O NÓ DA NOSSA SOLIDÃO
mediações culturais e literária a partir de Gabriel Garcia Márquez como pensador crítico
Gabriel do Nascimento Barbosa[1]
Universidade Federal do Espírito Santo
gabrielnbarbosa@outlook.com.br
Taiguara Villela Aldabalde[2]
Universidade Federal do Espírito Santo
taiguara.aldabalde@ufes.br
Lucileide Andrade de Lima do Nascimento[3]
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo
O presente trabalho se debruça sobre o tema da mediação cultural em sua pluralidade, no contexto da Ciência da Informação, enquanto categoria autônoma relativa aos processos de representação, comunicação e negociação cultural pluridisciplinar. Explora os entendimentos das dinâmicas da comunicação a partir da obra de Gabriel García Márquez, ganhador do Nobel de Literatura em 1982. Observa a produção cultural como parte da mediação cultural com objeto atomístico chamado ´linguagem´ necessário à leitura como prática da apropriação da informação a partir do objetivo de descrever a literatura como local possível de construção de sentido alternativo ao fluxo hegemônico no contexto da América Latina pela mediação cultural e os objetivos específicos de: (1) localizar a literatura latino-americana de Gabriel García Márquez como resposta identitária; (2) compreender as operações de significação dentro do fluxo informacional e (3) inserir a categoria de mediação cultural como ferramenta de ação nos conflitos simbólicos. Para a realização dos objetivos propostos, desenvolve pesquisa qualitativa de caráter teórico hermenêutico que relaciona os conceitos de mediação cultural, identidade, linguajamento e suas implicações para o entendimento de questões informacionais, partindo do discurso de Gabriel García Márquez quando do recebimento da premiação. Expõe a partir da bibliografia selecionada, os conceitos , e as relações elaboradas entre eles, ordenando os argumentos no formato de texto teórico ensaístico. Conclui-se que, tendo em vista os conceitos levantados e o arranjo teórico fundamentado, as construções da cultura e a atividade mediadora são fundamentais no enfrentamento dos conflitos simbólicos e na luta pelos direitos culturais.
Palavras-chave: mediação cultural; literatura; direitos culturais; identidade latino-americana; Gabriel Garcia Márquez.
THE KNOT OF OUR SOLITUDE
cultural and literary mediations through Gabriel García Márquez as a critical intellectual
Abstrac
The present study explores cultural mediation within Information Science as an autonomous category related to representation, communication, and multidisciplinary cultural negotiation. It examines communication dynamics through the work of Gabriel García Márquez, Nobel Prize winner in Literature (1982). Cultural production is analyzed as part of cultural mediation, considering "language" as an atomistic object essential for reading as a practice of information appropriation. The goal is to describe literature as a space for constructing alternative meanings beyond the hegemonic flow in Latin America through cultural mediation. The specific objectives are: (1) to position García Márquez’s Latin American literature as an identity response; (2) to understand signification processes within the informational flow; and (3) to establish cultural mediation as a tool for action in symbolic conflicts. A qualitative, theoretical-hermeneutic approach is adopted, relating cultural mediation, identity, and language to informational issues, based on García Márquez's award speech. Through selected bibliography, the study presents key concepts and their interrelations, structuring arguments in an essayistic theoretical format. The findings suggest that cultural constructions and mediation are crucial for addressing symbolic conflicts and advocating cultural rights.
Keywords: cultural mediation; literature; cultural rights; Latin American identity; Gabriel Garcia Márquez.
EL NUDO DE NUESTRA SOLEDAD
mediaciones culturales y literarias a través de Gabriel García Márquez como intelectual crítico
Resumen
El presente estudio explora la mediación cultural dentro de la Ciencia de la Información como una categoría autónoma relacionada con la representación, la comunicación y la negociación cultural multidisciplinaria. Examina la dinámica comunicativa a través de la obra de Gabriel García Márquez, Premio Nobel de Literatura en 1982. Se analiza la producción cultural como parte de la mediación, considerando el "lenguaje" como un objeto atomístico esencial para la lectura como práctica de apropiación de la información. El objetivo es describir la literatura como un espacio para construir significados alternativos al flujo hegemónico en América Latina mediante la mediación cultural. Sus objetivos específicos son: (1) situar la literatura latinoamericana de García Márquez como una respuesta identitaria; (2) comprender los procesos de significación dentro del flujo informacional; y (3) establecer la mediación cultural como herramienta en conflictos simbólicos. Se adopta un enfoque cualitativo, teórico-hermenéutico, relacionando mediación cultural, identidad y lenguaje con cuestiones informacionales a partir del discurso de García Márquez al recibir el premio. Mediante bibliografía seleccionada, se presentan conceptos clave y sus interrelaciones en un texto ensayístico. Se concluye que la mediación y la construcción cultural son fundamentales para afrontar conflictos simbólicos y defender los derechos culturales.
Palabras clave: mediación cultural; literatura; derechos culturales; identidad latinoamericana; Gabriel Garcia Márquez.
