MUNDO DA VIDA E FORMAÇÃO CRÍTICA

a filosofia no ensino médio sob a perspectiva do agir comunicativo

Liwan Rafael de Paula Rosa [1]

Universidade Federal do Paraná

 liwanrafael@hotmail.com

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Resumo

O presente texto busca refletir sobre o papel da filosofia no ensino médio a partir da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, compreendendo-a como um espaço de resistência frente à colonização do mundo da vida por lógicas sistêmicas de caráter instrumental e mercadológico. Tomando como referência a leitura de Cerletti, a filosofia escolar é concebida não apenas como disciplina curricular, mas como prática que possibilita a formação crítica, a abertura ao diálogo e a reconstrução de sentidos compartilhados. Nesse horizonte, a experiência filosófica em sala de aula pode ser vista como instância privilegiada para a formação da racionalidade comunicativa, ao promover processos de entendimento mútuo, em contraposição às formas de racionalidade técnica que tendem a reduzir a escola a um espaço de mera produção de resultados. Nos limitaremos a uma abordagem conceitual presente na obra de Jürgen Habermas - Teoria do Agir Comunicativo volume I e II, e na obra de Alejandro Cerletti - O Ensino de Filosofia como Problema Filosófico. A pesquisa adota uma abordagem teórico-conceitual, revisitando a contribuição habermasiana para pensar a filosofia como campo de resistência e de ampliação da esfera pública dentro da instituição escolar. Com isso, pretende-se mostrar que a prática filosófica no ensino médio resiste à tendência de esvaziamento crítico da educação, fortalecendo o caráter emancipatório do saber e sua função de mediação democrática.

Palavras-chave: Filosofia no ensino médio. Habermas. Agir comunicativo. Colonização do mundo da vida. Resistência.

LIFE-WORLD AND CRITICAL FORMATION

philosophy in high school from the perspective of communicative action

Abstract

This text seeks to reflect on the role of philosophy in high school education from the perspective of Jürgen Habermas's theory of communicative action, understanding it as a space of resistance against the colonization of the life-world by systemic logics of an instrumental and market-driven nature. Taking Cerletti's reading as a reference, school philosophy is conceived not only as a curricular discipline, but as a practice that enables critical formation, openness to dialogue, and the reconstruction of shared meanings. In this horizon, the philosophical experience in the classroom can be seen as a privileged instance for the formation of communicative rationality, promoting processes of mutual understanding, in contrast to forms of technical rationality that tend to reduce the school to a space of mere production of results. We will limit ourselves to a conceptual approach present in the work of Jürgen Habermas - Theory of Communicative Action volumes I and II, and in the work of Alejandro Cerletti - The Teaching of Philosophy as a Philosophical Problem. The research adopts a theoretical-conceptual approach, revisiting Habermas's contribution to thinking about philosophy as a field of resistance and expansion of the public sphere within the school institution. With this, it is intended to show that philosophical practice in secondary education resists the tendency to critically empty education, strengthening the emancipatory character of knowledge and its function of democratic mediation.

Keywords: Philosophy in secondary education. Habermas. Communicative action. Colonization of the lifeworld. Resistance.

 

 

 

EL MUNDO DE LA VIDA Y LA FORMACIÓN CRÍTICA

la filosofía en la educación secundaria desde la perspectiva de la acción comunicativa

Resumen

Este texto busca reflexionar sobre el papel de la filosofía en la educación secundaria desde la perspectiva de la teoría de la acción comunicativa de Jürgen Habermas, entendiéndola como un espacio de resistencia contra la colonización del mundo de la vida por lógicas sistémicas de naturaleza instrumental y mercantilista. Tomando como referencia la lectura de Cerletti, la filosofía escolar se concibe no solo como una disciplina curricular, sino como una práctica que posibilita la formación crítica, la apertura al diálogo y la reconstrucción de significados compartidos. En este horizonte, la experiencia filosófica en el aula puede considerarse un caso privilegiado para la formación de la racionalidad comunicativa, que promueve procesos de entendimiento mutuo, en contraste con las formas de racionalidad técnica que tienden a reducir la escuela a un espacio de mera producción de resultados. Nos limitaremos al enfoque conceptual presente en la obra de Jürgen Habermas —Teoría de la acción comunicativa, volúmenes I y II— y en la de Alejandro Cerletti —La enseñanza de la filosofía como problema filosófico—. La investigación adopta un enfoque teórico-conceptual, retomando la contribución de Habermas al pensamiento filosófico como campo de resistencia y expansión de la esfera pública dentro de la institución escolar. Con ello, se pretende demostrar que la práctica filosófica en la educación secundaria resiste la tendencia a vaciar críticamente la educación, fortaleciendo el carácter emancipador del conocimiento y su función de mediación democrática.

Palabras clave: Filosofía en la educación secundaria. Habermas. Acción comunicativa. Colonización del mundo de la vida. Resistencia.

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o campo educacional brasileiro tem sido reconfigurado por políticas orientadas por princípios de competitividade, mensuração de resultados e eficiência gerencial. No estado do Paraná, essa reconfiguração assume contornos paradigmáticos com a implementação do programa Parceiro da Escola, a aprovação da Lei nº 22.006/2024[2] e a intensificação do uso de sistemas de monitoramento como o Power BI, plataformas, observações avaliativas que transformam a atividade docente e a aprendizagem em objetos mensuráveis.

