, que define o tipo de intelectual que “[...] desenvolve e pratica a sua intelectualidade sem um compromisso imediato com o presente, sem uma preocupação em intervir, a partir de uma perspectiva política ou ideológica, na dinâmica social e histórica do seu tempo.” (Vieira, 2025, p.65). Gramsci (2024, p.1625, Q 12) detalha esta definição ao afirmar que “[...] estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com “espírito de grupo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua “qualificação”, eles se posicionam como autônomos e independentes do grupo social dominante”. Liguori e Voza (2017) explicam que:
Se em outras nações, como na França, por exemplo, a literatura soube expressar um alto grau de identificação nacional, patrimônio de todos os estratos da população, isso se deu essencialmente graças à capacidade dos intelectuais e do povo de se sentirem partícipes de um processo comum [...]. (Liguori; Voza, 2017, p. 563).
Biblioteca pública de caráter popular é um assunto ainda muito pouco discutido nas áreas da BCI. Uma das razões possíveis para isso é que, apesar de alguns avanços, essas áreas se encontram ainda, em muito, atreladas a teorias tecnicistas e funcionalistas fundadas em ideais liberais (Freitas Neta, 2015) que não valorizam o suficiente ou não propiciam o desenvolvimento de um olhar crítico, a partir da BCI, sobre o fazer do profissional da informação em relação à questão das relações entre hegemonia e subalternizados, o que na prática dificulta um olhar mais cuidadoso acerca das potencialidades da biblioteca pública em relação às demandas socioculturais das classes populares. Sobre isso, Amorim e Alves (2022), a partir de uma análise da formação histórica da BCI, concluem que a formação epistemológica, teórica e prática dessas áreas ocorreu inspirada em conjunturas de países colonizadores/imperialistas, sobretudo na Europa e Estados Unidos, o que explica o distanciamento dessas áreas em relação às realidades específicas das classes populares brasileiras.
Com base nessas reflexões, levantamos as seguintes questões. Em que medida a noção de biblioteca popular pode nortear a atuação da biblioteca pública na direção do atendimento das demandas informacionais e culturais dos subalternos? Quais contribuições a discussão em torno da noção de nacional-popular em Gramsci contribui para pensarmos a biblioteca pública como lugar de emancipação social das classes populares/subalternizadas? Qual o papel do bibliotecário neste contexto?
Neste estudo, tomamos como hipótese que o caráter popular da biblioteca pública pode ser conferido a partir de uma atuação fundamentada nos princípios da biblioteca popular, aquela que é reflexo e expressa as necessidades e as vontades populares, e que as categorias gramscianas aparelho de hegemonia, intelectual orgânico e nacional-popular potencializam este debate. A biblioteca pública de caráter popular, quando organizada e dirigida por um bibliotecário-intelectual orgânico às classes populares, tem o potencial de se constituir como aparelho hegemônico dessas classes.
Nas seções que seguem, apresentamos um breve histórico da biblioteca pública e seguimos com a discussão sobre a biblioteca pública de caráter popular, com aporte teórico na noção gramsciana nacional-popular, como lugar de formação das classes populares, e sobre a figura do bibliotecário como intelectual mediador desse processo.
2 BIBLIOTECA PÚBLICA E O SEU CARÁTER LIBERAL: BREVE HISTÓRICO
O surgimento da Biblioteca Pública (BP) tem como marco histórico o ano de 1850, na Inglaterra e Estados Unidos, no contexto do desenvolvimento industrial (Almeida Junior, 2013). Wada (1985) explica que o seu surgimento nesses países se dá em decorrência de uma atitude filantrópica das classes dominantes, que viam nas bibliotecas a possibilidade de controle dos problemas sociais e da própria classe trabalhadora.
Wada (1985, p.16) detalha esta análise ao explicar que “O desenvolvimento industrial demandava uma mão-de-obra especializada e a Biblioteca Pública surgiu como meio de aperfeiçoamento dos trabalhadores que já estavam fora do ensino formal”, como mecanismo de formação e adequação dos indivíduos da classe trabalhadora às demandas das classes dominantes e à dinâmica capitalista. Assim, a BP foi pensada e imposta pelas classes dominantes como mecanismo de formação das classes subalternizadas, sem resultarem efetivamente das demandas e aspirações populares.