1 INTRODUÇÃO
A relação do mediador cultural com o seu objeto ainda não revela-se profundamente estudada. E isso não é algo menor visto que, a mediação cultural na prática, pode ser conhecida ou executada como práxis a partir da consciência sobre aquilo que está sendo realizado. Perrotti e Pieruccini (2014) evidenciam no trinômio mediador-texto-leitor. Pode-se dizer que é também um modelo de entidades da mediação considerando mediador-objeto mediado-público ou usuário. Além das entidades, cabe também enunciar as relações mediador com objeto (e vice-versa), mediador com público (e vice-versa) e público com objeto mediado (e vice-versa). Entendidos como objetos de mediação cultural, a escrita (registro das palavras como ato de produção simbólica), o livro e o texto podem realizar signos interpretados pelos usuários, públicos ou leitores, em uma prática mediadora que torna possível a construção de relações ou de novas negociações de sentido sobre e a partir do objeto, e de seu(s) mediador(es) implícitos ou explícitos. A enunciação de Gabriel García Márquez apresenta a sua própria obra em lugar de conflito de representações. Cem Anos de Solidão, Crônica de Uma Morte Anunciada, Amor e Outros Demônios, O Amor nos Tempos do Cólera, todos romances colombianos de mesma autoria, falam sobre uma latinidade inalcançável pela trajetória racional ocidental e, consequentemente, inauguram uma nova forma de diálogo onde o próprio sujeito, antes objeto, descreve a si mesmo em seus próprios termos. É a materialização de uma reivindicação aos direitos culturais. Mais do que isso, uma apresentação que, através do contraste, levanta as questões sobre a negação dos outros direitos (sociais, políticos e civis) que dizem respeito à identidade daqueles mesmos povos.
Assim, a necessidade de aprofundamento sobre a relação mediador-objeto parece evidente quando o objeto mediado é um documento (bibliográfico, museal ou arquivístico), e também uma obra de arte, pois é preciso considerar que ao mediador cultural institucional, ou seja, aquele que em um espaço e tempo que não coincide com o produtor do documento, será incumbido de tornar o documento e suas partes (texto, signos, informações e outros), apropriáveis ao usuário ou público, a depender necessariamente de recuperar a lógica do produtor na prática ou práxis de mediar. No caso da literatura latino-americana, o menor objeto mediado trata-se da informação semântica e por isso podemos dizer que tal objeto é acompanhado por outro, indivisível ou atomístico: a linguagem.
Posto isso, parece que há algo problematizante na relação entre objeto mediado e mediador, por isso opta-se por propor uma reflexão sobre o tema da forma como é possível apreender a seguir.
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo [...]” (García Marquez, 2015, p. 5). Foi pela escolha dessas e outras palavras ao longo de sua trajetória como literato, que podemos considerar que Gabriel García Márquez (GGM), como pensador dos problemas sociais, colocou Macondo no mapa das cidades narradas pela humanidade. É notável que seja a pequena Macondo, um vilarejo tão jovem quanto o próprio mundo de GGM, que sintetize um esforço hercúleo de emancipação da América Latina.
Macondo parece, ao mesmo tempo, tão ficcional quanto as cidades invisíveis de Ítalo Calvino, e como lugar periférico é hoje tão real quanto qualquer cidade latino-americana. Isso marcadamente no território físico do assentamento de refugiados na área municipal em Simmering, periferia de Viena, na Áustria. Macondo, aliás, foi criado e nomeada pelos exilados do Regime Militar de Pinochet (Holzinger, 2017), permanece ao acolhimento dos exilados de ditaduras como a húngara, a chilena e a ditadura capitalista imperialista internacional que faz vítimas na Síria, Afeganistão, Somália, Iraque e Sudão, lugares de origens de pessoas que habitam a Macondo real.
O presente trabalho ensaístico tratará, como logo se percebe, de oferecer reflexões a partir de uma leitura do discurso proferido pelo autor de Cem Anos de Solidão levando em conta Ítalo Calvino e outros pensadores, quando da condecoração com o prêmio Nobel de Literatura, pela ótica das disputas simbólicas de sentido sobre o fluxo informacional no contexto da América Latina. Essa abordagem será guiada pelo pensamento de literatos ao encontro de responder à questão concernente a relação mediador-objeto mediado: “Como a literatura de GGM se coloca como produção cultural criativa com poder de mediação e resistência no fluxo informacional dentro dos arranjos simbólicos da cultura hegemônica na América Latina?”. No caso do literato, considera-se que o pensador também é um mediador de objetos atomísticos ao qual chama-se de ´ideia´ e ´linguagem´ que caracterizarão a sua literatura, ao passo que é também um produtor cultural.
O desenvolvimento da proposta buscará o objetivo geral de “descrever a literatura como local possível de construção de sentido alternativo ao fluxo hegemônico no contexto da América Latina”, levando em conta a intertextualidade entre obras de pensadores e buscando cumprir com os seguintes objetivos específicos: (1) localizar/posicionar a literatura latino-americana de GGM como resposta identitária; (2) compreender minimamente as operações de significação mediadas dentro do fluxo informacional semântico e (3) inserir a categoria de mediação cultural como ferramenta de ação e prática nos conflitos simbólicos.
2 O DESAFIO DE SE DIZER O QUE SE É NO TERRITÓRIO SIMBÓLICO DO OUTRO
Apesar de relevante, busca-se ignorar Macondo real austríaca e pensar Macondo imaginária latino-americana, pois o que nos preocupa é a relação objeto e mediador da informação semântica cuja hegemonia global é anglófona, e ao caso latino-americano é ibérica por decorrência das línguas locais, ou seja, português e espanhol. Neste início, pretendemos localizar o lugar de fala desta Macondo ficção e sua possível fonte informacional. Para tanto, ou seja, para compreender a cidade invisível de GGM parece necessário recorrer ao autor Calvino, particularmente a partir da obra ´As Cidades Invisíveis´. Ítalo Calvino (1990) utiliza um diálogo entre Marco Polo e o imperador Kublai Khan para desenvolver seu livro. Nesse diálogo, Marco Polo cuida de descrever ao imperador as cidades que conheceu. Há, porém, a questão que sustenta a fantasia engenhosa do livro: as cidades não existem, a não ser se considerarmos que o chamado ´mundo das ideias´ popperiano, que hoje impacta práticas científicas, seja o mesmo das ideias literárias.
