a ação comunicativa de Habermas e o potencial restaurativo da leitura no sistema prisional
Émerson Vieira Bragança Louro[1]
Universidade Federal de Minas Gerais
emersonlouro@ufmg.br
Marília de Abreu Martins de Paiva[2]
Universidade Federal de Minas Gerais
mariliapaiva@ufmg.br
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Resumo
O presente trabalho visa apresentar os resultados da pesquisa sobre bibliotecas prisionais e leitura como ferramenta para remição da pena e ressocialização dos IPL. Neste trabalho, buscou-se uma perspectiva habermasiana sobre emancipação, a fim de se obter a resposta para a seguinte questão: É possível, a partir da prática da leitura no cárcere, a formação de indivíduos ressocializados e emancipados do estado de alienação acometido pelo modelo de sistema carcerário atual? Para responder a esta pergunta, utilizamos como referencial a teoria do agir comunicativo de Habermas. a esta pergunta, utilizamos como referencial a teoria do agir comunicativo de Habermas.
Palavras-chave: Leitura. Biblioteca prisional. Sistema prisional. Habermas. Emancipação.
FROM ALIENATION TO EMANCIPATION
Habermas's communicative action and the restorative potential of reading in the prison system
Abstract
This paper aims to present the results of research on prison libraries and reading as a tool for sentence reduction and resocialization of inmates. This work sought a Habermasian perspective on emancipation in order to answer the following question: Is it possible, through the practice of reading in prison, to form individuals who are resocialized and emancipated from the state of alienation caused by the current prison system model? To answer this question, we used Habermas's theory of communicative action as a framework.
Keywords: Reading. Prison library. Prison system. Habermas. Emancipation.
DE LA ALIENACIÓN A LA EMANCIPACIÓN
la acción comunicativa de Habermas y el potencial restaurador de la lectura en el sistema penitenciario
Resumen
Este artículo presenta los resultados de una investigación sobre las bibliotecas penitenciarias y la lectura como herramienta para la reducción de condenas y la resocialización de los internos. Este trabajo adoptó una perspectiva habermasiana sobre la emancipación para responder a la siguiente pregunta: ¿Es posible, mediante la práctica de la lectura en prisión, formar individuos resocializados y emancipados del estado de alienación causado por el modelo actual del sistema penitenciario? Para responder a esta pregunta, se utilizó la teoría de la acción comunicativa de Habermas como marco teórico.
Palabras clave: Lectura. Biblioteca penitenciaria. Sistema penitenciario. Habermas. Emancipación.
1 INTRODUÇÃO
O Brasil ocupa hoje a posição de terceiro lugar no ranking mundial de encarceramento, atrás, somente, de Estados Unidos e China, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) extraídos do estudo para implementação de diretrizes da política de alternativas penais no Brasil, publicado no ano de 2023. Ainda, segundo o estudo, há hoje no sistema prisional brasileiro uma média de 300 presos para cada grupo de 100 mil habitantes, o que coloca o Brasil com o dobro da média mundial de encarceramento (Conselho Nacional de Justiça, 2023).
De fato, o referido estudo mostra uma tendência da privação da liberdade como forma de resposta à sociedade em face daqueles que atentam contra um bem jurídico criminalmente tutelado. Estes números, porém, transcendem esse conceito resposta social e alcançam um lado nefasto do poder-agir estatal, qual seja, o controle social. O capitalismo contemporâneo acentua as desigualdades sociais e se utilizam do sistema penal como meio de controle social para extirpar da sociedade todos aqueles que não servem para o trabalho, ou melhor, não se servem ao trabalho.
Diante de tal cenário, o Brasil contabiliza hoje cerca de 650 mil indivíduos privados de liberdade (IPL). Não obstante, a população encarcerada no Brasil é majoritariamente formada por pessoas pretas e pardas, de periferia e de baixa escolaridade, robustecendo e dissimulando violências estruturais relacionadas a fatores culturais e ideológicos que fortalece o genocídio e a exclusão de um grupo específico e pré-determinado da população do Brasil, via criminalização. Esta aporia está diretamente ligada aos índices alarmantes de miséria, violência e estratificação social, levando grande parte da população a um ceticismo quanto à possibilidade da efetiva construção de um Estado igualitário, democrático e de direito.
