ARTIGO  
INSTITUCIONALIDADE, GOVERNAMENTALIDADE E  
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL  
democracia inteligente ou democracia artificial?  
Gilberto Miranda Junior  
Universidade Federal do ABC  
Valéria Cristina Lopes Wilke  
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro  
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Resumo  
O presente artigo insere-se no contexto do Programa de Mestrado Profissional (PROF-FILO UFABC) e articula  
parte da discussão feita na dissertação. Seu objetivo é correlacionar o avanço das Tecnologias Digitais de  
Informação e Comunicação e o enfraquecimento das Democracias Liberais do Ocidente, tendo como pano de  
fundo a governamentalidade algorítmica. Em um primeiro momento, a partir do conceito de governamentalidade  
do filósofo francês Michel Foucault faremos um diálogo com os pensadores alemães Ulrich Beck e Jürgen  
Habermas, discutindo de que forma foram criados atalhos decisórios fora dos processos políticos no âmbito do  
conhecimento tecnocientífico alinhado aos interesses do Capital. Em um segundo momento, enquanto  
consequência desses atalhos, será abordado o risco que a hegemonia oligopolista das Big Techs traz para a vida  
social através de uma nova governamentalidade, agora algorítmica, em diálogo com as pensadoras Shoshana  
Zuboff e Antoinette Rouvroy. Essa nova governamentalidade, cujo foco deixa de ser a produção de corpos  
dóceis e úteis e passa a ter como alvo a construção de subjetividades via psicopolítica – conceito do filósofo sul-  
coreano Byung-Chul Han – tem como subprodutos não apenas as Fakenews, ou a possibilidade de disseminação  
ideológica extremista que tem ameaçado a democracia, mas uma franca queda no caráter deliberativo na  
formação da opinião pública, afetando também a qualidade da democracia. Por fim, refletimos sobre possíveis  
alternativas e antídotos para a situação atual em que nos encontramos, recorrendo ao conceito de cosmotécnica  
do filósofo chinês Yuk Hui.  
Palavras-chave: Democracia. Governamentalidade algorítmica. Neoliberalismo.  
Esta obra está licenciada sob uma licença  
LOGEION: Filosofia da informação, Rio de Janeiro, v. 11, ed. especial, p. 1-20, e-7373, nov. 2024.  
ARTIGO  
1 INTRODUÇÃO  
O enfraquecimento e a constante crise nas democracias liberais do ocidente que  
testemunhamos nos tempos atuais, provocam e nos estimulam a uma reflexão sobre o devir-  
democrático. Especialmente considerando o contexto recente caracterizado pela volta e  
ascensão da extrema-direita à esfera pública, pelo crescimento exponencial da desinformação  
organizada e de negacionismos turbinados pela disseminação de fakenews e manipulação dos  
fatos, pela erosão da credibilidade nas instituições e em fontes de informação reconhecidas na  
modernidade como a imprensa, o sistema educacional e científico, os governos, o sistema  
judicial, dentre outros, torna-se urgente a reflexão e o diagnóstico do presente visando  
entender as novas governanças e como os sujeitos individuais e coletivos estão sendo  
governados.  
Um dos pensadores que mais se debruçaram sobre a questão do poder e da governança  
foi o francês Michel Foucault. No entanto, apesar do prolífero e importante trabalho  
empreendido por ele no século XX ter desnudado a lógica do poder desde o estabelecimento  
do poder pastoral até o início do Neoliberalismo, o próprio filósofo francês começou a se dar  
conta de que os conceitos de biopoder e poder disciplinar – que tanto esclareceram a dinâmica  
do século XX – não estavam dando mais conta, sozinhos, de explicar os fenômenos que  
começavam a tomar forma em meados dos anos 1980. Sua morte prematura o impediu de  
desenvolver com mais vagar a trilha que seu pensamento tomaria a partir de então. No  
entanto, seu conceito de governamentalidade revelaria a importância de seu legado filosófico  
e abriria um amplo caminho para a possibilidade de pensar os tempos atuais de forma não  
apenas a compreendê-los, mas também para a articulação de possíveis formas de resistência e  
de enfrentamentos, principalmente diante dos riscos que esses tempos têm representado.  
Para Michel Foucault, a governamentalidade consiste no “conjunto constituído por  
instituições, procedimentos, análises, reflexões, os cálculos e táticas que permitem exercer  
essa forma bem específica, ainda que complexa, de poder sobre a população (Foucault, 2008a,  
p. 143). Ela abarca uma série de diferentes estratégias e de dispositivos utilizados para  
organizar e regular a vida social. Enquanto processo social, a governamentalidade designa o  
horizonte do Estado administrativo que lentamente foi governamentalizado desde os fins do  
século XVI, tendo em vista o objetivo de governar os seres humanos e de conduzir suas  
condutas. Foucault identificou o deslocamento do regime de soberania para o de  
governamento das populações, mediante tecnologias e saberes específicos para o exercício do  
biopoder. Desta forma, a governamentalidade adquiriu proeminência conceitual na analítica  
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de poder foucaultiana ao ser proposto o enfoque que problematizaria as técnicas de poder  
voltadas para a transformação dos indivíduos em sujeitos governáveis através das tecnologias  
de normalização, de controle e de condução de condutas às quais estão submetidos.  
Ao falarmos do conceito de governamentalidade se torna necessário discorrermos  
também sobre o conceito de poder. Para Foucault o poder não é possuído, mas exercido, ou  
seja, não é coisa a se ter, mas relação. Destarte, não se trata de enxergar o Estado como  
detentor exclusivo do poder, como em Maquiavel, mas constatar uma proliferação múltipla  
das artes de governar desde, ao menos, o século XVI:  
Há, portanto, ao mesmo tempo, pluralidade das formas de governo e imanência das  
práticas de governo em relação ao Estado, multiplicidade e imanência dessa  
atividade, que a opõem radicalmente à singularidade transcendente do príncipe de  
Maquiavel (Foucault, 2008a, p. 124).  