Na Inglaterra, o liberalismo e o pensamento utilitário, propagados por economistas neoclássicos como Stanley Jevons, impulsionaram o investimento em bibliotecas públicas por entenderem esses espaços como “[...] o meio mais econômico de se tentar manter homens exaustos e sem dinheiro entretidos em prazeres inocentes, e, portanto, fora das prisões, tribunais e asilos” (Mueller, 1984, p. 9). Observa-se, na tese de Jevons, uma visão assistencialista e disciplinadora da biblioteca pública no sentido de minimizar os conflitos latentes entre a burguesia e a classe trabalhadora. Nos Estados Unidos, estas questões não foram negligenciadas, mas a ideia-força a motivar a criação das BP era a educação como o alicerce para o desenvolvimento econômico e social do país.
No Brasil, a primeira biblioteca pública foi criada em 1811, na cidade de Salvador, Bahia, desempenhando também uma função educativa e moralizante, tendo como público-alvo setores das elites coloniais alfabetizados. A parca presença de bibliotecas públicas nas províncias manteve-se assim até o final do Império e início da República.
A partir dos anos de 1930 o Brasil passa por um processo significativo de transformação de sua estrutura social. Nos centros urbanos, a sociedade tradicional, pautada no latifúndio agroexportador, dá lugar a uma sociedade de corte industrial, que via no trabalho assalariado e na indústria um novo modelo de desenvolvimento. O projeto liberal industrializante exigirá do Estado investimento no ensino primário, de modo a qualificar a força de trabalho para atender as demandas da indústria nascente e que se expressará em reformas no ensino nas décadas de 1930-1940 (Romanelli, 1997). Lideram esse movimento os intelectuais da Escola Nova, cuja atenção a expansão da educação pública perpassava uma preocupação com as bibliotecas públicas e escolares (Martins, 2014; Oliveira e Souza, 2021).
O ideário do movimento escolanovista se coadunava com o projeto nacional-desenvolvimentista liderado pela burguesia nacional [...] cujas ações envolviam a gestão da informação para tomada de decisões. Ações essas consubstanciadas por meio da criação de órgãos assessores em diversas áreas, como o INL e o INEP agências que direta e indiretamente tiveram e têm relação com a questão do livro e das bibliotecas públicas e escolares (Oliveira e Souza, 2021, p.133-134).
Armanda Álvaro Alberto, intelectual ligada ao movimento da Escola Nova, criticava a Biblioteca Nacional, principal instituição pública de leitura no Distrito Federal (RJ). Para a educadora, o funcionamento da biblioteca não era democrático: “[...] fechada aos domingos e feriados, sem filiais espalhadas pelos subúrbios, sem serviços ambulantes para as zonas afastadas do Distrito Federal e estados próximos, sem serviços circulantes” (Alberto, 1934, apud Martins, 2014, p.238), além de outras características negativas como a falta do livre acesso às estantes, o que a diferenciava das bibliotecas públicas norte-americanas, modelo de biblioteca idealizado pelos educadores liberais.
Os ideais liberais, aplicados à biblioteca pública, concretizavam-se na ideia do livre acesso à informação e a igualdade no uso dos recursos da biblioteca (Rabello, 1987) tal como identificamos nas considerações de Armanda Alberto (Martins, 2014). Este modelo foi hegemônico ao longo das décadas de 1950-1960. Nesse contexto, a biblioteca pública, idealizada pelos escolanovistas como um recurso de apoio à educação escolar, alia-se ideologicamente ao projeto de sociedade das classes dominantes, passando a atuar em contribuição para a reprodução dos modelos formais de educação elaborados por seus representantes, pondo-se em contradição em relação à situação da desigualdade social e econômica que marcava o Brasil daquele período. O foco dos projetos era a escolarização dos setores urbanos, enquanto o campo continuava sob o domínio das oligarquias rurais, cuja riqueza advinha da exploração do trabalhador rural, em sua maioria analfabetos.