Posto isto, o que se percebe é um estado controlador e repressivo, que promove o encarceramento em massa de um público já pré-determinado, levando este público a um estado de alienação e aceitação de sua condição.
Nesse entendimento, trazemos a seguinte questão: É possível, no sistema penitenciário atual, que estes IPL consigam romper com este estado de alienação e aporia, a partir da leitura e do acesso à informação, e – desta forma – alcancem sua emancipação enquanto pessoas humanas conforme os conceitos trazidos por Habermas?
Como pesquisadores, buscamos hipóteses que possam responder a estas questões, a fim de encontrarmos alternativas para a redução do estado de alienação e ociosidade que atinge os IPL e que possam contribuir efetivamente para a ressocialização destes.
Assim, procurar-se-á embasar-se nos conceitos de emancipação desenvolvidos por Habermas em consonância com sua teoria do agir comunicativo, como hipóteses de resposta a estas questões, qual seja, da leitura como instrumento para esta emancipação e, consequentemente, como ferramenta de ressocialização dos indivíduos privados de liberdade. Também trataremos da importância da implantação de bibliotecas prisionais como meio essencial de acesso à leitura e à informação, a fim de se atingir este objetivo emancipatório e ressocializador.
Segundo Lehmann e Locke (2015, p.9):
o acesso a uma biblioteca e aos seus serviços deve estar disponível para todos os reclusos, qualquer que seja a sua classificação de segurança ou a sua localização no estabelecimento prisional. O acesso a serviços de biblioteca apenas deve ser restringido em caso de infração comprovada das regras de funcionamento da biblioteca.
Nessa perspectiva, o espaço prisional necessita possuir uma biblioteca especializada, valendo-se dos conceitos trazidos pela biblioteconomia social, além de bibliotecários formados tecnicamente e engajados para atuarem diretamente no projeto de implantação destas bibliotecas, bem como sua estrutura, organização, atividades e serviços, propiciando aos IPL o acesso à leitura e seu desenvolvimento educacional e pessoal.
O objetivo deste trabalho é, portanto, investigar as bibliotecas prisionais enquanto ferramentas de acesso à leitura e à informação capazes de desenvolver no IPL esta condição de sujeito emancipado nos termos do pensamento habermasiano.
Posto isto, a presente pesquisa propõe realizar uma investigação que favoreça a reflexão sobre o assunto e, ao mesmo tempo, contribua para outras áreas de pesquisa, não se limitando apenas à produção intelectual, mas tendo em seu bojo a função social de provocar mudanças profícuas na relação entre os indivíduos privados de liberdade e a sociedade em que vivem.
Quanto ao âmbito metodológico, utilizamos uma metodologia de base filosófica teórico-metodológica marxista, com enfoque no materialismo dialético, sem prejuízo do materialismo histórico que o precede. Usamos como marco teórico, a fim de se estabelecer um diálogo com a teoria marxiana, a teoria da ação comunicativa habermasiana. Quanto à abordagem, realizamos um estudo qualitativo para se encontrar as respostas para as questões elencadas anteriormente. Em relação à finalidade, situamos nossa pesquisa na categoria desenvolvimento experimental, com o propósito exploratório. Por fim, a presente pesquisa foi delineada em pesquisa bibliográfica. Posto isto, foi feito o levanto bibliográfico da literatura científica da área, valendo-se da técnica da revisão de literatura e do levantamento de dados sobre instituições, pesquisadores, linhas e grupos de pesquisa que abordam o assunto.
Após a coleta de todos os dados, realizamos a análise e interpretação dos dados obtidos, para, em seguida, formularmos e apresentarmos nossa conclusão.
2 DE MARX A HABERMAS: O CAPITALISMO CARCERÁRIO
A fim de se fundamentar a relevância do tema, é preciso, antes, conceituar alguns termos que norteiam essa linha de pesquisa, no intuito de promover melhor compreensão de suas peculiaridades.
Habermas argumenta que a teoria da consciência de classe não encontra mais referências empíricas nas sociedades contemporâneas, principalmente devido à pacificação dos conflitos de classe promovida pelo Estado social e à anonimização das estruturas de classe. Essa anonimização torna difícil a identificação de mundos da vida específicos de classe. Por isso, ele nota que Horkheimer e seus colaboradores, de forma coerente, substituíram essa teoria por uma teoria da cultura de massas.