Em meio às pressões por desempenho e ao avanço de lógicas mercadológicas, a escola encontra-se em mudanças, ora tensionada, ora capturada por critérios externos. Já não basta educar em sentido amplo; exige-se dela números, gráficos e índices que “comprovem” eficiência. Nesse sentido, a escola pública paranaense experimenta a colonização de suas próprias finalidades educativas, deslocadas pelo léxico do mercado. O ideal de formação integral cede lugar, pouco a pouco, a indicadores de produtividade; a meritocracia e a empregabilidade empreendedora como novos filtros de avaliação, obscurecendo dimensões mais humanas da experiência escolar. Tal movimento não se restringe a mudanças administrativas, mas alcança a própria estrutura simbólica da educação. Trata-se de um processo de colonização da escola por racionalidades sistêmicas que, conforme Habermas (2012), deslocam o mundo da vida – espaço da intersubjetividade e da formação de identidades – por mecanismos não linguísticos de controle, pautados por dinheiro e poder.

Esse deslocamento não se dá apenas em áreas técnicas ou voltadas à formação profissional, ela alcança disciplinas historicamente vinculadas ao exercício da reflexão e da crítica, como é o caso da Filosofia.[3] A homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Novo Ensino Médio aprofunda esse deslocamento ao introduzir um modelo curricular por competências, estruturado não pela construção de saberes, mas pelo desenvolvimento de “entregáveis educacionais” alinhados à empregabilidade e à inovação. No Paraná, essa tendência se intensifica com a redução da carga horária de Filosofia e sua diluição em itinerários formativos tecnizados. De acordo com Horn,

A implantação do NEM no estado manifesta, na grade curricular, a supressão do componente curricular Filosofia no 3º ano do Ensino Médio e sua oferta foi alterada epistemológica e metodologicamente no 2º ano, sendo facultativa, a depender do itinerário formativo escolhido pelo estudante – somente quem escolhe os itinerários Ciências Humanas e suas Tecnologias e Linguagens e suas Tecnologias tem acesso à disciplina Ética e Liderança, o que descaracteriza o ensino da Filosofia. (Horn, et al. 2023. p15)

Desta forma, a Filosofia, que historicamente ocupa um lugar de reflexão crítica, é reposicionada como um componente instrumental para o “protagonismo juvenil” e o “projeto de vida”, categorias alinhadas ao vocabulário empreendedor. O deslocamento não é apenas terminológico, mas epistemológico: a Filosofia deixa de operar como um campo de problematização dos fundamentos da racionalidade e da ação humana e passa a servir de suporte a uma pedagogia voltada à performance e à adaptação ao mercado de trabalho. A noção de “protagonismo”, nesse contexto, substitui a ideia de autonomia crítica por uma forma de autogestão individual, em que o sujeito é incitado a gerir a si mesmo como capital humano.

Esse redirecionamento curricular expressa, portanto, uma mudança no estatuto da Filosofia escolar: de disciplina formadora da capacidade argumentativa e reflexiva, torna-se um dispositivo de modelagem comportamental. A supressão da disciplina no 3º ano do ensino médio e sua substituição por componentes de orientação ética-gerencial no 2º do ensino médio, evidencia o esvaziamento de seu conteúdo filosófico, substituído por competências de liderança e comunicação adaptadas à lógica empresarial. Trata-se de uma reconfiguração que atende mais aos imperativos de empregabilidade e inovação do que à formação de sujeitos críticos e comunicativamente competentes. Esse movimento de reconfiguração do lugar da Filosofia torna-se ainda mais evidente quando observamos como a SEED-PR organiza a oferta disciplinar no âmbito dos itinerários formativos, revelando a substituição gradual do conteúdo filosófico por abordagens orientadas à lógica da liderança e do comportamento organizacional. Horn destaca que:

Se a escolha do estudante for pelo itinerário formativo Linguagens e Ciências Humanas, no 1º ano, terá o componente curricular Filosofia e, no 2º ano, será ofertado o componente curricular Liderança e Ética. Segundo a perspectiva de abordagem da SEED, na trilha de Liderança e Ética (Paraná, 2023), o percurso temático apresenta como princípios: o que é líder, comunicação e liderança e os desafios da atualidade. [...]

O componente Liderança e Ética possui uma concepção mercadológica, substituindo um conteúdo filosófico. No RCO+Aulas, apresenta-se como Filosofia I, porém, no Caderno de itinerários formativos: ementa das unidades curriculares ofertadas, o componente consta como Liderança e Ética (Horn, 2023, p.17).

Além dos pontos mencionados, cabe destacar ainda a diminuição da carga horária na grade curricular; plataformização das atividades como - Desafio Paraná; EJA EaD Paraná; Enem Paraná; Inglês Paraná High; Inglês Paraná Teens; Inglês Professor; Leia Paraná; Matemática Paraná; Programação Paraná; Redação Paraná; Robótica Paraná; Sala Virtual Paraná,[4] observações das aulas pela equipe gestora, política curricular que “sugere” um conteúdo por meio de RCO+Aulas.

É nesse ponto que a contribuição de Alejandro Cerletti (2008) se mostra decisiva. Para o filósofo, a Filosofia no Ensino Médio não pode ser confundida com mera transmissão de conteúdos; trata-se antes de instaurar uma cena de pensamento, situada no tempo e na linguagem. Como afirma o autor: “o sujeito educativo-filosófico é, em sentido estrito, um sujeito coletivo, que envolve um pensar compartilhado (dialógico) no marco de uma aula e situa os olhares pessoais” (Cerletti, 2008. p. 37). Essa concepção desloca o ensino de Filosofia para além do treino de competências e o aproxima de uma prática de escuta, alteridade e coautoria intelectual.

A perspectiva habermasiana oferece a base conceitual para esse deslocamento. Em sua teoria do agir comunicativo, Habermas (2012) distingue duas formas de racionalidade: a técnico-instrumental, voltada ao êxito e à eficácia, e a comunicativa, orientada ao entendimento mútuo entre sujeitos capazes de fala e escuta. Curioso notar que, ao enfatizar a validade intersubjetiva das razões, Habermas reconstrói a linguagem como espaço de confiança, crítica e consenso — um horizonte que se perde quando a escola adota indicadores em lugar de diálogos.