A princípio, pode parecer claro que, ao se falar de uma obra literária muitas coisas são possíveis, mas isso não quer dizer que não traga implicações para um mundo fora da ficção. Supondo que há, entre Marco Polo e Kublai Khan, uma relação de trocas semânticas informativas, a relação existe, e com esse caráter, ainda que o mérito da informação possa ser julgado, por aquele que possui, a verdadeira verdade como sendo falso. O objetivo dessa explanação não é discutir uma teoria axiológica da informação, sobre sua qualidade de valor de verdade ou mentira a depender de quem julga, de 'como' julga, e 'por que?' julga, mas antes nossa atenção na tentativa de localizar GGM está no enunciar que a informação não é a verdade – não são a mesma coisa ou o mesmo objeto. Isso não é óbvio, pois possivelmente no projeto de disciplinas como Biblioteconomia, Arquivologia, Museologia e da própria Ciência da Informação, pode haver a semente do desejo de civilizar-colonizar por meio da dita ´informação verdadeira´ supostamente atribuída ao valor de verdade para uma informação semântica quando essa é meramente uma representação. Não raramente, pode-se achar na Internet, campanhas governamentais apoiadas na ideia de que os sujeitos devem ser informados por um Estado tecnoburocrata que não leva em conta a produção popular e nem a democracia cultural associada com a mediação cultural concebida a partir dos anos 1970, nos países em que nesta década ocorriam lutas pelos direitos civis.
Com isso, nosso olhar volta-se para Marco Polo e, justamente nesse momento em que ele fala com o imperador, se indagar, assim como ele deve ter feito: como dizer o que ainda não há palavras para dizer? Isso ao literato como produtor cultural é bastante prático quando acha-se na fase de manuscritos pré-composicionais ou quando a obra não possui o objetivo de concluir, mas de provocar, vide o chamado ´Manifesto Comunista´.
Não obviamente Marco Polo era um hábil navegador, pois sua biografia parece bem menos conhecida do que a lenda ou o imaginário. O Polo imaginário pode ter conhecido muito mais ou menos do que 50 cidades descritas no livro de Ítalo Calvino, entretanto, ao estar em contato com o imperador, que diferença faz? Posto que a verdade e a mentira, ao descrever as cidades, tomam a mesma forma: a forma da palavra ou, se o texto de Calvino fosse um blog, poderia ser associada à informação semântica. A forma da palavra ou informação semântica que tentará dizer, e tornar o imperador ciente, de coisas que nunca viu, nem pensa, nem sonha. Que diferença faz inventar se tudo o que Marco Polo disser, posto que o imperador nunca viu, será, de em alguma medida, um esforço de invenção? Como usar a palavra rinoceronte para dar conta de um animal que nunca foi visto pelas terras do império e, acaso opte por descrever, não seria em alguma medida um processo de invenção já que é a primeira vez que tenta criar uma representação do objeto a ser descrito?
Vale notar que não se tratam de invenções como a que Júlio Verne apresenta sentido a serem assimiladas pelo capitalismo em seus empreendimentos tecnológicos ou de manifestos marxistas inventados a serem utilizados para implantação de ditaduras comunistas ou novos regimes políticos, mas antes de coisas criadas e mediadas pelos documentos que registram ideias que podem, tal como Macondo real descrita em Holzinger (2017), ser assimilada por sociedades na realidade concreta.
O processo descrito é a ilustração das implicações de um fenômeno social. Nesse sentido, entende-se que há arranjos que são socialmente estabelecidos entre os indivíduos e, esses arranjos, guiam as dinâmicas das trocas informacionais. As convenções sociais transparecem na própria efetividade da comunicação. Marco Polo não poderia informar ao imperador sem uma língua comum, ainda mais para descrever o que nunca antes fora descrito e isso evidencia que a mediação neste caso é relacionada ao campo da comunicação. A própria curiosidade de Kublai Khan em saber sobre as cidades se dá pela dinâmica social do estranhamento entre um mundo conhecido, aquilo que é identificado pela consciência como o “eu”, e o mundo que é o “outro”. Stuart Hall colocará essas dinâmicas informacionais, ou de comunicação, em esquemas de codificação e decodificação (Hall, 2013). Expõe-se isso para buscar apontar as dificuldades em produzir sentido em território cultural semântico alheio, ou seja, como os produtores culturais de discursos irão dizer sobre si no território que é predominantemente norte-americano e eurocêntrico. Indo além disso, também há desafios aos mediadores culturais, ou seja, ao mediar o documento parece necessário localizar o lugar de fala do produtor, sua lógica e aquilo que originalmente gostaria de representar por meio das palavras.
Compreender as relações semânticas informacionais a partir da dinâmica de codificação e decodificação complexifica momentos das trocas que, como Martín-Barbero (2021) coloca, um modelo semiótico não consegue oferecer soluções para populações na margem do poder. Na proposta de Hall (2013) há um regime de produção de informação, ligado às possibilidades tecnológicas de produção de mensagem e é a partir dessas possibilidades que um determinado conteúdo alcança a forma de mensagem. Nota-se que a relação entre a mensagem e o seu conteúdo ocorre a partir de relações de representação. A mensagem não é exatamente o seu conteúdo, assim como a palavra não exclusivamente o seu objeto. A mensagem é em um meio codificada em uma ordem simbólica estabelecida, por exemplo, em um alfabeto, e convencionada entre os sujeitos que habitam e comungam desses aparelhos simbólicos. A decodificação, consequentemente, depende da capacidade de um sujeito de operar dentro dos signos nos quais a mensagem foi codificada: o processo de decodificação. Tratando-se da informação semântica, por exemplo, a palavra vaca, na língua portuguesa, convencionada socialmente a tratar-se de um animal de gênero feminino, será assim decodificada por quem a lê, se esse for capaz de compreender as dinâmicas da língua portuguesa e relacionar, consequentemente, os sinais gráficos ou fonemas, ao animal referente.