" (...) diante da pacificação do conflito de classes operada pelo Estado social e a anonimização das estruturas de classe, a teoria da consciência de classe perde suas referências empíricas. Já não pode aplicar-se a uma sociedade em que cada vez mais se torna menos possível identificar mundos da vida estritamente específicos de classe. Horkheimer e seus colaboradores agiram, pois, muito consequentemente ao substituí-la por uma teoria de cultura de massas" (Habermas, 1990a: 497).
Embora Marx, em sua produção escrita, tenha se dedicado em algum momento ao estudo do sistema prisional enquanto produto do capitalismo, é possível inferir no conjunto de sua fortuna crítica um pensamento que revela um capitalismo que desagua no encarceramento de massa.
Assim, apesar da obra de Marx não tratar diretamente do conceito de encarceramento de massa que conhecemos hoje, é possível encontrarmos em alguns de seus escritos, como na obra “Os despossuídos” publicada pela primeira vez em português pela editora Boitempo em 2017, as categorias de exclusão e controle social como fenômeno do encarceramento de massa, a partir da gestão e controle da população excedente e despossuída do capitalismo, especialmente as camadas que se tornam funcionalmente desnecessárias ao sistema produtivo.
Para Haddad (1996), Habermas, por sua vez, em sua obra sobre a Mudança Estrutural da Esfera Pública, identificou uma crescente interconexão entre a esfera pública e o setor privado, resultando na formação de um setor intermediário que mescla funções estatais e sociais sem a participação ativa de indivíduos politicamente engajados.
Nesse cenário, o público, antes composto por pensadores de cultura, restrito, transformou-se em uma grande massa de consumidores de cultura, amplo, que está alheia ao exercício do poder e é mobilizada principalmente para fins de apoio.
Consequentemente, Habermas e a Escola de Frankfurt (Adorno e Horkheimer) argumentam que a premissa de Marx, segundo a qual as classes oprimidas poderiam entrar na esfera pública burguesa e promover uma revolução política bem-sucedida, não se sustenta mais na realidade moderna. Isso ocorre porque a fusão entre o Estado e a sociedade acaba por retirar à esfera pública a sua base, sem lhe dar uma nova, o que justifica a sugestão de Habermas para a obsolescência da teoria da consciência de classe.
3 REMIÇÃO DA PENA PELA LEITURA
Em maio de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a resolução n.º 391 que permite que o hábito de leitura seja considerado para fins de remição de pena para o executando, ou seja, aquele que cumpre a execução penal de uma pena com sentença condenatória transitada em julgado. A remição da pena é um instituto jurídico de direito penal previsto no artigo 126 da Lei de Execuções Penais, Brasil (1984), em que o apenado tem o direito de descontar um dia de sua pena para cada três dias de trabalho, diminuindo – assim – em um terço a sua pena.
No estado de Minas Gerais, segundo dados da própria Secretaria de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP) existem ao todo 172 unidades prisionais, das quais 50 não possuem qualquer biblioteca, ou seja, 30% do total. Já nas outras 122 unidades, embora possuam bibliotecas, estas não são bibliotecas especializadas, nos conceitos trazidos pela corrente da biblioteconomia social, nem estão estruturadas adequadamente, além de não oferecem aos apenados programas de empréstimos de livros, de incentivo à leitura, de leitura assistida, uma vez que não possuem bibliotecários nestes ambientes, já que o cargo de bibliotecário não está previsto na Lei de Execução Penal, carecendo com isso de imediata regulamentação pelo poder público.
4 BIBLIOTECONOMIA SOCIAL
O termo biblioteconomia social, também tratado por biblioteconomia crítica em alguns países, sobretudo Estados Unidos, ou biblioteconomia progressista, termo mais comumente utilizado em alguns países europeus, especialmente na Espanha, surge a partir da necessidade de se pensar o papel de uma biblioteconomia com responsabilidade social em que o bibliotecário atue como protagonista no processo da transformação social. Assim, para Lindemann; Spudeit e Corrêa (2016) a biblioteconomia social vem enfrentar o elitismo da biblioteconomia conservadora que, por décadas, se viu amarrada a um tecnismo desprovido de função social.