Diante disso, delimita-se o problema deste texto: se a Filosofia na escola pública corre o risco de ser colonizada pelo produtivismo, como pensar o ensino de Filosofia como resistência à razão instrumental? Não se trata apenas de indagar sobre o lugar da Filosofia no currículo, mas de compreender a disputa por formas de racionalidade que atravessam a educação no Estado do Paraná. De um lado, a racionalidade neoliberal sustenta práticas de gestão, padronização e controle; de outro, o agir comunicativo, conforme Habermas (2012), fundamenta práticas de formação baseadas no entendimento, na linguagem e no reconhecimento recíproco.

O risco da colonização é real e se manifesta quando a Filosofia é reduzida à métricas mensuráveis, convertendo a linguagem viva dos estudantes em rubricas avaliativas, afastando cada vez mais a aula de filosofia da experiência filosófica. Contra esse movimento, busca-se aqui examinar a possibilidade de fundamentar o ensino de Filosofia no agir comunicativo, preservando a aula como microespaço intersubjetivo de deliberação e reconstrução de sentidos coletivos.

A hipótese que orienta o trabalho é que a Filosofia escolar pode ser compreendida como extensão da esfera pública deliberativa, atuando como espaço contra-hegemônico no interior da escola pública. Em vez de reforçar a lógica da performance, a disciplina pode sustentar experiências discursivas em que os estudantes participam como coautores do pensamento, exercitando práticas de justificação e escuta.

Para desenvolver a reflexão, o artigo organiza-se em três momentos articulados: (i) reconstrói, a partir de Habermas, os conceitos de agir comunicativo e mundo da vida, explicitando o diagnóstico da colonização sistêmica e seus efeitos na escola pública; (ii) examina o ensino de Filosofia com base em Alejandro Cerletti, compreendendo-o como intervenção filosófica que produz subjetivação e deslocamentos discursivos no interior da aula; e (iii) integra os dois referenciais para caracterizar a aula de Filosofia como microesfera pública de resistência — uma prática comunicativa capaz de desestabilizar racionalidades técnico-instrumentais e reativar o mundo da vida no cotidiano escolar, com implicações críticas para as políticas educacionais em curso.

Por fim, pretende-se mostrar que, mesmo em meio a pressões externas, a aula de Filosofia pode permanecer como espaço de resistência — precário, mas vivo — onde pensar junto ainda importa mais do que convencer, e onde o diálogo continua sendo possibilidade de emancipação.

 

2 AGIR COMUNICATIVO E MUNDO DA VIDA

A teoria do agir comunicativo desenvolvida por Jürgen Habermas (2012) parte do diagnóstico de que as sociedades modernas se estruturam a partir de uma tensão constitutiva entre duas formas de racionalidade: uma orientada ao entendimento e outra voltada ao controle estratégico dos meios. No primeiro volume de Teoria da Ação Comunicativa, Habermas (2012) mostra que a modernidade não deve ser compreendida apenas como processo de desenvolvimento técnico e econômico, mas como ampliação das capacidades comunicativas dos sujeitos, sustentadas por argumentos capazes de fundamentar a validade de afirmações no espaço público. A racionalidade comunicativa emerge, nesse sentido, como forma de coordenação da ação baseada na linguagem, e não na coerção ou no cálculo utilitário.

Essa distinção radical entre racionalidade comunicativa e racionalidade instrumental é o ponto de partida para entender a educação como prática intersubjetiva. Enquanto a racionalidade instrumental considera os outros como meios para determinados fins, a racionalidade comunicativa os reconhece como participantes de uma comunidade de fala, dotados de competência para justificar e problematizar pretensões de validade.

Desta forma, Diferentemente de uma racionalidade instrumental, centrada na eficácia,

O conceito do agir comunicativo pressupõe a linguagem como medium de uma espécie de processos de entendimento ao longo dos quais os participantes, quando se referem a um mundo, manifestam de parte a parte pretensões de validade que podem ser aceitas ou contestadas. (Habermas, 2012a, p.191).

Em outras palavras, para que haja uma comunicação genuinamente formativa e democrática, os sujeitos envolvidos precisam estar dispostos a apresentar razões, ouvir uns aos outros e justificar criticamente suas afirmações, em busca do entendimento, usando como intermediário a linguagem.

Ao adotar esse conceito, segundo Habermas:

Tomamos uma decisão prévia em favor de outro conceito de racionalidade, filiado a noções mais antigas do lógos. Esse conceito de racionalidade comunicativa traz consigo conotações que retrocedem à experiência central da força espontaneamente unitiva e geradora de consenso própria à fala argumentativa, em que diversos participantes superam suas concepções inicialmente subjetivas para então, graças à concordância de convicções racionalmente motivadas, assegurar-se ao mesmo tempo da unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade de seu contexto vital (Habermas, 2012a, p. 35-36).

Tal perspectiva se contrapõe à racionalidade técnico-instrumental que, ao adentrar a escola sob a lógica de metas e desempenho, desloca a linguagem comunicativa e a substitui por engrenagens de controle não linguístico. Entretanto, Habermas (2012) demonstra que, nas sociedades capitalistas avançadas, esse mundo da vida é progressivamente colonizado por sistemas que operam segundo os meios não linguísticos do poder e do dinheiro.  No diagnóstico habermasiano, esse fenômeno de colonização consiste precisamente na substituição de formas comunicativas de integração por mecanismos sistêmicos de regulação, os quais prescindem da linguagem e instauram relações de dominação estrutural.

A escola, enquanto instituição pertencente ao mundo da vida, é um dos espaços mais afetados por essa colonização. Curioso notar que essa deformação se concretiza na padronização curricular, plataformas, observações em sala de aula, na obsessão pelos indicadores e na sujeição da prática educativa ao crivo avaliativo. Essa engrenagem se materializa, por exemplo, nas observações em sala de aula e no uso de plataformas de gestão como o  Power BI[5] que transforma docentes e estudantes em alvos de monitoramento estatístico, na centralidade de métricas como SAEB e IDEB[6] convertendo o ato de ensinar em relatórios administrativos, metas quantitativas e supervisões burocráticas.