A partir do século XVIII a economia política e o direito público tiveram uma espécie  
de “queda de braço” em que não se podia pensar um sem o outro. Resultado disso foi a  
conformação do direito público e a consequente limitação do poder estatal em favor da lógica  
de mercado. Enquanto as ideias revolucionárias – principalmente na França – questionavam o  
poder estatal em termos de “quais são os meus direitos originais e como posso fazê-los valer  
em face de um soberano?” (Foucault, 2008b, p. 55), as ideias jurídicas – formuladas,  
principalmente, pela burguesia inglesa – se direcionavam para os limites da competência do  
Estado em termos de utilidade, visando  
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Colocar a um governo, a cada instante, a cada momento de sua ação, a propósito de  
cada uma das suas instituições, velhas ou recentes, a questão: é útil?, é útil para  
quê?, dentro de que limites é útil?, a partir de que se torna inútil?, a partir de que se  
torna nocivo? (ibid, p. 55).  
Em termos de governamentalidade, o utilitarismo, assim como o próprio direito  
público, constitui tecnologias de governo. A presença simultânea de ambos criou uma  
ambiguidade que perpassou as relações de poder nos séculos XIX, XX e adentra, de forma  
modificada, o século XXI. Portanto, de um lado temos o direito público e os direitos do  
homem, de origem revolucionária e que manifesta uma vontade coletiva que se expressa nos  
direitos que os “indivíduos aceitaram ceder e a parte que eles querem reservar” (ibd., p. 57), e  
de outro lado, o direito utilitarista que legisla sobre a independência dos indivíduos em  
relação ao Estado, colocando-a em oposição às intervenções do poder público na economia.  
Essa ambiguidade implica também em dois regimes de liberdade que passam a conviver de  
forma simultânea nos estados modernos e por todo século XX: a liberdade de ceder ou não  
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ceder a própria liberdade juridicamente e a liberdade de ser independente em relação aos  
governantes.  
No século XX, marcado sobretudo pela industrialização crescente e pelo consumo de  
massa, as tecnologias e estratégias do poder disciplinar e as da biopolítica estabeleceram o  
paradigma das relações de poder. O resultado visível foi um amálgama: por um lado, foram  
criados corpos dóceis e úteis a serem comprados como força de trabalho e, por outro lado,  
foram criadas e instituídas políticas públicas coletivas para o controle ou incentivo da  
natalidade, o controle sobre a mortalidade, sobre doenças de potencial epidêmico, manutenção  
da saúde e de comportamentos por meio do sistema educacional, propaganda e manipulação  
simbólica da Indústria Cultural. Com a crescente modulação do capitalismo em sua versão  
neoliberal financeirizada, exigindo dos bancos, enquanto intermediários essenciais, uma  
franca informatização de suas operações, vimos a ascensão estratosférica das empresas de  
tecnologia digital e das corporações empresariais que estão no cerne do que Shoshana Zuboff  
(2021) nomeou de Capitalismo de Vigilância, e que, também, controlam o ciberespaço como  
ampliação do mundo da vida, em termos habermasianos. As chamadas Big Techs garantem  
não apenas a infraestrutura das operações econômicas e financeiras e de todas as demais  
atividades presentes no mundo da vida em formato digital, como fundam novos e  
revolucionários modelos de negócios, de subjetivação e de governamentalidade.  
Contemporaneamente, a emergência dessa problematização tem sido chamada de  
governamentalidade algorítmica.  
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O presente trabalho procura analisar, partindo do pensamento de Michel Foucault em  
diálogo com o sociólogo alemão Ulrich Beck, de que forma, na modernidade, através dos  
avanços do sistema tecnoeconômico, as esferas do poder decisório político democrático  
(filiado ao direito de origem revolucionária) foram subjugadas pela esfera mercadológica,  
reconfigurando a atual esfera política. Em seguida, será abordado, em diálogo com o filósofo  
J. Habermas, o diagnóstico sobre uma nova esfera pública inaugurada pela digitalização e  
plataformização de nossa condição habitativa, e como isso afeta as deliberações de um regime  
democrático. Na busca de enfrentamento e compreensão dessa nova governança enquanto  
parte das causas dessa corrosão democrática nos processos decisórios, trataremos do conceito  
de governamentalidade algorítima presente no pensamento da filósofa belga Antoinette  
Rouvroy em diálogo com filósofa estadunidense Shoshana Zuboff. Logo após, a partir da  
ambiguidade dos regimes de liberdade denunciada por Foucault e como ela se apresenta na  
presente era digital, traremos a atualização conceitual que o filósofo sul-coreano Byung-Chul  
Han empreendeu no pensamento foucaultiano através do conceito de psicopolítica. Ao final,  
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nossa pretensão é traçar alguns esboços reflexivos sobre alternativas a essa situação atual em  
diálogo com o filósofo chinês Yuk Hui.  
2 CONTROLE POLÍTICO E TRANSFORMAÇÃO TECNOECONÔMICA  
Em sua obra seminal Sociedade de Risco: Rumo a uma Nova Modernidade (2011), o  
sociólogo alemão Ulrich Beck argumentou que os riscos modernos – como os ambientais,  
tecnológicos e financeiros – são 'produtos' de decisões tecnoindustriais e econômicas que  
priorizam utilidades e vantagens corporativas em detrimento da segurança e do bem-estar  
coletivo. Esses riscos seriam globais em sua natureza, mas desigualmente distribuídos em  
termos de quem sofre suas consequências e de quem tem o poder de influenciar as decisões  
que os geram. Com esta distribuição desigual, tanto de riscos, quanto de poderes, Beck  
denunciou o fato de que a transformação tecnoeconômica não é apenas uma questão de  
inovação e progresso, como muitos querem nos fazer crer, mas também e, fundamentalmente,  
de poder e controle político.  
Ao longo do tempo, sempre foi possível imputar externamente as causas dos perigos e  
riscos a que a sociedade esteve sujeita. Na modernidade tardia, porém, resolvido grande parte  
do perigo externo, é no interior do próprio avanço das forças produtivas que o risco passou a  
ser produzido. Para Beck, tanto o nível alcançado pelas forças tecnoprodutivas quanto as  
garantias jurídicas do Estado Social reduziram objetivamente e isolaram socialmente a,  
chamada, “autêntica carência material humana”. No entanto, esse aspecto, somado aos riscos  
e potenciais de autoameaça desencadeados no crescimento exponencial das forças produtivas,  
instituiu a ligação histórica que marcou a passagem da “lógica da distribuição de riqueza na  
sociedade da escassez para a lógica da distribuição de riscos na modernidade tardia” (ibid., p.  