Ainda segundo Lindemann; Spudeit; Corrêa (2016, p. 713):
“Não pode haver menosprezo ao tecnicismo bibliotecário, pois sua existência é essencial para dar funcionalidade à biblioteca como prestadoras de serviços. [...] mas é preciso dar fundação social à biblioteca, para que ela possa atingir seu objetivo de entrelaçamento nas questões bibliotecárias em conjunto com a realidade social, colocando a biblioteca como espaço e objeto central e acesso à informação e cultura dentro da sociedade.”
Posto isto, verifica-se que a implantação de bibliotecas especializadas no sistema penitenciário coaduna com os fundamentos sociais da biblioteconomia social, uma vez que lida com grupos humanos específicos, muitas vezes esquecidos pelo poder público e em completo estado de alienação e segregação do conhecimento e da informação. Assim é o caso dos indíviduos privados de liberdade, que se encontram em ambiente desprovido de acesso à informação e aos instrumentos e mecanismos educacionais indispensáveis no processo de ressocialização.
Desta maneira, para Targino (2006, p. 68):
a Biblioteconomia interage com o campo social não somente pelo conhecimento adquirido (ou seja, por reunir, organizar e disseminar o conhecimento registrado), mas também pela relevância atribuída à possível mudança dos grupos humanos. Neste cenário, o papel do bibliotecário é desafiador por conduzir práticas sociais em ambientes diferenciados e pouco explorados pela área, como presídios, comunidades carentes ou ambientes que necessitam de uma atuação mais humana do profissional.
Para Zamite (2023) com a regulamentação pelo poder público para o cargo de bibliotecário nos estabelecimentos prisionais, a instituição poderia, com a colaboração destes profissionais, promover a capacitação dos internos para ajudarem na biblioteca como multiplicadores nos programas de incentivo à leitura, disseminando a prática da leitura para os demais indivíduos privados de liberdade, a fim de que os reeducandos possam descobrir a potencialidade da biblioteca e dos seus serviços, de modo que os livros circulem no ambiente carcerário contribuindo para o processo de ressocialização do executando.
4 A EMANCIPAÇÃO DO SUJEITO A PARTIR DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA HABERMASIANA
De acordo com Lima et al. (2013, p. 2), Habermas concebe o mundo da vida como o espaço da reprodução simbólica, onde a linguagem é utilizada em trocas quotidianas. É através do uso social da linguagem que o ser social se forma e apropria-se dela. Para o autor, a racionalidade comunicativa manifesta-se no sujeito que fala, significando que o conhecimento e a intersubjetivação são resultados da interação mediada pela linguagem. Consequentemente, as relações sociais são estabelecidas por ações interativas que mediam interesses e promovem a comunicação organizada.
“Em Habermas o mundo da vida é o ambiente da “reprodução simbólica” da linguagem, onde são elaboradas as trocas com a utilização da linguagem ordinária. No mundo da vida é que a linguagem é apropriada, uma vez que é a partir do uso social da linguagem que o ser social se constitui. O autor considera que a racionalidade comunicativa é estabelecida pelo sujeito de fala, isto é, o ato de conhecer ocorre na interação estabelecida na linguagem, a intersubjetivação. Esta questão demonstra o grau de interação organizada, mediada por atos de fala, a questão da mediação de interesses e a mediação comunicacional. Portanto, as relações sociais são construídas a partir das ações interativas.” (Lima et al., 2013, p. 2).
A distinção conceitual entre o agir estratégico e o agir comunicativo, conforme proposta por Lima apud Habermas (2013, p. 8), é central para a teoria da ação social e funda-se no mecanismo de coordenação da ação da fala.
No agir estratégico, o efeito coordenador da ação é extralinguístico, dependendo fundamentalmente da influência exercida pelos atores uns sobre os outros e sobre as variáveis situacionais, frequentemente mediada por atividades não verbais. Neste contexto, a racionalidade que prevalece é a teleológica, ou seja, orientada para o sucesso individual, e a linguagem é instrumentalizada, resultando no enfraquecimento das forças ilocucionárias e na sua redução a um veículo de informação (Lima apud Habermas, 2013 p. 8).