Na concepção de Armanda Alberto e de outros intelectuais escolanovistas, o desenvolvimento econômico e social deveria levar em conta as necessidades dos centros urbanos, mas também as realidades regionais. Defendiam que “[...] não deveria existir uma única forma de educação para todo o país, mas cada região deveria encontrar sua forma de educar, a partir das necessidades e do ambiente de cada localidade” (Santos, 2021, p. 114). A ideia levou a educadora a criar, em 1921, na área rural do Distrito Federal, a Escola Proletária de Meriti. Apesar da preocupação com a educação dos sertanejos, o projeto refletia o ideário moralizador e disciplinador do pensamento liberal da Primeira República.
O questionamento desta situação foi objeto de discussão do movimento de educação popular (1950-1960), ideia pedagógica que tem no educador Paulo Freire o maior expoente do movimento. Seu legado trouxe “[...] importantes reflexões sobre os sujeitos postos à margem da sociedade capitalista, por entender ser as classes populares detentoras de um saber não valorizado e excluídas do conhecimento historicamente acumulado pela sociedade (Maciel, 2011, p. 327). Aproximando-se do pensamento de Gramsci, entende que o oprimido deve sair desta condição de opressão a partir da percepção da consciência de classe, processo que surge da práxis (ação-reflexão) e que tem na educação o caminho para formar intelectuais, dirigentes capazes de conduzir os oprimidos a tal nível de consciência.
Fazendo uma contraposição ao aspecto limitante da biblioteca pública em relação às classes subalternizadas no Brasil, na seção seguinte trazemos a noção de biblioteca pública de caráter popular, fundamentando-a com as categorias gramscianas nacional popular e intelectual orgânico e intelectual nacional-popular.
3 BIBLIOTECA PÚBLICA DE CARÁTER POPULAR E O NACIONAL-POPULAR EM ANTÔNIO GRAMSCI
Com a finalidade de robustecer nossa análise acerca da noção de biblioteca pública de caráter popular, entendendo-a como qualificadora daquela biblioteca pública que se propõe a um movimento em direção às causas e à perspectiva dos subalternizados, preocupada com o desenvolvimento da cultura popular, trazemos para a discussão a noção nacional-popular, que, como já destacamos, foi pensada por Gramsci no contexto italiano de seu tempo, especificamente a partir de sua análise sobre a questão da atuação dos intelectuais na Itália.
A ideia de nacional-popular é pensada por Gramsci como estratégia para o protagonismo político dos subalternos na luta pela conquista da hegemonia. Esse movimento seria dirigido e mobilizado por intelectuais vinculados às classes subalternizadas, a partir de um processo de mediação e direcionamento que possibilitasse uma reforma intelectual e moral, pela apropriação da história e da cultura e o resgate das raízes nacionais pela perspectiva dessas classes. Esse movimento, para Gramsci (2024, Q.13), levaria os subalternos à elaboração de uma capacidade de realização do que ele chamou de “vontade coletiva” nacional-popular, a plena expressão das aspirações e das vontades populares, ao protagonismo histórico das classes populares.
Paulo Freire (1989), principal representante da Teoria Crítica no Brasil e referência internacional sobre educação, apresenta uma leitura que se aproxima da perspectiva gramsciana na concepção do nacional-popular, ao destacar o desprezo intencional das classes dominantes pela sabedoria popular no Brasil, ao afirmar que
Do ponto de vista autoritariamente elitista, por isso mesmo reacionário, há uma incapacidade quase natural do povão. Incapaz de pensar certo, de abstrair, de conhecer, de criar, eternamente "de menor”, permanentemente exposto às ideias chamadas exóticas, o povão precisa de ser “defendido”. A sabedoria popular não existe, as manifestações autênticas da cultura do povo não existem, a memória de suas lutas precisa ser esquecida, ou aquelas lutas contadas de maneira diferente; a “proverbial incultura” do povão não permite que ele participe ativamente da reinvenção constante da sua sociedade. Os que pensam assim e assim agem, defendem uma estranha democracia, que será tão mais “pura” e perfeita, segundo eles, quanto menos povo nela participe. “Elitizar” os grupos populares com o desrespeito, obviamente, de sua linguagem e de sua visão de mundo, seria o sonho jamais, me parece, a ser logrado dos que se põem nesta perspectiva (Freire, 1989, p. 20).