23). Em outro trecho, o sociólogo explicou que  
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A história da distribuição de riscos mostra que estes se atêm, assim como as  
riquezas, ao esquema de classe – mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em  
cima, os riscos em baixo. Assim, os riscos parecem reforçar, e não revogar, a  
sociedade de classes. À insuficiência em termos de abastecimento soma-se a  
insuficiência em termos de segurança e uma profusão de riscos que precisam ser  
evitados (ibid., p. 42).  
A ambiguidade referida na introdução deste artigo e que constitui a  
governamentalidade a partir do século XX, embora possa até criar solidariedades objetivas ao  
redor das ameaças a partir do direito público, ainda está imersa em um vácuo político-  
organizacional, à medida em que as solidariedades “colidem contra os egoísmos nacionais e  
contra as organizações partidárias e fundadas nos interesses que ainda predominam no interior  
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das sociedades” (ibid., p. 58). Essa ambiguidade se expressa objetivamente nos efeitos  
colaterais da socialização da natureza na modernidade, transformando-se em socialização das  
destruições e riscos que incidem sobre a natureza, gerando “contradições e conflitos  
econômicos, sociais e políticos” (ibid., p. 98). Ou seja, segundo Beck, as fontes de perigo não  
estão mais no desconhecimento que tínhamos acerca desses efeitos, mas no conhecimento que  
hoje construímos; não mais no risco oriundo de uma dominação ineficiente, mas na  
dominação aperfeiçoada da natureza encabeçada pelo caráter utilitário da  
governamentalidade.  
É importante salientar que essa ambiguidade não é só objetiva ao ser expressa na  
organização social da sociedade de risco, ela está também nas subjetividades expressas no  
modelo de “cidadão dividido”. Para Beck, o cidadão das sociedades democráticas liberais age  
sob dois domínios ambíguos: por um lado usufrui “de seus direitos democráticos nas arenas  
da formação da vontade política e, por outro lado, defende como bourgeois [burguês] seus  
interesses privados nos campos do trabalho e da economia” (ibid., p. 276). Se por um lado,  
como citoyen [cidadão], o exercício de poder e a dominação só podem existir com o  
consentimento dos governados, por outro lado, “na esfera da busca de interesses  
técnicoeconômicos” (ibid., p. 276), cria-se a não-política.  
Portanto, essa ambiguidade – que também se torna ambivalência – e que Foucault  
havia detectado entre o direito público (de matriz revolucionária) e o direito utilitário (de  
matriz mercadológica) constitui a governamentalidade em que estamos submetidos e adquire  
também outros contornos no pensamento de Beck. Ao demonstrar como a modernidade – por  
suas características intrínsecas submetidas a sucessivos avanços tecnocientíficos – estabeleceu  
a política, o pensador demonstrou também como ela própria criou a não-política. Essa não-  
política seria, pois, alimentada pela equivalência ideológica entre progresso técnico e  
progresso social, à proporção que é massificada na crença de que uma coisa implica a outra,  
quando, na verdade, não há qualquer relação causal entre ambas, pois  
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O progresso substitui o escrutínio. E mais: o progresso é um substituto para  
questionamentos, uma espécie de consentimento prévio em relação a metas e  
resultados que continuam sendo desconhecidos e inominados. [...] Apenas uma parte  
das competências decisórias socialmente definidoras é inserida no sistema político e  
submetida aos princípios da democracia parlamentar. Uma outra parte escapa às  
regras de controle público e justificação e é delegada à liberdade de investimento  
das empresas e à liberdade de pesquisa (Beck, 2011, pp. 276-277).  
Sob as “regras” de legitimação do progresso e da racionalidade, dois processos  
políticos antagônicos marcariam a consolidação da sociedade industrial: “a produção da  
democracia político-parlamentar e a produção de uma transformação social apolítica e não  
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democrática” (Beck, 2011, p. 277). Ou seja, as regras mais simples do processo democrático –  
informações sobre os objetivos de mudança social, discussão, escrutínio e consentimento –  
ficaram fora do parlamento, enquanto toda a estrutura política – parlamento, governo, partidos  
e sindicatos – promoveu e possibilitou os novos ciclos de produção econômica, tecnológica e  
científica.  
Ao menos até a metade do século XX, as fronteiras entre política e não-política  
estavam bem definidas e não proporcionaram muitos problemas, tanto é que possibilitaram a  
criação do Estado de Bem-Estar Social. Isso se deu porque o “estágio de desenvolvimento das  
forças produtivas e da cientificização” (ibid., p. 277) nunca ultrapassou o espectro das  
possibilidades de ação política e, dessa forma, muito pouco forneceu de contraexemplos para  
se questionar a equivalência ideológica entre progresso técnico e social, ao menos no ocidente  
liberal. Mas tudo mudou a partir dos meados do século XX com transformações (ainda em  
curso) de assustadora profundidade e alcance.  
A formulação do modelo neoliberal após a crise de petróleo dos anos de 1970 e sua  
implementação encabeçada pelos governos de Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, e  
Ronald Regan, nos EUA, promoveu e ainda promove uma febre de transformações  
tecnoeconômicas sem precedentes, recrudescendo a destruição contínua do meio ambiente,  
mudando estruturalmente e sistemicamente as relações de trabalho, fragilizando a ordem  
estamental, descaracterizando as relações de classe e aprofundando as desigualdades sociais.  
Para esse novo cenário as contínuas e cumulativas inovações tecnológicas, cada vez mais  
disruptivas, são fatores fundamentais, pois ao mesmo tempo em que são o resultado de tal  
processo, logo em seguida se transformam em origem de mais uma etapa.  