Como lembra Habermas (2012), a colonização do mundo da vida pelo sistema ocorre quando formas comunicativas são substituídas por mecanismos não linguísticos de controle. Nesse sentido, a Filosofia deixa de ser espaço de pensamento partilhado e se reduz a função preparatória para exames.

É nesse ponto que o ensino de Filosofia adquire relevância política. Ao instaurar a linguagem como acontecimento educativo, a Filosofia mobiliza o potencial emancipatório do agir comunicativo. O discurso filosófico não reproduz informações: ele convoca os sujeitos a argumentar, justificar, interpretar e discordar publicamente. Trata-se de uma prática que reativa o mundo da vida, pois parte da experiência dos participantes para reconstruir sentidos coletivos à luz do argumento e da razão pública.

Desse modo, compreender os conceitos de agir comunicativo e mundo da vida não é apenas tarefa teórica, mas condição para evidenciar que a crise da educação não se limita a problemas de currículo ou gestão: trata-se de uma disputa por formas de racionalidade. Assim, na disciplina de filosofia da escola pública, se prevalece o sistema, a linguagem é instrumentalizada.

Essa base será fundamental para compreender, na próxima parte, como a racionalidade técnico-instrumental se materializa nas políticas educacionais paranaense, redefinindo o papel da Filosofia e ameaçando sua dimensão pública e emancipatória.

 

3 O ENSINO DE FILOSOFIA COMO INTERVENÇÃO

Ao refletir sobre o lugar da Filosofia no Ensino Médio, Alejandro Cerletti (2008) afirma que sua potência não reside na transmissão de conteúdos disciplinares, mas na possibilidade de instaurar uma experiência de pensamento situada no tempo e na linguagem. Para o filósofo, “o sujeito educativo-filosófico é, em sentido estrito, um sujeito coletivo, que envolve um pensar compartilhado (dialógico) no marco de uma aula e situa os olhares pessoais” (Cerletti, 2009, p. 37). Tal pensar só pode surgir em contextos marcados pela escuta, pela alteridade e pela suspensão da urgência produtiva.

O ensino de Filosofia, segundo Alejandro Cerletti (2008), não pode ser compreendido como mera transmissão de conceitos historicamente sistematizados, mas como acontecimento que convoca os sujeitos a pensar a partir de si e com os outros, instaurando um espaço público de interlocução filosófica. O que caracteriza a Filosofia como prática escolar é sua dimensão de intervenção: ela modifica o modo de ser, pensar e falar dos sujeitos, instaurando um deslocamento em relação ao senso comum e às formas de racionalidade hegemônicas. Essa concepção desloca o foco do conteúdo para a experiência. Não se trata de negar a importância dos conceitos filosóficos, mas de compreender que eles só se tornam filosóficos na medida em que são problematizados e reapropriados pelo sujeito na relação com o outro.

Nesse contexto, a linguagem assume papel central. A Filosofia no espaço escolar, fundamentada na prática discursiva, opera segundo a lógica da problematização e da justificação pública das ideias. Trata-se de uma racionalidade que se aproxima do modelo habermasiano de agir comunicativo, no qual a validade de uma afirmação não se baseia em autoridade ou eficácia, mas na capacidade de se justificar diante de interlocutores capazes de fala e escuta.

A Filosofia, ao ser praticada nesse horizonte, torna-se experiência formativa capaz de produzir subjetivação. Cerletti (2008) utiliza o termo “subjetivação filosófica” para designar o processo pelo qual o estudante deixa de apenas reproduzir saberes e passa a interrogar criticamente o mundo e a si mesmo.

Se há algo que podem os chamar um a subjetivação filosófica, isto é, que alguém em um processo de aprendizagem assume a atitude de interpelar os saberes (e não simplesmente reproduzi-los), é quando alguém pensa - e portanto se pensa - em relação com os conhecimentos e as práticas que são dominantes. (Cerletti, 2008, p.92)

A inquietação que a Filosofia provoca não é sinal de desordem, mas condição para a emergência do pensamento próprio. Nesse sentido, o ensino de Filosofia é menos um ensino sobre a Filosofia e mais um convite para filosofar, isto é, para situar-se no espaço da linguagem de modo reflexivo. Esse aspecto intervencionista e subjetivador pode ser ilustrado por exemplos comuns de sala de aula. Quando um professor propõe aos estudantes a pergunta “o que é justiça?”, não está solicitando uma resposta pronta sobre a concepção de justiça de determinado autor, mas instaurando um campo de tensão discursiva. Um estudante pode responder que justiça é “cumprir a lei”, outro pode argumentar que “a lei pode ser injusta”, e outro ainda pode afirmar que “justiça é tratar os desiguais de forma desigual”. Cada resposta abre uma nova necessidade de justificação, aí sim a fundamentação das razões de tal posicionamento se torna preponderante. Nesse processo, os estudantes não estão apenas repetindo definições filosóficas, mas reconstruindo ativamente o conceito no interior de uma relação argumentativa. A Filosofia acontece exatamente nesse movimento de apresentar as razões das pretensões de validade e de exposição das razões à crítica intersubjetiva.

Ainda em Cerletti, “Se considerarmos o ensino de filosofia como filosófico, o professor deverá ser um filósofo que cria e recria cotidianamente um conjunto de problemas filosóficos e suas tentativas de resposta, e isso ele não fará sozinho, mas com seus alunos”. (Cerletti, 2008, p. 83). Essa compreensão aproxima a concepção de Cerletti da noção habermasiana de racionalidade comunicativa, na qual o sujeito é chamado a justificar suas afirmações não por meios estratégicos, mas mediante a força do argumento. Esse modelo de ensino tem implicações diretas na formação de sujeitos críticos.