Em contraste, o agir comunicativo exige que a coordenação bem-sucedida da ação se apoie na força consensual do entendimento linguístico. As "energias de ligação" inerentes à própria linguagem tornam-se efetivas para a integração social. Os atores, operando no horizonte de um mundo da vida compartilhado, engajam-se em uma tentativa cooperativa de definir seus planos de ação com base em interpretações mútuas da situação. O sucesso desse agir não reside na racionalidade instrumental dos planos individuais, mas sim na força racionalmente motivadora dos atos de entendimento. Isso implica uma reorientação do ator – do enfoque objetivador de um agente orientado pelo sucesso para o enfoque performativo de um falante que busca o entendimento mútuo. Portanto, o agir comunicativo está condicionado a preencher os requisitos rigorosos de uma racionalidade que se manifesta nas condições necessárias para um acordo obtido por meios comunicativos.
É a partir deste ponto, deste acordo tácito de vontades, que acreditamos no potencial emancipatório habermasiano dentro do espaço prisional. Ocorre que grande parte dos indivíduos privados de liberdade pertencem quase que exclusivamente a um único grupo de estratificação social: pretos, pardos e de periferia. Na perspectiva da justiça restaurativa o espaço prisional é um espaço propício para o exercício deste diálogo, desta ação comunicativa.
É neste ponto em que o pensamento marxiano converge para o pensamento habermasiano, em que estes sujeitos alienados e vítimas de um capitalismo carcerário que promove o encarceramento em massa contra todos aqueles que não produzem, que a leitura surge como instrumento libertador e de promoção para a instância discursiva.
5 A LEITURA COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO, ACESSO À INFORMAÇÃO E RESSOCIALIZAÇÃO
Na perspectiva de uma justiça restaurativa, a biblioteca é um espaço fundamental no ambiente prisional e precisa ser vista pela instituição como, confome preleciona Toews (2019), um espaço de restauração dos vínculos sociais e afetivos que foram cortados quando da privação da liberdade do sujeito apenado. É imprencidível que o poder público enxergue a biblioteca prisonal não apenas como um espaço para o reeducando remir sua pena, mas como um espaço de potencial ressocializador, mediante o acesso à leitura e à informação, instrumentos estes capazes de restaurar o vínculo do reeducando com a sociedade em que vive.
Para Grigoleto e Zamite (2022, p. 5):
Diante dessas características, a biblioteca prisional é vista como um espaço educativo e sociocultural, com a finalidade de atender às necessidades informacionais dos reeducandos, um lugar de acolhimento no período de reclusão. Este espaço é uma ferramenta necessária para o desenvolvimento instrutivo e no processo de reintegração social do interno.
Foucault (2001), reflete sobre o controle penal para além do alcance espaço-corporal, numa tendência de afastar o corpo como alvo principal da repressão penal. Pallamolla (2018), afirma que os efeitos do encarceramento destroem relações sociais e não se restrigem somente aos indivíduos privados de liberdade, mas estendem-se aos seus familiares e à sociedade como um todo.
Assim, faz-se necessário analisar as potencialidades e os desafios para a implementação das práticas restaurativas na busca de soluções para a efetiva ressocialização do reeducando. É justamente nesta esteira que a implantação de bibliotecas especializadas nas unidades prisionais surge como meio potencializador de práticas restaurativas, provocando e desenvolvendo reflexões no reeducando a partir do seu contato com a informação através da prática leitura.
E é neste contexto que um dos atores desta instância discursiva, neste caso, o bibliotecário, possui um poder-dever de agir para que as experiências de leitura destes indivíduos privados de liberdade se emancipem deste estado de alienação ao qual está acometido e tenha condições efetivas de se ressocializar.
Neste trabalho, procurou-se menos falar em remição de pena pela leitura, uma vez que colocar o IPL em liberdade sem esta emancipação implica consequentemente em recebê-lo novamente no sistema prisional. O que se objetiva aqui é pensar a leitura como ferramenta transformadora capaz de libertar o indivíduo privado de liberdade do seu estado de alienação e emancipá-lo, a fim de que este possa se reenquadrar socialmente e ter condições de romper com o estigma que acomete todo o egresso do sistema prisional.