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Beck tem alertado para o fato de que, embora tenha parecido haver uma certa  
estagnação política nesse período – caracterizando bem, inclusive, os tempos atuais,  
aparentemente apolíticos – na verdade o que ocorreu foi o oposto. Do fato de crermos que o  
político se defina pelo que é politicamente rotulado, isso não implica que não se esteja  
fazendo política desde as origens da configuração atual das coisas. Ou seja, borrou-se por  
completo as fronteiras delimitadas na primeira metade do século XX entre o político e o não-  
político; borramento caracterizado pelas intenções e ações políticas que não se mostram como  
tal, embora o sejam desde a raiz. Concomitante a esse borramento, assistimos perplexos a  
ascensão de governos autoritários de extrema-direita que ignoram os riscos e trabalham na  
intensificação da disrupção dos avanços tecnológicos e na exploração econômica  
irresponsável.  
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Nesse momento se torna importante salientar que essa situação atual descrita por Beck  
não apenas teve origem, mas amplia o poder das corporações tecnológicas no irrompimento  
do terceiro milênio de nossa era. O Vale do Silício (centro de produção tecnológica  
estadunidense) situado no estado da Califórnia, começou a ser formado na década de 1960, a  
princípio, para se alinhar às necessidades bélicas e de segurança interna na guerra fria,  
aproximando fisicamente universidades na produção de inovação constante e empresas que  
explorariam e produziriam essa inovação para o Estado. Quanto mais se tornava distante um  
conflito nuclear entre as grandes potências, muito devido ao iminente colapso da ex-URSS,  
mais as empresas e universidades se propuseram a se tornar independentes e alçar voos  
próprios. Ou seja, a ascensão e domínio tecnológico digital do Vale do Silício é concomitante,  
e não por acaso, à formulação e implantação do neoliberalismo.  
Também não é por acaso a estreita ligação entre a ideologia presente em grande parte  
nas empresas do Vale do Silício e as ideologias (por vezes conflitantes, mas complementares)  
da chamada Alt-Right, tanto estadunidense quanto europeia. Se os CEOs das Big Techs não  
estão explicitamente apoiando os governos de extrema-direita pelo mundo – como faz Elon  
Musk – ao menos, implicitamente, mantêm e recrudescem a lógica algorítmica que favorece o  
extremismo político e antidemocrático em suas plataformas. Ou seja, se concordarmos com J.  
Habermas que a democracia é produto diretamente proporcional à forma como a vontade  
política se desenvolve na esfera pública, o avanço da tecnologia digital nos moldes atuais  
afetou, afeta e afetará drasticamente a democracia.  
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J. Habermas defende a ideia que é na esfera pública, no exercício pleno de uma  
democracia participativa, inclusiva e comunicacional, que os cidadãos podem mitigar os  
efeitos nefastos desse borramento entre a política institucional e a ação política que, de acordo  
com Beck, se esconderia atrás da não-política de caráter tecnoeconômico. Desenvolvida no  
contexto da colonização do Mundo da Vida, ele argumentou que a política se dá, também e  
fundamentalmente, na resistência comunicativa da esfera pública contra as pressões do  
sistema. Ou seja, para o filósofo frankfurtiano, uma democracia enquanto espaço deliberativo  
para a construção intersubjetiva de soluções comuns, compartilhadas e direcionadas para os  
problemas sociais, só poderia acontecer a partir de condições objetivas de validade nas  
exteriorizações simbólicas expressas no interior de uma comunidade que partilha o mesmo  
mundo da vida:  
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O mundo só conquista objetividade ao tornar-se válido enquanto mundo único para  
uma comunidade de sujeitos capazes de agir e utilizar a linguagem. O conceito  
abstrato de mundo é condição necessária para que os sujeitos que agem  
comunicativamente possam chegar a um entendimento mútuo sobre o que acontece  
no mundo ou sobre o que se deve fazer nele. Com essa prática comunicativa, eles ao  
mesmo tempo se asseguram do contexto vital que têm em comum, isto é, de seu  
mundo da vida intersubjetivamente partilhado (Habermas, 2012a, p. 40).  
No entanto, se hoje a esfera pública é constitutivamente digital e nossa vida digital é  
criada e gerida pelas corporações que representam a não-política nos termos de Beck,  
estamos, automaticamente, condenando toda e quaisquer possibilidades da prática  
democrática nos processos decisórios dos quais participamos. Ou seja, o caráter digital atual  
da esfera pública, mesmo com a histórica promessa de se tornar uma aldeia global, vindo ao  
encontro dos princípios habermasianos que fundamentam a deliberação racional em busca de  
consensos democráticos a partir da razão comunicativa, em um segundo momento ganha  
contornos não apenas preocupantes, como, também, em sentido oposto. Habermas, ao notar  
essa questão, viu-se obrigado a atualizar sua produção acerca da análise da mudança na  
estrutura social da esfera pública na sociedade burguesa, escrita nos anos 1960.  
À época, Habermas já denunciava o aspecto mercadológico da esfera pública a partir  
do surgimento institucional da imprensa. Passando do mero negócio artesanal de circulação de  
notícias para um caráter publicitário de classe, muitas vezes em detrimento do lucro, a esfera  
pública já se especializava na formação da chamada opinião pública, porque  
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Neste momento, a intenção de obter lucros econômicos através de tais  
empreendimentos caiu geralmente para um segundo plano, indo contra todas as  
regras da rentabilidade e sendo, com frequência, desde o começo atividades  
deficitárias. O impulso pedagógico, depois o impulso cada vez mais político, podia  
ser financiado, por assim dizer, através da falência (Habermas, 2003, p. 214).  
Mas isso não durou muito a partir do início do século XX. O filósofo demonstrou que  
o estabelecimento do Estado de Direito burguês, paulatinamente, fez surgir a imprensa  
comercial, fazendo-a passar de “pessoas privadas enquanto público” (ibid., p. 218)  
informando e formando a opinião pública, para tornar-se “instituição de determinados  
membros do público enquanto pessoas privadas – ou seja, pórtico de entrada de privilegiados  
interesses privados na esfera pública” (ibid., ibid).  
