APRESENTAÇÃO

 

Com o tema do nosso Colóquio Habermas deste ano, queremos dar continuidade aos debates iniciados no ano passado em torno da democracia, justiça social e sustentabilidade ambiental. ―Democracia e tecnologia: regulação da Internet e inteligência artificial na esfera pública‖ – com este tema nos propomos revisitar os desafios normativos da IA e das novas tecnologias para a consolidação de uma esfera pública democrática cada vez mais dominada por plataformas digitais, mídias sociais e o uso desenfreado de algoritmos para a formação da opinião, com o risco de disseminar a desinformação, as fake news e a manipulação de grupos sociais que se comportam como rebanhos humanos.

Em seu último livro (Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa, trad. Denilson Werle, Editora Unesp, 2023), Habermas argumenta que se não lograrmos uma regulamentação adequada dos meios de comunicação digitais, esta nova transformação estrutural corre o risco de esvaziar as instituições através das quais as democracias podem moldar os processos sociais e econômicos para resolver problemas coletivos urgentes, que vão desde a crescente desigualdade social até à crise climática. Habermas defende um conceito amplo de razão humana, um processo de aprendizagem colaborativa que opera através de discussões nas quais os participantes devem recorrer apenas à força do melhor argumento. Diferentes tipos de discussão – sobre fatos científicos, normas morais ou juízos estéticos – empregam diferentes padrões de justificação e o que conta como uma razão válida depende do contexto, mas todo progresso, independentemente do campo, depende de seguirmos o caminho ao longo do qual a razão nos conduz. A principal afirmação de Habermas é que a razão humana, adequadamente utilizada, mantém o seu potencial emancipador para a nossa espécie.

O seu primeiro livro, A transformação estrutural da esfera pública (1962), traçou o surgimento da esfera pública no século XVIII. Esse era um espaço social funcionalmente distinto, localizado entre a privacidade da sociedade civil e os gabinetes formais do Estado moderno, onde os cidadãos podiam participar em processos de deliberação democrática. Habermas chamou a atenção para uma série de fenômenos contemporâneos, incluindo a organização da opinião pelos partidos políticos e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa financiados pela

publicidade, que perturbaram a possibilidade de um debate político generalizado e bem informado. A democracia moderna, argumentava Habermas, era cada vez mais caracterizada pela organização tecnocrática de interesses, e não pela discussão aberta de princípios e valores. Com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, especialmente da Internet, novas mudanças surgiram na esfera pública, na medida em que a imprensa escrita começou a perder espaço e importância para o jornalismo digital. Essas mudanças, consideradas por vários autores como parte dos sintomas de uma condição pós-moderna, teriam dado origem a novas formas de interação social e a novos espaços públicos. No seu último livro, Habermas começa por abordar a relação entre a teoria normativa e a teoria empírica, antes de explicar por que e como devemos compreender o processo democrático, uma vez institucionalizado em condições sociais marcadas pelo individualismo e pelo pluralismo, à luz da política deliberativa, concluindo estas reflexões teóricas preliminares com uma recapitulação das condições improváveis que devem ser preenchidas para que uma democracia capitalista propensa a crises permaneça estável. Dentro desse quadro teórico, para o qual a Transformação Estrutural de 1962 forneceu uma análise histórico-social preliminar, Habermas se propõe a descrever como a digitalização está transformando hoje, cada vez mais, a estrutura dos meios de comunicação social e o impacto que esta transformação tem no processo político e suas polarizações hodiernas. O avanço tecnológico marcado pela comunicação digitalizada fomenta inicialmente tendências para a dissolução de fronteiras, mas também para a fragmentação da esfera pública. O caráter de plataforma dos novos meios de comunicação termina por criar, com a esfera pública editorial, um espaço de comunicação em que leitores, ouvintes e telespectadores podem assumir espontaneamente o papel de autores. O alcance dos novos meios de comunicação é demonstrado pelos resultados de um inquérito longitudinal sobre a utilização da oferta alargada de meios de comunicação social na Alemanha e alhures. Embora a utilização da Internet tenha aumentado exponencialmente nas últimas duas décadas e tanto a televisão como o rádio tenham conseguido se manter, em grande medida, o consumo de jornais e revistas impressos despencou. A ascensão dos novos meios de comunicação social está ocorrendo hoje à sombra da exploração comercial da comunicação virtual não regulamentada pela Internet. Por um lado, isso ameaça minar a base econômica dos editores de jornais tradicionais e dos jornalistas como grupo ocupacional responsável. Por outro lado, um modo de comunicação semipública, fragmentada e fechada em si mesmo parece se espalhar entre os utilizadores exclusivos dos meios de comunicação social, o que distorce a sua percepção da esfera pública política como tal. Se esta conjectura estiver correta, um importante pré-requisito subjetivo para um modo mais ou menos deliberativo de opinião e formação de vontade está comprometido entre uma parcela crescente da cidadania.