Freire (1989) entende a biblioteca popular como lugar de resgate e preservação da memória popular, de educação e cultura em prol da formação dos indivíduos das classes populares para o enfrentamento das barreiras sociais que historicamente limitaram o seu pleno desenvolvimento.
Pela perspectiva gramsciana, a função do intelectual seria, então, “criar o terreno para um ulterior desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular em direção ao cumprimento de uma forma superior e total de civilização moderna.” (Gramsci, 2024, p.1696, Q.13). Conforme esclarece Reis (2020), Gramsci, em sua análise acerca do significado de “intelectual”, desenvolve quatro categorias fundamentais a partir de características concretas e específicas: o “tradicional”, o “orgânico”, o “cosmopolita” e o “nacional-popular”. Destacamos anteriormente, na introdução deste estudo, as categorias “tradicional” e “orgânico”. A seguir discutiremos, no contexto desta seção, as categorias “cosmopolita” e “intelectual nacional-popular”, que são as concepções de intelectual mais determinantes no raciocínio de Gramsci a respeito do nacional-popular.
Intelectual cosmopolita era um tipo de intelectual predominante na Itália, cuja atuação se torna alvo de severas críticas de Gramsci. Esses intelectuais pautavam suas elaborações ideológicas e suas ações na sociedade italiana em realidades internacionais, e não no contexto histórico, político e cultural do país. Ideias universais eram utilizadas no tratamento dos problemas que diziam respeito à vida e ao cotidiano das classes populares da Itália. Para Gramsci (2024, p.397. Q.21, § 80), “Os intelectuais e os especialistas italianos eram cosmopolitas e não italianos, não nacionais.”.
Gramsci (2024) aponta Benedeto Croce, intelectual italiano e seu contemporâneo, como representação da noção de intelectual cosmopolita, apontando-o como “o último homem do Renascimento” e justificando que o mesmo
[...] exprime relações internacionais ou cosmopolitas, mais do que relações puramente nacionais (isto não quer dizer que Croce não seja um elemento nacional, mesmo na acepção moderna do termo, quer dizer que, em Croce, verifica-se, mesmo no tempo moderno e nas condições da vida moderna, aquelas funções de elemento intelectual cosmopolita, que se verificou nos intelectuais italianos da Idade medieval no final do século XVII). (Gramsci, 2024, p. 942, Q.7)
Assim, a ideia de intelectual cosmopolita em Gramsci exprime o descompasso espaço-temporal existente entre o olhar e a atuação do intelectual italiano em relação à realidade vivida pelo povo. Reis (2020, p.124) destaca que
O predomínio do “intelectual cosmopolita” na história italiana foi um dos elementos principais para o caráter antipopular dos vários movimentos político-culturais existentes na península. O seu perfil caracterizado pelo não reconhecimento dos problemas específicos da vida nacional, fez com que toda a sua atividade se tornasse estranha e até oposta aos interesses das maiorias.
Diante desta crítica à postura dos intelectuais cosmopolitas na Itália é que surge, como contraposição, a noção “intelectual nacional-popular”. Reis (2020, p.25) explica que, para Gramsci, “[...] a nação italiana só assumiria um caráter popular na medida em que determinados intelectuais incorporassem as questões dos subalternos como fonte de suas atividades específicas.”. Gramsci (2024) expõe o que entende acerca da categoria intelectual nacional-popular ao tratar da função de Dostoiévski[4] na literatura russa. Ele afirma que “Em Dostoievski há um poderoso sentimento nacional-popular, isto é, a consciência de uma "missão de intelectuais" em relação ao povo que pode ser "objetivamente" constituído por "humildes", mas deve ser libertado dessa "humildade", transformado, regenerado.” (Gramsci, 2024, p. 1311, Q.9). Ele explica que, em Dostoiévski, “[...] a expressão "humilde" indica uma relação de proteção paterna e patriarcal, o sentimento ‘de suficiência’ de uma própria superioridade indiscutível” (Gramsci, 2024, p. 1311, Q.9).