Se a ambivalência da esfera política borrou a separação entre o direito público e o  
direito utilitário, criando dois regimes de liberdade, foi a imprensa quem trouxe e melhor  
explicitou esse borramento na constituição da própria esfera pública. Sua representação  
jornalístico-publicitária esteve, desde o início, entrelaçada com interesses políticos. E não só  
isso, uma vez que a estratégia foi tão bem-sucedida que se deu ao luxo de simular uma  
separação entre propaganda e relações públicas, criando um espaço específico onde ficam  
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explícitas as intenções comerciais destinadas aos consumidores, enquanto simula interesses  
pelo bem-comum e esconde suas intenções políticas direcionadas à manutenção de seus  
ganhos comerciais, fabricando, artificialmente, consensos que favorecem seus proprietários,  
pois  
[...] o consenso fabricado não tem a sério muito em comum com a opinião pública,  
com a concordância final após um laborioso processo de recíproca “Aufklärung1,  
pois o “interesse geral”, à base do qual é que somente seria possível chegar a uma  
concordância racional de opiniões em concorrência aberta, desapareceu exatamente  
à medida que interesses privados privilegiados a adotaram para si a fim de se auto-  
representarem através da publicidade (Habermas, 2003, p. 228-229).  
Se Habermas já denunciava, no século passado, o mascaramento manipulativo da  
opinião pública pelos interesses privados da burguesia que, ao promover mudanças estruturais  
na esfera pública, comprometia a deliberação democrática, no presente século e na atual  
formação digital da esfera pública, seu posicionamento precisou ser repensado. Foi o que ele  
realizou em sua obra Uma Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública e a Política  
Deliberativa (2023), na qual abordou a complexa relação entre a tecnologia digital nessa nova  
estruturação. Para ele, se por um lado a tecnologia digital permite, em tese, uma participação  
popular mais ampla e a emergência de novos espaços de discussão, por outro lado, a  
proliferação de conteúdo falso e a manipulação de informações ameaçam a integridade do  
processo deliberativo, ao produzir caixas de ressonância que têm levado as pessoas a posições  
extremas. Ou seja, ao mesmo tempo em que a digitalização da comunicação tem o potencial  
de democratizar o acesso à informação, vencendo, em tese, as limitações de uma esfera  
pública contaminada pelos interesses utilitários do mercado, também apresenta uma série de  
riscos que podem comprometer a qualidade da formação da opinião pública e da política  
deliberativa.  
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O reconhecido mérito do trabalho habermasiano está na inserção do conceito político  
de esfera pública em um contexto socioestrutural mais amplo, situando-a em “um lugar entre  
a sociedade civil e o sistema político nas estruturas funcionalmente diferenciadas das  
sociedades modernas” (Habermas, 2023, p. 28). Dessa forma, a esfera pública cumpriria uma  
função substancial na salvaguarda e existência de uma comunidade democrática e é por isso  
que, em sua versão atual plataformizada, há extrema necessidade de compreender todas as  
suas nuances e potenciais. A esfera pública, portanto, idealmente um espaço de debate  
racional e inclusivo, apesar e por causa de toda colonização que sofre do sistema, está sendo  
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“Aufklärung”, esclarecimento. Seu uso nesse contexto nos remete a Kant e sua explicação sobre o que é  
Iluminismo e a necessidade de usarmos a razão para nos emanciparmos da menoridade.  
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ampliada pelo processo tecnológico da comunicação digitalizada e, ao mesmo tempo, sendo  
fragmentada por plataformas digitais que favorecem a formação de bolhas informativas e a  
disseminação de notícias falsas. Essa fragmentação, portanto, dificulta e até mesmo impede, a  
formação de um consenso informado, essencial para a deliberação política efetiva.  
No entanto, considerando que o funcionamento de uma sociedade democrática  
moderna se reporta, necessariamente, a um sistema de comunicação pública que seja capaz de  
formar o elo entre a “autonomia política do indivíduo e a formação política comum da  
vontade de todos os cidadãos” (ibid., p. 101), a solução de Habermas nos pareceu insuficiente.  
A mera regulamentação das plataformas que criam convivência, discussão e deliberações  
dentro da lógica de negócios atual oligopolizada pelas Big Techs, deixa de lado a  
problematização sobre os mecanismos que tornaram esses negócios não apenas lucrativos,  
mas absolutamente populares, necessários e constituintes de uma nova condição habitativa  
humana. Ou seja, não se trata apenas de “humanizar” a navegabilidade dos usuários e tornar  
tudo mais inclusivo. Mas de toda a estrutura, coleta, manipulação e psicopolítica envolvidas  
na própria lógica de funcionamento das plataformas e que tem minado de forma sem  
precedentes, o que entendemos como democracia, pois, claramente, o intuito não é apenas o  
recrudescimento dos lucros, mas controle político e formação ideológica.  
3 GOVERNAMENTALIDADE ALGORÍTMICA E PSICOPOLÍTICA  
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A governamentalidade algorítmica está relacionada a aspectos centrais do processo  
descrito por Shoshana Zuboff (2018, 2020) associado ao modus operandi do modelo de  
negócios das empresas do capitalismo de vigilância: a empresa Google tornou-se líder de  
sucesso e de crescimento, além de paradigma a ser imitado ao mudar sua abordagem nos  
negócios. Como ela afirmou  
[...] A nova abordagem dependia da aquisição de dados de usuários como matéria-  
prima para análise e produção de algoritmos que poderiam vender e segmentar a  
publicidade por meio de um modelo de leilão exclusivo, com precisão e sucesso  
cada vez maiores. À medida que as receitas da Google cresciam rapidamente,  
aumentava a motivação para uma coleta de dados cada vez mais abrangente. A nova  
ciência de análise de big data explodiu, impulsionada em grande parte pelo sucesso  
retumbante da Google. (Zuboff, 2018, p. 32)  
Ou seja, a empresa passou a utilizar os dados de seus usuários como matéria-prima  
para analisar e produzir algoritmos, crescentemente precisos, voltados para a venda e  
segmentação de publicidades a partir da elaboração de constantes perfis atualizados dos  
usuários. Esses dados são extraídos de qualquer trânsito pelas infovias, uma vez que ao  
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transitarmos por elas deixamos rastros ou resíduos (os data exhaust) que são recolhidos,  
tratados, analisados, perfilados e comercializados. Qualquer bit de dado tem valor comercial e  
por isso, o que importa é a quantidade e não a qualidade do que é veiculado, postado,  
acessado, disseminado pelas infovias. Nessa nova situação, a extração de dados é  
caracterizada pela “indiferença formal”2, marcada não pelo relacionamento empresa-usuário e  
sim, pela unidirecionalidade empresarial. A fonte desses dados e toda e qualquer ação  
resultante deles são as populações. Por conseguinte, tais dados não são subjetividades, mas  
bits, i.e., subjetividades convertidas em objetos extraíveis. Por outro lado, a lógica da  
acumulação do capital das corporações do capitalismo de vigilância volta-se para seus  
potenciais clientes e para seus acionistas e não mais para as populações, fato que representaria  
para a filósofa, mais um rompimento estrutural dessas corporações com o modelo anterior do  
capitalismo industrial. Como ela ressaltou, “[...] A Google e o projeto de big data representam  
uma ruptura com esse passado. Suas populações não são mais necessárias como fonte de  
clientes ou funcionários. Os anunciantes são seus clientes, junto com outros intermediários  
que compram suas análises de dados” (ibid, p. 37).  