Portanto, a representação, dessa forma, habita um lugar entre o real, o objeto representado, e a forma efetiva de sua realização intelectual e seus efeitos sendo objeto da mediação. Operando através da apropriação, no caso da língua escrita, passa-se a reproduzir no tempo e no espaço, através de diferentes meios e suportes, a presença ausente do objeto referenciado, vide as representações digitais, fac-similares, visuais, artísticas e gráfica dos manuscritos.
Isto posto, vale lembrar que a reprodução de texto literários não é suficiente para sua apropriação, pois o usuário ou público não realiza a fruição no mero decodificar, mas em uma experiência que pode ocorrer em uma prática de mediação cultural e/ou da informação. Assim, considerando que as fontes de informação devem ser preservadas em benefício da sociedade. Em um ciclo da informação que só termina na fruição, a realização plena do ciclo informacional é posta, em termos de competências e habilidades de decodificação, mas não somente já que tal ciclo depende também de estruturas cognitivas que formam-se ainda no útero materno e desenvolvem-se no decorrer da vida. Nada impede, nesse sentido, que o mediador proponha diferentes formas de decodificar, que realize as operações sobre a mesma mensagem, lendo, de forma legítima, outros conteúdos sob a mesma roupagem. A essa dinâmica, Hall (2013) denomina como natureza conotativa da comunicação, em que os sentidos efetivos estão em permanente negociação através da cultura e seus signos de ordenação, também de sentido sociocultural.
Não fica difícil, após o esquema de Stuart Hall, adentrar as ligações com o paradigma social da Ciência da Informação. A compreensão dos sujeitos coletivos e socialmente significativos cobre, então, todas as questões que movem o campo da informação semântica: a produção desta informação, a sua disseminação, o seu uso e a sua efetividade. Todo esse processo é realizado dentro de padrões sociais que possibilitam a sua efetividade. Interessante, inclusive, de ler a efetividade longe de uma concepção harmônica do fenômeno, mas inclusive dentro de suas disputas por elaboração de sentidos. Uma informação, como espécie documental típica do Estado moderno, vide Madrid (1616), pode ser usada de forma objetiva como a justificativa da taxa de juros, por exemplo. Por outro lado, a informação semântica pode ser lida como um ato de coragem e justiça ou não, frente às realidades que demandam austeridade fiscal, ou ainda, contrariamente, como uma afronta a direitos sociais e manutenção de um Estado de bem-estar social. As palavras de Marco Polo, exatamente as mesmas, podem ser recebidas com admiração pelo imperador, admirado com as maravilhas do desconhecido, ou, por outro habitante da corte, com medo e receio pelo diferente e pelo estrangeiro. São recepções que se realizam, em seu uso, de formas distintas, mas enunciadas no mesmo ponto de partida. Marco Polo, mesmo que como personagem de outro livro, não pode estar por acaso em uma discussão que se pretende complexificar relações semântico-informacionais e de identidade. Navegador, descreveu em ´O Livro das Maravilhas´, o extraordinário que habitava terras distantes da Europa. Não é um exercício diferente de todos aqueles que o velho continente batizou de conquistadores por chegarem a América e são objeto de observação de GGM no seu discurso do Nobel de literatura: [...]ao passar pela nossa América meridional escreveu uma crônica rigorosa, que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo, e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar (Garcia Márquez, 2015, p. 7).
A chegada do colonizador europeu na América foi acompanhada por estruturas do Estado moderno imperialista valendo-se de recursos para atingir metas, incluindo a instrumentalização da espécie documental ´informação´ ou ´información´ (Madrid, 1616) de modo recorrente, o que, em Ciência da Informação podemos dizer que a fome ou a necessidade informacional do contexto das relações coloniais guarda semelhanças como o capitalismo extrativista que ocorre hoje no Brasil por parte de empresas multinacionais.
Em uma breve análise sob perspectiva diacrônica, podemos supor e ilustrar, a partir do texto de GGM lido no Nobel de literatura, tal necessidade e fluxo informacional do modo a seguir. Em um primeiro momento, as cartas dos navegadores, informando aos seus regentes sobre o caráter exótico daquelas terras e de sua gente. No segundo, os laços de dominação institucional e governabilidade da metrópole com a colônia. Essas relações mostram como o fluxo de informação está ligado às possibilidades tecnológicas de comunicação e à própria qualidade criativa da informação semântica, onde essa só pode ser montada a partir das características culturais de quem a produz. Neste primeiro momento do empreendimento colonial, a América-Latina só poderia ser descrita via fala dos navegadores, mapas, pinturas, cartas ou relatórios. Todos estes elementos realizados, independentemente de sua natureza, com o sentido que o colonizador poderia dar ao que via com um olhar que notava a diferença como algo ruim a ser apagado e substituído pelos mediadores culturais da Igreja ligada ao Estado colonizador. Essa constatação não é alheia ao que o campo da Ciência da Informação possui em consenso. Zins (2007b) constatou, em um projeto de entrevista com pesquisadores da área, indagando “Who mediates ? […] What being mediated ? […] Why it is mediated ? […] How it is mediated ? […] Where and when does the mediating process happen ? [...]” (Zins, 2007, p.3-4), ao descrever sua posição sobre as relações estabelecidas pela informação, pode ser enquadrada no que o autor configurou como ´culture model´ (Zins, 2007a, p. 340), ou seja, um modelo que não observa as relações de dados-informação-mensagem-conhecimento fora do âmbito da cultura.