Cerletti alerta que “se se associa a filosofia com a difusão daquele tipo de práticas, isto é, com o que há que ou se deve transmitir, ou com a fundamentação do que se deve fazer, então ela será convertida em um meio” (Cerletti, 2009, p. 70). Ou seja, quando a Filosofia é instrumentalizada como ferramenta para formar competências ou habilidades mensuráveis, ela perde sua dimensão crítica e subjetivadora, sendo absorvida pela lógica sistêmica da performatividade.

Tomar a Filosofia escolar como intervenção significa recolocar a aula no registro do acontecimento e não no da simples execução. Logo na abertura do livro, Cerletti problematiza se é possível ensinar Filosofia sem “uma intervenção filosófica sobre os conteúdos e as formas de transmissão dos ‘saberes filosóficos’” (Cerletti, 2009, p. 7). Não se trata, portanto, de empacotar conteúdos, mas de mexer na relação dos estudantes com os saberes e isso depende das condições concretas, institucionais e socioculturais nas quais a aula acontece.

Quando pergunta “o que é ensinar filosofia?”, Cerletti mostra que a definição imediata “transmitir conteúdos” desloca o problema para duas frentes: (i) o ato de “transmitir”, cujo sentido é controverso no caso da Filosofia, e (ii) a própria definição de “Filosofia”, que é plural e disputada (Cerletti, 2009, p. 10-14). Em chave didático-filosófica, a consequência é clara: o “quê” e o “como” não se separam sem perda; ensinar Filosofia supõe filosofar na aula, isto é, fazer com que conceitos ganhem sentido na interlocução e não apenas constar de um programa.

Do ponto de vista metodológico, Cerletti descreve uma lógica de trabalho em que pergunta filosófica, atitude filosófica é tema filosófico se compõem no ato de ensinar:

Se a meta de nossa metodologia é o filosofar, o “conteúdo” a ensinar deverá reunir a atividade filosófica, a atitude filosófica e o tema filosófico. Assim, cada situação de aula constitui um desafio filosófico inédito, porque se efetivamente se filosofa, dá-se lugar ao pensamento do outro, o que supõe, como dissemos, a irrupção de sua novidade.

Não haveria então uma maneira paradigmática - repetível por qualquer um de maneira exitosa -, de ensinar tal o qual tem a da filosofia, já que o ensino filosófico se constrói no diálogo filosófico do dia a dia” (Cerletti, 2008, p. 82).

Em outras palavras, o método é aberto e exige sensibilidade às irrupções do pensamento do outro. Ao mesmo tempo, Cerletti (2008) recusa o improviso vazio: não é que não seja necessário planejamento, mas um planejamento “construído com base nas inquietudes filosóficas do professor, e o convite ao filosofar de seus alunos”, que pode ser modificado ao longo do processo.

Esses princípios se traduzem em protocolos discretos de intervenção docente. Como vimos no exemplo anterior: ao trabalhar o conceito de justiça, o professor lança a pergunta inicial (“o que é justiça?”) e suspende as respostas prontas; solicita que cada posicionamento apresente razões, pede contrapontos e reformulações. O resultado é que a turma aprende a operar conceitos (não a repeti-los), testando suas pretensões de validade em público — o que é convergente com a exigência habermasiana de justificação intersubjetiva.

 Exemplo 2: ao abordar conhecimento, o docente seleciona situações-limite (um boato, um dado estatístico, uma experiência pessoal) e convida a turma a distinguir afirmações que requerem prova, normas que requerem reconhecimento, e expressões de vivência — mapeando, com os alunos, os três “mundos” implicados na fala (objetivo, social e subjetivo) que podem ser publicamente trazidos à linguagem.

Note que, em ambos os casos, a aula não “ilustra” um conteúdo a ser decorado com exigências avaliativas: ela é o lugar do filosofar. Por isso, os critérios de avaliação não podem recair exclusivamente sobre repetição; Cerletti chama a atenção

Obviamente, há recomendações gerais que sempre são úteis para o ensino de qualquer disciplina. Por exemplo: distinguir m om entos didáticos (início, desenvolvimento e conclusão de um a aula, de um a unidade ou de um ciclo), definir estratégias levando em conta o nível e as inquietudes dos alunos, escolher recursos variados, dispor de múltiplos critérios de avaliação que não apontem à mera repetição, mas à elaboração pessoal e coletiva, etc. (Cerletti, 2008, p. 81-82).

 Ao avaliar, o professor retorna às perguntas inaugurais e verifica como as posições melhoraram, como os argumentos se tornaram mais públicos e controláveis e como os estudantes passaram a “pensar e se pensar” no espaço da linguagem — sinais de subjetivação filosófica.

 

 

 

4 A FILOSOFIA ENTRE MUNDO DA VIDA E SISTEMA

A partir dos elementos anteriormente delineados sobre a racionalidade comunicativa e o mundo da vida em Habermas, torna-se possível compreender que o ensino de Filosofia, no interior da escola pública, não se reduz a uma prática pedagógica entre outras, mas emerge como arena crítica concreta onde se disputa o próprio sentido da educação. Na medida em que a escola deixa de ser compreendida como espaço formativo para tornar-se dispositivo funcional de produção de resultados, constata-se que ela é inserida no processo de colonização sistêmica descrito por Habermas (2012b), pelo qual as estruturas orientadas pela comunicação são progressivamente invadidas por meios não linguísticos, isto é, por lógicas de poder e dinheiro que operam através da mensuração, da gestão e do controle estratégico. O mundo da vida, segundo o filósofo, corresponde ao “horizonte de fundo” da experiência intersubjetiva, no qual se reproduzem saberes culturais, identidades pessoais e vínculos sociais mediante práticas comunicativas. Entretanto, esse horizonte é vulnerável quando a racionalidade instrumental passa a prevalecer na organização institucional da vida coletiva, deslocando a linguagem de sua função originária de entendimento para uma função técnica de coordenação de comportamentos.