Na perspectiva de Zuboff (2018, 2020), ademais, as operações automatizadas e  
ubíquas, alicerçadas sobre os ativos de dados, constituiriam uma nova espécie de ativos: os de  
vigilância. Eles designariam, portanto, as informações pessoais coletadas dos indivíduos ao  
longo do trânsito constante pelas infovias e que são usadas para perfilar, prever os  
comportamentos futuros e ainda moldá-los mediante a publicidade e propaganda direcionadas  
e a manipulação algorítmica. A filósofa apontou, igualmente, que os ativos de vigilância estão  
presentes na nova forma de poder econômico, político e social. Nesse sentido, pode-se afirmar  
que a governamentalidade algorítmica apresenta-se interligada ao uso das tecnologias digitais  
e ao processo de extração e análise de dados descritos por Shoshana Zuboff.  
12  
2
Zuboff (2018, p. 33): “Outra maneira de dizer isso é que a Google é ‘formalmente indiferente’ ao que os  
usuários dizem ou fazem, contanto que o digam e o façam de forma que o Google possa capturar e converter  
em dados.  
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O conceito de governamentalidade algorítmica provém das considerações de  
Antoinette Rouvroy e Thomas Berns (2008) sobre algumas das implicações desenvolvidas a  
partir da racionalidade neoliberal3, e da disseminação do uso das TIs, no complexo  
infocomunicacional internético, por praticamente todos os âmbitos da realidade humana e  
não-humana, que hoje presenciamos. Essa noção denomina a um novo tipo de governança do  
mundo social baseado no processamento algorítmico de imensos volumes de dados (Big  
Data) ao invés da política, das leis e das normas sociais. Em decorrência, essa nova forma de  
governamento foi estabelecida como um novo regime de poder, no qual as TIs, a  
racionalidade neoliberal e a dataficação tornaram-se elementos essenciais e, por conseguinte,  
necessários para a compreensão das relações de poder e da governança na sociedade  
neoliberal contemporânea.  
Três momentos fundamentais permitem e asseguram o funcionamento da  
governamentalidade algorítmica, a saber: a vigilância baseada em dados (Dataveillance) que  
atua no monitoramento constante e ininterrupto dos indivíduos mediante a extração e coleta  
de informações digitais, acarretando a compreensão das ações e interações desses indivíduos  
interconectados na esfera digital; a mineração de dados (Datamining) como o processo que  
envolve a extração, o processamento, a análise de volumes imensos de dados, a modelagem e  
a atualização para o estabelecimento de perfis, de padrões, de tendências e previsões de dados  
relacionadas aos sujeitos individuais e coletivos que podem ser usadas para a tomada de  
decisões4; e por fim, o Profiling ou a criação de perfis detalhados dos indivíduos com base no  
procedimento anterior; tais perfis são empregados na categorização das pessoas, na previsão  
de suas reações ou comportamentos, abrindo brechas para decisões em diferentes áreas como  
políticas públicas, segurança, marketing, dentre outras. Esses três tempos permitem à  
governamentalidade algorítmica o funcionamento que otimiza o controle social, minimizando  
riscos e incertezas associadas ao comportamento humano.  
13  
3
Nas análises do Neoliberalismo, Pierre Dardot e Christian Laval têm diagnosticado e criticado esse modelo  
como uma nova racionalidade global, que está longe de ser apenas uma doutrina econômica ou ideológica. A  
nova razão do mundo foi caracterizada por eles basicamente pela economização, pela autonomia individual,  
pela universalidade da lógica de mercado e por uma nova concepção de Estado. Sob essa universalização,  
identificaram como aos princípios econômicos passaram a organizar, para além da economia, todos os setores  
e âmbitos do mundo da vida, inclusive as relações pessoais. No bojo dessa universalidade subsiste a ideia de  
que é possível quantificar e avaliar todas as atividades e relações sociais, por exemplo, em termos de relações  
de mercado. A economização por sua vez refere-se à lógica econômica que atravessa todas as dimensões da  
existência mediante a transformação das relações sociais em relações mercantis, vistas, especialmente, sob a  
ótica da eficiência e do custo-benefício. Por fim, a autonomia do indivíduo relaciona-se à concepção do  
indivíduo como empreendedor de si, ou seja, como um agente econômico que deve agir e decidir com base em  
critérios de eficiência e de competitividade.  
4 O processo de Datamining opera com métodos estatísticos, com o aprendizado de máquina e com a inteligência  
artificial para produzir conhecimento sobre os vigiados a partir de conjuntos de dados complexos.  
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De acordo com Rouvroy, essa governança é anestética porque contrasta com o que  
Rancière designou como estético quando explicou que vigoraria um sistema de formas a  
priori (convenções sociais e institucionais) na política. Ao observar que a governamentalidade  
algorítmica consiste numa forma anestética, a filósofa francesa a caracterizou como fluida e  
ágil, sem formas a priori e:  
[...] substituídas pelo automático (algorítmico), plástico (ágil), emergências  
hiperfluídas de padrões, pontuações, emparelhamentos, perfis, [...] detectados e  
refinados em tempo real por meio de uma detecção geométrica de distâncias e  
correlações entre pontos de dados [data points] em um espaço puramente métrico  
(Rouvroy, Almeida, Alves, 2020, p. 17).  