Aliás, essa constatação também é significativa, para o presente trabalho, na medida em que GGM utiliza seu espaço de enunciação para denunciar um lugar, geográfico e de identidade, em que autoridades do continente, o europeu, tiveram a primazia de aprontar ou ordenar e dizer o que é a América-Latina. A descrição informacional sobre a América foi dada por um recorte da cultura pan-europeia, resguardando a maior influência dos países com os mais poderosos empreendimentos imperialistas em relação à nula ou menor influência de diversos países europeus cuja cultura é desconhecida até mesmo entre as pessoas das nações do continente. Isso deve ao que está socialmente amparado pela nomenclatura de eurocentrismo. Os eventos latino-americanos, dentro dessa narrativa, ocorrem em função de uma parte Europa. Entender os regimes de informação como regimes culturalmente estabelecidos, inclui entender que há uma relação entre a informação e o objeto informado que não é passiva, mas objetiva, e elaborada. Há uma aproximação dessas questões, posto que são familiares pela própria natureza do conhecimento, na antropologia. Esta questão é legítima nos estudos antropológicos e etnográficos, a questão da tradução daquele não sou eu. Eduardo Viveiros de Castro (2018) discute a percepção da antropologia com o livro imaginado ´El Anti-Narciso´, sendo esse alvo do desejo do autor de ser elevado ao patamar da ficção para responder o que deveria ser conceitualmente a antropologia aos povos estudados. O autor, entretanto, reconhece que nessa obra havia muitas ideias nada anti-narcísicas, incluindo as suas próprias posições preferidas. Com isso, e neste caso, o autor assume como ideia válida que, sob a máscara do outro está o eu (projeção do self/id/superego). O estudo que diz sobre os antropólogos, posto que está no observador as palavras que serão escolhidas para descrever os povos estudados, e, o resultado, pode dizer mais sobre as visões dos antropólogos do que sobre os povos estudados.
A partir dessa visão, podemos estabelecer, se desconsideramos a variedade de tipologias da moral nietzschiana e tomarmos a conduta da fórmula eurocêntrica de ´como´ fazer ciência como deontologia universal, um compromisso ético com essa fronteira de tradução frente as impossibilidades que compõem o próprio fazer conhecer aquilo que está fora do território cultural. Faz-se necessário, para o antropólogo, esforçar-se para fazer o outro falar sobre a própria cultura e respeitar o lugar de fala dos povos. Pensamos que a grande tarefa para os estudos da informação sobre questões culturais, é investigar as relações da produção da informação com o seu produtor, entendo que há uma lacuna de tradução entre o fato, ou o dado, e seu arranjo como informação semântica, visto que não existe fato cultural, mas há representações sobre o fato, como as informações, por exemplo, que podem ser apropriáveis por meio de processos de mediação. Neste sentido, para o mediador de informações digitais semânticas, essas podem ser também objetos culturais. Consideramos necessário pontuar que a práxis de mediação cultural formulada em Aldabalde (2015), associa-se com a democracia cultural e a democratização, de modo a incluir o outro no território do mediar, portanto há dimensão política na mediação cultural.
A fala de GGM não é parte da inclusão, mas da exclusão e periferização da América Latina, o que nos leva a refletir para além, pois em se tratando de laços de hegemonia, dos efeitos homogeneizantes da globalização e o seu paradoxo, posto que o próprio exercício da cultura global gera o contraponto do local (Santos, 2020): como e onde ficam as representações, as formas de conhecimento e entendimento do mundo que não se enquadram na forma de pensamento dominante? O próprio discurso possui, em si, características intratextuais e extratextuais de validação, que permitem que ele habite o fluxo informacional dotado de legitimidade (Foucault, 2015). É importante, inclusive, que seja demarcado como os agentes da Ciência da Informação entendem o que pode ser chamado de ´o corpus do conhecimento´ da mesma, haja visto o modelo cultural de Zins (2007a), não só no âmbito do discurso científico, mas também como parte desse sistema de elaboração de práticas de comunicação.
Nossos estudos buscam compreender isso, porque consideramos que os discursos científicos são parte ativa e aplicada desse sistema comunicacional global, de modo que a informação na sociedade contemporânea como fabricada industrialmente e que, em se tratando no chamado ´livre trânsito´, depende de nossos esforços teóricos e práticos para que os discursos possuam alcance, disseminação e respaldo (Le Coadic, 2004). Não é por acaso a estrutura convencional que esse artigo é inserido para que possa ser considerado conhecimento: uma determinada escolha de palavras, a escrita em primeira pessoa do plural, por mais que haja alguém com uma vivência subjetiva a escolher como sairá cada linha, a enunciação em um congresso e que possa ser tratado como registro recuperável. Mas e o “outro” que está a margem desse aparato simbólico ocidental? Mais do que isso, quando esse “outro”, mesmo à margem, não é ausente de representações, mas está dito e descrito somente pelos olhos de um terceiro que produz a informação semântica sobre o primeiro, do modo como lhe convém ou da maneira que foi possível ao mesmo, dentro de suas condições cognitivas em uma lógica coercitiva típica do capitalismo global?