E é a partir do uso deste espaço dentro do cárcere onde se desenvolverá esta mediação, ou, nos conceitos habermasianos, esta ação comunicativa, com fins a se promover efetivamente uma justiça restaurativa que liberte a todos, mas principalmente os que hoje são produtos deste capital encarcerador.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões desenvolvidas neste artigo demonstraram a profunda relevância da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas como um paradigma crítico e emancipatório, aplicável à complexa realidade do sistema prisional brasileiro. A distinção fundamental entre o agir estratégico e o agir comunicativo forneceu a base conceitual para argumentar que a verdadeira ressocialização transcende a racionalidade instrumental da remição de pena, demandando uma intervenção focada na emancipação do sujeito.
O sistema carcerário, em grande parte, atua sob a lógica do agir estratégico, instrumentalizando o indivíduo e reforçando o ciclo de exclusão social e a alienação, especialmente em relação à população historicamente marginalizada. Neste cenário, a prisão se configura como um produto do que denominamos capitalismo carcerário, onde a racionalidade teleológica prevalece, e a linguagem é reduzida a um meio de comando e controle.
Contra essa instrumentalização, o artigo postula que a Justiça Restaurativa e a Biblioteca Prisional atuam como catalisadores de um potencial agir comunicativo. A biblioteca, longe de ser apenas um espaço administrativo para o benefício da remição, deve ser encarada como um lócus de reprodução simbólica do mundo da vida. É neste espaço de diálogo e acesso à informação que se torna viável a superação da alienação.
A leitura, neste contexto, assume a função de instrumento libertador, capaz de promover a intersubjetivação e a formação da identidade pessoal do apenado, resgatando as "energias de ligação" da linguagem. Ao se engajar na leitura crítica e reflexiva, o indivíduo é estimulado a adotar o enfoque performativo, essencial para o agir comunicativo, rompendo com o enfoque objetivador imposto pelo cárcere.
Em suma, o potencial emancipatório habermasiano no ambiente prisional reside na capacidade de transformar o encarceramento de um espaço de coerção agir estratégico em um espaço de diálogo agir comunicativo.
Concluímos que a efetiva ressocialização e o rompimento do ciclo de reincidência dependem de um investimento sério e estratégico do poder público na biblioteca prisional, não como um custo, mas como uma ferramenta de Justiça Restaurativa. Somente por meio da emancipação da consciência e da restauração dos vínculos sociais, mediadas pela leitura e pelo diálogo, será possível libertar o indivíduo do estigma e da alienação, promovendo sua reintegração plena à sociedade e, consequentemente, combatendo a lógica do capital encarcerador.
Como desdobramento e contribuição propositiva desta pesquisa, sugere-se a formulação de uma política pública que estabeleça e avalie programas de leitura com foco na racionalidade comunicativa. Recomenda-se, ainda, a criação de indicadores de emancipação para as bibliotecas prisionais que extrapolem a mera contagem de remição de pena, incluindo métricas qualitativas de engajamento discursivo e de transformação da consciência social e crítica dos indivíduos privados de liberdade. Tais pesquisas futuras poderiam verificar empiricamente a correlação entre a participação em grupos de leitura e o desenvolvimento do agir comunicativo como fator preditivo de sucesso na ressocialização.
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[1] Mestrando no Programa de Pós-graduação em Gestão e Organização do Conhecimento (PPGGOC) na Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), grande área das ciências sociais aplicadas. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Fumec (2018). Especialista em Gestão de Bibliotecas Escolares e salas de leitura pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2025). Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Puc/Minas (2009). Graduado em Letras, licenciatura e bacharelado, com habilitação em Língua Portuguesa e suas literaturas pelo Centro Universitário de Belo Horizonte - UNI-BH (1999). Graduando em Biblioteconomia no Centro Universitário Leonardo da Vinci - Uniasselvi.
[2] Professora associada da ECI/UFMG, na graduação em Biblioteconomia e no Programa de Pós-graduação em Gestão e Organização do Conhecimento (PPGGOC). Graduada em Biblioteconomia (2004), Doutora (2016) e Mestre (2008) em Ciência da Informação pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (ECI/UFMG). Realizou estágio pós doutoral em Educação na Bebeteca da Faculdade de Educação (FAE/UFMG). Especialista em Literatura para crianças e jovens pelo Instituto Vera Cruz (SP).