Com efeito, a tese programática habermasiana da colonização do mundo da vida (especialmente nos dois volumes da Teoria do agir comunicativo) reflete vários estudos seminais e reflexões anteriores sobre a alienação, o fetichismo do mercado e a reificação num sentido que já antecipa a sua proposta normativa de resgate de um sistema comunicativo. ato capaz de evitar a mera instrumentalização e tecnificação do mundo social e de suas relações de produção, reduzindo-os a algo independente e totalmente indiferente à vontade e às reivindicações normativas dos atores sociais. O prognóstico habermasiano é consistente com a denúncia atual do paradoxo crucial que acomete o desenvolvimento dos sistemas de IA, ou seja, quanto menor a participação de uma parte interessada no ciclo de vida do sistema de IA, mais influência terá na forma como o sistema funcionará. Isto implica que o impacto social na justiça do sistema está nas mãos daqueles que são menos impactados por ele, refletindo outros paradoxos da modernidade já apontados pela chamada ― primeira geração da Escola de Frankfurt‖. Nas palavras de Habermas, ― Um sistema democrático como um todo fica prejudicado quando a infraestrutura da esfera pública não é mais capaz de direcionar a atenção dos cidadãos para as questões relevantes que precisam ser decididas e, ainda, garantir a formação de opiniões públicas concorrentes. – e isso significa opiniões filtradas qualitativamente.

A crítica de Habermas à filosofia da tecnologia de Marcuse (Técnica e ciência como ideologia, 1968) já refletia a sua visão perspicaz de uma sociedade mais democrática e justa, caracterizada pela comunicação aberta e pelo discurso racional. Habermas mostrava-nos, então, que a tecnologia poderia desempenhar um papel importante na concretização desta visão, mas apenas se fosse utilizada de forma consistente com os valores democráticos e o respeito pela dignidade humana. Segundo Habermas, Marcuse vinculou a racionalização progressiva da sociedade (seguindo a crítica marxista do capitalismo e a interpretação weberiana da secularização) à institucionalização do desenvolvimento tecnocientífico, na medida em que a tecnociência permeia as instituições sociais e as transforma radicalmente, para em detrimento de antigas legitimações e códigos tradicionais de normatividade social. A filosofia social de Marcuse denuncia, portanto, a peculiar fusão da tecnologia com a dominação e da racionalidade com a opressão, numa abordagem unidimensional da racionalidade instrumental que provoca alienação, reificação e colonização. Como Habermas e Feenberg observaram corretamente, Marcuse segue Heidegger na demonização da tecnologia moderna, mas em vez de procurar refúgio ontológico numa nova linguagem histórica do Ser, Marcuse defende a libertação humana e a utopia social através de movimentos sociais (especialmente estudantes, trabalhadores, e protestos). Habermas alerta-nos agora para as ameaças do controle algorítmico da comunicação que flui dos mercados hegemônicos e desregulamentados, bem como do poder concentrado nas grandes corporações da internet (big techs). Podemos, assim, revisitar o diálogo de surdos entre Habermas e Foucault, reabilitando a sua evitação comum da crítica reducionista de Heidegger à tecnociência, especialmente quando aplicada às instituições sociais, incluindo a comunicação, a linguagem e a política. Assim, fica posta a tarefa inacabada de levar a cabo uma teoria crítica decolonial da IA e das novas tecnologias, que hoje parecem aumentar o abismo geopolítico que separa as nações do Hemisfério Norte do Sul Global.

 

 

 

 

Nythamar de Oliveira

Rio de Janeiro, novembro de 2024.