Tal deslocamento é visível no campo educacional contemporâneo, especialmente nas reformas orientadas por métricas de desempenho, eficiência gerencial e empregabilidade. A filosofia na escola pública deixa de ser concebida como espaço formativo para ser tratada como vetor de competitividade, ajustado aos imperativos do mercado e aos indicadores de produtividade. Nesse quadro, a atividade docente é monitorada por sistemas como o Power BI e os estudantes tornam-se fontes de dados que alimentam mecanismos de avaliação externa. Segundo, Horn

Na realidade educacional vigente da SEED, o componente curricular é pensado de forma centralizada e uniforme para todas as escolas do estado, desconsiderando suas particularidades. Isso ocorre também no planejamento, na definição de conteúdos, nos slides organizados para cada aula e nos exercícios a ser implementados pelo docente (RCO+Aulas), além do controle exercido pelo gestor do estabelecimento via ferramentas de gestão e política de observação de sala de aula. (Horn, et al. 2023. p. 18)

A consequência desse processo não é apenas organizacional, mas simbólica: a escola perde seu caráter de espaço público de formação da vontade e passa a operar como engrenagem do sistema econômico-administrativo.

É precisamente nesse cenário que o ensino de Filosofia adquire uma função de resistência. Ao introduzir a linguagem como acontecimento e não como ferramenta de comando, a Filosofia reativa os processos intersubjetivos que constituem o mundo da vida. Cerletti  destaca que o ensino de Filosofia “A filosofia não é uma questão privada, ela se constrói no diálogo. Ensinar significa retirar a filosofia do mundo privado e exclusivo de uns poucos para colocá-la aos olhos de todos, na construção coletiva de um espaço público.” (Cerletti, 2008 p. 87). Essa formulação converge com a concepção habermasiana de racionalidade comunicativa, segundo a qual a validade de uma afirmação depende de sua capacidade de ser justificada publicamente diante de interlocutores capazes de fala e escuta.

Nesse sentido, a aula de Filosofia não é apenas um espaço curricular, mas uma microesfera pública de formação discursiva. Ao criar as condições para esse tipo de interação, a Filosofia subverte a lógica da performatividade que domina a escola neoliberal. Enquanto a racionalidade instrumental orienta-se pelo êxito e pela eficácia, buscando resultados mensuráveis, a racionalidade comunicativa demanda a justificação das pretensões de validade com base na força do melhor argumento. A Filosofia escolar, ao convocar os estudantes a argumentar, expor seus pressupostos, ouvir os outros e revisar suas posições, reinstaura o uso público da razão no interior de uma instituição que vem sendo progressivamente submetida a formas estratégicas de racionalidade.

Se o ensino filosófico tratasse de adaptar-se aos parâmetros de utilidade do mercado e ao formato espetacular, correria o risco de transformar-se em uma espécie de instrumentalismo, mais ou menos oportunista. Talvez conviesse reservar para si a potestade de não colaborar, pelo menos de maneira direta, em adestrar para um mundo segundo os termos antes descritos, mas preferencialmente deveria “servir” para compreendê-lo e desconstruí-lo. O ensino de filosofia deveria contribuir, em seu exercício, para fazer dos estudantes agentes críticos capazes de pensar, avaliar e poder decidir da melhor maneira as condições de sua incorporação ao mundo de hoje (Cerletti, 2008. p 49-50).

Ao compreender a Filosofia como prática de linguagem, instaura-se uma ruptura com a lógica transmissiva que transforma o professor em executor de conteúdos e os estudantes em receptores passivos. Como afirma Cerletti (2009), “pensar implica novidade e isso tem sempre algo de inquietante porque escapa ao controle da simples transmissão de um saber” (p. 38). Essa inquietação é central para o filosofar: a aula deixa de ser administrada como sequência de competências a serem cumpridas e se converte em acontecimento no qual a linguagem produz deslocamentos subjetivos. Esse ato não é individualista, mas público, pois ocorre em um espaço de interlocução que exige justificação.

Essa dimensão pública da Filosofia escolar corresponde, em termos habermasianos, à realização da racionalidade comunicativa no campo educativo. Enquanto o sistema escolar neoliberalizado busca reduzir a linguagem a um instrumento de gestão — transformando a comunicação em dispositivo de controle — a Filosofia devolve à linguagem seu papel originário de mediação intersubjetiva.

Nesse horizonte, o ensino filosófico converte-se em resistência à colonização do mundo da vida. Essa denúncia converge com o diagnóstico de Habermas (2012b), segundo o qual a colonização ocorre quando os mecanismos sistêmicos substituem as práticas comunicativas, reduzindo os sujeitos a funções dentro de uma engrenagem. A Filosofia, ao contrário, convoca os participantes a expor seus argumentos, esclarecendo pressupostos e revisando convicções — prática que reacende a dimensão pública da escola.

A convergência entre Habermas e Cerletti torna-se ainda mais clara quando se observa que ambos rejeitam a figura do sujeito isolado. Para Habermas, “a racionalidade de uma exteriorização depende da confiabilidade do saber nela contido” (Habermas, 2012a, p. 32), e essa confiabilidade só pode ser garantida no espaço público de justificação intersubjetiva. Para Cerletti, o filosofar se dá em comunidade, pois “não há planejamento de aula que possa dar conta da irrupção do pensamento do outro” (Cerletti, 2009, p. 81). O acontecimento do pensamento é, portanto, um acontecimento de linguagem — imprevisível, intersubjetivo e emancipatório.