Nessa nova situação estamos testemunhando um novo panorama em que se governa o  
desconhecido e no bojo do qual a incerteza progressivamente é eliminada através de  
intervenções preventivas. Para ela, nesse novo contexto não se trata mais de governar o  
reconhecível, o que pode ser punido e controlado nos comportamentos, pois, em verdade:  
A governamentalidade algorítmica não está interessada no indivíduo, mas na  
intensidade das relações estatísticas descobertas entre os "atributos" infra-pessoais  
(que poderiam até ser descritos como infra-atributos, sinais sem significado) que  
transpiram da existência diária, e os padrões de comportamento supraindividuais,  
impessoais, mas "preditivos" gerados na escala industrial a partir de big data (dados  
comprovados a partir de comportamentos de outras populações). Um "perfil" não é  
uma pessoa identificada ou identificável, é uma estrutura impessoal ou um padrão.  
Quando se diz que as pessoas "correspondem" a um perfil, isso não significa que  
elas tenham sido identificadas, mas que "compartilham" com o padrão um número  
estatisticamente significativo de infra-atributos (ibid. p. 26).  
14  
Em suma, para Rouvroy e Berns, a governamentalidade algorítmica consiste numa  
espécie de racionalidade (a)normativa e (a)política baseada na massiva extração, agregação e  
análise automatizadas de dados, que permitem os perfilamentos, a modelização, e a ação  
sobre os comportamentos possíveis, de modo antecipado. Sob essa governança, os sujeitos  
governados são alcançados pelo “poder” não por meio de seu corpo físico ou por sua  
consciência moral, mas mediante seus diferentes e variados perfis estabelecidos e atribuídos a  
eles com base nos rastros digitais de seus trânsitos cotidianos pelas infovias.  
Por conseguinte, nessa toada o futuro está sendo projetado nos presentes controlados.  
Nesse sentido, Antoinette Rouvroy ressalta a necessidade da revisão do papel dos dados em  
nosso cenário atual, uma vez que eles estão sob controle privado das grandes corporações, das  
Big Techs, e fora do controle de natureza democrática.  
Por seu turno, Byung-Chul Han, filósofo contemporâneo sul-coreano, radicado na  
Alemanha e professor na Universidade de Berlim, tem proposto, ao longo de uma série de  
pequenos ensaios publicados neste século, deslindar a dinâmica do neoliberalismo em seus  
diversos aspectos. É consenso entre pesquisadores do tema que o neoliberalismo tem se  
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constituído um novo paradigma civilizacional, cuja extensão está para além do sistema  
econômico que engendra. Ou seja, ele configura sociabilidades – coloniza o mundo da vida –  
e subjetividades: atua nas mentalidades, crenças e formas de pensar e enxergar o mundo. Han  
tem por objetivo estudar e compreender os aspectos socio-psicopolíticos do neoliberalismo e  
argumenta que, neste contexto, as pessoas se autoexploram sob a crença de que são livres,  
quando na verdade estão imersas em um ciclo de otimização e rendimento impostos a si por  
elas mesmas e que beneficia de forma sem precedentes o capitalismo neoliberal. Ele sugere  
ainda que essa autoexploração é mais eficaz do que a opressão direta, pois mascara a  
dominação sob o véu da liberdade individual, levando a um prejuízo para a democracia ao  
enfraquecer a esfera pública e a possibilidade da deliberação coletiva.  
Partindo do pensamento foucaultiano, o filósofo sul-coreano denunciou a  
inadequação dos conceitos de biopolítica e população como categorias genuínas do regime  
disciplinar para descrever ou compreender o regime neoliberal (2014, p. 37). Para ele,  
Foucault deveria ter empreendido a virada para a psicopolítica em seu pensamento, pois,  
enquanto o capitalismo industrial do século XX era adequado para ser explicado a partir de  
uma política dos corpos, sua mutação em neoliberalismo descobriu e passou a explorar a  
psique como força produtiva:  
A virada para a psique e, em consequência, para a psicopolítica, também está  
relacionada à forma de produção do capitalismo atual, pois ele é determinado por  
modos imateriais e incorpóreos. São produzidos objetos intangíveis, como  
informações e programas. O corpo como força produtiva não é mais tão central  
como na sociedade disciplinar biopolítica. Em vez de superar resistências corporais,  
processos psíquicos e mentais são otimizados para o aumento da produtividade  
(Han, 2014, p. 40).  
15  
Esse novo tipo de governamentalidade se bifurca em duas dimensões complementares.  
Em um primeiro momento desenvolve o que Foucault havia iniciado pesquisar antes de sua  
morte: as técnicas de si, ou tecnologias do eu. Ou seja, daquela ambiguidade que criou dois  
regimes de liberdade a partir das relações de direito entre cidadão e estado, Foucault  
“desenvolve uma ética de si historicamente fundada e, em grande parte, desvinculada das  
técnicas de poder e dominação” (Ibid., p. 43). Obviamente, para quem deseja traçar uma  
genealogia do sujeito na contemporaneidade, é imprescindível investigar tanto as tecnologias  
de poder que agem sobre o sujeito, quanto as tecnologias de si que fazem com que os sujeitos  
ajam sobre si mesmos. No entanto, para Han, este é exatamente o “ponto cego” da analítica de  
poder do Foucault:  
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Ele não reconhece que o regime neoliberal de dominação se apropria completamente  
das tecnologias do eu, nem que a otimização permanente de si como técnica de si  
neoliberal não seja nada mais do que uma forma eficiente de dominação e  
exploração (Han, 2014, p. 43).  
Empiricamente, não nos parece nada fortuito a popularização e a proliferação de  
Coachs na esfera pública ao transformar a técnica de si em um negócio lucrativo a serviço dos  
valores estéticos e psicopolíticos neoliberais. Destarte, da mesma forma que vimos com  
Foucault a dimensão utilitária do direito se mascarar e se sobrepor à dimensão pública de  
origem revolucionária, ou o que vimos com Ulrich Beck, onde a falsa dicotomia entre o  
político e não-político mascara a ação política antidemocrática em nome do progresso  
tecnoeconômico, ou mesmo o que vimos com Habermas, onde a esfera pública é dominada  
pelos interesses do sistema na colonização do mundo da vida, Han diagnostica a construção  
do sujeito a partir da tecnologia do eu, enquanto alternativa ética foucaultiana, ser subsumida  
pela psicopolítica neoliberal.  