Assim, a noção de “intelectual nacional-popular” floresce no pensamento gramsciano como expressão de um projeto nacional, e para definir o intelectual cuja atuação está fundamentada na história e na cultura nacional pela perspectiva das classes populares.
Reis (2020, p.126) indica o próprio Antônio Gramsci como a representação do intelectual nacional-popular, apontando-o como o mais importante intelectual nacional-popular da Itália do seu tempo, por ter buscado “[...] exaustivamente conhecer concretamente a complexidade da vida nacional do seu país”, movimento que, em Gramsci, é considerado pressuposto fundamental para um movimento de reorientação dos rumos de vida das classes populares. Desta forma, “[...] efetivar-se-ia o rompimento com a concepção de nação das classes dominantes em benefício da fundação nacional-popular” (Reis, 2020, p126).
Importante esclarecer que, conforme destacam Liguori e Voza (2017, p.635, grifo nosso), “O adjetivo ‘popular’ nos Q[5] refere-se ao que concerne ao povo ou é difuso entre o povo, entendido como o conjunto das classes subalternas”.
A biblioteca pública de caráter popular, sob a direção de um bibliotecário orgânico às classes subalternizadas e intelectual nacional-popular, compromissado com o desenvolvimento de um espírito nacional-popular, se torna um equipamento informacional potente à realidade das classes populares, com vista à superação do senso comum, no sentido de vir a proporcionar acesso a bens culturais, como livros, revistas etc. Gramsci (2024), ao tratar da importância das revistas como ferramenta difusora de informação para o povo, ressalta a necessidade de um trabalho organizado de seleção e disseminação de informações – termos discutidos com frequência na BCI - relevantes para os indivíduos das classes populares que necessitam de informação para o acesso a direitos sociais e de cidadania. Esse trabalho de organizar e disseminar informações Gramsci denomina “serviço de informação crítica”. Sobre a urgência de um serviço de informação crítica para o atendimento das demandas informacionais das classes populares, Gramsci esclarece que:
Tal como os governantes têm uma secretaria ou uma assessoria de imprensa que, periódica ou quotidianamente, os mantêm informados sobre tudo o que se pública e, para eles, é indispensável saber, assim também o faz uma revista para o seu público. Fixará a sua tarefa, a limitará, mas esta será a sua tarefa e isto, no entanto, exige que se dê um corpo orgânico e completo de informações: limitado, mas orgânico e completo. (Gramsci, 2024, p.1053, Q.8).
A análise de Gramsci acerca do que ele chama de serviço de informação crítica nos dá um direcionamento importante sobre a função que a biblioteca pública de caráter popular deve assumir diante das demandas informacionais das classes populares. Isso envolve também um posicionamento crítico do bibliotecário no trabalho de tratamento e organização da informação nessas bibliotecas, cujos acervos devem reunir materiais informacionais que permitam o bibliotecário encontrar, a partir de um olhar crítico, informações relevantes, organizando-as e disponibilizando-as para os indivíduos das classes populares. Milanesi (1985) corrobora ao dizer que é função da biblioteca auxiliar os sujeitos a romperem com a “dominação cultural”, pois tem as armas para isso, à medida que reúne em seus acervos (ou deveria fazê-lo) todos os discursos produzidos pela humanidade. “[...] Por isso, em certo sentido, ela é uma alternativa a todas as formas impositivas de saber, inclusive a da escola quando assim ela se manifesta” (Milanesi, 1985, p. 98-99). Esses acervos, quando carregados de significado e contextualizados de acordo com a realidade e as vivências dos indivíduos, ganham potencial transformador. Em uma leitura gramsciana, significa dizer que a biblioteca pública (BP) deve se tornar orgânica ao seu público.