Assim, a Filosofia escolar não deve ser vista como componente periférico ou meramente ilustrativo de competências gerais. Ela representa uma fissura no interior da escola colonizada, reintroduzindo práticas comunicativas que contrariem a hegemonia do sistema. Ao articular a teoria do agir comunicativo de Habermas e a concepção interventiva de ensino de Filosofia proposta por Cerletti, evidencia-se que a aula filosófica não é um mero espaço de transmissão de conteúdos, mas uma microesfera pública de deliberação, na qual se decide qual forma de racionalidade orientará a experiência escolar. Enquanto a racionalidade sistêmica impõe metas, indicadores e formas de controle que prescindem da linguagem, a Filosofia reinscreve o processo educativo no interior do mundo da vida, restituindo à linguagem seu caráter formativo e emancipador. A aula de Filosofia, nesse horizonte, constitui-se como prática comunicativa porque exige que os participantes apresentem razões, escutem o outro, revisem suas posições e construam coletivamente significados — elementos essenciais para a formação de sujeitos autônomos em uma sociedade democrática.

Habermas (2012b) demonstra que a colonização do mundo da vida ocorre quando mecanismos sistêmicos substituem formas comunicativas de integração social, convertendo a educação em dispositivo funcional voltado à produção de resultados. Essa colonização se expressa na transformação da linguagem em ferramenta estratégica de gestão, reduzindo o professor a executor de metas e o estudante a consumidor de competências. Ao mesmo tempo, Cerletti (2008) alerta que a Filosofia perde seu caráter crítico quando se converte em instrumento para legitimar políticas educacionais tecnicistas, deixando de operar como acontecimento de pensamento. Ambos os autores convergem, portanto, na crítica ao esvaziamento da linguagem como espaço público de formação e na defesa de práticas discursivas como núcleo da experiência educativa.

A Filosofia escolar, quando fundada no agir comunicativo, emerge como zona de resistência à racionalidade instrumental. Não se trata de negar a necessidade de organização pedagógica, mas de afirmar que a finalidade da educação não pode ser subsumida pela lógica do desempenho. A aula filosófica, enquanto acontecimento de linguagem, impede a reificação da experiência educativa ao convocar os participantes a avaliar a validade das proposições e a se reconhecerem mutuamente como coautores do conhecimento.

Assim, pode-se afirmar que a Filosofia, em sua dimensão escolar, não ocupa um lugar marginal, mas estratégico: ela reativa o mundo da vida dentro de uma instituição progressivamente colonizada e restabelece a linguagem como medium da formação humana. Essa prática não apenas resiste ao neoliberalismo educacional — que transforma a escola em empresa e o estudante em capital humano — mas insurge contra ele, instaurando um horizonte de emancipação no qual a palavra volta a ter força formadora. A aula de Filosofia torna-se, portanto, um “ato de descolonização” cotidiana, no qual pensar junto é um gesto político que afirma a escola como espaço de vida, e não como engrenagem de sistema.

Desse modo, a articulação entre Habermas e Cerletti permite compreender o ensino de Filosofia não como um componente curricular acessório, mas como núcleo vital de disputa por formas de racionalidade na educação contemporânea. A Filosofia escolar opera como prática discursiva que reinscreve a experiência educativa na esfera pública, promove a subjetivação crítica e afirma a centralidade da linguagem como lugar de construção de sentido entre sujeitos. É nessa experiência, e somente nela, que a escola pública pode recuperar seu papel formativo e democrático, resistindo à colonização sistêmica e preservando a possibilidade da emancipação humana.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise desenvolvida ao longo deste texto buscou iluminar um ponto decisivo do debate educacional contemporâneo: a disputa entre racionalidades que atravessam a disciplina de filosofia na escola pública, especialmente no contexto paranaense. Verificou-se que, sob o avanço de políticas orientadas por métricas, plataformas digitais e mecanismos de gestão tecnocrática, consolida-se uma tendência de subordinação da educação a lógicas sistêmicas que privilegiam produtividade, controle e mensuração. Esse movimento, como afirmou Habermas, não constitui mero rearranjo administrativo; trata-se de um processo estrutural de colonização do mundo da vida, no qual a escola perde progressivamente seu caráter formativo e se torna engrenagem operacional de finalidades externas, alinhadas ao mercado e à racionalidade instrumental.

Ao observar essa dinâmica, torna-se evidente que a Filosofia, no interior da escola pública, não se encontra em posição neutra. A sua presença é desafiada pela redução curricular, pela plataformização do ensino e pela conversão do trabalho docente em cumprimento de indicadores. Todavia, é precisamente neste cenário de tensão que sua relevância se acentua. A Filosofia, enquanto prática discursiva enraizada no diálogo e na justificativa intersubjetiva, reativa a dimensão comunicativa da experiência escolar e restabelece a centralidade da linguagem como meio de formação de sujeitos capazes de pensar e decidir com os outros.

A contribuição de Cerletti reforça esse horizonte ao afirmar que ensinar Filosofia não é transmitir conteúdos prontos, mas instaurar uma intervenção filosófica na qual o estudante torna-se coautor de ideias e interlocutor legítimo. Em outras palavras, a aula de Filosofia — quando orientada pela racionalidade comunicativa — produz deslocamentos subjetivos, convoca à escuta e fundamenta as razões. Nesse processo, ela resiste à reificação do ensino e à captura da escola por finalidades meramente estratégicas, reintroduzindo no cotidiano pedagógico a dimensão pública da razão.

Desse modo, a Filosofia escolar pode ser compreendida como microesfera pública de deliberação: um espaço onde argumentar, justificar e ouvir não são procedimentos acessórios, mas o núcleo da experiência formativa. Essa concepção assume, deliberadamente, um caráter contra-hegemônico. Não se trata de romantizar a prática docente nem ignorar as amarras institucionais que a atravessam; trata-se de reconhecer que, mesmo sob pressões sistêmicas, a aula de Filosofia pode conservar uma potência emancipatória. A simples exigência de que o estudante apresente razões, interrogue pressupostos, explicite desacordos e construa sentidos coletivos constitui resistência à lógica que transforma sujeitos em dados e pensamento em evidência de desempenho.