A denúncia de GGM, no primeiro momento do seu discurso proferido na premiação do Nobel, está em dizer justamente as lacunas tradutórias entre América e Europa: Este livro breve e fascinante, [...] está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os Cronistas da Índias nos legram outros, incontáveis. O Eldorado, nosso país ilusório tão cobiçado, apareceu em numerosos mapas[...] (García Márquez, 2015, p. 7) Há, no discurso do autor colombiano, um movimento de precisar momentos de narrativas sobre a América do Sul. Se há uma lacuna quando do esforço descritivo dos estrangeiros para com a América Latina, ou do pensamento ocidental com a realidade latina, haverá o momento em que a América Latina falará sobre si. Antes disso, porém, cabe o ponto que GGM também aborda: independente de quem a conte, traduza, narre ou invente, a América Latina será a terra de acontecimentos inacreditáveis. Isso não quer dizer, necessariamente, de acontecimentos benéficos, mas de todo conjunto de fatos que podem ser compreendidos desde as maiores crueldades até as maiores realizações: todas alocadas na categoria dos fatos ´inacreditáveis´. A própria obra Cem Anos de Solidão, ao propor o realismo mágico enquanto empreendimento estético, se apropria da condição de maravilha que a própria América Latina parece já possuir. Assim, GGM evoca uma questão de identidade na produção desses discursos de forma que podemos localizá-lo como produtor e mediador cultural de signos latino-americanos por um latino-americano no desafio de dizer o que é a América Latina no território simbólico do outro – e mediado por outros.
3 HABITAR O FLUXO DE INFORMAÇÃO MEDIADA: É POSSÍVEL?
Em uma curadoria digital, as obras literárias de GGM podem habitar hoje sob um fluxo informacional extremamente rápido e massivo mediado por sistemas, máquinas de busca e humanos que recuperam informação semântica. Isso pode ameaçar a circulação do texto, pois a oferta de informação semântica é imensa, ao passo que GGM pode habitar um sítio reduzido a um mero registro. Assim as obras do autor podem acabar pouco lidas em comparação com um imenso volume de informação semântica digital cujos conteúdos concorrem pela atenção do leitor, de leituras e acessos. Observar isso é pertinente, porque o fenômeno do capitalismo informacional global pode atingir não apenas autores, mas também mediadores institucionais.
Portanto, se historicamente GGM é referência da identidade latino-americana, isso tem sido descontinuado a partir 1990 alcançando hoje, década de 1920, no século XXI, pontos críticos de modo que há consumo de conteúdos em plataformas como o Tik-Tok, Twitter e Instagram em número muito mais elevado do que em bibliotecas virtuais com as obras do autor. Há, assim o desafio ao mediador de fazer da biblioteca uma morada do conhecimento literário ao público.
Deste modo entendemos que o principal óbice é cultural, ou seja, é preciso mudar os hábitos, os comportamentos e gerar a reprodução de padrões culturais na sociedade de consumo, buscando em primeiro lugar fazer da biblioteca ou do arquivo espaços de mediação com tempo e espaços ao pensamento crítico, ou para reflexão, dos usuários das plataformas e públicos. Embora possa perder relevância como item pouco recuperado nas buscas, do ponto de vista qualitativo, a obra de GGM mantém-se contemporânea quanto a sua abordagem do real. A questão sobre a realidade social desenvolvida por GGM em seu discurso se aprofunda ao defender que: “É esta realidade descomunal [...] que este ano mereceu atenção da Academia […] Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas [...] (García Marquéz, 2015, p. 9)
Nesse momento há uma diferenciação nítida entre os fatos e sua infinita possibilidade de representação. GGM credita a condecoração ao que América-Latina significa, e não, necessariamente, ao exposto em literatura. Entretanto, não se pode negar que a cerimônia reconhece, acima de tudo, um esforço de construção literária, dessa forma, a láurea pode ser lida, especificamente nesse caso, como o resultado de um esforço de habitação da linguagem. Habitar a linguagem, em contextos de estudos decoloniais, é entendido como o trabalho de se fazer a utilização da língua como meio de existência para os quais ela não foi destinada (Mignolo, 2020). A língua praticada na Colômbia de maneira oficial, o espanhol, é fruto de laços de dominação colonial. Em nível linguístico, a história da colonização versa sobre um exercício contínuo de supressão e deslegitimação de práticas culturais locais pela adoção do hegemônico. A língua espanhola é, portanto, parte de um instrumento de dominação que busca, ao ser utilizada em meios de transmissão oficinal de representação como os documentos ou mídias oficias, definir uma identidade linguística no qual os hábitos, a cultura e o exercício da cidadania só podem ser oficialmente vividos através dela. Mignolo (2020) define essa existência prática da língua enquanto linguajamento. O linguajamento é o modo como ocorrem as apropriações da língua para seu exercício efetivo sobre o real. Trata-se de um exercício de identidade, posto que os usos da língua ficam condicionados pelos arranjos simbólicos que a ordenam. Isso quer dizer que não basta, ou não é suficiente, estabelecer redes de idiomas, como os paralelos entre Brasil, Portugal, Moçambique, Angola, por exemplo. Em cada uma dessas nações, que falam português, a prática do idioma, os seus problemas, as suas questões de tradução e sua relação ao real acontecem de forma diferente.
Ao se propor a relação direta entre uma realidade latina e sua condecoração no universo literário, GGM sinaliza a capacidade de seus escritos de tornar a língua espanhola, antes instrumento de cominação e, como se viu, capaz de objetificar a própria história da América Latina através de suas descrições sob o olhar europeu, em uma língua habitada pela forma de existir colombiana. Para além disso, GGM joga com as legitimidades de saberes ao dizer sobre o que é taxativamente alocado na categoria de exótico, como se pudesse existir uma mágica intrínseca a América Latina. Mignolo (2020) propõe que a literatura também é um status de elite. Antes de ser literatura, as narrativas que não compõem esse status são convencionalmente chamadas de folclore. Ou seja, tornar as narrativas populares, ou não hegemônicas, literatura, também corresponde a um jogo de representações dentro das estruturas de legitimidade. GGM, ao discursar, contrapõe os exercícios de viajantes ao final do século XV. Marco Polo, por exemplo, é lido, atualmente, como uma fantasia, assim como o bestiário em cartas naúticas. As cartas dos primeiros tempos do período colonial correspondem quase, para o leitor contemporâneo, um delírio que poderia ser classificado no surrealismo ou como reações extremas de medo ou pânico ao desconhecido. Há, aí, uma ruptura desses escritos com a realidade e, esses juntamente com suas obras, passam a ser lidos como esse exercício puro de imaginação ou mecanismos de defesa dos sujeitos diante de perigos reais como sofrer punições por não cumprir metas no empreendimento colonial e que hoje parecem irreais, tais como ser devorado por um animal marinho que, dado nosso conhecimento de biologia marinha, não possui poder para fazê-lo. Mas ao tratar da América, GGM diz que: “Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tronar nossa vida acreditável” (García Marquéz, 2015, p. 9-10).