Vale ressaltar que a BP não é só lugar de disponibilização de materiais informacionais como livros, revistas, etc. Ela é, também, lugar de acolhimento, de encontros, de trocas, de embate de ideias e de reflexão crítica a partir de atividades culturais e educativas como as palestras, os círculos de leitura, as rodas de conversa, as contações de história, dentre outras atividades que promovem a ampliação da bagagem cultural dos indivíduos. O bibliotecário, neste sentido, em seu trabalho de mediação, assume o seu papel de organizador da cultura.
É nestes termos que trazemos a visão da figura do bibliotecário como intelectual orgânico às classes historicamente subalternizadas no Brasil e como intelectual nacional-popular, mobilizador de uma biblioteca pública compromissada com o resgate das raízes culturais das classes populares, capaz de propiciar o desenvolvimento de uma cultura nacional-popular, como organizador de um serviço de informação crítica e contextualizada, de acordo com as demandas socioculturais e históricas do povo. Falamos de uma biblioteca pública que seja capaz de dar novos direcionamentos de vida aos subalternizados. Gramsci (2024, p. 1107, Q. 8) explica que “Todo movimento intelectual se torna ou se recria nacional se aconteceu uma “ida ao povo”. Para o teórico italiano, a questão da formação do indivíduo é uma estratégia política com vista à implementação de um novo projeto de sociedade na perspectiva de se fazer hegemônico e de criar formas mais avançadas de civilidade que inclua os subalternizados. Conforme explica Vieira (1999), fazer política, no sentido conferido por Gramsci, exige intervir na cultura “[...] para se criar as condições para a assunção de determinados princípios de civilidade que se tornem regra de conduta, mesmo que isto represente toda uma gama de sacrifícios” (Vieira, p. 1999, p. 64). Cabe aos intelectuais orgânicos compreender toda a amplitude da direção intelectual e moral e situar sua ação para além das práticas políticas tradicionais. Trata-se, a rigor, das questões vinculadas à grande política, à fundação de um novo Estado.
Reis (2020) aponta algumas aproximações entre as categorias gramscianas de intelectuais. Explica que as categorias “cosmopolita” e “tradicional” se aproximam no sentido de que ambas estão desconectadas da vida concreta nacional e da classe social fundamental, e que há uma aproximação entre as categorias “orgânico” e “nacional-popular” no sentido de que ambas se conectam aos anseios de uma classe social. Sob este ponto de vista, as categorias “cosmopolita” e “tradicional” “não apresentam elementos suficientes para se construir um movimento popular capaz de alterar as bases da velha sociedade” (Reis, 2020, p. 126). A respeito da relação entre as categorias “orgânico” e “nacional-popular”, Gramsci as toma como pressuposto fundamental para a “criação de um movimento político-cultural progressista disposto a alterar o status quo elitista da sociedade italiana” (Reis, 2020, p. 127). Entende-se, assim, que as categorias de intelectual “orgânico” e “nacional-popular” não são excludentes, são categorias que se unem para uma função importante no projeto gramsciano de sociedade. Porém, conforme salienta Reis (2020), dentre as categorias de intelectual em Gramsci, o intelectual nacional-popular é o único
[...] indiscutivelmente voltado ao avanço histórico das classes progressistas. Isso porque, no caso das demais categorias, o intelectual não é uma conformação necessariamente popular e revolucionária. Diferentemente do nacional-popular que, como foi ressaltado, historicamente, é historicamente inconcebível pelas elites e pelos movimentos conservadores já existentes consolidadas (Reis, 2020, p.127).
Pensar a biblioteca pública de caráter popular pela ótica do nacional-popular, e o bibliotecário como intelectual orgânico e/ou intelectual nacional-popular, enriquece a leitura, pela perspectiva da BCI, no sentido de que esta instituição, entendida como equipamento de informação e cultura, assume responsabilidade fundamental e determinante, sobretudo em regiões nas quais se apresentam traços expressivos de desigualdade social, nos processos formativos que podem contribuir para a emancipação dos subalternos. A biblioteca pública de caráter popular, sob a direção do bibliotecário intelectual orgânico ou nacional-popular, tem o potencial do esclarecimento e da promoção da criticidade dos indivíduos, de favorecer a sua resistência à dominação das classes hegemônicas e ao seu protagonismo no movimento de luta pela hegemonia das classes subalternizadas, conforme o projeto político de Gramsci.