Em termos mais diretos: ou a Filosofia escolar sucumbe à racionalidade instrumental — tornando-se instrumento para metas e competências — ou ela reafirma sua vocação original como prática comunicativa que sustenta o mundo da vida. A escolha, ainda que difícil, não é irrelevante. A própria manutenção da experiência democrática na escola depende dessa tensão: sem espaços de fala argumentativa, sem convivência com a discordância legitimada e sem o exercício contínuo da justificação pública, o ambiente escolar se converte em dispositivo burocrático, e não em espaço de formação.

Não se pretende aqui oferecer respostas definitivas, mas delimitar um campo que requer reflexão. O ensino de Filosofia, fundamentado no agir comunicativo, não é mero adendo curricular: é uma forma de preservar, no coração da escola, a possibilidade do comum, da crítica e da emancipação. Se a colonização sistêmica avança, é na tessitura diária da linguagem partilhada — instável, contingente, viva — que se abrem fissuras. A aula de Filosofia, quando fiel ao seu papel, não entrega resultados imediatos, mas cultiva algo mais exigente e mais necessário: disposição para pensar com os outros, a coragem de questionar e a responsabilidade de justificar. Em tempos de métricas absolutas e discursos de eficiência incontestada, talvez essa seja a forma mais concreta, e mais ética, de resistência educacional.

 

REFERÊNCIAS

CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p101.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Vol. 1. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. p.704.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. vol. 2. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012b. p.811.

HORN, Geraldo Balduino; MASTEY, Avanir. REZENDE, Edson Teixeira de. A filosofia no ensino médio público paranaense: limites e desafios no contexto das políticas educacionais. Dossiê 67 – Formação no Ensino Médio: Contribuição da Filosofia. EccoS – Rev. Cient., São Paulo, n. 67, p. 1-18 e25488, out./dez. 2023. Disponível em em http://educa.fcc.org.br/pdf/eccos/n67/1983-9278-eccos-67-e25488.pdf acesso em 04/10/2025.

PARANÁ. Caderno de itinerários Formativos do Ensino Médio Paranaense. Linguagens e sua Tecnologias - Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Vol 1. Curitiba, 2025. Disponível em: https://acervodigital.educacao.pr.gov.br/ pages/download.php?direct=1&noattach=true&ref=56131&ext=pdf&k=b0c4d14f9b acesso em 17/09/2025.

PARANÁ. Curitiba, n. 11.799, 03 dez. 2024. Regulamenta o Programa Parceiro da Escola, instituído pela Lei n. 22.006, de 4 jun. 2024, a ser desenvolvido nas instituições de ensino da rede estadual de educação básica do Paraná. Diário Oficial do Estado do Paraná. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=exibir&codAto=327732&indice=3&totalRegistros=259&anoSpan=2024&anoSelecionado=2024&mesSelecionado=0&isPaginado=true. Acesso em: 23/09/2025.

PARANÁ. Formação Geral Básica. Disoponível em: https://professor.escoladigital.pr.gov.br/sites/professores/arquivos_restritos/files/documento/2022-11/ensino_medio_curriculo_formacao_geral_basica.pdf acesso em 14/09/2025.

PARANÁ. Referencial Curricular Paranaense para o Ensino Médio. Sistema Estadual de Ensino do Paraná. Vol 2. Curitiba, 2025. Disponível em https://acervodigital.educacao.pr.gov.br/pages/download.php?direct=1&noattach=true&ref=56493&ext=pdf&k= acesso em 14/09/2025.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Plataformas educacionais para uso docente: orientações oficiais. Disponível em: https://professor.escoladigital.pr.gov.br/plataformas_educacionais. Acesso em: 30/09/2025.

QUEIROZ , Rodrigo Danúbio; QUEIROZ , Rafael Carlos. Racionalidade comunicativa e educação : perspectivas de emancipação em Habermas. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, RJ, v. 11, p. e-7382, 2024. Disponível em https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/7382 acesso 12/07/2025.



[1] Mestrando em Filosofia – UFPR

[2]  Diário Oficial do Paraná. Terça-feira, 03 de dezembro de 2024 – Edição nº 11799. Regulamenta o Programa Parceiro da Escola, instituído pela Lei nº 22.006, de 4 de junho de 2024, a ser desenvolvido nas instituições de ensino da rede estadual de educação básica do Paraná.  Lei 22.006 - 4 de Junho de 2024. O Programa estadual institui parceria com organizações privadas para gestão administrativa de escolas públicas, definindo critérios de contratação, metas de desempenho e mecanismos de acompanhamento e avaliação institucional.

[3] A Lei nº 11.684/08 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
BRASIL. Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008. Altera o § 1º do art. 26 e o art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como componentes curriculares obrigatórios nos cursos do ensino médio. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 3 jun. 2008

[4] As plataformas digitais utilizadas pelos docentes variam conforme o componente curricular. No caso da disciplina de Filosofia, é de uso obrigatório o “Desafio Paraná”, acessado por meio da plataforma WayGround, conforme diretrizes da Secretaria de Estado da Educação do Paraná..

[5] O uso do Power BI permite a visualização interativa desses dados por meio de gráficos e filtros, facilitando a identificação de padrões, desigualdades regionais e fatores que influenciam o desempenho, promovendo a tomada de decisões com base em evidências.

[6]  O SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) são os principais indicadores de qualidade da educação pública no Brasil.

O SAEB avalia o desempenho dos estudantes em Língua Portuguesa e Matemática, enquanto o IDEB combina esses resultados com as taxas de aprovação escolar.

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