A inversão proposta é que, por um lado, as impressões do europeu ocorrem por conta do que podemos chamar por ´delírio surrealista´ ou em busca de uma compreensão mais humanizada, uma forte reação (positiva ou negativa) ao que é diferente, e, portanto, fazendo ilações fora do contexto e da lógica do produtor, nos parecem repletas de exageros que se despregam da realidade. Por outro, em GGM, o latino-americano, ocorre que o realismo mágico é insuficiente. Isso pois a limitação linguística não permitiu que a América Latina pudesse habitar de todo o papel em toda sua diversidade social e cultural. A América Latina pode assim ser representada como sendo inacreditável. Se não o for, ao menos o autor indica que [...]se estas dificuldades [de dizer a realidade das américas] nos deixam - nós, que somos da sua essência - atordoados, não é difícil entender que talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de suas próprias culturas, tenham ficado sem um método para nos interpretar (García Marquéz, 2015, p. 10).
Cabe indagar se em GGM: Houve uma distância metodológica ou distanciamento metodológico deliberado? A falta de adoção do método popperiano ou outro previsto em alguma escola europeia, nesse sentido, fica compreendida em um arranjo possível de tornar inteligível a realidade do outro. Instaura-se uma incompatibilidade discursiva, cuja existência do chamado ´novo mundo´ não cabe no modo operacional da linguagem do colonizador. O resultado é que o racionalismo ocidental parece incapaz de dar conta das culturas latino-americanas e de outras.
É digno de destaque, entre as relações de dominação efetuadas pelo discurso hegemônico e sua produção massiva de informação semântica, a forma como ele apaga as realidades que não o compõem. Esse apagamento se faz pela homogeneização das diferenças na base da cultura: a transformação de um todo em uma cultura geral, de massas (Martín-Barbero, 2021). O novo processo de submissão não se estabelece pela hierarquia, mas pelo consenso nas formas interpretativas, as diferenças são desfeitas em prol de uma rede de significação unívoca. Entretanto, há uma distância entre entender esse processo como linear, unidirecional e fatalista, condenando toda uma gama de existências divergentes ao destino dado de seu apagamento, e encarar essa nova homogeneidade como fonte de elaboração de novas modalidades de percepção (Martín-Barbero, 2021). A massa, produto dessas novas relações baseadas no consenso cultural, não são supostamente conglomerados passivos de pessoas, mas a nova expressão do popular e de uma nova modalidade de existir que, como propõe Martin-Barbero (2021), não se permitem ser entendidas e representadas pelas formas estabelecidas de poder.
Evocar as impossibilidades de descrição racional da América Latina e, consequentemente sua natureza mágica atribuída pelo colonizador e re-significada pelo colonizado, é estabelecer as fronteiras de incompatibilidade dos esforços europeus e estadunidenses de descrição e informação frente ao dito ´maravilhoso´ do novo mundo. Tais fronteiras ficam ainda mais fortes quando evidenciadas pelos paradoxos de serem justamente produtos do esforço de autoafirmação de uma identidade e das qualidades latinas que passam a ser condecoradas em solo ocidental pelo maior prêmio literário do mundo europeu. É o linguajamento colombiano na literatura que expõe os conflitos globais já, em certa medida, naturalizados, enquanto a possibilidade de uma latinidade plena é negada pelos movimentos de homogeneização. Há uma premiação pela capacidade de GGM brindar o mundo com uma narrativa sobre a cultura que, ao mesmo tempo que promove o autor ao prêmio considerado alto na literatura aos europeus, é negada pelas relações de dominação hoje.
O intervalo existente, entre a relevância da originalidade literária da fabulação latina e o impedimento da realização do território enquanto caminho histórico próprio, e essas duas representações da América Latina pelo mesmo observador, ou seja, América original no fazer artístico e impossibilitada da autenticidade no fazer político, adiciona um fosso cultural nas relações de entendimento sobre o continente americano. A cultura aqui entendida como atividade de enunciação e produção de sentidos. Não se trata de entender a cultura como epistemologia, mas como agente negociante de significados que atua nos embates simbólicos (Bhabha, 2010). Essa concepção, ao encontro do que foi exposto sobre a cultura como meio de significação, não compreende a estaticidade de uma função contemplativa ou revisora de uma faculdade mental, mas a ação sobre o real em um ambiente dinâmico de produção de sentidos e de permanente institucionalização (Bhabha, 2010). É necessário olhar para o mundo e perceber atores agindo para produzir os sentidos e discursos sobre o real, de modo a construir, incluir, apagar e acender movimentos, identidades, legitimidades e relações de poder.