No Brasil, o mais próximo que chegamos desta discussão centra-se nos estudos da obra de Paulo Freire e em sua proposta de bibliotecas populares, comumente chamadas de bibliotecas comunitárias. Trata-se de bibliotecas organicamente ligadas aos movimentos sociais, urbanos e rurais, que “reivindicam, entre diferentes questões, o acesso à informação, à educação e à cidadania, ou seja, são lutas que se constituem pelas vias da educação popular (Rodrigues, Serafim, Silva, 2023, p. 216), de caráter não formal. Tal abordagem, retomada sob a perspectiva “nacional-popular” conforme delineia Gramsci, deve ser revista como um projeto de estado, em um movimento ético-político de democratização do conhecimento para todos os segmentos da classe trabalhadora, com vista a formar intelectuais orgânicos comprometidos com a construção de um projeto político democrático de sociedade e de poder; um lugar propício à construção de uma nova direção intelectual e moral, que contribua para a elaboração de um projeto de sociedade pautado em práticas de mediação da educação e da cultura respaldadas pelo compromisso de promover a emancipação humana e social das classes subalternizadas.
4 CONCLUSÃO
O caráter popular da biblioteca pública se reforça a partir da noção Nacional-Popular em Antônio Gramsci. Suas categorias Intelectual Orgânico e Intelectual Nacional-popular aprofundam o olhar acerca da função e da atuação da biblioteca pública e do bibliotecário diante da realidade das classes populares, sobretudo nas regiões de maior vulnerabilidade social.
Abordagens a partir das categorias gramscianas ressaltam o papel político do bibliotecário na condução da biblioteca pública diante das desigualdades sociais e a sua responsabilidade na formação de novos intelectuais orgânicos capazes de agir pela transformação da sociedade. A biblioteca pública, neste sentido, pode ser pensada como aparelho de hegemonia das classes subalternizadas, como um dos epicentros desse movimento.
Desta forma, a leitura de Gramsci para se pensar a atuação da biblioteca pública na sociedade amplia o seu potencial transformador, conferindo a ela maior responsabilidade e exigindo do bibliotecário uma postura cada vez mais crítica e engajada no atendimento das demandas sociais pela perspectiva dos subalternizados.
Este estudo contribui para desvincular a biblioteca pública de seu caráter tradicional, fundado em ideais liberais, e favorece a construção de uma biblioteca pública de caráter popular, orgânica às classes populares, que seja o motor das transformações sociais necessárias para uma sociedade mais justa.
A atuação da biblioteca pública e do bibliotecário na mediação da cultura e da informação, junto com a escola e outros ambientes educativos e informacionais, se evidencia como fator indispensável ao desenvolvimento de uma cultura nacional-popular e a formação dos indivíduos no contexto da luta de classes.
Na BCI, estudos em uma perspectiva social, e ainda mais a partir de Antonio Gramsci, como já mencionamos, é algo raro. Acreditamos que abordagens com perspectivas como esta somam em um movimento importante para que essas áreas, que tradicionalmente estão vinculadas a teorias tecnicistas e funcionalistas fundadas em ideais liberais, caminhem para novos rumos, sendo direcionadas para um viés cada vez mais crítico acerca da função dos equipamentos informacionais diante da realidade.
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[1] Mestre em Ciência da Informação
[2] Doutora em Educação
[3] Risorgimento foi um movimento, ocorrido entre 1815 e 1870, que unificou os diversos reinos e territórios da Península Itálica em um único país, o Reino da Itália. Esse movimento foi protagonizado pela burguesia, sem a participação das classes populares, em um movimento que Gramsci define como Revolução Passiva.
[4] Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, Romancista russo (1821-1881).
[5] “Q” é a forma utilizada por estudiosos gramscianos em referência aos Cadernos do Cárcere, obra composta por 29 cadernos escritos por Antonio Gramsci entre 1926 e 1937, período em que esteve preso pelo fascismo italiano. Os Cadernos do Cárcere trazem grande parte da elaboração política e filosófica de Gramsci.