Em um segundo momento, essa nova governamentalidade assume um caráter  
populacional através dos Big Data no interior da sociedade de controle digital, tornando-se  
muito mais eficiente que o panóptico idealizado por Bentham. Para Han, os Big Data não são  
apenas capazes de monitorar o comportamento humano, mas sujeitar as pessoas a um controle  
e conformação psicopolíticas dentro da governamentalidade algorítmica que vimos no  
presente capítulo.  
16  
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPECTIVAS  
O que nos parece ficar constatado no presente artigo é que a diferença mais substancial  
entre os sistemas de dominação estudados no século passado e na atualidade, é a extrema  
eficácia em, não apenas, configurar novas estruturas de dominação materiais (e virtuais) de  
forma a controlar populações no entorno dos interesses privados do poder econômico-político,  
mas, sobretudo, na capacidade de tornar o dominado cativo de sua própria ilusão de liberdade  
construída ideologicamente. Se concordarmos com a dimensão ontológica do trabalho na  
constituição humana e entendermos a tecnologia (seja qual for) como uma extensão que  
otimiza esse mesmo trabalho, concluímos que a tecnologia não é apenas fruto da produção  
humana, mas também nos produz enquanto humanos e determina nossa subjetividade, na  
medida em que passamos a nos entender como espécie a partir da “exteriorização da memória  
e da superação da dependência dos órgãos” (Hui, 2020, p. 57), ou seja, através da tecnologia.  
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Embora seja tentador compreender o neoliberalismo como uma ruptura das estruturas  
do capitalismo industrial que predominou no século XX, a única novidade na lógica que  
permeou toda a modernidade até agora, se dá pelo avanço disruptivo tecnológico que o  
privilégio do poder econômico produziu. Ou seja, não se trata de uma novidade na lógica de  
extração de valor do trabalho humano, mas na forma como se empreendeu um cativeiro  
psíquico que transformou o ser humano em um escravo voluntário dessa extração.  
Especulamos que se esse avanço acontecesse no início do século XX e não no início do século  
XXI, as mesmas coisas estariam ocorrendo. O que queremos dizer é que o que assistimos hoje  
faz parte de um mesmo cenário que cumpre os mesmos propósitos de sempre, numa crescente  
eficiência que culmina no sonho de todo explorador: a autoexploração feliz do explorado a  
seu favor.  
Destarte, procurar meios de romper com essa lógica que nos torna voluntariamente  
cativos é algo urgente a ser articulado pelas pensadoras e pensadores que podem conseguir,  
com muito esforço, esticar o pescoço em busca de novos horizontes conceituais. Essa lógica,  
tão bem descrita por Foucault em sua arqueologia dos saberes, nos mostra que uma certa  
racionalidade governamental, que estabeleceu e estabelece os regimes de verdade e condutas,  
moldou toda nossa relação com a natureza, criando, pelo menos, duas naturezas: aquela que  
fazemos parte e aquela que se tornou objeto de exploração, uso e enriquecimento de uma  
fração ínfima da humanidade. É preciso voltar para aquela que sempre nos permitiu sentir  
pertencimento e empatia, muito embora a psicopolítica esteja nos moldando para enxergar e  
viver apenas a outra.  
17  
Nossa reconciliação com essa natureza precisa levar em conta que nossa cosmologia é  
tão somente cosmopolítica e, portanto, podemos (porque precisamos) renunciá-la e lutar para  
construir, democraticamente, outra. Sendo cosmopolítica, é mais do que possível que, sem o  
fetiche de voltar a algum passado idílico, possamos pensar mundos possíveis a partir do agora  
e do que temos. E, ainda, sendo cosmopolítica, a nossa tecnologia não pode mais ser vista  
como “a tecnologia”, mas como cosmotécnica, nos termos do pensador chinês Yuk Hui,  
quando nos exorta que “um novo pensamento histórico-mundial precisa emergir diante do  
derretimento do mundo” (2020, p. 46).  
Não se trata, tampouco, de reconduzir as condições do exercício do poder das  
empresas privadas para o Estado, pois historicamente sabemos que o Estado no capitalismo  
burguês se transformou em mero gestor dos interesses capitalistas, mas, sim, promover uma  
ampla descolonização do pensamento, dos saberes e do poder em direção a mais autonomia  
coletiva na deliberação e tomadas de decisão. Ou seja, trata-se de recrudescer, intensificar e  
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radicalizar a democracia e suas condições de possibilidade em termos jamais vistos sob uma  
estrutura tecnológica descolonizada.  
O paradigma colonialista é origem e destino do sistema capitalista e nossa situação  
atual parece nos apontar que seu antídoto passa por uma nova concepção de cidadania e  
autodeterminação coletiva a ser desenvolvida fora do cativeiro psicopolítico que nos  
impuseram, o qual afasta qualquer possibilidade de uma racionalidade comunicativa  
habermasiana em formar um ambiente criativo, plural e deliberativo que valha a pena. Este  
paradigma impõe apenas um tipo de relação entre tecnologia e sociedade, no qual a sociedade  
se torna alvo e suporte da exploração dos indivíduos pela tecnologia a serviço do capital.  
A sugestão de que diferentes cosmotécnicas podem coexistir e contribuir para um  
futuro tecnológico mais inclusivo e sustentável, desafia e desconstrói a perspectiva de uma  
tecnologia universal, propondo, em oposição, uma pluralidade de tecnologias enraizadas e  
desenvolvidas em contextos culturais e geográficos distintos. Olhar a produção tecnológica  
por esse novo prisma, significa deixar de olhar a tecnologia como mero meio para se atingir  
fins, na medida em que todo fazer tecnológico incorpora saberes, crenças e valores da  
sociedade que abriga esse fazer. Portanto, se há saídas para nossa situação atual,  
necessariamente, ela passa pela possibilidade (e porque não dizer: poder) de que a inovação  
local e divergente tenha plena condições de oferecer alternativas para a crise ecológica,  
política e social global.  
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