Ao se propor a levar essas questões e esse discurso para a premiação, GGM coloca-se no lugar de produtor de um enunciado capaz de reverberar as disputas simbólicas sobre o referente da América Latina. Colocar em pauta as contradições da referência à literatura produzida pelo colombiano com o descaso do velho continente com as condições de emancipação efetiva da diversidade latina é insurgir contra o exercício perpétuo de descrição dessa diversidade pelo olhar do colonizador. Aliás, o próprio exercício de escrita literária, da habitação de uma língua, pela realidade que essa mesma língua é instrumento de opressão, é realizar a subversão das relações de poder e renegociar o espaço simbólico dos elementos de comunicação usados para informar, misinformar e/ou desinformar sobre a realidade das populações da América Latina, inclusive sobre as reais causas dessa realidade que ainda persistem em um fluxo informacional semântico ditado pelo ritmo e interesses de uma sistema global de informação criado para atender aos interesses pecuniários de capitalistas cuja riqueza financeira concentra-se em espaços de acumulação.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente ao grande volume e imensurável qualidade que podemos chamar de ´mar cultural´ que separa, e, ao mesmo tempo pode unir América Latina e Europa, com todas as suas contradições afirmadas no reconhecimento da academia Sueca, Garcia Marques (2015, p. 11) diz que “E ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida”.
A proclamação de que, há como existir, em toda sua complexidade, apesar das continuidades históricas e da imagem que fazem de si. Não há um destino dado e feito, baseado em discursos estrangeiros e limitados que buscam em coerência de um projeto imperialista manter o controle da mediação sobre a identidade dos povos colonizados. Na verdade, no andamento do discurso, ocorre o oposto: a emergência da América Latina enquanto potência que se quer reconhecida de modo inquestionável após todos os séculos de exclusão e marginalização na geopolítica social global.
O arranjo argumentativo de GGM, agora que já o foi analisado por partes, ocorre em um percurso esquematizado de: (a) exposição da descrição fantástica dos europeus sobre a América Latina, (b) a realidade Latina como movimentos complexos, mas grandiosos, que sustentam a fabulação que preenche as obras do escritor premiado, (c) a contradição entre o reconhecimento da originalidade da literatura e os entraves geopolíticos à realização dos povos latinos em sua autenticidade, assim como pôde ser feito pela fabulação, e (d) o continente americano como lugar potencial de grande desenvolvimento.
Reafirmando o que já foi dito, parece nítida a argumentação de uma incompatibilidade de representações sobre o mesmo território. Ao evidenciar isso e demarcar, no nível literário, o peso da produção que foi agraciada e, no nível não ficcional, a presença de um colombiano na Suécia, solo considerado nórdico e em parte europeu, para receber uma distinção, GGM aproveita do lugar privilegiado de enunciação para ser, no solo colonial, a América que diz a si mesma. É o movimento de ruptura da solidão que se repete como metáfora do fosso cultural entre as duas realidades durante o discurso da premiação. GGM coloca a sua obra, e a si mesmo, efetivamente no espaço de mediação entre as duas culturas sem deixar de considerar seus conflitos sociais.
A ideia de mediação cultural envolve mediadores-textos-leitores, com múltiplos níveis de agência que giram em torno da concepção de promoção de contato entre redes simbólicas de organização distintas como uma biblioteca ou um arquivo e uma população de leitores. Mesmo como fenômeno diverso, e talvez por isso mesmo, deve ser tratado enquanto categoria autônoma, com uma dimensão própria de agência profunda, e não como uma ferramenta de ação subordinada a outros fazeres e conhecimentos (Perrotti; Pieruccini, 2014).
A efetivação dos direitos culturais por práticas mediadoras que realizam fruem dos objetos da cultura envolve todos os mecanismos e limitações engendradas na possibilidade de leitura desses objetos. Pode tratar-se de mecanismos tecnológicos, de limitações geográficas, econômicas, linguísticas, que impossibilitam a fruição de um bem cultural. Nesse sentido, mediar com as comunidades constitui uma atitude ativa de ação sobre a produção, disseminação, acesso e fruição de bens culturais e, consequentemente, das redes simbólicas que representam e o significam (Mörsch; Holland, 2015). Não se pode dizer, apesar da descrição breve, que há simplicidade nesse fazer. Mediar inclui explorar conflitos que operam no nível cultural, talvez naturalizados, que se enraízam em instituições e outras camadas da vida social. É lidar com o estranhamento e com o esforço natural da cultura, de tensionar fronteiras identitárias em busca do direito de representar o mundo e do próprio ser enquanto sujeito cultural que demanda por direitos culturais.
Por fim, Mesmo datado nas décadas de 1960 e 1980, tempo relativamente distante do atual 2024 em termos de tecnologia, o ato da fala do escritor da obra Cem Anos de Solidão, por ocasião do Nobel de Literatura é um ato mediador de realidades representadas a partir das relações sociais de significação, posto que ocupa um lugar de destaque mundial, compreende todas as dimensões do fluxo informacional e de sua realização enquanto direito cultural de produzir (representar culturalmente) a própria existência diante do outro. GGM reafirma a potência do Romance frente a impossibilidade da racionalidade. Da poesia diante da catástrofe e da ´magia´/identidade latina diante dos processos de dominação. Dessa forma, através do premiado autor, acreditamos contribuir para propor um caminho de mediação de leituras possíveis para manifestações de representação do mundo que buscam dar conta, ou denunciar por um pensamento social crítico, os limites do conhecimento socialmente estabelecido, proporcionando provocar novos olhares e abrir os nossos olhos para a diversidade do mundo e a legitimidade de suas formas de expressão.
REFERÊNCIAS
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[1] Mestrando em Ciência da Informação no PPGCI da Universidade Federal do Espírito Santo bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa e Inovação do Espírito Santo.
[2] Professor Dr. do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo.
[3] Professora Dr.ª do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo.